Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
94/11.3YRGMR
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/04/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras é o sistema meramente formal ou delibação em que o tribunal se limita a verificar se a sentença obedece aos requisitos de forma, ou seja, a revisão se limita à regularidade extrínseca da sentença, e a verificar certas condições de regularidade, como o trânsito em julgado ou se o demandado foi citado para a acção, sendo o único desvio a este sistema a situação prevista no nº. 2 do artº. 1100º., do C.P.Civil.
II – Não constitui reserva de competência exclusiva dos tribunais portugueses, por se não integrar na alínea a) do artº. 65º.-A do C.P.Civil, a partilha dos bens imóveis do património comum do casal numa acção de divórcio, já que ela não tem por finalidade determinar quem é o titular do direito de propriedade ou de outro direito real sobre esses bens nem assegurar a respectiva titularidade.
III - Não ofende a ordem jurídica portuguesa, nem os princípios que lhe estão subjacentes, incluindo os constitucionais, a atribuição a um dos cônjuges, da propriedade exclusiva dos bens imóveis comuns, contra o pagamento de uma importância ao outro conjuge, fixada na mesma sentença que decretou o divórcio.
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES -

I.- A…, residente em…, na Suíça, requereu a presente acção, com processo especial, de revisão e confirmação de sentença estrangeira contra B…, residente na Rua…, em Fafe, pedindo que seja revista e confirmada a sentença proferida em 19 de Janeiro de 2011 pelo Tribunal da comarca de Bulach, Cantão de Zurique, na Suíça, de modo a que produza os necessários efeitos jurídicos em Portugal, com todas as legais consequências.
Fundamenta este pedido alegando, em síntese, que contraiu casamento com o Requerido em 30/12/1989, em Tenões, do concelho de Braga, e que a sentença acima referida, que decretou o divórcio, já transitou em julgado em 8 de Fevereiro de 2011, não tendo sido dela interposto recurso.
O Requerido foi citado e veio dizer não se opor à confirmação da sentença no que se refere ao divórcio à regulação do exercício das responsabilidades parentais. Opõe-se, porém, à partilha dos bens do casal, constante da mesma sentença, por ser matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses, visto os imóveis se situarem em território nacional e ainda porque a situação referida nunca se poderia verificar ao abrigo da lei portuguesa já que não é possível fazer-se a partilha dos bens comuns do casal num processo de divórcio sem consentimento.
Juntas aos autos as peças processuais da acção de divórcio e satisfeito o contraditório, foi dado cumprimento ao disposto no artº. 1099º., do C.P.Civil.
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, espaldando-se em jurisprudência que transcreve, pronunciou-se no sentido da revisão e confirmação da sentença revidenda, em todo o seu conteúdo.
A Requerente e o Requerido mantiveram a posição que cada um havia assumido – a primeira pedindo a confirmação da sentença, não só quanto ao divórcio como também quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais e à partilha, e o segundo propugnando pela exclusão desta.
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II.- O Tribunal é o competente, o processo o próprio. Não há nulidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
Nada obsta a que se aprecie e decida.
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III.- Com interesse para a decisão julga-se provado que:
1.- Requerente e Requerido contraíram casamento em Portugal em 30 de Dezembro de 1989.
2.- Deste casamento nasceram dois filhos: D…, nascido em 3 de Maio de 1990 e F…, nascido em 2 de Dezembro de 1994.
3.- O exercício das responsabilidades parentais foi provisoriamente regulado por sentença proferida no Tribunal Distrital de Zurique, ficando os filhos com a mãe, fixando-se a prestação alimentar a pagar pelo pai, nos termos que constam de fls. 105 - 106 dos autos, que se dão aqui por integralmente reproduzidas (segue-se-lhes o original a fls. 108-112).
4.- A Requerente intentou acção de divórcio contra o Requerido e este, citado, não contestou.
5.- Na referida acção foi proferida sentença pela Juíza Singular da comarca de Bülach que decretou o divórcio e regulou (agora definitivamente) o exercício das responsabilidades parentais do filho do casal, F…, fixando o montante da prestação alimentar e a respectiva actualização.
6.- Mais decidiu que o Requerido deve transferir para a Requerente a propriedade exclusiva dos bens imóveis comuns sitos em Portugal: casa composta de rés-do-chão e um andar com quintal, situada no lugar da Póvoa, freguesia de Palmeira, da comarca de Braga; e loja comercial com o nº. 3 do no prédio sito na Rua…, da cidade de Guimarães.
Impôs ainda ao Requerido o pagamento das prestações alimentares vencidas até ao mês de Novembro de 2010, que ascendiam à quantia de Fr. 24.500 relativamente ao filho F…, e Fr. 4.720 para o filho D…, pagamento que devia ser feito conjuntamente com a transmissão, para a Requerente, dos prédios acima referidos.
A Requerente compensa o Requerido com a importância de Fr. 5.030, pagável em prestações mensais de Fr. 700, sendo paga a primeira com a transmissão, para si, da propriedade dos prédios.
7.- Esta transmissão para a Requerente da propriedade exclusiva dos prédios referidos foi requerida por ela ao abrigo do disposto no nº. 2 do artº. 205º., do Código Civil Suíço, alegando, para tanto, que o Requerido até à data não mostrou interesse pelos ditos imóveis e também não pagou a prestação de alimentos aos filhos. Invocou ainda o interesse destes que, assim podiam vir passar férias a Portugal com a mãe, e o interesse dela própria já que podia, desta forma, “ser indemnizada dos alimentos que dizem respeito ao réu” – cfr. doc. de fls. 115vº., que se dá aqui por reproduzido.
8.- A referida sentença transitou em julgado em 8 de Fevereiro de 2011 - cfr. fls. 12.
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IV.- São três os sistemas puros de revisão de sentenças estrangeiras: reconhecimento de plano, no qual a sentença é reconhecida directamente no estado onde se pretende produza os seus efeitos, independentemente de qualquer intervenção dos tribunais nacionais ou de qualquer processo de exequatur. O sistema de revisão meramente formal ou delibação em que o tribunal se limita a verificar se a sentença obedece aos requisitos de forma de uma sentença e se estão verificadas certas condições de regularidade, como o trânsito em julgado ou se os demandados foram citados; e o sistema de revisão de mérito em que o tribunal conhece do mérito da causa, procedendo a novo julgamento (cfr., Alberto dos Reis, in “Processos Especiais”, vol. II, Coimbra 1982, págs. 141-143, e Ferrer Correia, in “Lições de Direito Internacional Privado”, Universidade de Coimbra 1973, págs. 91- 101, do fascículo “Aditamentos”) .
O nosso sistema é o segundo – revisão meramente formal ou delibação – pelo que a revisão se limita à regularidade extrínseca da sentença.
Sem embargo, há um desvio àquele sistema, que é a situação prevista no nº. 2 do artº. 1100º. – se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a requerimento deste, o tribunal terá que averiguar se a acção lhe teria sido mais favorável caso o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este dever ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.
De acordo com o disposto no nº. 1 daquele artº. 1100º., só podem servir de fundamento de impugnação ao pedido de revisão da sentença a falta de qualquer dos requisitos mencionados no artº. 1096º., ou a verificação de algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artº. 771º., também do C.P.Civil.
Afastado este segundo grupo de fundamentos, por nos autos não haver a mínima referência a eles, cumpre verificar se estão preenchidos os requisitos exigidos pelo artº. 1096.º, referido.
O documento a que acima se fez referência, constante de fls. 13 a 15 não suscita dúvidas quanto à sua autenticidade, estando devidamente assinado pela juiz que a proferiu e por uma secretária judicial, e o seu conteúdo é perfeitamente inteligível.
A sentença não foi impugnada, e, como se encontra certificado a final – cfr. fls. 15vº. -, transitou em julgado em 8 de Fevereiro de 2011.
Sendo, embora, a Requerente e o Requerido, de nacionalidade portuguesa, posto que, à altura, residiam na Suíça, eram os tribunais deste país os competentes quer para a regulação do exercício das responsabilidades parentais quer para o divórcio, visto não ser reserva de jurisdição exclusiva dos tribunais portugueses já que não vem incluída no artº. 65º.-A, do C.P.Civil,
A única questão que foi colocada pelo Requerido é a que respeita ao segmento da decisão concernente à adjudicação à Requerente da propriedade exclusiva (ou melhor, da meação daquele) dos dois imóveis comuns do casal.
Entende o Requerido que por estarmos perante a partilha de bens imóveis situados em Portugal, a competência é exclusiva dos tribunais portugueses, nos termos da alínea a) do artº. 65º.-A, acima referido.
Contudo, como vem referido no acórdão S.T.J., de 12/07/2011, “a partilha dos bens do património comum do casal numa acção de divórcio não tem por finalidade determinar quem é o titular do direito de propriedade ou de outro direito real sobre bens imóveis e assegurar a respectiva titularidade” e, por isso, não se enquadra na alínea a) do referido artº. 65º.-A (acórdão proferido no Procº. nº. 987/10.5YRLSB.S1, Consº. Paulo de Sá, in www.dgsi.pt aí se referindo outros arestos que vão no mesmo sentido).
A decisão revidenda baseou-se no disposto no nº. 2 do artº. 205º., do Código Civil Suíço, que dispõe: “Lorsqu’un est en copropriété, un époux peu demander, em sus des autres mesures prévues par la loi, que se bien lui soit attribué entièrement s’il justifie d’un intérêt prépondérant, à charge de désintéresser son conjoint”, que, numa tradução livre, significa: “Qualquer um dos cônjuges pode pedir, para além de outras medidas legalmente previstas, que um bem comum lhe seja atribuído por inteiro, se justificar com um interesse relevante, e mediante a obrigação de compensar o outro cônjuge”.
Ora, a justificação dada pela Requerente, e acima transcrita em 7., foi considerada relevante. As bases de cálculo do valor da compensação estão explicitadas a fls. 115 vº., no requerimento apresentado pela Requerente quando pediu que lhe fossem atribuídos os bens imóveis referidos, e não parece que a adjudicação da meação do Requerido por aquele valor constitua uma flagrante injustiça.
Se atentarmos no parágrafo 10 da sentença revidenda, em que impõe ao Requerido que “juntamente com a inscrição do imóvel como propriedade plena da Queixosa” deverá pagar os alimentos aos filhos que tem em dívida, num total de Fr. 29.220, não deixaremos de surpreender uma certa relação, que poderá ser simples motivação, entre a adjudicação e a falta de pagamento dos alimentos, um dos fundamentos invocados pela Requerente, a par do interesse dos próprios filhos do casal, para que lhe fossem atribuídos os bens em causa.
De resto, também a lei portuguesa tem meios expeditos para obrigar o progenitor relapso a cumprir com a pensão de alimentos devida aos seus filhos.
E também o nº. 3 do artº. 1699º., do Cód. Civil expressamente dispõe que “os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum”.
Não ofende, pois, a ordem jurídica portuguesa nem os princípios que lhe estão subjacentes, incluindo os constitucionais, a atribuição à Requerente da propriedade exclusiva dos bens imóveis comuns, contra o pagamento de uma importância ao Requerido, pela meação deste.
É, pois, de admitir, também quanto a esta parte, a confirmação da sentença revidenda.
Não se vislumbram motivações de defraudar a lei, quer por banda da Requerente, quer no que se refere ao Requerido.
Nada nos autos aponta no sentido de a Requerente e o Requerido se haverem divorciado em Portugal ou, sequer, que penda qualquer acção de divórcio nos tribunais portugueses, pelo que não há caso julgado nem litispendência.
Posto que o ora Requerido foi citado para a acção, muito embora a não tenha contestado, consideram-se observados os princípios do contraditório e da igualdade dos litigantes.
Dentre os direitos, liberdades e garantias pessoais constitucionalmente reconhecidos, cumpre ressaltar, para o que ora interessa, o da dissolução do casamento, independentemente da forma de celebração – cfr. nº. 2 do artº. 36º., da Constituição.
Daqui resulta a conformidade do decidido com o direito português não havendo incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Em face de quanto vem de expor-se forçoso é concluir estarem preenchidos todos os requisitos exigidos para que a sentença seja confirmada.
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IV.- DECISÃO
Nestes termos, revista a sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Bülach, na Suíça, é a mesma confirmada, para valer e produzir efeitos em Portugal, nos seus precisos termos, quer no que concerne ao divórcio quer quanto à regulação das responsabilidades parentais e quer ainda na parte em que atribui à Requerente os bens imóveis acima melhor identificados mediante o pagamento ao Requerido da quantia aí estabelecida.
Custas pela Requerente, nos termos do artº. 449º., nos. 1 e 2, alínea a), do Cód. Proc. Civil.
Fixa-se à acção, para efeitos tributários, o valor de € 30.001,00.
Notifique e cumpra as demais d.n..
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Guimarães, 04/Dezº./2012
(escrita em computador e revista pelo signatário)
Fernando Freitas
Purificação Carvalho
Maria Rosa Tching