Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
505/16.T8BRG.G1
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
EVOLUÇÃO AGRAVADA DE DOENÇA PREEXISTENTE
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATROMONIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário da Relatora:

Num embate de veículos, imputável a ato ilícito e censurável de segurado da ré/recorrida, que cause ao condutor do veículo lesado a quem não é imputável o embate, lesões que contribuíram para a degradação do seu estado anímico e de imunidade, que precipitaram e potenciaram a evolução agravada da sua doença preexistente de esclerose múltipla, estas consequências:
1. Correspondem a um dano imaterial com seriedade suficiente para ser tutelado pelo direito.
2. São imputáveis objetiva e subjetivamente ao lesante, uma vez que se integram na esfera de risco das consequências danosas possíveis decorrer de uma atuação ilícita e culposa, face a um terceiro nas suas circunstâncias particulares e especiais de vida (em que pode ser ou estar doente), esfera de risco que não pode deixar de ser previsível para o lesante.
3. Devem ser indemnizadas pela equidade, atendendo ao grau da lesão e consequências, à culpa do lesado e aos critérios comparativos das indemnizações fixadas pela jurisprudência por danos não patrimoniais.
Decisão Texto Integral:
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam:

I. Relatório:

V. L. instaurou a presente ação declarativa comum contra X-Companhia de Seguros, SA, na qual:
1. A autora:
1.1. Alegou que foi lesionada pelo veículo segurado da ré, por responsabilidade da condutora deste, ficando com uma incapacidade parcial permanente de 40% (para além de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes das lesões, dos tratamentos e do agravamento da sua doença).
1.2. Pediu a condenação da ré a pagar-lhe: a indemnização global de € 249 705,34 (integrada pelos valores parcelares de 70 000, 00 de danos não patrimoniais, de € 20 000, 00 de dano estético, de € 150 000, 00 de danos patrimoniais da sua incapacidade parcial, de € 5 063, 41 de perda de salários durante a incapacidade temporária, de € 2 561, 62 de custos de saúde), acrescida dos juros legais contados desde a data da citação e até integral pagamento; o valor a liquidar por tudo que viesse a despender no futuro (com tratamentos, operações, estadias hospitalares, medicamentos, fisioterapia, deslocações, tempo perdido e outras que tenham a ver com as sequelas de que ficou a padecer).
2. A ré contestou a ação, aceitando o contrato de seguro, a dinâmica do evento e contestando a extensão dos danos peticionados e os termos da sua quantificação.
3. O Tribunal a quo:
3.1. Dispensou a realização da audiência prévia e proferiu despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e com enunciação dos temas da prova.
3.2. Requisitou perícias e exames, que se realizaram.
3.3. Realizou a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais aplicáveis.
3.4. Proferiu sentença, na qual:
a) Na fundamentação, julgou: que os danos patrimoniais indemnizáveis se contabilizavam em € 2 561, 62 de custos de saúde e em € 513, 15 de perdas salariais e de subsídio de refeição; que os danos não patrimoniais deveriam ser indemnizáveis no valor de € 2 500, 00, tendo em conta «a extensão dos referidos danos, o quantum doloris apurado, o período de tempo em que perduraram os tratamentos efetuados pela autora, as deslocações que implicaram e a inerente perda de tempo, os padrões adotados pela jurisprudência, sob o crivo de critérios de equidade»; que o valor global da indemnização devida de € 5 574, 77 deveria considerar-se pago antes da instauração da ação, tendo em conta que «a ré pagou à autora a quantia de € 5 820, 00, a título de adiantamento por despesas e perdas salariais (4.500, 00 €), e a autora recebeu do ISS a quantia de 661, 50 €».
b) Na decisão, julgou improcedente a ação.
4. A autora interpôs recurso de apelação, no qual:
4.1. Apresentou as seguintes conclusões:
«A
O acidente em causa nestes autos não se deveu a qualquer ato ou conduta da autora
B
A ré aceitou a dinâmica do acidente e assumiu a responsabilidade pela indemnização devida à autora
C
Em consequência do acidente dos autos a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de, pelo menos, 15 pontos: relatório do IML e depoimento do Sr. Perito na audiência de julgamento
D
Nesse sentido deve ser alterado o facto dado como provado em 47 passando a constar: 47. Em consequência do acidente referido em 1. A autora ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de, pelo menos, 15 pontos
E
Esta alteração deve ser feita atento o Relatório do IML constante dos autos e que isso mesmo refere
F
Atentos os esclarecimentos prestados na audiência de julgamento pelo Sr. Perito Dr. H. T.
G
Atento o depoimento prestado e julgamento pela Dra A. S., bem como a declaração da mesma junta com a petição inicial fls 37 – 38
H
Atento o relatório de avaliação e dano corporal no âmbito de direito civil apresentado pela autora a fls 41-51 dos autos
I
Antes do acidente a autora apresentava todas as características constantes dos factos dados como provados em 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59 e 60
J
Por isso, pelas consequências para si do acidente, deve ser indemnizada em conformidade
K
E as quantias peticionadas pela autora não são demais, exageradas ou inadequadas para as consequências para si granjeadas com o acidente dos autos e com os antecedentes da autora
L
Sendo, inclusive, de equacionar que por falta de verificação anterior de qualquer défice funcional à autora deva ter atribuído um défice funcional condizente com o seu atual estado (pelo menos 40 pontos…) conforme o relatou inclusive o Perito do IML Dr. H. T. no decurso das suas explicações na audiência de julgamento
M
Neste sentido, quem estiver obrigado a reparar um dano (como o assumiu a aqui ré / recorrida) deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562º do Código Civil)
N
Ao decidir de forma contrária, violou a sentença ora recorrida e aqui posta em crise, o disposto nos artigos 562º, 563º e 564º do Código Civil».
4.2. Pediu que a apelação fosse julgada procedente, por provada e, em consequência, fosse «revogada a sentença proferida em primeira instancia e substituída por outra que reconheça que a ora recorrente padece, em consequência do acidente de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de, pelo menos,15 pontos, sendo-lhe arbitrada indemnização condizente, nos valores peticionados».
5. A ré respondeu ao recurso, defendendo, após considerar a intempestividade do recurso:
«6. Analisado em traços genéricos, e apesar da não delimitação correcta do objeto do recurso, constata-se que a recorrente é do entendimento que ficou demonstrado o nexo de causalidade entre o sinistro dos autos e a incapacidade (de pelo menos 15 pontos) de que padece.
7. As contra-alegações do presente recurso quase se podiam resumir a uma frase da sentença em crise:
“Provado e provável, como é sabido, são expressões antitéticas dum ponto de vista jurídico.”
8. A fundamentação da sentença é cristalina e, concretamente, do ponto de vista da fundamentação da decisão de facto (quanto ao nexo de causalidade) é de tal densidade que não deixa margem para dúvidas ou necessidade de grandes esclarecimentos, nesta sede. Remete-se, portanto, para essa fundamentação.
9. Ademais, é o próprio perito médico, o Dr. H. T., quem admite não ser possível estabelecer uma relação directa e formal entre o acidente e o agravamento sentido pela recorrente, até porque desconsiderou um surto da doença – esclerose múltipla - ocorrido antes uma semana do acidente, bem como o facto de o acidente não ter sido trave, não ter passado de um pequeno toque.
10. Não obstante, em síntese, chamar-se-á a atenção para as seguintes questões omitidas no recurso e que em muito contribuíram para a decisão do Julgador:
- a recorrente sofre de esclerose múltipla há 16 anos e quase 50% dos doentes com esclerose múltipla necessitam de auxílio na marcha e/ou do uso de cadeira de rodas após 15 anos de duração da doença;
- segundo a médica assistente, a recorrente já sofria, antes do acidente, de paraparésia em grau 3 ou 4; depois do acidente, as perícias valorizaram a paraparésia em grau 4;
- a primeira baixa médica da recorrente ocorre seis meses após o acidente;
- a 13/01/2014, antes do acidente, a recorrente já refere, em consulta, dores e dificuldade na marcha – medo de cair;
- na semana anterior a essa consulta já a recorrente sofrera um surto da doença;
- da confrontação dos exames médicos anteriores e posteriores ao sinistro, não se constata o aparecimento de novas placas desmielinizantes, nem o agravamento da reacção inflamatória, verificando-se uma “sobreposição” da carga lesional nos exames.
11. ENFIM, apesar do muito respeito que a doença da recorrente merece, o certo é que, nos autos, não ficou demonstrado (pelo menos, com o grau de certeza exigível) que o agravamento da incapacidade resultasse do sinistro. E são vários os indícios que apontam no sentido inverso…
12. Não há, portanto, qualquer erro de julgamento, ou qualquer erro na valoração da prova, muito menos, grosseiro. Não há elementos probatórios que imponham a decisão de facto distinta da dos autos.
13. A sentença sob censura deve manter-se integralmente.».
6. Admitido o recurso de apelação no Tribunal a quo e neste Tribunal da Relação, colheram-se os vistos.
7. Proferiu-se acórdão a 23. 01.2020 a determinar a renovação de uma parte da prova realizada no Tribunal a quo, nos seguintes termos:
«Pelo exposto, as juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação da Guimarães acordam ordenar a requisição das seguintes informações complementares (clínica e de avaliação de especialidade neurológica), em reabertura da audiência, nos termos do art.662º/2-a) e 3-a) do CPC:
1. A solicitação à Dra. A. S. do Centro Hospitalar do Alto Ave que se digne informar este tribunal, em 20 dias, mediante os registos de observação da autora realizada em de cada uma das suas consultas de neurologia e/ou dos registos hospitalares e exames por si confirmados (a identificar na informação):
1.1. Em relação ao período anterior ao acidente de 27.01.2014:
1º) Qual a data último surto da autora anterior a 27.01.2014, o período de duração e os sintomas; se a autora teve remissão total ou parcial (e em que termos).
2º) Qual o estado da autora na última avaliação anterior ao acidente de 27.01.2014 (com indicação de data):
a) Quanto à paraparésia, rigidez/espasticidade;
b) Quanto à ataxia- equilíbrio e coordenação motora;
c) Quanto ao sofrimento psíquico/ansiedade;
d) Quanto à necessidade ou não de apoio na marcha.
3º) Qual a imagem da autora na última ressonância magnética (com indicação de data), quanto aos fatores que considerou aumentarem em 2014 (pelo menos, atrofia e buracos negros).
1.2. Em relação ao período posterior ao acidente de 27.01.2014:
1º) Quais as consultas de neurologia da autora em 2014 e quais as ressonâncias magnéticas seriadas realizadas entre 27.01.2014 e 09.05.2015.
2º) Qual o estado concreto da autora em cada uma das consultas de 2014, posteriores ao dia 27.01.2014 (a começar pela primeira consulta, registada no PDS como tendo ocorrido a 05.02.2014), em relação a cada um dos seguintes sintomas e suas consequências (identificados como agravados nas declarações clínicas apresentadas no processo desde 20.10.2014 e na audiência de julgamento de 29.01.2019), de forma a que este tribunal possa conhecer exatamente a data (exata ou aproximada) em que se iniciou cada um dos sintomas agravados e o grau de agravamento:
a) Quanto à paraparésia, rigidez/espasticidade;
b) Quanto à ataxia- equilíbrio e coordenação motora;
c) Quanto ao sofrimento psíquico/ansiedade;
d) Quanto ao apoio para a marcha.
3º) Qual a alteração detetada entre cada uma das imagens seriadas das ressonâncias realizadas entre a data do acidente de 27.01.2014 e a da ressonância de 09.05.2015, com explicação da evolução detetada entre cada uma (sobretudo, quanto ao aumento de atrofia e buracos negros referidos na audiência de 29.01.2019), de forma a que este tribunal possa conhecer exatamente as datas em que se iniciou ou foi detetado os referidos sinais de agravamento referidos a 29.01.2019.
4º) Quais os termos de alteração da imunidade da autora a que se referiu na audiência de 29.01.2019 e desde que data foi detetada.
2. A solicitação ao Prof. Doutor J. C., subscritor do relatório do exame neurológico de fls.306 a 308 no Hospital de Braga, que, no prazo de 20 dias:
a) Atenda aos seguintes dados (de que não dispôs no exame de 06.11.2017):
a1) A doente, com o embate entre veículos ocorrido a 27.01.2014: sofreu uma contusão de dorso, com dor lombar direita e dor patelar direita, sem lesão no aparelho extensor e sem fraturas; sofreu um susto e um stress; foi observada no Hospital de Famalicão e teve alta nesse dia.
a2) A médica neurologista assistente prestou os esclarecimentos complementares clarificados de 1. supra (a remeter em cópia) em relação ao período anterior e posterior ao acidente de 27.01.2014.
b) Apresente informação complementar, na qual se pronuncie sobre a adequação do traumatismo para a evolução da doença de esclerose múltipla, com as perdas funcionais ocorridas após 27.01.2014.».
8. Em resposta a I- 7. supra:
9.1. A Dra. A. S. apresentou informação e esclarecimento a 05.02.2020 e a 21.02.2020, a fls.429 e 430 e a fls.433.
9.2. O Dr. J. C. apresentou relatório complementar a 09.06.2020, a fls.436.
10. As partes exerceram o contraditório de I- 9 supra e prestaram alegações complementares escritas, nas quais renovaram as posições já si defendidas no recurso.

II. Questões a decidir:

1. As questões suscitadas nas conclusões do recurso de apelação, conforme decorre de I supra, situam-se apenas:
1.1. Quanto à matéria de facto: na decisão da impugnação apresentada nos termos do art.640º do C. P. Civil, sobre a conexão entre o evento lesivo (na situação particular em que esta padecia de uma esclerose múltipla anterior, com um surto ocorrido antes do acidente) e a incapacidade de pelo menos 15% fixada à autora/recorrente julgada não provada na sentença recorrida.
1.2. Quanto à matéria de direito: na reapreciação da responsabilidade jurídica que possa decorrer da decisão deste facto de 1.1. supra, no que se refere à obrigação da indemnização (uma vez que a sentença não atendeu à incapacidade funcional e às suas consequências no arbitramento da obrigação de indemnização).
2. A apreciação se o objeto do recurso referido em 1 supra exige o suprimento de deficiências, obscuridades ou contradições da sentença recorrida, ab initio ou decorrente da decisão de 1.1. supra, nos termos do art.662º/2-c) do C. P. Civil.

III. Fundamentação:

1. Matéria de facto a apreciar:

1.1. Matéria de facto provada e não provada na sentença recorrida:

1.1.1. A sentença julgou provados os seguintes factos:
«1. No dia 27 de janeiro de 2014, pelas 13.30 horas, na Estrada Nacional 204, que liga a cidade de Famalicão à cidade de Barcelos, ao km 30,92, na freguesia de ..., concelho de Barcelos, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de matrícula JJ, conduzido por M. P., casada, residente na Travessa …, freguesia de ..., Barcelos, e propriedade da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de ..., com sede no Largo..., Barcelos; e o veículo de matrícula LM, propriedade de I. J., casado, residente na rua de …, freguesia de …, Barcelos, conduzido pela autora, V. L..
2. A estrada nacional 204, ao Km 30,920 na freguesia de ..., Barcelos, recebe pelo lado direito, atento o sentido de marcha Famalicão Barcelos, a Avenida Joaquim José de Oliveira daquela localidade de ... que nela vem entroncar.
3. No término daquela Avenida Joaquim José de Oliveira, mas ainda nesta, à entrada da Estrada Nacional 204, existe no lado direito, atento o mesmo sentido (Av. Joaquim José de Oliveira- Estrada nacional 204), um sinal vertical de STOP.
4. Sinal que obriga todos os condutores, que circulam pela Avenida Joaquim José de Oliveira, e pretendam ingressar na estrada nacional nº 204, a pararem completamente e a deixarem passar todo o trânsito, que pela estrada nacional 204 circule em ambos os sentidos.
5. No indicado dia, hora e local, o veículo de matrícula LM, conduzido pela autora, circulava na estrada nacional 204 no sentido Vila Nova de Famalicão – Barcelos.
6. Pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Vila Nova de Famalicão – Barcelos.
7. A velocidade de cerca de cinquenta quilómetros/hora.
8. No mesmo dia, hora e local, o veículo de matrícula JJ, conduzido pela identificada M. P., circulava na Avenida Joaquim José de Oliveira em direção à estrada nacional 204.
9. O que fazia neste mesmo sentido de marcha, Avenida Joaquim José de Oliveira - estrada nacional 204.
10. Quando o veículo conduzido pela Autora circulava na referida estrada nacional 204, a passar o referido entroncamento e nas condições acima referidas, surge do seu lado direito o veiculo JJ proveniente da referida Avenida Joaquim José Oliveira.
11. O qual ingressou na referida estrada nacional 204, de forma súbita e inesperada;
12. Pretendendo a sua condutora M. P., efetuar uma manobra de mudança de direção à sua esquerda, no sentido Barcelos - Vila Nova de Famalicão.
13. Para tal, a identificada M. P. ocupou com o JJ a metade direita da faixa de rodagem atento o sentido Vila Nova de Famalicão-Barcelos, e por onde seguia o veiculo conduzido pela autora.
14. Indo o veículo conduzido pela M. P. embater com a sua parte lateral esquerda, na parte da frente, lado esquerdo, do veículo LM.
15. Embate que se dá totalmente dentro da metade direita da faixa de rodagem da estrada nacional 204, atento o sentido de marcha seguido pelo veículo conduzido pela Autora: Vila Nova de Famalicão - Barcelos.
16. A condutora do JJ, antes de ingressar na referida estrada nacional, não parou aquele veículo em obediência ao sinal de STOP existente no término da avenida por onde seguia;
17. Nem deteve o veículo que conduzia para permitir a passagem do veículo LM.
18. A condutora do JJ entrou na referida estrada nacional sem antes se certificar se na mesma circulava qualquer outro veículo.
19. No local do embate o piso é em alcatrão, e encontrava-se molhado devido à chuva que se fazia sentir na hora do acidente.
20. A faixa de rodagem tem de largura 6,60 metros e é dividida a meio, por uma linha longitudinal branca e descontínua, em duas metades ou hemi-faixas de 3,30 metros cada uma.
21. A condutora do JJ circulava distraída, sem atenção aos outros utentes da via e aos sinais de trânsito aí presentes.
22. O sinistro não resultou de causa, ou força maior, estranha ao funcionamento dos veículos intervenientes.
23. A identificada M. P. conduzia o veículo JJ sob as ordens direção e fiscalização da entidade patronal, a que se encontrava ao serviço à data do acidente, a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de ..., a troco de um salário mensal.
24. Como consequência direta do acidente a autora sofreu traumatismo da coluna lombar e joelho direito.
25. Sofreu ainda ansiedade psíquica.
26. Logo após o acidente, a autora foi transportada para o Hospital de Vila Nova de Famalicão, onde foi socorrida às lesões sofridas.
27. Foram-lhe efetuados exames radiológicos à coluna lombar e joelho, duas incidências.
28. A autora teve alta hospitalar no mesmo dia 27.01.2014.
29. E regressou à sua habitação, sita na freguesia de ....
30. As lesões referidas em 24 demandaram 7 dias de incapacidade geral total e 15 dias de incapacidade geral parcial.
31. A autora foi observada, quer por médicos particulares, quer pelos serviços, médicos da ré.
32. A autora à data do acidente era seguida em consulta de neurologia no serviço de Neurologia do Hospital do Alto Ave, por quadro de esclerose múltipla.
33. De que padecia há cerca de 16 anos.
34. Em consequência do acidente dos autos a autora sofreu dores.
35. A autora revela marcha atáxica com desequilíbrio fácil, com perda de autonomia na marcha, tem dificuldades de preensão pelo trémulo que desenvolveu.
36. Foram-lhe aplicadas medidas terapêuticas mais agressivas para controlo dos sintomas.
37. A autora iniciou tratamentos de fisioterapia na …, sita na rua de …, freguesia de ...,
38. A autora usou canadianas.
39. Atualmente a autora necessita de ajuda externa para apoio e para se movimentar, quer humana, quer instrumental, designadamente bengala e canadianas.
40. A autora desenvolveu síndrome depressivo reativo a todo o contexto clínico evolutivo, devido à sua nova condição de dependente.
41. A autora andou em consultas de psicologia nos serviços clínicos da ré.
42. Nos quais fez 10 (dez) sessões de psicologia orientadas pelo Dr. J. A..
43. Ao fim das quais foram as mesmas interrompidas por iniciativa da ré.
44. A ré recusou-se a prosseguir o referido tratamento e os serviços clínicos da Ré deram à autora “Alta curada Sem Desvalorização”, em 15/09/2014, data da consolidação médico-legal das lesões referidas em 24 e 25.
45. A autora apresenta tremores e dificuldade na fala.
46. A dependência de ajuda de terceiros causou tristeza na autora, que sente vergonha pelas sequelas do foro estético e funcional, pelos trémulos e claudicar da marcha.
47. A autora padece de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de, pelo menos, 15 pontos.
48. As lesões referidas em 24 causaram à autora um quantum doloris de grau 5 numa escala de 7.
49. A autora, à data do acidente, trabalhava num estabelecimento comercial, de perfumaria, pertença da empresa Y – Instalação de Telecomunicações, Lda, com sede na Rua …, como caixeira de 1ª categoria, mediante a remuneração mensal ilíquida de 900.00€, acrescida de subsídio de alimentação de 4,21 € por dia.
50. E com direito a férias e subsídio de férias e de Natal.
51. A Autora, ao tempo do acidente, tinha 41 anos de idade, era uma pessoa autónoma, independente, apta para o trabalho, com autonomia da marcha.
52. Realizava as tarefas do dia-a-dia, sem ajuda. 3. Era fisicamente bem constituída, dinâmica, trabalhadora, alegre e otimista.
54. Era ministra da comunhão e catequista na Igreja da sua residência, em ....
55. Participava em eventos sociais, como casamentos, jantares com amigos, idas ao centro comercial e ao cinema.
56. Executava as lides domésticas como fazer as camas, cozinhar, aspirar, passar a ferro.
57. Executava as tarefas no seu emprego de comércio de cosmética.
58. Subia e descia escadotes para colocação de produtos em estantes.
59. Efetuava a manutenção e limpeza da loja.
60. Praticava natação e frequentava o ginásio.
61. A autora carece de ajudas médicas e medicamentosas, de tratamentos de medicina física e de reabilitação, com vista ao fortalecimento muscular e treino de marcha.
62. Durante o período referido em 30 a autora deixou de exercer as suas normais ocupações.
63. Devido ao agravamento do seu estado clínico a autora passou a tomar Gabapentina Gabamox 300 mg e Tridural 100 mg. ....
65. Durante os tratamentos a que foi sujeita a autora teve de sujeitar-se aos horários das consultas médicas e sessões de fisitoterapia, deslocando-se para o efeito.
66. Mercê do acidente narrado nos autos a autora sentiu tristeza, angústia, incómodos e transtornos.
67. A autora despendeu: na compra de umas canadianas a quantia de 10.61€; numa bengala a quantia de 10.00€; em sessões de fisioterapia a quantia de 1.550.00€; em consultas de osteopatia a quantia de 90,00€; numa ressonância no Hospital ... a quantia de 105.00€; em médicos particulares e elaboração de relatórios a quantia de 410.00€; na clinica médica de … a quantia de 30,00€; no centro hospitalar do Medio Ave a quantia de 20.65€; em medicamentos a quantia de 102.00€; num suporte dorsal a quantia de 37.36€; no Hospital Privado da … a quantia de 196.00€.
68. A autora recebeu do ISS a quantia de 661,50 €, reembolsado pela ré em 17.11.2014.
69. A ré reconheceu e aceitou o seu dever de indemnizar a autora, e entregou à mesma para fazer face a despesas, designadamente, médicas e medicamentosas entre outras, a quantia de 5.820.00€, da qual 4.500,00 € a título de adiantamentos por perdas salariais.
70. A ré, por contrato de seguro em vigor ao tempo do acidente e posteriormente, titulado pela apólice nº 850002341 assumiu a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo identificado veículo JJ.
71. A autora padecia, antes do acidente, além de esclerose múltipla, de hipertensão arterial.
72. A autora foi praticante de atletismo, tendo sido campeã nacional.
73. O estabelecimento comercial de perfumaria onde a autora trabalha está aberto ao público de 3ª feira a sábado.
74. A demandante desloca-se diariamente ao estabelecimento comercial, onde trabalha entre as 10:00 horas e as 12:30 horas e, de tarde, entre as 14:30 e as 19:00 horas, deslocando-se no veículo que interveio no acidente.».

1.1.2. A sentença julgou não provados os seguintes factos:
«i) Como consequência direta e necessária do acidente dos autos a autora sofreu alterações neurológicas no sistema motor e cereboloso com dificuldades na marcha, perda de equilíbrio, ataxia e síndrome depressivo reativo.
ii) No Hospital de Vila Nova de Famalicão foram efetuadas à autora limpezas cirúrgicas, desinfecões e curativos às escoriações e feridas sofridas.
iii) Foram-lhe prescritos analgésicos.
iv) Após o regresso à sua habitação, a autora manteve-se retida no leito, em repouso absoluto.
v) Decorrente do acidente dos autos e em consequência do mesmo e das lesões sofridas, a autora sofreu um agravamento da sua situação clínica.
vi) O referido em 35 e 36 foi causado direta e necessariamente pelo acidente narrado nos autos.
vii) Após o acidente, e durante quatro meses, a autora deslocou-se todos os dias ao serviço de neurologia do Hospital do Alto Ave.
viii) O que faz ainda agora uma vez por mês.
ix) O uso referido em 38 ocorreu em consequência das lesões sofridas no acidente em causa nos autos.
x) A autora precisa de tratamento psicológico.
xi) A autora sofre de cefaleias, ansiedade, medos e receios exagerados e de maior irritabilidade, por consequência do acidente em causa nos autos.
xii) O défice referido em 47 é consequência das lesões referidas em 24 e 25.
xiii) À data do acidente, a autora assistia a todas as reuniões escolares, às atividades curriculares e extracurriculares relativas ao seu filho, que acompanhava em desportos.
xiv) A autora deixou de fazer o referido em 54 a 60 em consequência do acidente em causa nestes autos, deixando, por via dele, de ser autónoma e passar a ser dependente de ajuda de terceira pessoa e de instrumentos de apoio.
xv) As necessidades referidas em 61 são decorrência do acidente descrito nos autos.
xvi) Por causa do acidente a autora ficou deprimida, com vergonha do seu estado físico e isolou-se, deixou de ir às reuniões escolares e actividades curriculares e extracurriculares do seu filho, deixou de participar nas suas atividades sociais e religiosas.
xvii) As sequelas das lesões sofridas no acidente em causa nos autos continuam a provocar na autora dores físicas, incómodo e mal-estar e implicam esforços acrescidos na marcha ou quando tem de ultrapassar barreiras físicas ou efetuar outros movimentos, que irão acompanhá-la por toda a vida.
xviii) Em consequência do acidente dos autos e da sua incapacidade absoluta para o trabalho, a autora não gozou as férias de verão a que tinha direito no mês de agosto de 2014.
xix) Para além de não ter gozado férias relativas ao ano de 2014 e durante o tempo em que esteve com incapacidade para o trabalho deixou de receber de salários e subsídios a que tinha direito o montante global de 5.063,41 €.
xx) Durante o período referido em 30 a autora necessitou da ajuda de familiares para se levantar, andar, lavar, vestir e comer.
xxi) O referido em 63 decorreu do acidente em causa nos autos.
xxii) A autora deixou de ter vontade em manter relações sexuais em consequência do acidente e das lesões nele sofridas.
xxiii) Como consequência direta e necessária do acidente dos autos, a autora padece de trémulo intenso, claudica ao andar e desequilibra-se facilmente o que desfeia o seu aspeto geral e que constitui um dano estético permanente fixável no grau 5/7 numa escala de sete; e ficou com uma incapacidade parcial e permanente de 40 pontos.
xxiv) A autora necessitará de efetuar mesmo após ser dada entrada da presente ação, despesas com tratamentos, medicamentos, fisioterapia, psicoterapia, despesas com ajuda de terceira pessoa para se movimentar, bem como de efetuar outras despesas relacionadas com as lesões sofridas com o acidente dos autos.
E todos os demais, vertidos na petição inicial, a que se não fez referência expressa, tida aquela como expurgada de todas as alegações repetidas, conclusivas ou que encerram matéria de direito.».
1.2. Organização e apreciação liminar da matéria de facto referida de III- 1.1. supra, na parte relevante para apreciar as questões a decidir referidas em II supra:
A matéria de facto provada e não provada da sentença recorrida, transcrita em III-1-1.1. supra foi lavrada pelo Tribunal a quo sem organização cronológica e com indefinições em matéria relevante para a apreciação do objeto do recurso (ao contrário das suas obrigações de descrição dos factos concretos de forma situada no espaço e no tempo, com ordem e clareza).
Esta matéria de facto, apesar de ter sido impugnada pela recorrente apenas quanto a um facto (o facto principal da causalidade entre as lesões do acidente e a percentagem da incapacidade parcial provada) e não ter sido impugnada quanto aos demais factos (nomeadamente, os factos que preenchem essa incapacidade e as suas consequências e os factos que julgaram não provados nexos de causalidade entre os mesmos e o acidente), deve ser compreendida nos seu alcance e nos seus défices, nomeadamente porque os fundamentos da impugnação apresentada se baseiam em matéria de facto provada e porque a decisão da mesma pode vir a colidir com matéria de facto não impugnada.
Assim, importa apreciar a matéria de facto relevante para a apreciação do objeto do recurso referido em II supra.
Neste contexto, e por um lado, quanto à situação da autora/recorrente anterior ao acidente de 27.01.2014 (clínica, ocupacional e funcional), verifica-se que a sentença julgou provado que a autora, de 41 anos:
1) Padecia da doença de esclerose múltipla desde há 16 anos (com acompanhamento em consulta de neurologia) e de hipertensão arterial (embora sem qualquer descrição explicativa dos sinais e sintomas das referidas doenças na autora na altura antecedente ao acidente, para além da descrição que as mesmas não lhe afetavam a autonomia das suas atividades, nos termos referidos em 2) infra).
Esta situação encontra-se descrita nos seguintes factos provados na sentença recorrida:
32. A autora à data do acidente era seguida em consulta de neurologia no serviço de Neurologia do Hospital do Alto Ave, por quadro de esclerose múltipla. 33. De que padecia há cerca de 16 anos. 71. A autora padecia, antes do acidente, além de esclerose múltipla, de hipertensão arterial.
2) Apesar da doença referida em 1), era bem constituída e alegre e desempenhava com autonomia os trabalhos domésticos da sua casa, as funções da sua profissão, as atividades sociais, desportivas e recreativas (presumindo-se que esta autonomia se refira à desnecessidade, num espectro mais alargado, de carecer de apoio externo para se movimentar).
Esta situação encontra-se descrita nos seguintes factos provados na sentença recorrida:
51. A Autora, ao tempo do acidente, tinha 41 anos de idade, era uma pessoa autónoma, independente, apta para o trabalho, com autonomia da marcha. 52. Realizava as tarefas do dia-a-dia, sem ajuda.
53. Era fisicamente bem constituída, dinâmica, trabalhadora, alegre e otimista.
56. Executava as lides domésticas como fazer as camas, cozinhar, aspirar, passar a ferro.
49. A autora, à data do acidente, trabalhava num estabelecimento comercial, de perfumaria, pertença da empresa Y – Instalação de Telecomunicações, Lda, (…), como caixeira de 1ª categoria, mediante a remuneração mensal ilíquida de 900.00€, acrescida de subsídio de alimentação de 4,21 € por dia. 50. E com direito a férias e subsídio de férias e de Natal.
57. Executava as tarefas no seu emprego de comércio de cosmética. 58. Subia e descia escadotes para colocação de produtos em estantes. 59. Efetuava a manutenção e limpeza da loja.
54. Era ministra da comunhão e catequista na Igreja da sua residência, em .... 55. Participava em eventos sociais, como casamentos, jantares com amigos, idas ao centro comercial e ao cinema.
60. Praticava natação e frequentava o ginásio. 72. A autora foi praticante de atletismo, tendo sido campeã nacional.
Por outro lado, quanto à situação da autora após o acidente de 27.01.2014, verifica-se que a sentença:
3) Julgou provado que a autora sofreu lesões e dores físicas e ansiedade psíquica causadas pelo acidente e consequências das incapacidades temporárias (ainda que sem clarificação e explicitação dos traumatismos provados e das suas consequências; estes factos, todavia, já foram objeto de apreciação indemnizatória na sentença recorrida, de forma que não foi objeto de recurso).
Esta situação encontra-se descrita nos seguintes factos provados na sentença recorrida:
24. Como consequência direta do acidente a autora sofreu traumatismo da coluna lombar e joelho direito.
25. Sofreu ainda ansiedade psíquica. 66. Mercê do acidente narrado nos autos a autora sentiu tristeza, angústia, incómodos e transtornos.
34. Em consequência do acidente dos autos a autora sofreu dores. 48. As lesões referidas em 24 causaram à autora um quantum doloris de grau 5 numa escala de 7.
30. As lesões referidas em 24 demandaram 7 dias de incapacidade geral total e 15 dias de incapacidade geral parcial. 62. Durante o período referido em 30 a autora deixou de exercer as suas normais ocupações.
4) Julgou provados alguns factos objetivos incapacitantes e suas consequências e julgou não provado que os mesmos foram causados pelo acidente, em particular:
a) Quanto à situação clínica global:
__ Julgou provado conclusivamente que a autora sofreu um agravamento clínico e careceu de medidas terapêuticos mais agressivas (sem indicar a que se refere o agravamento e com dados comparativos, ainda que se possa presumir referir-se aos problemas da marcha provados em 35 e 61; sem identificar a data desde a qual ocorreram os factos), nos seguintes factos provados da sentença recorrida:
36. Foram-lhe aplicadas medidas terapêuticas mais agressivas para controlo dos sintomas. 61. A autora carece de ajudas médicas e medicamentosas, de tratamentos de medicina física e de reabilitação, com vista ao fortalecimento muscular e treino de marcha. 63. Devido ao agravamento do seu estado clínico a autora passou a tomar Gabapentina Gabamox 300 mg e Tridural 100 mg. ....
__ Julgou não provado que a situação e medicação referida supra se devesse ao acidente, nos seguintes factos não provados:
i) Como consequência direta e necessária do acidente dos autos a autora sofreu alterações neurológicas no sistema motor e cereboloso com dificuldades na marcha, perda de equilíbrio, ataxia e síndrome depressivo reativo; v) Decorrente do acidente dos autos e em consequência do mesmo e das lesões sofridas, a autora sofreu um agravamento da sua situação clínica;
xv) As necessidades referidas em 61 são decorrência do acidente descrito nos autos. xxi) O referido em 63 decorreu do acidente em causa nos autos.
b) Quanto às limitações concretas de marcha, tremores e dificuldades de fala da autora e as suas consequências nos suportes externos e nas suas atividades normais anteriores:
__ Julgou provados apenas, nos factos abaixo transcritos: a limitação de marcha, o sofrimento de tremores e dificuldades de fala, sem identificação do tempo a que reporta este estado; a necessidade de apoio decorrente das limitações quanto à marcha, ainda que sem concretização no tempo e com prova simultânea que a autora manteve a condução de seu veículo para ir trabalhar; a falta de realização das ocupações que desempenhava anteriormente ao acidente nos 7 dias de incapacidade temporária total e 15 dias de incapacidade funcional parcial posteriores ao mesmo. Assim, constam como provados:
35. A autora revela marcha atáxica com desequilíbrio fácil, com perda de autonomia na marcha, tem dificuldades de preensão pelo trémulo que desenvolveu.45. A autora apresenta tremores e dificuldades de fala.
38. A autora usou canadianas. 39. Atualmente a autora necessita de ajuda externa para apoio e para se movimentar, quer humana, quer instrumental, designadamente bengala e canadianas. 74. A demandante desloca-se diariamente ao estabelecimento comercial, onde trabalha entre as 10:00 horas e as 12:30 horas e, de tarde, entre as 14:30 horas e as 19:00 horas, deslocando-se no veículo que interveio no acidente.
62. Durante o período referido em 30 a autora deixou de exercer as suas normais ocupações».
__ Julgou não provados, de acordo com a transcrição abaixo realizada: a causalidade de estados da autora em relação ao acidente; a perda ou a incapacidade de realizar atividades pessoais, profissionais, desportivas e recreativas, sobretudo para além do período provado de incapacidade temporária e a sua causalidade, os efeitos concretos da dependência de apoio externo para a marcha mesmo no período de incapacidade temporária, a duração das consequências das sequelas. Assim, constam como não provados:
v) O referido em 35 (…) foi causado direta e necessariamente pelo acidente narrado nos autos. ix) O uso referido em 38 ocorreu em consequência das lesões sofridas no acidente em causa nos autos; xxiii) Como consequência direta e necessária do acidente dos autos, a autora padece de trémulo intenso, claudica ao andar e desequilibra-se facilmente o que desfeia o seu aspeto geral e que constitui um dano estético permanente fixável no grau 5/7 numa escala de sete.
xiv) A autora deixou de fazer o referido em 54 a 60 em consequência do acidente em causa nestes autos, deixando, por via dele, de ser autónoma e passar a ser dependente de ajuda de terceira pessoa e instrumentos de apoio. xvi) Por causa do acidente a autora (…) isolou-se, deixou de ir às reuniões escolares e actividades curriculares e extracurriculares do seu filho, deixou de participar nas suas atividades sociais e religiosas.).
xx) Durante o período referido em 30 a autora necessitou da ajuda de familiares para se levantar, andar, lavar, vestir e comer).
xvii) As sequelas das lesões sofridas no acidente em causa nos autos continuam a provocar na autora dores físicas, incómodo e mal-estar e implicam esforços acrescidos na marcha ou quando tem de ultrapassar barreiras físicas ou efetuar outros movimentos, que irão acompanhá-la por toda a vida.
c) Quanto aos danos psicológicos e a sua conexão com a doença:
__ Julgou provado que a autora ficou afetada psicologicamente pela evolução da sua doença e pela sua situação de “dependência” (com características e contornos totais de tempo não apurados), com apoios psicológicos temporários suportados pela ré, nos termos dos seguintes factos:
40. A autora desenvolveu síndrome depressivo reativo a todo o contexto clínico evolutivo, devido à sua nova condição de dependente. 46. A dependência de ajuda de terceiros causou tristeza na autora, que sente vergonha pelas sequelas do foro estético e funcional, pelos trémulos e claudicar da marcha.
41. A autora andou em consultas de psicologia nos serviços clínicos da ré. 42. Nos quais fez 10 (dez) sessões de psicologia orientadas pelo Dr. J. A.. 43. Ao fim das quais foram as mesmas interrompidas por iniciativa da ré.
__ Julgou não provado que o estado psicológico se devesse ao acidente, nem que necessitasse de apoio psicológico, nos termos dos seguintes factos não provados:
xi) A autora sofre de cefaleias, ansiedade, medos e receios exagerados e de maior irritabilidade, por consequência do acidente em causa nos autos. xvi) Por causa do acidente a autora ficou deprimida, com vergonha do seu estado físico e isolou-se (…). X) A autora precisa de tratamento psicológico.
d) Quanto à incapacidade- défice funcional permanente (que abarca sequelas provadas, sem nexos de causalidade provados) e a sua relação com as lesões do acidente:
__ Julgou provado em 47 «47. A autora padece de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de, pelo menos, 15 pontos.».
__ Julgou não provado que défice parcial permanente tenha a percentagem superior alegada e que o acidente tenha sido a causa desse défice, nos termos dos seguintes factos não provados:
xxiii) Como consequência direta e necessária do acidente dos autos, a autora (…) ficou com uma incapacidade parcial e permanente de 40 pontos.
xii) O défice referido em 47 é consequência das lesões referidas em 24 e 25.

2. Apreciação de mérito do objeto do recurso:
2.1. Quanto à matéria de facto objeto do recurso e conexa com o mesmo (em referência a III-1-1.1. e 1.2. supra):

O Tribunal da Relação tem poderes de alteração de matéria de facto (referida em III-1.1. e com contornos problemáticos referidos em III-1.2. no que se refere à matéria relevante para apreciação do objeto do recurso): no âmbito da impugnação do recorrente, nos termos do art.640º do C. P. Civil; no âmbito de suprimento oficioso de deficiências, obscuridades e contradições da sentença recorrida (ab initio perante esta e/ou face a contradições decorrentes da alteração de factos na decisão da impugnação)-

2.1.1. Fundamentos da sentença recorrida quanto à matéria objeto do recurso:
A sentença recorrida, na parte expressamente impugnada nos termos a referir em III- 2.1.2. infra: julgou provada a incapacidade funcional da autora de 15% (47. A autora padece de défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de, pelo menos, 15 pontos); julgou não provado que esta incapacidade se devesse ao acidente e às suas lesões (xii) «O défice referido em 47 é consequência das lesões referidas em 24 e 25» (que provaram «24. Como consequência direta do acidente a autora sofreu traumatismo da coluna lombar e joelho direito. 25.Sofreu ainda ansiedade psíquica»), com base na análise da prova de acordo com critérios científicos que a seguir se enunciarão, em síntese.
Por um lado, a sentença recorrida expôs de fls.19 a 22 a discussão cientifica sobre o nexo de causalidade entre o evento e o dano nas circunstâncias em que há doenças anteriores, nomeadamente esclerose múltipla (extraída integralmente, em transcrição não citada, de fls.7 e 8, 15, 57 a 59 do trabalho de dissertação do Mestrado em Medicina Legal e Ciências Forenses da Universidade de Coimbra “Estado Anterior. Contributo para a sua caracterização na perspetiva da avaliação médico-legal”, de P. O., disponível publicamente na internet no Estudo Geral Repositório Científico da Universidade de Coimbra- www.eg.uc.pt), assinalando, nomeadamente: que é da convicção da maioria dos neurologistas que tratam a doença que episódios de stress agudo, psicológico ou físico (como um acidente grave), ainda que sem atingimento direto do sistema nervoso central, podem desencadear surtos de esclerose múltipla (o traumatismo ou choque emocional podem agravar a reação inflamatória que acompanha a desmielinização e desencadear um processo patológico potencial de doença já existente e/ou gerar um impulso evolutivo); que, para este efeito, tem sido considerado que o período que decorre entre o trauma e a crise é curto (para uns quantificado em período não superior a 3 meses e para outros em período não superior a uns dias).

Por outro lado, procedeu a uma análise crítica da prova produzida (nomeadamente, os registos clínicos, os exames neurológicos, os exames periciais médico-legais, os depoimentos da audiência), face aos critérios científicos referidos, com que rebateu os resultados periciais, o exame neurológico de fls.307 e 308 e a avaliação da médica assistente da autora, entendendo, em concreto:

a) Que o acidente não foi grave nem gerou stress agudos, considerando: «De facto, o acidente não pode ter-se como grave, atenta a contenção dos danos verificados no veículo da autora (cfr. fls. 102-104), circunscritos ao canto da frente esquerda do veículo. Por outro lado, nada indicia que a autora tivesse, por via do acidente, sido submetida stress agudo, posto que as queixas apresentadas pela autora aquando do seu tratamento hospitalar circunscreveram-se a dor lombar e do membro inferior direito – cfr. fls. 195 – que não demandaram cuidados médicos senão a realização de exames de diagnóstico, que afastaram qualquer derrame, lesão ou fratura. No episódio de urgência nenhuma referência é feita a sintomas de stress agudo que, a existir, em termos de normalidade, teria merecido, no mínimo, intervenção terapêutica.»; que o neurologista que realizou o segundo exame neurológico de fls.307 e 308, atendeu a um facto errado em face das declarações que a autora lhe fez (quando atendeu a um “acidente grave”).
b) Que o estado da autora posterior ao acidente não demonstra agravamento em relação à situação anterior quanto à desmielinização e à parapésia:
b1) Por não existirem novas placas de desmielinização depois do acidente, pois, do exame neurológico de fls.307 a 308, «retira-se que o confronto dos exames crânio-encefálico e estudo medular são efetivamente sobreponíveis, não revelando novas placas de desmielinização ou alterações inflamatórias ativas. Apenas se admite ligeiro aumento da extensão de “black holes” e discreta atenuação dos espaços de circulação do liquor.».
b2) Por não existir agravamento significativo entre o estado da autora antes do acidente (com uma paraparésia em grau 3 a 4) e depois do mesmo (com uma paraparésia apenas fixada em grau 4): «a médica assistente da autora afirmou que esta sofria antes do acidente de paraparésia em grau 3 ou 4. Entenderam as perícias em valorizar, como agravamento, uma paraparésia de grau 4 (segundo o compromisso funcional, motor e sensitivo, a nível da marcha, bem como o compromisso sexual e dos esfíncteres, tendo em conta as suas repercussões nas atividades da vida diária), pelo limite mínimo do coeficiente de desvalorização. Em termos lógicos, se a desvalorização atribuída respeita apenas ao agravamento da paraparésia pré-existente, teríamos de concluir que a autora teria, no cômputo geral e estado atual, uma paraparésia de valor superior ao grau 4. Não é, porém, o que se retira do exame de fls. 308, onde se avaliam as sequelas da doença e se atribui à autora uma paraparésia no mesmo grau 4.».
c) Que a autora teve um surto antes do acidente com dificuldade de marcha e que o agravamento da rigidez muscular e a baixa clínica da autora depois do acidente ocorreram apenas cerca de 6 meses após o mesmo: «No caso, a autora apresentou um surto uma semana antes de 13/01/2014 (cfr. fls. 118), revelando, nesta data, dificuldades na marcha. Em consulta de ortopedia, em 10/02/2014, referiu dores discretas lombares, caminha então com dor mas sem limitação (cfr. fls. 117). Apenas em 07/05/2014 revelou espasticidade dos membros inferiores (rigidez muscular) (cfr. fls 115). A primeira baixa médica documentada nos autos ocorre em 19/07/2014 (cfr. fls. 210).».
d) Que, em conclusão: «Neste contexto, e por todas as razões aduzidas, afastamo-nos das perícias médicas realizadas quanto à conclusão extraída, no que ao nexo de causalidade entre o acidente e o agravamento da doença concerne. Tais perícias assentam num nexo hipotético, parcial e indireto que, pelas sobreditas razões, consideramos indemonstrado, não sendo de afastar a hipótese alternativa de o agravamento da doença que a autora revela ser decorrência da própria evolução da patologia.».

2.1.2. Objeto da impugnação de facto e contraditório:

A. A recorrente, neste recurso de apelação, em relação à matéria de facto referida em III-1-1.1. e organizada em 1.2. supra, pediu apenas, na sua impugnação, a alteração do facto 47 da sentença recorrida (onde se encontra provado “A autora padece de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de, pelo menos, 15 pontos”) para um facto com o seguinte teor “Em consequência do acidente referido em 1 a autora ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de, pelo menos, 15 pontos.”
Assim: apesar de ter invocado, nas suas alegações e conclusões, a possibilidade de ser atribuído à autora/recorrente um défice funcional de 40 pontos (que entende ser condizente com o seu estado), não pediu qualquer alteração do facto 47 no sentido de se julgar provada a existência de uma incapacidade funcional de 40 pontos; apesar da causalidade da incapacidade estar expressa noutros estados cuja causalidade não foi provada, não pediu a alteração de outros factos não provados (nomeadamente: de matéria diretamente conexa- v. Decorrente do acidente dos autos e em consequência do mesmo e das lesões sofridas, a autora sofreu um agravamento da sua situação clínica. xii. O défice referido em 47 é consequência das lesões referidas em 24 e 25.; dos demais factos onde constam nexos de causalidade julgados não provados (i), vi), ix)- xi), xiii)- a xviii), xxi) e xxxiv).

A recorrente, por outro lado, fundamentou esta impugnação:
a) Com base nos factos já considerados provados, pois considerou que a análise dos mesmos imporia que o facto 47 se julgasse provado nos termos por si pedidos, uma vez: que o Tribunal julgou provado que antes do acidente a autor tinha autonomia em todos os sentidos (factos 49 a 60) e que atualmente, após o acidente, a autora está numa situação de dependência (nomeadamente factos 39, 40, 45, 46 e 47- necessita de ajuda de apoio de terceiros, tem um síndroma depressivo reativo ao contexto clínico evolutivo da sua condição de dependente e tristeza, tremores, dificuldades de fala e a incapacidade funcional); que, perante estes pressupostos, se estas consequências não decorreram do acidente não se percebe de que é que decorreram, sendo o acidente o interruptor, o rastilho, a ignição do estado atual, ainda que tenha tido como propiciadora e catalisadora a esclerose múltipla (entendendo, até, que, não se tendo provado qualquer défice funcional anterior ao acidente, justificar-se-ia que se atribuísse à autora uma incapacidade funcional de 40 pontos, pretensão, no entanto, não formulada).
b) Com base na prova produzida, em cuja análise considerou: que o Tribunal não atendeu aos relatórios médico-legais, aos esclarecimentos do perito de medicina legal Dr. H. T. na audiência de 29.01.2019 (que referiu que os 15 pontos de incapacidade referem-se apenas às consequências do acidente, pois, senão a autora teria cerca de 40 pontos de incapacidade), também referidos a fls.5 do relatório de 19.01.2018, confirmado também pelo perito L. C. no relatório de fls.41 a 51; que a Dra. A. S. na audiência de 29.01.2019 referiu que o acidente teve uma repercussão na parte física da autora, alterando-lhe a imunidade, desencadeando e causando um agravamento dos défices que já tinha; que a restante prova, nomeadamente o depoimento da médica da ré (com formação não reconhecida em Portugal mas apenas no Brasil) não contraditou a opinião técnica, fundada e científica do perito independente do INML.
B. A recorrida, por sua vez, contestou o recurso, com o qual defendeu a sentença recorrida e os seus fundamentos, reforçando que os seguintes fatores não permitem provar a causalidade entre o acidente e o estado da autora: a doença de esclerose múltipla da lesada pré-existente ao acidente há cerca de 16 anos (com parapésia grau 3-4), com um surto anterior no mesmo mês do acidente (em que a 13/01/2014 a lesada tinha dores, dificuldades de marcha e medo de cair), doença essa que pode levar ao auxílio da marcha depois de 15 anos de desenvolvimento; a inexistência novas placas desmielinizantes e de agravamento da situação inflamatória após o sinistro; a existência da primeira baixa-médica depois de 6 meses após o acidente.
2.1.3. Reanálise da decisão impugnada referida em III- 2.1.1. supra, face aos fundamentos referidos em III- 2.1.2. supra, aos factos indicados em III-1.2. e à prova produzida:
A. Numa primeira abordagem, importa apreciar se a matéria de facto provada permite alterar o facto 47, com a prova do nexo de causalidade entre o acidente e a incapacidade não provado em xii), nos termos e com os fundamentos pretendidos pela recorrente e apresentados em III-2.1.2.-A -a) supra.
Ora, analisando matéria de facto provada, verifica-se que esta, por si só, não permite qualquer alteração do facto 47, tendo em conta dois fatores essenciais.
Por um lado, a matéria provada indicada, em III-1.2.- supra, sobretudo no seu ponto 4), não permite extrair ilações probatórias superiores nem presunções judiciais, tendo em conta as respostas restritivas dadas (e algumas indefinidas) e toda a matéria conexa julgada não provada (e não impugnada no recurso).

De facto, atendendo ao já exposto em III-1.2. supra, em particular no ponto 4), e aos fundamentos apresentados em III-2.1.2.-A -a) supra, verifica-se, em relação aos referidos fundamentos da recorrente:

a) Que a sentença, apesar de ter julgado que a autora usou canadianas (que colocou no passado) e precisa de ajuda externa de objetos ou humana para se movimentar (factos 38 e 39), julgou não provado que usou canadianas por causa do acidente, que as dificuldades de marcha e preensão tenham sido causadas pelo acidente e que durante a incapacidade temporária tenha necessitado de familiares para se levantar, lavar, andar, vestir e comer (factos ix), iv) e xx) supra), o que compromete a compreensão do grau e da duração de dependência de terceiros e o nexo de causalidade do estado em relação ao acidente.
b) Que a sentença, apesar de ter julgado provado que a autora desenvolveu um síndrome depressivo e teve tristeza e vergonha: referiu que o fez em relação ao contexto clínico evolutivo e à nova condição de dependente (factos 40 e 46); julgou não provado que os referidos estados mentais tenham sido causados pelo acidente (xi e xvi).
c) Que a sentença, apesar de ter julgado provado que antes do acidente a autora tinha autonomia na sua vida doméstica, na sua vida profissional, na sua vida social, recreativa e desportiva (nos factos 49. a 60.), não julgou provado que após o acidente tenha deixado de ter estas ocupações ou os termos em que as limitou, uma vez: que apenas considerou provado que a autora deixou de realizar as suas ocupações com o limite de 15 dias após o acidente (facto 62., em relação ao facto 30.); que julgou provado que a autora se desloca diariamente de carro para o trabalho (facto provado em 74.); que julgou não provado que a autora tenha deixado de realizar as atividades de 54 a 60 em consequência do acidente (facto xiv) supra).
Por outro lado, os fundamentos da decisão de facto da sentença e a prova produzida a reapreciar trazem elementos que devem ser analisados, pois podem causar dúvida insanável sobre a ocorrência do nexo de causalidade pretendido entre o acidente e a incapacidade provada, em face da doença de esclerose múltipla da autora e do surto da mesma sofrido 25 dias antes do acidente, conforme se apreciará em B infra.

B. Numa segunda abordagem, deve ser reapreciada a prova produzida, com especial destaque daquela que se pronunciou e/ou seja relevante para apreciar a conexão entre o acidente e a incapacidade funcional da autora (ainda que em relação com os demais elementos probatórios nos autos).
B1. Por um lado, a recorrente defendeu que devem ser valorizadas as perícias médico-legais, o esclarecimento em audiência da segunda perícia feita pelo perito médico-legal Dr. H. T. e o relatório de avaliação do dano realizado pelo Dr. L. C., para se julgar provado o nexo de causalidade entre a percentagem de incapacidade provada e o acidente.

Ora, apreciando esta prova pela ordem cronológica em que foi produzida, verifica-se:
1) Quanto à avaliação do dano corporal realizada em fevereiro de 2015 pelo Dr. L. C. (com relatório de fls.41 a 51):
Este perito particular da autora: defendeu a possibilidade geral de conexão entre um acidente de viação e a progressão da doença de esclerose preexistente e a adequação dessa mesma conexão em concreto, nos seguintes termos «1. Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano, atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de agravamento da sintomatologia pré existente de Esclerose Múltipla é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir o agravamento e não se exclui a pré- existência de doença Neurológica, antes um agravamento despertado por uma causa estranha traumática, no presente traumatismo vertebro- medular e torácico provocado pelo acidente em causa. 2. Segundo a biografia da doença, os surtos evolutivos da Esclerose Múltipla caracteriza-se pelo aparecimento rápido de um sintoma novo ou por um conjunto de sintomas pelo agravamento rápido de manifestações pré-existentes. O surto atinge o seu máximo em algumas horas ou poucos dias, e depois os sinais novos estabilizam-se.»; concluiu que a autora padece de um défice funcional permanente parcial de 40 pontos (depois de ter avaliado a ataxia e repercussão AVD e a perturbação no humor).
Todavia, este médico atendeu apenas na sua avaliação a elementos parciais: às ressonâncias magnéticas (indicadas com datas de 26.07.2011, de 19.04.2013 e de 08.05.2014); ao exame da examinanda, onde descreveu conclusivamente que eram sequelas relacionadas com o evento «o desequilibrio e marcha atáxica, trémulo grosseiro com necessidade de apoio externo ou ajuda humana» e sequelas sem relação com o evento «esclerose múltipla estabilizada, com autonomia de marcha, estabilizada, seguida no Serviço de Neurologia do Hospital do Alto Ave»; aos certificados de incapacidade para o trabalho; às declarações da médica assistente (da Dra. A. S. de 20.10.2014 e de 05.03.2015), que, apesar de se terem pronunciado no sentido do agravamento significativo da situação clínica cerebelosa e motora após o acidente, nessas declarações não clarificou o estado concreto da doente anterior ao acidente (nomeadamente, e sobretudo, o estado da doente no surto de esclerose de 02.01.2014), nem quantificou a incapacidade que já detinha.
2) Quanto às duas perícias médico-legais- a 1º perícia realizada pelo Dr. F. C. (com relatórios de 26.08.2016, de 01.03.2017 e 31.03.2015, constantes de fls.188 a 191, fls.251 a 255, fls.265 e 266) e a 2ª perícia realizada pelo Dr. H. T. (com relatórios a 18.07.2017 e a 19.01.2018, constantes de fls.297 a 300 e de fls.313 a 318 e com esclarecimentos em audiência):
Estas perícias: descreveram como resultado do exame objetivo da examinanda lesões ou sequelas relacionáveis com evento (indicadas como «Ráquis: palpação de apófises espinhosas de D12 a L5 referida como dolorosa; mobilidade diminuída (DDS de quinze centímetros)») e lesões ou sequelas não relacionáveis com o evento (indicadas como «Ráquis: ROT muito vivos; marcha atáxica»); fixaram ambas o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica da autora em 15%, compatível com o exercício da sua atividade laboral habitual mas com esforço suplementares- explicando o primeiro perito que o fez «atendendo à avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades e considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas não afetando a examinanda em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico, atribui-se um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de fixável em 15 Pontos», que o grau foi fixado porque o acidente «pode ter agravado o seu estado de saúde prévio» e que a não afetação da autonomia se deveu ao facto da examinanda «ainda desempenha a sua atividade profissional, uma vez que o seu local de trabalho é próximo da sua casa, deslocando-se no seu veículo automóvel, quando pode conduzir, ou levada por familiar», e explicando o segundo perito em audiência que a autora tinha uma incapacidade superior a 15% (no máximo 40%) e que a atribuição de 15% foi feita em relação ao agravamento e pelo grau de probabilidade do mesmo (não podendo quantificar a limitação anterior ao acidente porque não viu a doente), entendendo ser de grande probabilidade que o traumatismo tenha agravado a doença.
Todavia, estes dois peritos: não tinham especialidade em neurologia, necessária à avaliação do problema em discussão em face da doença de esclerose múltipla de que padecia a autora desde data anterior ao acidente; pediram ambos exames ou avaliações de especialidade neurológica, que não dispuseram da totalidade dos dados na 1ª instância (tendo sido o relatório lavrado pelo Dr. J. C., constante de fls.307 a 308, corrigido já na pendência do recurso nesta Relação, conforme se exporá infra); não tiveram acesso às informações concretas das consultas de acompanhamento neurológico e do estado funcional da autora antes do acidente (nomeadamente no surto de 02.01.2014) e após o acidente, que lhes permitisse dispor da totalidade dos dados comparativos do estado da autora anterior e posterior ao evento lesivo.
Por sua vez, os resultados da avaliação e das perícias referidas em 1) e 2) supra foram contraditados pela ré/recorrida através, nomeadamente, da avaliação do dano realizada na seguradora/ré, na qual a Dra. A. G., que avaliou a autora em abril e em agosto de 2014, e que prestou depoimento em audiência de julgamento e considerou que, apesar de um evento com magnitude e traumatismo poderem desencadear um novo surto de esclerose preexistente, não houve qualquer nexo entre o estado e as sequelas da autora/recorrente e o acidente, tendo em conta: que o acidente foi leve (a autora não teve perda de consciência, fraturas ou feridas e saiu do hospital no próprio dia); que as sequelas não são adequadas à etiologia das lesões; que não se detetaram novas placas desmielinizantes. Todavia, esta médica não dispôs, também, tal como os referidos em 1) e 2) supra, dos elementos mais concretos resultantes das consultas de acompanhamento neurológico da doença da autora antes e depois do acidente de viação.
Assim, os resultados da avaliação e das perícias referidas em 1) e 2) supra, tal como a contraprova contrária referida supra, não têm valor determinante sem confronto com a globalidade da prova de especialidade neurológica, de que depende a avaliação do desenvolvimento da doença de esclerose múltipla de que a autora padecia na data em que foi acidentada e após, que se apreciará em B2 infra.
B2. Por outro lado, a recorrente defendeu o atendimento das informações, do depoimento e das conclusões da sua médica assistente, Dra. A. S., neurologista, como suporte probatório do facto que pretende ver como provado.
Estas informações clínicas da neurologista assistente da autora invocadas pela recorrente (que sofreram concretizações e correções durante o tempo da instrução e reabertura da audiência nesta Relação) devem ser apreciadas, em conjugação com os exames neurológicos realizados à autora/recorrente por requisição do Tribunal a quo (sendo um complementado nesta Relação), nos termos a referir em 1) e 2) infra.
1) Quanto às informações clínicas e ao depoimento da Dra. A. S., neurologista assistente da autora, que a acompanhou desde o ano de 2005 no quadro da esclerose múltipla de que a autora padecia:
Numa primeira fase, durante a instrução e até à audiência, foram juntas aos autos informações clínicas subscritas por esta médica (a 20.10.2014, a fls.37; a 05.03.2015, a fls.38; a 14.10.2016, a fls. 218 e 219; a 30.01.2017, a fls.248 e 249), informações estas inicialmente de caráter conclusivo e depois progressivamente mais concretizado e, por fim, parcialmente corrigidas nas novas informações trazidas a esta Relação em 2020:
__ A 20.10.2014 (fls.37) declarou: que a doente tinha esclerose múltipla; que teve um agravamento clínico significativo desde a data do acidente de 27.01.2014.
__ A 05.03.2015 (fls.38) esclareceu: que o agravamento clínico teve repercussão a nível do sistema motor e cerebeloso; que foram necessárias medidas terapêuticas mais agressivas para controlo dos sintomas, sem melhoria subjacente; que a doente desenvolveu síndrome depressivo a todo o contexto clínico evolutivo.
__ A 14.10.2016 (fls.218 e 219) informou: que a doente era seguida na consulta de neurologia desde 2005; que nos registos hospitalares estava referenciado um agravamento clínico e imagiológico em março de 2014 (apesar da terapêutica instituída) e que foi orientada para a consulta de dor e repetiu estudo de imagem nessa altura (que revelou agravamento da carga lesional); que, por este motivo, foi alterada a terapêutica da autora para injetável mensal no hospital de dia, que cumpre desde essa altura; que verifica-se um agravamento progressivo da sintomatologia nas áreas cognitivas, de equilíbrio e de coordenação motora, com incapacidade funcional diária.
__ A 30.01.2017 (fls.248 e 249) declarou: que a doença foi agravada pela ocorrência do acidente; que antes do acidente a autora apresentava alterações do equilíbrio mas não era dependente de terceira pessoa; que após o acidente agravou-se a ataxia e força motora (défice motor dos membros inferiores), desenvolveu sintomatologia depressiva, ficou com incapacidade funcional subsequente e necessita de apoio para as suas atividades diárias.
Numa segunda fase, esta médica prestou depoimento em audiência a 29.01.2019, em que considerou, em geral, que o acidente sofrido pela autora correspondeu a um estímulo externo que lhe potenciou uma evolução negativa da doença de escleroso preexistente, que tomou um rumo diferente, uma vez: que antes do acidente, a esclerose múltipla de que a autora padecia, com um quadro cerebeloso e com desequilíbrios, era compensada com medicação, sem que a levasse a perder a autonomia (a autora teve apenas um internamento no inicio da doença; depois, quando tinha surtos, era tratada e melhorava, nunca a vira deprimida, nem incapaz de andar sem ajuda), embora na audiência em que fez esta afirmação não se recordasse do surto da autora do princípio de janeiro de 2014 (referido nos registos do Hospital ... a 13.01.2014, a fls.118), do seu tratamento e das consequências concretas do mesmo na vida da autora; que, após acidente a autora ficou com a sua imunidade alterada, (nomeadamente com tristeza de depressão), ainda que a mesma não tenha que ser imediata e possa repercutir-se ao longo do tempo, e teve um aumento da atrofia e dos buracos negros visíveis nas imagens seriadas.

Numa terceira fase, esta médica apresentou esclarecimentos complementares nesta Relação de Guimarães a 05 e a 21.02.2020, prestados em resposta a informações que lhe foram requisitadas em renovação da prova (fls.429 e 430 e fls.433), nos quais explicou, de forma mais detalhada:

a) Que a autora, após o acidente de 27.01.2014, teve uma alteração de imunidade que, para além da tristeza e depressão referida na audiência, se revelou por «Cansaço extremo com adinamia associada, infeções urinárias de repetição, dores generalizadas», com primeiros sinais notados em fevereiro de 2014. Não tendo a autora tido consulta com esta médica em fevereiro de 2014, presume-se que essa referência tenha sido atendida através: das comunicações da autora/doente (que no seu depoimento em audiência referiu também ter sofrido um grande susto e depois de 2 a 3 dias ter começado a ter problemas no braço e perna esquerdos, passando a precisar de ajuda para ir ao quarto de banho e não sair de casa); do próprio registo da existência de consultas da autora a 05 e a 10.02.2014 onde reporta dores e foi encaminhada «para as consultas de Neurocirurgia (reavaliação de adenoma hipofisário) e Ortopedia (dores lombares).». Todavia, apesar desta referência aos primeiros sinais de alteração de imunidade em fevereiro de 2014, esta médica clarificou, também, que no surto de 02.01.2014 a autora já tivera um cansado extremo nessa altura, razão pela qual o cansaço extremo posterior não se possa considerar um sinal novo.
b) Que a autora, quanto ao seu estado funcional e emocional:
__ Que antes do acidente: na última avaliação de 28.10.2013, a autora tinha «a) Parapésia grau IV com espasticidade associada. b) Marcha independente de base alargada, com lentificação na coordenação do movimento (marcha cuidadosa para ajuste da locomoção de forma a evitar as quedas. c) Estabilidade emocional no contexto da doença crónica. d) Sem necessidade de apoio da marcha.»; a 02.01.2014 teve um último surto de esclerose com «agravamento da falta de força nos membros inferiores com dificuldade de marcha, desequilíbrio e cansaço extremo”, surto este implicou um tratamento durante 5 dias com corticoterapia, após o qual teve uma «melhoria parcial das queixas, sem necessidade de apoio para a marcha autónoma».
__ Que depois do acidente de 27.01.2014: na primeira consulta de neurologia 17.3.2014 a autora tinha um estado com «a) Agravamento da parapésia e espasticidade. b) Agravamento do desequilibrio e coordenação motora dos membros inferiores. c) Síndrome depressivo reactivo. d) Necessidade de apoio para a marcha.»; na consulta de neurologia de 22.05.2014 «foi alterada a medicação para a doença e foi orientada para a consulta de Dor (primeira consulta em 9/6/2014, por agravamento de dores generalizadas).»; na consulta de neurologia de 14.07.2014: «foi decidida a alteração da medicação para Natalizumab (deterioração progressiva do estado clínico da doente) e que cumpre mensalmente no Hospital de dia, até hoje».
c) Quanto ao estado interno avaliável por ressonâncias magnéticas nucleares (RMN):
__ Antes do acidente, na última ressonância magnética realizada a 29.04.2013, que comparava a sua situação à do exame de 26.07.2011, retratava-se «não há imagens aparentes de placas de desmielinização de novo. Ligeiro aumento do número de lesões de aspecto clástico (“black holes”) nas coroas radiatas e substância branca periventricolar. Discreta acentuação dos espaços de circulação de liquor a reflectir ligeira progressão de atrofia encefálica.».
__ Após o acidente, na ressonância magnética de 09.05.2015, que comparou resultados com a anterior de 2013, avaliou-se um estado com «Carga lesional sobreponível. Aumento das dimensões de algumas das lesões (nomeadamente na substância branca das regiões fronto- parietais) assim como aumento do número e extensão das lesões de aspecto clástico (“black holes”). Acentuação de espaços de líquor a refectir progressiva diminuição global do volume encefálico.».
Apesar desta médica ter referido, nas anteriores informações clínicas e no depoimento da audiência, que a autora teve um aumento dos buracos negros nas imagens seriadas desde 2014, depois corrigiu esta informação nesta Relação, pois: limitou-se a comparar as RMN de 2013 e de 2015; informou que a RMN ao neuroeixo a 07.05.2014 do Hospital ..., apesar de ter detetado «múltiplas lesões com hipersinal atribuídas a substância branca de ambos os hemisférios cerebrais, sem captação de contraste. Associa-se à perda de volume cerebral e medula com espessura diminuída», não fez um estudo comparativo com as RMN anteriores, por inexistência de exames anteriores nessa instituição, razão pela qual não compara a situação da autora entre 2013 e 2014.
Esta médica concluiu globalmente: «Verificou-se um agravamento clínico após a data do acidente, físico (já referido) e psicológico (humor depressivo, tristeza reactiva à sua situação médica subsequente; de realçar que desde o diagnóstico de 2005 e apesar da patologia a doente sempre conseguiu superar as dificuldades com grande força anímica). A doente passou a ter necessidade de apoio para as suas actividades diárias. Em estudo de imagem de 2015, apesar da estabilidade da carga lesional total, verificou-se um aumento do número e extensão das lesõesde aspecto clástico (“black holes”) e aumento das dimensões de algumas das lesões.». A necessidade de apoio para as ocupações diárias, para além de não ter sido concretizada na prova, não encontra, também, expressão cabal na matéria de facto provada e não impugnada, como se referiu em III-2.1.3.- A supra.

2) Quanto aos exames neurológicos:
2.1) No primeiro exame neurológico, realizado pela Dra. E. L., com relatório apresentado a 20.12.2016 (fls.223 e 224 e fls. 227), esta médica: observou, nomeadamente, que a autora tinha «Paraparesia espática de predomínio esquerdo, grau 4/5 com hiperreflexia osteotendinosa (…) Provas cerebelosas, dedo-nariz e calcanhar-joelho sem dismetria, prejudicada nos Mis pela fraqueza e espasticidade. (…) Marcha parético-espática possível sem apoio em curtas distâncias.»; reconheceu que existe «alguma controvérsia sobre o trauma físico e/ou emocional poder activar o sistema imunológico e ser factor precipitante de um surto de desmienilização e, consequentemente agravamento clínico da doença.» e considera que «esta questão deve ser abordada pela neurologista assistente da doente que conhece o seu estado prévio e observou e acompanhou a doente após o referido agravamento.».
2.2) No segundo exame neurológico, realizado pelo Dr. J. C., perito em neurologia nomeado após pedidos de exame de especialidade neurológica pelo Instituto de Medicina Legal, foram lavrados dois relatórios, sendo o primeiro no Tribunal da 1ª instância e o segundo neste Tribunal da Relação.
No primeiro relatório de 17.11.2017 (fls.307 e 308), realizado sem acesso à informação da data e do estado do surto de 2.1.2014 e à descrição do acidente de 27.1.2014 e lesões do mesmo decorrentes (tendo atendido à informação de “acidente grave” dado pela lesada), este perito: examinou a autora a 06.11.2017, relatando, nomeadamente «7.Espasticidade ligeira em ambos os membros inferiores.(…)12. Marcha pareticoespática (embora em flexo dos joelhos)com base ligeiramente alargada, instável, possível sem apoio em piso liso e durante poucos metros», e consultou a Plataforma de Dados de Saúde, onde comparou apenas as RMN de maio de 2015 e de abril de 2017 e referiu-se a estudo medular de 2010; referiu limitações de avaliação face à falta de comparação com dados sobre a incapacidade anterior ao acidente, que presume já existir face às notas de 2013- «É difícil dizer que sequelas surgiram depois do agravamento em Janeiro de 2014 e que sequelas já existiam antes, uma vez que não há informação no Processo, nem dos registos da sua médica assistente disponíveis no PDS, do exame neurológico ou do estado prévio da doente. Contudo, uma nota de enfermagem do hospital de dia médico, no mesmo dia da última observação em consulta de neurologia antes de Janeiro de 2014 (consulta em 28/Out/2013) refere que a doente tinha nesse dia dificuldade de marcha, com medo de cair. Deste modo é provável que já houvesse um certo grau de incapacidade prévia, nomeadamente quanto à existência de uma parapésia mais ligeira ou mesmo de uma discreta ataxia de marcha, devendo pois este valor ser interpretado com cautela.»; concluiu, quanto ao nexo de causalidade entre o acidente e o agravamento da doença, que aquele pode ter precipitado a existência de um primeiro surto de janeiro de 2014 «é da convicção da maioria dos neurologistas que tratam a doença que episódios de stresse agudo, psicológico ou físico (como um acidente grave), ainda que sem atingimento direto do sistema nervoso central, podem desencadear surtos de esclerose múltipla. É minha opinião, pois, que o que sucedeu na situação em apreço tenha sido um surto medular (em Janeiro) e outro eventualmente cerebeloso (alguns meses depois, quando do aparecimento do tremor) precipitados, pelo menos o primeiro, em alguma medida, pelo acidente de viação. Destes surtos resultaram, apesar do tratamento, as sequelas descritas (ou pelo menos parte delas, como referido na nota).».
No segundo relatório, apresentado pelo senhor perito neste Tribunal da Relação a 09.06.2020 (fls.436), e depois de lhe terem sido clarificadas as lesões sofridas pela autora no acidente de 27.01.2014 («sofreu contusão de dorso, com dor lombar direita e dor patelar direita, sem lesão no aparelho extensor e sem fraturas; sofreu um susto e um stress; foi observada no Hospital de Famalicão e teve alta nesse dia», com base no episódio de urgência de fls.194 ss e 200 ss quanto às lesões e com base nas declarações da autora em audiência e na notoriedade dos factos, quanto ao susto e stress) e lhe haverem sido remetidas as informações complementares prestadas pela médica assistente a 05 e a 21.02.2020 (com informação a data e do estado da autora no surto sofrido 25 dias antes do acidente), o referido perito declarou e concluiu:

a) Que, em geral: a avaliação da autonomia da marcha sofre limitações- «A autonomia da marcha avaliada na consulta é muito difícil de objetivar, já que dependente em grande medida do relato do doente e do seu grau de colaboração (em grande parte relacionado com o seu estado anímico), pelo que é difícil de valorizar.» a recuperação dos surtos é «um processo demorado (semanas) e progressivo, sendo facilmente perturbado por eventos adversos».
b) Que, quanto ao surto de 02.01.2014, 25 dias antes do acidente: que a descrição deste «é muito semelhante à descrição do exame neurológico de 17/3/2014: agravamento de força nos membros inferiores, com dificuldade na marcha e desequilíbrio»; que, «ao contrário da descrição de 17/3/2014, nesta de 2/1/2014 não está descrita a capacidade de marcha autónoma» mas, «tendo em conta o desequilíbrio e a dificuldade de marcha reportados, é licito presumir que esta estaria comprometida durante o surto»; que, após «o tratamento do surto a doente teria marcha autónoma».
c) Que, quanto à consulta de 17.03.2014, posterior ao acidente: «é feita em termos comparativos, sendo referido um agravamento (presumivelmente com o de 28/10/2013, já que, tendo havido melhoria parcial dos sintomas do surto de Janeiro após tratamento, não seria de esperar agravamento relativamente ao exame neurológico de 2/1/2014)
d) Que, face a estes pressupostos:
d1) Quanto ao agravamento dos sintomas da doente após o acidente, crê que o mais provável é: que «os défices observados em 17/3/2014 na consulta tenham sido resultado (sequelas) do surto de 2/1/2014, apenas parcialmente melhorado»; que, igualmente, «o acidente de viação, ainda que minor, de que resultaram dores lombares, stress e alterações anímicas, possa ter comprometido ou atrasado a evolução expectável da recuperação após o surto, nomeadamente em termos de autonomia de marcha».
d2) Quanto ao nexo de causalidade entre o acidente e o agravamento da doença: que, «apesar de existir evidência de associação entre o trauma psicológico/stress agudo e risco aumentado de surto (…), neste caso, dada a existência de um surto duas semanas antes com sintomas semelhantes, tal questão não se coloca»; que, contudo, em face do referido em a)-2ª parte e face ao referido em d1)-2ª parte, «é possível que o acidente, não os tendo causado, tenha contribuído para atrasar ou comprometer a recuperação dos sintomas do surto.».

B3. Ora, apreciando a prova referida em B1 e B2, verifica-se que as informações clínicas referidas em B1 (prestadas por especialista, que acompanhou a doente em largo espectro de apreciação- desde 2005 até ao acidente e depois do acidente) e os exames neurológicos referidos em B2:

a) Não reconhecem uma causalidade naturalística direta entre o acidente e a incapacidade sofrida pela autora (quer a provada, quer parte dela), como pretende a recorrente na impugnação da matéria de facto.
b) Consideram, todavia, provável haver uma conexão residual e inferior entre o acidente e o grau de agravamento do estado da autora (detetado quanto ao estado anímico, ao aumento da extensão e dimensão de algumas lesões neurológicas e à necessidade de apoio para a marcha, sobretudo de maior distância ou em piso não liso). Esta conexão correspondeu: para a neurologista assistente da autora, a um fator de precipitação do acidente face à “evolução negativa “da doença, revelada pela alteração da imunidade da autora (com sinais desde fevereiro de 2014), o aumento da extensão e dimensão de algumas das suas lesões neurológicas (detetadas pelo menos em 2015) e a necessidade de apoio para a marcha pelo menos desde março de 2014; para o segundo perito em neurologia, a uma provável interferência do acidente na recuperação do surto de 2.1.2014, que se atrasou ou ficou comprometida.

C. Numa abordagem final, cabe, assim, reapreciar a decisão de facto e fundamentação da sentença recorrida, face à analise referida em III-2.1.3-A e B.
A sentença recorrida, como se referiu, julgou não provado o nexo de causalidade impugnado (que a incapacidade de 15% se deva ao traumatismo do acidente) e os demais nexos de causalidade conexos não impugnados entre o acidente e o estado emocional agravado e o estado físico incapacitante da autora no período posterior ao mesmo, com critérios decorrentes da discussão e da controvérsia científica quanto às repercussões de um acidente num lesado que padeça de esclerose múltipla, onde é valorizado normalmente o conteúdo sério do traumatismo e o tempo rápido da revelação dos efeitos (argumentos extraídos da tese de P. O. no estudo transposto, como referido em III-2.1.1., que discutiu a adequação do traumatismo para gerar um impulso evolutivo da doença, nomeadamente face ao conteúdo do traumatismo e à rapidez da expressão do surto ou sintomas subsequentes como vetores relevantes de apreciação; mas referido também sumariamente no relatório do dano do Dr. L. C. a fls.41 ss, nos relatórios dos exames médico-legais de fls. 251 ss e de fls.313 ss, no primeiro exame neurológico de fls.223 e 224 e nos relatórios do segundo exame neurológico de fls.307 ss e de fls.436).

Ora, em face da análise já referida, admite-se que realmente, de acordo com o defendido na sentença recorrida em III- 2.1.1. supra:
a) Que o acidente sofrido pela autora não foi grave no embate ocorrido entre veículos, nem nas lesões sofridas pela autora e tratamentos (a autora sofreu apenas um susto e um stress, uma dor lombar e patelar direta, sem fraturas e intervenções, com entrada e saída da urgência no próprio dia e sem prova de prescrições médicas, de acordo com a informação da urgência de fls.194 ss e 200 ss e das declarações da autora).
b) Que a carga lesional total revelada nas RMN entre 2013 e 2015 é sobreponível (embora com pressupostos diferentes dos indicados pela sentença, que se refere a uma conclusão comparativa entre a situação de 2015 e de 2017) e que não foi grande quantificado um grau significativo superior de parapésia depois do acidente (uma vez que as declarações da médica assistente na audiência não foram alterados com as clarificações posteriores prestadas nesta Relação a 05.02.2020, em que a médica assistente afirmou que a doente já tinha uma parapésia de grau 4 em 2013 e que depois em março de 2014 esta estava agravada, mas sem mensurar o agravamento).
Todavia, não são perfilháveis a totalidade dos raciocínios e conclusões extraídas na sentença recorrida e referidos em a) e b) e c) de III-2.1.1., nem a totalidade dos dados da referida al. c), tendo em conta:
a) Em relação ao fundamento da sentença referido em 2.1.1.-A-a) (que considerou haver uma inadequação de nexo entre acidente leve sem stress agudo e desenvolvimento da doença): que não se pode concluir que um trauma não grave não pode gerar um “stress agudo”, uma vez que, de acordo com as regras da experiência, a ansiedade e a tensão não dependem apenas do trauma objetivo mas também da subjetividade da pessoa doente; que a neurologista assistente da autora considerou que a autora tinha sinais iniciais de alterações de imunidade em fevereiro de 2014 e que o acidente pode ter potenciado um desenvolvimento negativo da doença e o perito em neurologia Dr. J. C. considerou provável que, apesar da menoridade do acidente, este possa ter comprometido ou atrasado a recuperação do surto de janeiro de 2014.
b) Em relação aos fundamentos da sentença referidos em III-2.1.1.-A- b) (sobre a autora não ter novas placas de desmienilização após o acidente e reações inflamatórias, conforme entende estar atestado no exame neurológico; sobre o não sofrimento de um agravamento da parapésia, situada em grau 3-4 antes do acidente e em grau 4 depois do acidente): que nas RMN da autora de 2013 e 2015, conforme foi explicado pela médica neurologista da autora/recorrente nas informações prestadas nesta Relação a 05. 02.2020, apesar de não haver aumento carga lesional total, houve lesões de aspeto clástico; que, apesar de não ter sido quantificado um aumento de parapésia, foi relatado um agravamento desta e do desequilíbrio expresso em necessidade de apoio para a marcha (embora esse apoio não tenha sido explicado e nos exames de 2016 o mesmo não ter sido reportado em curtas distâncias).
c) Em relação ao fundamento da sentença referido em III-2.1.1.-A-c) supra (que o agravamento funcional da autora, nomeadamente atendendo ao seu estado a 10 e 13.01.2014, devido a um surto, ocorreu cerca de 6 meses após o acidente de 27.01.2014): que a médica assistente reportou alterações de imunidade em fevereiro de 2014 (embora quanto ao cansaço já ocorresse em 02.01.2014); que, apesar de não haver prova da autora ter tido limitação de marcha e necessidade de apoio em fevereiro de 2014 (por falta de identificação deste facto pela médica assistente e porque no registo do Hospital ... de 10.02.2014, a fls.113, refere-se que a autora caminhava com dor mas sem limitação), o agravamento não mensurado de parapésia, da espasticidade, do desequilíbrio e coordenação, estado psíquico e necessidade de apoio para a marcha já são reportados, pelo menos, na consulta de março de 2014 e são seguidos de aumento de terapêutica em maio e julho de 2014.
Assim, a globalidade da prova analisada, de facto, não permite julgar provado que o défice funcional da autora, sobretudo na sua quantificação de 15%, tenha sido causado pelo acidente, tendo em conta que, para além das características da doença que a autora padecia e das possibilidades de evolução da doença ao longo do prazo: as limitações da autora existentes em outubro de 2013, que não lhe causavam necessidade de apoio de marcha nem perturbação psíquica, já eram incapacitantes e não foram quantificadas, para se estabelecer a comparação com o período posterior ao acidente; no surto de 02.01.2014, anterior ao acidente, a autora já tinha um cansaço extremo, reportado inicialmente pela médica assistente como um dos fatores de alteração de imunidade posterior ao acidente (quando não se recordava do surto de 2.1.2014) mas que depois veio clarificar já existir anteriormente nesse surto de 2.1.2014; no mesmo surto de 02.01.2014, e ainda a 13.01.2014 (de acordo com o registo de fls.118), a autora já tinha um desequilíbrio e dificuldade da marcha, apesar de, depois do tratamento, pelo menos, ter melhorado parcialmente (em termos não apurados) e não ter necessidade de apoio de marcha; na consulta de 10.02.2014, (registada no PDS de fls.117), realizada após o acidente, a autora tinha apenas dores lombares discretas e caminhava com dor mas sem limitação; as dificuldades de marcha com necessidade de apoio são apenas detetadas como certeza, pela prova clínica produzida e com o esclarecimento da médica assistente, na consulta de 17.03.2014.
Todavia, a globalidade da prova produzida, sobretudo com os esclarecimentos dos neurologistas- médica assistente Dra. A. S. e perito Dr. J. C.- permitem sustentar, no mínimo, que o acidente contribuiu para a deterioração do estado anímico e da imunidade da autora que, por sua vez, afetou a recuperação do surto de 02.01.2014 e agravou o estado evolutivo da doença provada em referência ao desenvolvimento e controlo da mesma em todo o período anterior a 27.01.2024 (a descoordenação motora e a necessidade de apoio para a marcha, mesmo depois de medicação, anteriormente inexistente durante todo o desenvolvimento anterior da doença desde 2005; a extensão de dimensão de algumas lesões), ainda que em termos e com proporções não quantificadas.
Assim, a impugnação do facto 47 procede parcial e residualmente, nos termos do art.640º e 662º/1 do C. P. Civil.
Ora, esta resposta explicativa ao facto principal 47 exigirá, simultaneamente, a alteração oficiosa dos factos 24 e 25, 35 e 36, a que o mesmo novo facto 47 se refere, face à prova produzida e contraditada em audiência (na 1ª instância e nesta Relação), nos termos do art.662º/1 e 2-c), a contrario, do C. P. Civil: quer porque a matéria inicial encerrava de deficiências (sobretudo em face da descrição conclusiva de factos, passível de concretização, e quanto à falta de datas que localizassem os mesmos); quer porque a resposta explicativa do facto 47 se refere a pressupostos anteriores (como lesões e sinais de agravamento da doença que os referidos factos ilustram), com os quais deve estar compatibilizada.
Por sua vez, toda a matéria não provada quanto aos nexos (referida em III-1.2.-4) deve considerar-se estar lavrada em relação à causalidade direta aí integrada e não ser prejudicada pela resposta restritiva ao facto 47.

Pelo exposto:
1) Determina-se a correção dos seguintes factos provados em 24 e 25, 35 e 36, nos termos do art.662º/2-c) do C. P. Civil (mantendo-se em itálico a matéria não alterada):
24. Como consequência directa do acidente a autora sofreu traumatismo da coluna lombar e joelho direito, com dor lombar direita e dor patelar direita, sem fraturas, sem derrame no joelho e sem lesão do aparelho extensor (facto concretizados com os registos de urgência de fls.194 a 196, 200).
25. E sofreu um susto com o embate e uma ansiedade e stress contemporâneos e posteriores (facto concretizado pelo depoimento da autora e pela notoriedade dos factos).
35. A autora, no quadro da sua doença de esclerose múltipla referida em 32 e 33:
35.1. Até 27.01.2014 sofreu surtos de esclerose que eram compensados com medicação, sem perder a autonomia de marcha e movimento, período no qual: em outubro de 2013 tinha parapésia de grau 4, com espasticidade associada, marcha independente de base alargada, com lentificação na coordenação do movimento de forma a evitar as quedas mas sem necessidade de apoio da marcha; no surto de 02.01.2014 tivera cansaço extremo e agravamento da falta de força dos membros inferiores com desequilíbrio de marcha, surto parcialmente controlado com a medicação tomada durante os 5 dias posteriores, após a qual não careceu de apoio para a marcha.
35.2. Após 27.01.2014, sofreu: um agravamento da parapésia e espasticidade, da ataxia da marcha, com desequilibrio fácil e dificuldade de coordenação motora dos membros inferiores, passando a ter apoio para a marcha nos termos referidos em 39, mesmo após o referido em 36, em condições totais não apuradas, estado global ocorrido pelo menos desde 17.03.2014; uma dificuldade de preensão pelo trémulo que desenvolveu, desde o final de março de 2014 (factos concretizados pelas informações de 02.02.2017, de 21.02.2020 e de 09.06.2020).
36. A autora, em face de 35: teve uma alteração da medicação para tentar controlar o agravamento da doença a 22.05.2014 e, depois, ainda, a 14.07.2014, com nova alteração para Natalizumab, que cumpriu desde então; a 22.05.2014 foi orientada para consulta de dor, por dores generalizadas (facto concretizado com as informações de 26.10.2016 e 21.02.2020).
2) Julga-se parcialmente procedente a impugnação, de forma a que se julgue provado em 47:
47. A autora padece de défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de, pelo menos, 15 pontos, causado pela sua esclerose múltipla, cuja evolução agravada após fevereiro/março de 2014, nomeadamente nos termos referidos em 35 e 36, foi precipitada e potenciada pela degradação do seu estado anímico e de imunidade, para o que contribuiu o embate e as lesões de 27.01.2014 referidas em 24 e 25 supra.

2.2. Reapreciação de direito:
2.2.1. Enquadramento jurídico da indemnização do dano na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos:
A. O regime da responsabilidade civil por factos ilícitos responsabiliza aquele que ofendeu ilicitamente o direito de outrem ou norma protetora de interesses alheios, de forma censurável a título de dolo ou mera culpa, a reparar o dano causado por essa lesão, nos termos dos arts. 483º ss e 562º ss do C. Civil.
B. A obrigação de indemnização dos danos, em geral, só existe em relação aos danos, diretos ou indiretos, que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art.563º do C. Civil), norma esta que corresponde, de acordo com o que se tem entendido clássica e maioritariamente, à formulação negativa da teoria da causalidade adequada, nos termos defendidos Ac. STJ de 3.12.1992, publicado no BMJ 422º-365, Ac. RE de 07.12.1993, in BMJ 432º-452, Ac. STJ de 2.3.1995, in BMJ 445º-445i.
Mafalda Miranda Barbosa, na discussão «Do Nexo de causalidade ao nexo de imputação», em relação aos critérios imputacionais que atualizam a discussão do nexo exigível entre o evento lesivo e o dano, para que o mesmo seja indemnizável pelo lesante, mesmo em condições particulares do lesado, explica, em termos que se perfilham:
«o filão fundamentador da imputação objetiva não pode deixar de se encontrar numa esfera de risco que se assume. (…) A pessoa, ao agir, porque é livre, assume uma role responsibility, tendo de, no encontro com o seu semelhante, cumprir uma série de deveres de cuidado. (…) Exige-se, por isso, que haja um aumento do risco, que pode ser comprovado, exatamente, pela preterição daqueles deveres de cuidado. Estes cumprem uma dupla função. Por um lado, permitem desvelar a culpa (devendo, para tanto, haver previsibilidade da lesão e exigibilidade do comportamento contrário tendo como referente o homem médio); por outro lado, alicerçam o juízo imputacional, ao definirem um círculo de responsabilidade, a partir do qual se tem de determinar, posteriormente, se o dano pertence ou não ao seu núcleo. (…)
Assim, para que haja imputação objetiva, tem de verificar-se a assunção de uma esfera de risco, donde a primeira tarefa do julgador será a de procurar o gérmen da sua emergência. São-lhe, por isso, em princípio, imputáveis todos os danos que tenham a sua raiz naquela esfera, donde, a priori, podemos fixar dois polos de desvelação da imputação: um negativo, a excluir a responsabilidade nos casos em que o dano se mostra impossível (impossibilidade do dano), objeto, ou por falta de ou por inidoneidade do meio; outro positivo, a afirmá-la diante de situações de aumento do risco.
Exclui-se a imputação quando o risco não foi criado (não criação do risco), quando haja diminuição do risco e quando ocorra um facto fortuito ou de força maior. (…)
O confronto com a esfera de risco titulada pelo lesado impõe-se de igual modo. São a este nível ponderadas as tradicionais hipóteses da existência de uma predisposição constitucional do lesado para sofrer o dano. Lidando-se com a questão das debilidades constitucionais do lesado, duas hipóteses são cogitáveis. Se elas forem conhecidas do lesante, afirma-se, em regra, a imputação, exceto se não for razoável considerar que ele fica, por esse especial conhecimento, investido numa posição de garante. Se não forem conhecidas, então a ponderação há-de ser outra. Partindo da contemplação da esfera de risco edificada pelo lesante, dir-se-á que, ao agir em contravenção com os deveres do tráfego que sobre ele impendem, assume a responsabilidade pelos danos que ali se inscrevam, pelo que haverá de suportar o risco de se cruzar com um lesado dotado de idiossincrasias que agravem a lesão perpetrada. Excluir-se-á, contudo, a imputação quando o lesado, em face de debilidades tão atípicas e tão profundas, devesse assumir especiais deveres para consigo mesmo.»ii.
Os danos não patrimoniais, por sua vez, são protegidos, para além do nexo de causalidade, quando, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art.496º/1 do C. Civil, em referência aos arts.483º e 562º ss do C. Civil).
O dano não patrimonial pode integrar compreensivamente, de acordo com a jurisprudência, nomeadamente «o dano corporal ou à saúde traduzido na diminuição psicossomática da pessoa por lesão à integridade física e psíquica- actualmente designado também como dano biológico; o dano que consiste no sofrimento físico ou psíquico- quantum doloris; o prejuízo estético; o prejuízo sexual; o dano que se traduz no prejuízo da vida concreta e relacional da pessoa, designadamente familiar- que pode ser designado por dano existencial ou à vida de relação ou por prejuízo de afirmação pessoal, e que pode ainda ser particularizado no «prejuízo de distracção ou passatempo», no «pretium juventutis», no «prejuízo da auto-suficiência»»iii
Esta cláusula indemnizatória geral, em consonância com a tutela geral da personalidade física e moral contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça (art.70º do C. Civil), protege «mais amplamente, a tutela da pessoa, na completa expressão do seu ser (Cfr. MENEZES CORDEIRO, 2010: 408-418 e BRANDÃO PROENÇA 217b: 313-388)»iv, compensando o dano grave, aferido objetivamente, gravidade essa que pode abranger “não apenas o «dano exorbitante ou excecional», mas também aquele que sai da mediania, ultrapassando as fronteiras da banalidade (cfr., v.g., o Ac. STJ 04.03.2008 08A164)”v
C. O valor da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que se justifiquem (arts.496º/4 e 494º do C. Civil), como, as «flutuações do valor da moeda, etc.» e «E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida»vi
O valor a arbitrar não deve reconduzir-se apenas a um valor simbólico mas deve ter um valor significativo, ainda que baseado em critérios objetivos e não arbitráriosvii.
Esta indemnização: reveste uma natureza compensatória («tem por fim facultar ao lesado meios económicos que, de alguma sorte, o compensem da lesão sofrida, por tal via reparando, indirectamente, os preditos danos, por serem hábeis a proporcionar-lhe alegrias e satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que consubstanciam um lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar o havido sofrimento moral»viii ) e uma natureza também sancionatória, que pondera a culpa do agenteix; deve ser fixada num valor único, ainda que que pondere diversas categorias de danos - «não se justificando autonomizar as diversas categorias para o efeito de ser atribuída uma distinta parcela indemnizatória a cada uma- cfr. os Acs. STJ 07.07.2009, 25.11.2009, 25.11.2009, 07.5.2014.26.06.2014 e 02.06.2015- solução que se compreende pela necessidade de evitar a dupla reparação do mesmo dano, uma vez que as diversas subespécies podem não revestir autonomia dogmática e são identificadas, sobretudo, com um fim descritivo»x.
Na decisão a proferir, ainda, o julgador deve ter em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniforme do direito (art.8º/3 do C. Civil).
De acordo com a jurisprudência do STJ, o valor indemnizatório por danos não patrimoniais, fixado num juízo de equidade na 1ª instância, «assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade»xi, posição adotada também por este Tribunal da Relação de Guimarães, que conclui «Assim, fixada a indemnização por danos não patrimoniais com base na equidade, o Tribunal superior só deve intervir quando os montantes fixados se revelem, de modo patente, em colisão com os critérios jurisprudenciais que vêm a ser adotados, para assegurar a igualdade, o que manifestamente, não sucede no caso. Não ocorrendo oposição, a ponderação casuística das circunstâncias do caso deve ser mantida, já que o julgador se situou na margem de discricionariedade que lhe é consentida.»xii, posições estas que se perfilham.

2.2.2. Apreciação indemnizatória dos danos do facto 47:
A recorrente limitou o seu pedido de reapreciação ao dano decorrente da alteração do facto 47, sem questionar as indemnizações apreciadas na sentença da primeira instância e consideradas já pagas, limitação esta que circunscreve o objeto do recurso e da apreciação deste Tribunal.
Com a alteração residual do facto 47, encontra provado que o acidente de viação do dia 27.01.2014 e as lesões causadas pelo mesmo à autora/recorrente (provadas em 24 e 25) contribuíram (ainda que em quota não apurada), para uma degradação do estado anímico e da imunidade da autora/recorrente, degradação esta que concorreu e contribuiu para a evolução negativa do seu estado da doença preexistente (passando a ter limitação de marcha e necessidade de apoio externo, que careceu aumento de medicação e tratamento), doença esta que confere à autora 15% de incapacidade funcional (sem que se saiba a proporção da incapacidade anterior ao acidente e a proporção posterior ao mesmo).
Esta degradação da imunidade e do estado anímico de uma lesada de 41 anos, que contribuiu para a evolução mais gravosa de uma doença degenerativa que tinha uma evolução estável até então e que afetou a sua vida diária (em face da menor autonomia da marcha, ainda que em termos não totalmente apurados), não pode deixar de se considerar: que corresponde a um dano imaterial, com seriedade suficiente para ser protegido pelo direito (não podendo ser tratado como dano patrimonial, uma vez que não se encontra provado que tenha sido a lesão causadora da incapacidade funcional provada, com repercussão e avaliação patrimonial); que é imputável objetivamente à lesante segurada da ré/recorrida, uma vez que se encontra na esfera de risco de produção de danos indiretos que a atuação ilícita é apta a causar a um lesado, nas suas circunstâncias particulares e especiais de vida (nomeadamente por idade, por deficiência ou, como ocorre neste caso, por doença), consequência para o qual não contribuiu a lesada por qualquer omissão de cuidado que lhe seja imputada; que é imputável à segurada da ré a titulo de culpa, em face das violações das normas estradais já reconhecidas na sentença recorrida e da possibilidade de previsão para qualquer cidadão comum que uma violação das mesmas pode causar danos na saúde de terceiros, nas suas especiais circunstâncias de vida (em que podem ter saúde ou ser doentes).
Este dano indireto, e apenas de natureza não patrimonial, é necessariamente inferior àquele que decorreria de ser ter provado que a autora passou a padecer de uma incapacidade funcional de 15% causada diretamente pelas lesões do acidente. E, nesta medida, deve também ser compensado de uma forma menor.
Examinando a jurisprudência, com a qual se deve comparar as indemnizações, verifica-se, nomeadamente: que o acórdão do STJ de 19.09.2019xiii fixou a indemnização por dano não patrimonial em € 50 000, 00, a lesado que ficou afetado com um défice funcional permanente de 32%, com afetação do desempenho da sua profissão e outra na área da sua formação profissional, com um dano estético de 3/7 da escala, com sequelas nas atividades desportivas e de lazer de 3/7 (para além de ter sido sujeito a exames médicos e vários ciclos de fisioterapia, bem como uma intervenção cirúrgica, ter tido 56 dias de défice total e 1151 dias de défice e afetação parcial, ter sofrido dores quantificáveis em 5/7 da escala, ter sofrido um rebate em termos psicológicos, em virtude das lesões e sequelas permanentes, designadamente por não poder voltar a exercer a sua profissão habitual e/ou outra no âmbito da sua formação profissional); que o acórdão da Relação de Coimbra de 09.01.2017xiv fixou a indemnização por danos não patrimoniais em € 40 000, 00, a lesado que, tendo sofrido traumatismos vários com fratura da diáfise do fémur esquerdo, ficou com sequelas que lhe conferem um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 35% (consolidação viciosa do fémur esquerdo, anquilose do joelho esquerdo em flexo de 15º e dismetria do membro inferior esquerdo de 29 mm), impeditivas do exercício da atividade profissional à data do acidente e de qualquer outra da sua área de preparação técnico-profissional, e ficou com cicatrizes que correspondem a um dano estético permanente de grau 5/7 (para além de ter sido sujeito a, pelo menos, 8 intervenções cirúrgicas e 33 sessões de fisioterapia, sofrido dores no grau 6/7 da escala no momento do acidente e na sequência dessas intervenções).
No entanto, a indemnização deve ter um valor significativo, tendo em conta, sobretudo, que a autora tinha apenas 41 anos, tem uma longa esperança média de vida, afetada na sua vida diária por uma evolução mais gravosa da doença que lhe limita parcialmente a autonomia de movimento, potenciada pela degradação do seu estado anímico e imunitário para que contribuiu o acidente e as lesões do mesmo.
Assim, considera-se adequado, pela equidade, fixar a indemnização pelo dano não patrimonial causado à autora no valor de € 15 000, 00 (quinze mil euros).

IV. Decisão:

Pelo exposto, as juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação julgam parcialmente procedente o recurso de apelação e fixam à recorrente uma indemnização de € 15 000, 00 (quinze mil euros) pelo dano não patrimonial provado no facto 47.
*
Custas da ação e do recurso pela recorrente e pela recorrida na proporção dos decaimentos.
*
Guimarães, 05.11.2020
Elaborado, revisto e assinado eletronicamente pelas Juízes Desembargadoras Relatora e Adjuntas

Alexandra Viana Lopes
Anizabel Sousa Pereira
Rosália Cunha


i Citados por Abilio Neto, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 11ª edição, 1997, pág.490, notas 19, 21 e 23..
ii Mafalda Miranda Barbosa, na discussão «Do Nexo de causalidade ao nexo de imputação», págs.65 a 68, in Ebook do CEJ «Novos Olhares sobre a responsabilidade Civil, publicado in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_ReponsCivil_2018.pdf.
iii Obra citada em i, Nota III ao art.496º do Código Civil, págs.358 e 359.
iv Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Universidade Católica Portuguesa, 2018, Nota I ao art.496º do Código Civil, pág.356.
v Obra citada em i, Nota IV ao art.496º do Código Civil, pág. 359.
vi Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Nota 6 ao art.496º do Código Civil, pá.g.501.
vii Ac. STJ de 17.01.2008, proferido no processo SJ200801170045382, relatado por Pereira da Silva, in dgsi.pt, entre outros.
viii Ac. STJ de 24.04.2013, in dgsi.pt
ix Ac. STJ de 19/5/2009, proferido no processo nº298/06.0TBSJM.S1, e acervo de doutrina exposto no ac. RG de 15.02.2018, proferido no processo 3nº037/15.1T8VCT.G1, todos in dgsi.pt.
x Obra citada in i, Nota III ao art.496º do Código Civil, pág.359.
xi Ac. STJ de 29/6/2017, proferido no processo nº976/12.5TBBCL.G1.S1, in dgsi.pt,
xii Ac. RG de 15.02.2018, proferido no processo nº3037/15.1T8VCT.G1, in www.dgsi.pt.
xiii Ac. STJ de 19.09.2019, proferido no processo nº2706/17.6T8BRG.G1.S1, relatado por Maria do Rosário Morgado.
xiv Ac. RC de 09.01.2017, proferido no processo nº1251/12.0TBMGR.C1, relatado por Fonte Ramos, in dgst.pt.