Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2303/13.5TBVC-A.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- Tendo o devedor estabelecimento em Portugal, está, ipso facto, assegurada a competência internacional dos tribunais nacionais para o processo particular de insolvência.

II- Mas é também possível a propositura e o seguimento de um processo particular, mesmo quando o devedor não tem estabelecimento em Portugal, embora, nesse caso, devam verificar-se os requisitos do remetido artigo 65, nº 1, al. d), da lei processual comum.

III- Para a caracterização do lugar que deve ser tido por centro dos principais interesses do devedor deverá atender-se ao local em que o devedor habitualmente os gere, exigindo-se, no entanto, para que isso seja determinante, que este o faça em termos cognoscíveis por terceiros, ou seja, de forma medianamente percetível pelos interessados, conquanto não necessariamente publicitada, ou, sequer, ostensiva.

IV- Assim, a atuação do devedor tem de ser de molde a expressar ou tornar justificada e cognoscível a aparência de que terá alterado ou radicado o seu centro dos principais interesses para um país estrangeiro.

V- A verificação de uma irregularidade processual, que possa influir no exame ou decisão da causa ou que a lei expressamente comine com a nulidade, terá de ser arguida segundo o seu próprio regime, não podendo, nunca – a não ser que o processo tenha de ser expedido em recurso antes do fim do prazo da respetiva arguição -, ser atacada por via de recurso.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: A…

Recorrido: Banco…, S.A..

Tribunal Judicial de Viana do Castelo – 2º Juízo cível.

O Banco…, S.A., veio requerer a declaração de insolvência de A… .

Citado que foi de forma válida e regular, o Requerido veio deduzir oposição invocando, designadamente a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses.

Tendo sido observado o contraditório, o Requerente pronunciou-se no sentido da improcedência da aludida excepção dilatória.

Foi proferido despacho que, tendo julgado improcedente a invocada excepção dilatória da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, determinou o prosseguimento dos autos.

No mesmo Despacho que julgou improcedente a excepção dilatória de incompetência territorial, foi designada data para a realização da Audiência de Discussão e Julgamento, tendo a mesma sido agendada para o dia 24 de Fevereiro de 2014, pelas 14h.

Sucede que, na sequência da notificação do referido Despacho, veio a Mandatária do Recorrente, por Requerimento com a referência n.º 1874731, informar o Tribunal de que se encontrava impedida nessa data, porquanto tinha agendada para a mesma data Audiência de Discussão e Julgamento no âmbito do processo n.º 86793/13.4YIPRT, a correr termos junto do 7.º Juízo de Pequena Instância Cível de Lisboa, tendo requerido, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 151.º do Código de Processo Civil, fosse a mesma dada sem efeito, tendo proposto os dias 6 e 7 de Março de 2014, os quais foram objecto de concordância da Mandatária da Recorrida (cfr. Requerimento com a referência n.º 1875715).

E tal audiência veio-se, efectivamente, a realizar.

Todavia, na sequência do referido Requerimento, foi proferido o Despacho com a referência n.º 6975258, onde se decidiu que “os presentes autos revestem natureza urgente, o que não sucede com o processo identificado no requerimento que antecede, tendo, por isso, prevalência sobre o mesmo.

Assim sendo, mantém-se a data já designada”. Inconformado com tais decisões, delas interpôs recurso o Requerido, de cujas alegações extraiu, em suma, as seguintes conclusões:

“1. Vem o presente Recurso interposto do Despacho proferido pelo Tribunal quanto à arguida excepção dilatória de incompetência em razão da nacionalidade e, bem assim, quanto ao Despacho que manteve para o dia 24 de Fevereiro de 2014 a Audiência de Discussão e Julgamento a realizar nos presentes Autos.

2. Na sua Oposição, o Apelante veio arguir a incompetência absoluta do Tribunal a quo em razão da nacionalidade.

3. Fê-lo com base na aplicação ao caso vertente do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000.

4. Uma vez que o Recorrente tem a sua residência e centro de principais interesses em Paris, França.

5. Do Aresto Recorrido, resulta que o Apelante emigrou para França e aí passou a trabalhar e a residir;

6. À data da propositura da presente Acção, o Apelante já não residia em Portugal, mas sim em França, onde foi citado,

7. Que o Recorrente apenas recentemente alterou o seu domicílio fiscal, contudo, embora tal não resulte directamente do Despacho, mas sim da tramitação processual, fê-lo antes de ter sido citado para intervir nos presentes Autos, portanto, antes de deles ter conhecimento,

8. O Apelante não comunicou por escrito ao Recorrido, mas, tão-somente, verbalmente, a mudança de domicílio.

9. O Apelante é proprietário de ¼ de cinco imóveis e tem uma participação numa sociedade, entretanto declarada insolvente, da qual era gerente.

10. Em face do exposto – e algo paradoxalmente – o Tribunal a quo considerou que o centro de principais interesses do Recorrente se situava em Portugal…

11. Mais (e mais grave) considerou que o direito invocado pelo Apelado (pasme-se, a Declaração de Insolvência do Recorrente), para se tornar efectivo, terá de ser por meio de uma acção proposta em território português…

12. Conforme se deu conta em sede de Alegações, é aplicável aos presentes Autos o Regulamento (CE) n.º 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000, e não o artigo 294.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e a alínea c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, conforme (erradamente) propugnado pelo Tribunal a quo.

13. Os presentes Autos apresentam uma conexão com um ordenamento jurídico estrangeiro, porquanto o Recorrente reside e trabalha em Paris, França.

14. Motivo pelo qual, por se tratar de um Estado Membro da União Europeia, reclama aplicação o sobredito Regulamento Comunitário.

15. Que derroga a aplicação dos preceitos que, no direito interno, tenham âmbito de aplicação coincidente.

16. O artigo 294.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas é inaplicável ao caso concreto, porquanto o mesmo apenas poderá ser aplicado caso já exista uma declaração prévia de insolvência, noutro País, e existam bens que careçam de ser liquidados em Portugal.

17. O que não sucede in casu.

18. Da aplicação do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000, nomeadamente, do n.º 1 do artigo 3.º, resulta que é competente para conhecer do pedido de declaração de insolvência o Tribunal do Estado Membro em que o Requerido tenha o seu centro de principais interesses,

19. Sendo que, no caso das pessoas singulares, tal tem sido entendido como o local onde o Requerido tem a sua residência habitual.

20. Ora, o Apelante tem o seu domicílio habitual em Paris, França, local onde, desde 2011, (naturalmente) reside, trabalha, paga os seus impostos e organiza a sua vida.

21. Embora tenha interesses noutros países, mais concretamente, em Portugal, não é suficiente para concluir pela deslocação do centro de principais interesses para o nosso país o facto de aqui ser proprietário de imóveis, ou de ter mantido, por mais algum tempo, o seu domicílio fiscal no país.

22. Conforme melhor se detalhou em sede de Alegações, o centro de principais interesses do Apelante é em França, motivo pelo qual são competentes os Tribunais daquele Estado Membro e não os Tribunais Portugueses.

23. Pelo que estes são incompetentes em razão da nacionalidade para conhecer do pedido de declaração de Insolvência do Apelante.

24. Devendo o Recorrente ser absolvido da instância.

25. Caso assim não se entenda, sempre se dirá que é ilegal o Despacho que mantém para o dia 24 de Fevereiro de 2014 a Audiência de Discussão e Julgamento a realizar nos presentes Autos.

26. Porquanto, notificada do referido agendamento – que foi feito sem o acordo prévio dos mandatários, a Mandatária do Apelante deu conhecimento ao Tribunal do seu impedimento, em razão de um agendamento prévio para a mesma data e hora.

27. Em cumprimento do seu dever legal, a Mandatária do Apelante comunicou ao Tribunal a quo novas datas para a realização do julgamento em causa.

28. Datas essas que mereceram a anuência da Ilustre Mandatária do Recorrido.

29. Sucede que o Tribunal, não obstante o que se predisse, alegou o facto de se tratar de um processo urgente para indeferir tal adiamento,

30. Ao arrepio dos ditames da lei, da disponibilidade dos Mandatários das Partes e, bem assim, da agenda de julgamentos de um seu Colega Magistrado que, há cinco meses atrás, marcou a diligência em causa, certamente por não ter disponibilidade para o efectuar em momento anterior.

31. Tem sido decidido pelos Tribunais Superiores que a natureza urgente de um processo não possibilita, de per si, a prevalência de um julgamento posteriormente agendado.

32. Motivo pelo qual a manutenção do dia 24 de Fevereiro de 2014 para a realização do julgamento em causa se mostra ilegal.

33. Assim como ilegal é (foi) a realização da audiência de discussão no dia aprazado, sem a presença da Mandatária do Recorrente, uma vez que se mostram violados os artigos 151.º, n.ºs 1 e 2 e 603.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

34. Uma vez que se mostra colocado em crise o princípio do contraditório.

35. Pelo que, quer o Despacho em causa, quer a própria Audiência de Discussão e Julgamento são nulas, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 195.º do Código de Processo Civil.

36. Motivo pelo qual deverá a Audiência de Discussão e Julgamento ser anulada e, bem assim, revogado o Despacho que recusa a alteração da data da mesma, em virtude da indisponibilidade de agenda da mandatária, baixando os Autos à Primeira Instância a fim de ser agendada nova data de audiência de discussão e julgamento.”

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O Apelado apresentou contra alegações, concluído pela improcedência da presente Apelação.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:

- Apreciar se resultam ou não demonstrados todos os pressupostos de que depende a verificação da excepção dilatória da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses.

- Apreciar se deve ou não ser anulado o despacho que, com fundamento na natureza urgente dos presentes autos, manteve a data designada para a audiência, não obstante o prévio agendamento de outra audiência, para o mesmo dia designado para a realizada da levada a efeito nestes autos.

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III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

A factualidade dada como assente na decisão recorrida é a seguinte:

- O Banco…, S.A. veio requerer a declaração de insolvência de A…, indicando a sua residência na Rua do Lamoso, n° 84, 4900-733 em Viana do Castelo.

- Não foi conseguida a citação do requerido na morada indicada pela requerente, pelos motivos constantes de fl. 44.

- O requerido foi citado na seguinte morada: 67, Rue de La Chapelle, 75018 Paris, França - fl. 55.

- O requerido residiu em Viana do Castelo e reside, actualmente, em 67, Rue de La Chapelle, 75018 Paris, França.

- Em 8 de Outubro de 2007, o oponente foi nomeado sócio-gerente da sociedade, entretanto declarada insolvente, denominada "Sociedade…, Lda.". - Cargo que exerceu até Outubro de 2011.

- Em Novembro de 2011 emigrou para França.

- Desde essa data deixou de exercer, de facto, as funções de gerente da referida sociedade.

- Trabalhou para a empresa "S… de France" e, actualmente, trabalha para a empresa "société…", auferindo um ordenado.

- Em 2013, apresentou a sua declaração de rendimentos respeitantes ao ano de 2012 na Direcção Geral das Finanças Públicas, em França.

- As suas despesas com a alimentação, higiene e limpeza, electricidade, telecomunicações, seguro de habitação e transportes são efectuadas e pagas em França. - Tem um cartão de saúde em França.

- O requerido não comunicou, por escrito, à requerente à sua mudança de domicílio.

- Da caderneta predial obtida no dia 1 de Novembro de 2013 - junta aos autos a fls. 255 e 256 consta como domicílio fiscal a morada indicada na petição inicial pelo requerente.

- O requerido tem uma participação na "Sociedade…, Lda." e continua responsável pelas dívidas da sociedade, na qualidade de avalista.

- O requerido solicitou junto da Conservatória do Registo Civil de Viana e do Consulado Português em França a alteração de morada nos dias 9 de Setembro e 14 de Novembro de 2013.

- O requerido é proprietário de 1/4 de cinco imóveis.

Fundamentação de direito.

I- Ora, como resulta do supra exposto, o Recorrente assenta, em súmula, a sua pretensão recursória, no facto de ter, em seu entender, ser aplicável aos presentes Autos o Regulamento (CE) n.º 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000, e não o artigo 294.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e a alínea c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, conforme propugnado pelo Tribunal a quo.

E isto porque o citado preceito do CIRE apenas poderá ser aplicado caso já exista uma declaração prévia de insolvência, noutro país, e existam bens que careçam de ser liquidados em Portugal, o que, na presente situação, assim não sucede.

Por outro lado, da aplicação do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000, nomeadamente, do n.º 1 do artigo 3.º, resulta que é competente para conhecer do pedido de declaração de insolvência o Tribunal do Estado Membro em que o Requerido tenha o seu centro de principais interesses.

Assim, tendo o Apelante o seu domicílio habitual em Paris, França, local onde, desde 2011, reside, trabalha, paga os seus impostos e organiza a sua vida, serão os tribunais desse país, e não os portugueses, os competentes em razão da nacionalidade para conhecer do pedido de declaração da sua Insolvência.

Ora, de tudo o acabado de expender resulta com evidência que, de basilar relevância para a resolução da questão objecto do recurso, se revela a delimitação do âmbito de aplicação do aludido Regulamento do Conselho da União Europeia.

Tal Regulamentos, nos termos do seu artigo 1.º, “é aplicável aos processos colectivos em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico”.

E, como expressamente se refere na respectiva nota preambular desse mesmo normativo, o bom funcionamento do mercado interno da União Europeia “exige que os processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços se efectuem de forma eficiente e eficaz”(considerando 2), de modo a “evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens ou acções judiciais de um Estado-Membro para outro, no intuito de obter uma posição legal mais favorável (forum shopping)”(4), objectivos que não poerão ser “concretizados de modo satisfatório a nível nacional”(5).

Com esse objectivo, o presente Regulamento assenta nestes três princípios nucleares:

1) O princípio de que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro dos interesses principais do devedor, a que é atribuído alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor – artigo 3.º e considerando (12);

2) O princípio do reconhecimento imediato e automático por todos os Estados-Membros das decisões relativas à abertura, tramitação e encerramento dos processos de insolvência abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como das decisões proferidas em conexão directa com esses processos, o que deve conduzir a que os efeitos conferidos ao processo pela lei do Estado de abertura do processo se estendam a todos os outros Estados-Membros – artigos 16.º e 17.º e consideração (22);

3) O princípio de que deve aplicar-se a lei do Estado-Membro de abertura do processo (lex concursus), que “determina todos os efeitos processuais e materiais dos processos de insolvência sobre as pessoas e relações jurídicas em causa, regulando todas as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência” – artigo 4.º e consideração (23).

E assim sendo, à luz destes princípios, parece poder concluir-se com toda a segurança que o órgão jurisdicional abstractamente competente para a abertura de um processo de insolvência que vise a produção de efeitos transfronteiriços, será o do local em que encontrar fixada a sede da empresa e o centro dos seus interesses empresariais, pois que, em decorrência do regime plasmado no aludido Regulamento, a declaração de insolvência, decidida pelo tribunal competente de um Estado-Membro, segundo tais critérios, produz efeitos imediatos nos outros Estados, sendo aplicável ao processo de insolvência bem como aos seus efeitos, a lei do Estado do tribunal competente.

De tudo resulta que todas as acções instauradas depois da declaração de insolvência levada a efeito por um qualquer tribunal de um Estado membro terá, necessariamente, que correr perante o tribunal do processo de insolvência e segundo os trâmites da lei que lhe for aplicável.

Na nossa legislação estipula-se no artigo 7, nº 1) e 2), do CIRE, que “é competente para o processo de insolvência o tribunal da sede da sede ou do domicílio do devedor”, sendo igualmente competente “o tribunal do lugar em que o devedor tenha o centro dos seus principais interesses, entendendo-se por tal aquele em que ele os administra, de forma habitual e cognoscível por terceiros”.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda,[1] ”o recurso ao centro dos principais interesses do devedor, como factor de determinação da competência territorial” é também “determinante para a fixação da competência internacional no âmbito do Regulamento 1346/2000, de 25/05/2000, relativo aos processos de insolvência, como se vê do estatuído no seu art.º 3º, nº 1, conquanto se presuma, até prova em contrário que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária.

Ora, reportando-se ao artº 3º, do Regulamento a competência internacional e o artº 7º do Código, predominantemente, à competência em razão do território, eles, por regra, não conflituam, o que acontece sempre que o centro dos principais interesses do devedor está situa em Portugal, seja no mesmo local do seu domicílio ou sede ou noutro qualquer.

De resto, se a sede ou domicílio estiverem situado em outro país da União, mas o devedor tiver em Portugal o centro dos seus principais interesses, não há contradição entre o Código e o Regulamento em vista do que consta do nº 2 do precito em anotação.

Por outro lado, se aqui existir apenas uma representação, também não há dificuldades, quer em razão do que está determinado, por um lado, no artº 3º, nº 2, do Regulamento, quer, por outro, no artº 294º, nº 1.

Pode, porém, suceder que um devedor domiciliado ou sediado em Portugal tenha, todavia, o centro dos seu principais interesses localizado em outro Estado-Membro da União Europeia.

Ora, nesta eventualidade, e dada a supremacia do Direito comunitário sobre o Direito interno, tem de entender-se o artº 7º do Código no sentido de os tribunais portugueses apenas serem competentes para a abertura de um processo secundário ou territorial, na acepção do mesmo artº 3º do Regulamento (CE) nº 1346/2000.

È, aliás, por isso, que se justifica o regime consagrado no artº 271º.”

Todavia, e não obstante tudo quanto se expôs sobre os elementos de conexão da competência territorial e internacional, daí não resulta que, mesmo quando a competência seja, por aplicação desses critérios, de atribuir a um tribunal de outro Estado Membro, ou até mesmo, quando esse processo até, eventualmente, já se encontre instaurado num desses Estados, uma vez verificados determinados pressupostos, um tal processo, embora com efeitos limitados, não possa também ser instaurado em Portugal.

Na verdade, em conformidade com disposto 294, do CIRE, é permitida a instauração em Portugal, de um processo de insolvência com efeitos limitados, que é denominado de processo particular, ou de processo secundário, quando a abertura desse processo se segue ao decurso de um processo principal iniciado no estrangeiro e reconhecido cá.

Assim, dispõe o nº 1, desse preceito, que, “se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português".

E, segundo o disposto no n° 2, do mesmo artigo, “se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea d) do n° 1 do artigo 65°, do CP.C” (actual artigo 62°, alínea c) do NCPC).

Ora, como e mais uma vez referem Carvalho Fernandes e João Labareda[2], para além do que imediatamente expressa, e que se reporta ao âmbito patrimonial do processo particular de insolvência, está implícito no nº 1, de tal preceito “a admissibilidade deste tipo de processo que, todavia, apenas podem ser desencadeados e, como tal, ter seguimento quando o devedor não possuir em Portugal a sua sede ou domicílio nem centro dos seus interesses principais”.

E - continuam – “também o nº 2, para lá da estatuição que do seu texto explicitamente consta, comporta normas implícitas significativas a saber. Uma, a de que tendo o devedor estabelecimento em Portugal, está, ipso facto, assegurada a competência internacional dos tribunais nacionais para o processo particular de insolvência” (…) “Outra, a de que é ainda possível a propositura e o seguimento de um processo particular, mesmo quando o devedor não tem estabelecimento em Portugal, embora, nesse caso, devam verificar-se os requisitos do remetido artigo 65, nº 1, al. d), da lei processual comum – imposição esta que, sem dúvida, dificulta o recurso ao processo particular na ausência de estabelecimento em solo luso”.

Tecidos estes breves considerandos, cumpre agora reverter à análise da situação vertente.

E, cumprirá desde logo esclarecer que, na presente situação trata-se tão só de aquilatar da competência internacional dos tribunais portugueses por alegada existência de elementos de conexão passíveis de, eventualmente, conferirem competência para a instauração do processo de insolvência do Recorrente a tribunais de outro Estado Membro, ou, e mais concretamente, aos tribunais franceses.

Ora, como resulta da materialidade supra descrita, logrou demonstrado o seguinte:

- O requerido residiu em Viana do Castelo, na Rua do Lamoso, n° 84, 4900-733 em Viana do Castelo, e reside, actualmente, em 67, Rue de La Chapelle, 75018 Paris, França.

- Em Novembro de 2011 emigrou para França.

- Trabalhou para a empresa "S… France" e, actualmente, trabalha para a empresa "s…", auferindo um ordenado.

- Em 2013, apresentou a sua declaração de rendimentos respeitantes ao ano de 2012 na Direcção Geral das Finanças Públicas, em França.

- O requerido não comunicou, por escrito, à requerente à sua mudança de domicílio.

- Da caderneta predial obtida no dia 1 de Novembro de 2013 - junta aos autos a fls. 255 e 256 consta como domicílio fiscal a morada indicada na petição inicial pelo requerente.

- O requerido solicitou junto da Conservatória do Registo Civil de Viana e do Consulado Português em França a alteração de morada nos dias 9 de Setembro e 14 de Novembro de 2013.

E de uma tal factualidade incontroverso resulta que, não obstante as alterações que efectuou na sua vida, e, designadamente, na sua residência e até, eventualmente, no centro dos seus principais interesses, que poderá ter transferido de Portugal, o certo é que, os moldes em que o fez, não cumprindo deveres que sobre si impendiam, sempre impediriam que lhes pudessem ser conferidos quaisquer efeitos juridicamente relevantes, para aspectos agora em apreço.

Na verdade, sendo certo que mudou a sua residência para França, e que também aí, desde 2011, passou a viver, a trabalhar e a fazer toda sua vida, é igualmente inelutável que, apenas em Setembro e Dezembro de 2013, formalizou, publicitou e tornou cognoscíveis essas alterações, nunca tendo cumprido, nem nessas datas, nem posteriormente, a obrigação contratual que havia assumido, no sentido de dar conhecimento, por escrito, ao Requerente, de eventuais e futuras alterações do seu domicílio.

E assim, sendo, à data da instauração da acção, o seu domicílio, conhecido do Requerente, situava-se em Portugal, e, mais concretamente, no endereço constante da petição inicial, não sendo exigível a este último que conhecesse, ou sequer que devesse conhecer, que essa situação já não correspondia à real, sendo antes sobre o Recorrente que recaía o ónus de, disso mesmo, o ter previamente informado, aquando da alteração do domicilio, o que, contudo, e como se disse, assim não fez.

Por outro lado, o modo como o Recorrente/Requerido actuou é de molde a concluir que também não procedeu a uma alteração relevante do seu centro de interesses principais.

Com efeito, pese embora tenha emigrado em 2011, não comunicou a alteração de domicílio, e, tendo sido nomeado sócio-gerente da sociedade denominada "Sociedade…, Lda.", a partir de Outubro de 2001 deixou de exercer, apenas de facto, as funções de gerente da referida sociedade.

Além disso, e não obstante ter apresentado em França em 2013, reportada a rendimentos auferidos em 2012, a sua declaração de rendimentos, manteve uma participação na "Sociedade…, Lda." e continua responsável pelas dívidas da sociedade, na qualidade de avalista.

Ora, e contrariamente ao que sucede com o aludido Regulamento, o nº 2, do artigo 7, do CIRE, “oferece elementos pragmáticos para a caracterização do lugar que deve ser tido por centro dos principais interesses do devedor.

Atender-se-á, então, àquele em que o devedor habitualmente os gere, mas exige-se, para que isso seja determinante, o facto de o fazer em termos cognoscíveis por terceiros, ou seja, de forma medianamente perceptível pelos interessados, conquanto não necessariamente publicitada, ou, sequer, ostensiva”.

Indubitável resulta que, ao não comunicar nem proceder à alteração do seu domicílio, ao manter a aparência do exercício formal da funções de gerente - que só cessou de facto - da mencionada empresa e de responsável pelas dívidas da outra, nada fez, até bem pelo contrário, no sentido de tornar justificada ou cognoscível a aparência de que teria alterado o seu centro dos principais interesses para um país estrangeiro, impondo-se com maior acuidade que praticasse actos tendentes a tornarem manifesta essa alteração, tanto quanto é certo, ser do conhecimento de todos que com ele se relacionavam, que o seu centro de interesses se situava em Portugal, onde, nomeadamente, vinha exercendo uma actividade a nível empresarial.

Destarte, e em decorrência do exposto, atentando em que, designadamente, em consonância com os critérios tidos por bons e relevantes, nem resultou demonstrado que o centro de interesses do Requerido não fosse em Portugal, parece-nos por demais evidente, a competência dos tribunais portugueses para a presente acção.

Mas, mesmo que assim não sucedesse, sempre os tribunais portugueses continuariam a ser competentes, como também do exposto resulta, em face do disposto no artigo 294, do CIRE.

Com efeito, e como se deixou dito, o art.º 294.º do CIRE prescreve que se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português, e se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea d) do n.º 1 do art.º 65.º do CPC.

Por sua vez, esta última norma atribui competência internacional aos tribunais portugueses quando o direito invocado não se puder tornar efectivo senão por meio de acção proposta em território português, ou constituir para o autor dificuldade apreciável a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão pessoal ou real.

E, na situação em apreço, não faltam esses elementos.

O requerido residia em Portugal, onde foi celebrado com a Requerente o negócio jurídico que por ele foi avalizado, conforme consta dos documentos juntos aos autos a fls. 112 a 116.

Conclui-se, assim, que em relação à ordem jurídica portuguesa existem os elementos de conexão pessoal relativos à nacionalidade portuguesa do Requerido, local onde foi realizado o negócio e a conexão real, relativa aos imóveis, que se situam em Portugal.

Improcede, assim, no que a esta parte concerne, a presente apelação.

II- Vem ainda o Recorrente pedir de proceda à anulação do despacho que manteve a designação da audiência de julgamento, já realizada nos autos, para o dia 24 de Fevereiro de 2014.

Como fundamento alega que, logo que foi notificada do referido agendamento, que foi feito sem o acordo prévio dos mandatários, a Mandatária do Apelante deu conhecimento ao Tribunal do seu impedimento, em razão de um agendamento prévio para a mesma data e hora, sendo que, em cumprimento do seu dever legal, comunicou ao Tribunal a quo novas datas para a realização do julgamento em causa, datas essas que mereceram a anuência da Ilustre Mandatária do Recorrido.

Sucede, no entanto, que o Tribunal, não obstante essa atempada comunicação, alegando o facto de se tratar de um processo urgente, indeferiu o adiamento, sem atender à disponibilidade dos Mandatários das Partes e, bem assim, da agenda de julgamentos de um seu Colega Magistrado que, há cinco meses atrás, marcou a diligência em causa, certamente por não ter disponibilidade para o efectuar em momento anterior.

Assim, entendendo que a natureza urgente de um processo não possibilita, de per si, a prevalência de um julgamento posteriormente agendado, deverão o aludido despacho e a própria audiência, entretanto, realizada, ser anulados, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 195.º, do Código de Processo Civil, a fim de ser agendada nova data de audiência de discussão e julgamento.

Importa, desde logo apreciar se a delimitação do thema decidendum, nos termos em que em que foi definido pela recorrente, através das conclusões que formulou com base nas suas alegações, se impõe, sem mais, a este tribunal ou se, pelo contrário, nem todas as questões suscitadas pela Apelante no presente recurso poderão ser conhecidas.

Como é consabido, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do C.P.C., sendo que, da sua própria natureza resulta, neste aspecto, uma importante limitação do seu objecto.

Com efeito, os recursos ordinários mais não visam do que permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda a uma reanálise de alguns e concretos aspectos da decisão recorrida, que tem por exclusivo objectivo apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela.

Ora, diversamente do recurso, que como se disse é interposto para o tribunal hierarquicamente superior, a arguição de nulidades processuais, em conformidade com o que se estipula no seu regime, deve, por regra, ser efectuada perante o tribunal onde são praticadas.

A nulidade processual ou de procedimento, por contraposição à nulidade de julgamento, verificar-se-á sempre que ocorra um afastamento do entre o formalismo seguido no processo e aquele que se encontra previsto na lei, a que esta faça corresponder uma invalidação de actos processuais [3].

A nulidade, com excepção das principais, previstas nos arts. 186º a 194º do C.P.C., apenas se verificam em duas situações:

- Ou quando a lei expressamente o declare;

- Ou quando a irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa, conforme dispõe o nº 1, do art. 195º, do C.P.C..

E como resulta do disposto nos arts. 196º, 2ª parte e 197º, nº 1 do C.P.C., a sua apreciação e julgamento depende da sua arguição por parte daquele que tiver interesse na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto, sendo que, como decorre do preceituado no art. 199, do mesmo diploma legal, a arguição de nulidade secundária é feita perante o tribunal onde a irregularidade foi cometida, podendo ser arguida no tribunal superior no caso de o processo ser expedido em recurso antes de findar o prazo para a parte a invocar.

E, assim sendo, como incontornável se impõe a conclusão de que a verificação de uma irregularidade processual, que possa influir no exame ou decisão da causa ou que a lei expressamente comine com a nulidade, terá de ser arguida segundo o seu próprio regime, não podendo, nunca – a não ser que o processo tenha de ser expedido em recurso antes do fim do prazo de arguição -, ser atacada por via de recurso.

Revertendo agora á análise da situação vertente, temos que a A. veio arguir no presente recurso uma nulidade secundária, uma vez que se está perante invocação de uma irregularidade não expressamente prevista nos arts. 186º a 194º, do C.P.C..

Dúvidas não podem, pois, restar de que estamos perante a invocação de uma nulidade secundária, e, portanto, sujeita ao regime previsto no art. 195º do C.P.C., que não está sujeita ao conhecimento oficioso ou sequer da omissão de formalidade de cumprimento obrigatório que se impusesse ao juiz na prolação da decisão recorrida.

Está sujeita ao regime de arguição prescrito no art. 199º do C.P.C., sendo certo que, incontornavelmente resulta que o prazo para a sua arguição (dez dias – arts. 149º e 199º, nº 1 do C.P.C.), terminou antes de o processo ser expedido em recurso.

Em decorrência do exposto, impõe-se concluir que a arguição da invocada nulidade não pode ser suscitada directamente a este tribunal (art. 119º, nº 3 do C.P.C.) nem pode ser invocada mediante recurso, estando assim este tribunal impedido de a apreciar.

Sumário - art. 663º, nº 7 do C.P.C..

I- Tendo o devedor estabelecimento em Portugal, está, ipso facto, assegurada a competência internacional dos tribunais nacionais para o processo particular de insolvência.

II- Mas é também possível a propositura e o seguimento de um processo particular, mesmo quando o devedor não tem estabelecimento em Portugal, embora, nesse caso, devam verificar-se os requisitos do remetido artigo 65, nº 1, al. d), da lei processual comum.

III- Para a caracterização do lugar que deve ser tido por centro dos principais interesses do devedor deverá atender-se ao local em que o devedor habitualmente os gere, exigindo-se, no entanto, para que isso seja determinante, que este o faça em termos cognoscíveis por terceiros, ou seja, de forma medianamente perceptível pelos interessados, conquanto não necessariamente publicitada, ou, sequer, ostensiva.

IV- Assim, a actuação do devedor tem de ser de molde a expressar ou tornar justificada e cognoscível a aparência de que terá alterado ou radicado o seu centro dos principais interesses para um país estrangeiro.

V- A verificação de uma irregularidade processual, que possa influir no exame ou decisão da causa ou que a lei expressamente comine com a nulidade, terá de ser arguida segundo o seu próprio regime, não podendo, nunca – a não ser que o processo tenha de ser expedido em recurso antes do fim do prazo da respectiva arguição -, ser atacada por via de recurso.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar totalmente improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas pelo Apelante.

Guimarães, 24/04/2014

Jorge Teixeira

Manuel Bargado

Helena Melo

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[1] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, edição 2009, pg. 89.

[2] Cfr. Carvalho Fernandes, Ob. Cit., pág. 898.

[3] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 176.