Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5220/20.9T8GMR-C.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
SENTENÇA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR FACTOS ILÍCITOS
JUROS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Em sede de incidente de liquidação pós-sentença, previsto no artigo 358.º, n.º 2 do CPC, face ao considerado e decidido com trânsito em julgado na sentença proferida na ação principal, não podem os recorrentes pretender introduzir novos factos incompatíveis com outros definitivamente assentes e que serviram de fundamento à condenação genérica.
II - Nas situações em que, não obstante a formulação de pedido ilíquido, está em causa o direito a indemnização fundado em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, importa atender ao regime excecional previsto na 2.ª parte do citado n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil e, nessa perspetiva, considerar que, sobre o montante tornado líquido, são devidos juros desde a data da constituição em mora - a citação na ação declarativa de que a liquidação é incidente.
III - Contudo, tendo a sentença recorrida condenado no pagamento de juros contados desde a citação no âmbito do incidente de liquidação, é sobre esta data que são devidos os juros moratórios e não apenas desde a data da sentença da primeira instância que fixou o valor da obrigação (sentença recorrida) como pretendiam os recorrentes.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

Na ação de processo comum com o n.º 5220/20.9T8GMR foi proferida sentença, devidamente transitada em julgado, julgando a ação parcialmente procedente e condenando os réus, AA e BB, entre o mais, no pagamento à autora, CC, e ao interveniente principal, DD, da quantia de 500,00 €/mês desde dezembro de 2019 e até efetiva cessação da privação àqueles das utilidades da fração id. em 1. (liquidação do julgado).
A autora e o interveniente principal deduziram, então, incidente de liquidação de sentença contra os ora requeridos, por apenso à ação indicada, pedindo que o segmento condenatório em referência seja liquidado na quantia de 18.000,00 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.
Para tanto alegaram, em síntese, que a fração se encontrou inabitável desde dezembro de 2019 até novembro de 2022, inclusive, data em que foram reparados os estragos identificados e provados nos pontos 27 e 34 da sentença proferida nos autos principais.
Os réus contestaram, pedindo a total improcedência do pedido e sustentando que o comportamento dos requerentes é violador da boa fé, consubstanciando abuso do direito, porquanto a fração autónoma, de setembro de 2019 até novembro de 2022 permaneceu devoluta, sem utilização e desprovida de abastecimento de água, energia elétrica e gás, por única e exclusiva responsabilidade dos requerentes, não podendo ser imputada qualquer responsabilidade aos requeridos pela privação das utilidades da fração, já que os requerentes apenas não arrendaram a fração por a mesma estar desprovida de abastecimento de água, energia elétrica e com roturas nas canalizações.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença a julgar o incidente de liquidação «parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência:
a) Condenar os Requeridos AA e BB a pagar aos Requerentes CC e DD, a quantia de 15.500,00€, acrescida dos respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, contabilizados, à taxa de juro civil, desde a data da citação (10.05.2024) e até efetivo e integral pagamento.
b) Absolver os Requeridos do demais peticionado».

Inconformados, os réus interpuseram recurso de apelação da sentença, terminando as alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1º - Salvo o devido respeito por diferente opinião, a sentença recorrida fez uma interpretação desconforme as regras do direito aplicáveis, nomeadamente as previstas para o instituto do abuso do direito, contempladas no artigo 334º do Código Civil.  
2º - Com efeito, invocando danos causados por infiltrações de água provenientes da fração da requerente CC, esta foi demandada por uma vizinha do mesmo prédio (proprietária da fração ..., imediatamente situada por baixo), através de uma ação judicial que correu termos pelo Processo: 3333/19.9T8GMR - Juízo Local Cível de Guimarães juiz ..., - cfr. PI, contestação, ata e relatório pericial que se juntaram aos autos com a oposição dos requeridos, como docs. 1, 2, 3 e 4.
3º - Como se alcança da contestação da requerente CC apresentada naquele processo 3333/19.9T8GMR, esta confessa a rotura nas canalizações da sua fração, nomeadamente, na casa de banho - cfr. ainda relatório pericial e depoimentos das testemunhas EE e FF, relatados na pág. 10 da douta sentença.  
4º - Como também do teor da ata de audiência de discussão e julgamento daqueles autos 3333/19.9T8GMR, também ali junta, de 16 de fevereiro de 2022, a requerente CC ainda não tinha reparado a fuga da rede de água da sua fração E, tendo-se obrigado a fazê-lo nos seguintes termos (e passa-se a citar):  
“V-A Ré obriga-se a efetuar a reparação da fuga na sua rede de água, realizando as diligências indicadas no relatório pericial, com recurso a um manómetro para verificar o local de fuga de água e subsequente correção das tubagens e ligações necessárias das ligações de água e/ou saneamento, com início a 1 de agosto, do corrente ano.
VI --A Ré obriga-se ainda, até ao início da realização das reparações referidas na cláusula anterior na sua fração, a não proceder à ligação da água.”
5º - O tribunal a quo desconsiderou totalmente esta matéria factual, não impugnada e comprovada documentalmente, devendo, por isso, ter dado os seguintes factos como assentes:
- em 16 de fevereiro de 2022, a requerente CC tinha uma a fuga da rede de água da sua fração E;
- obrigou-se a efetuar a reparação da fuga na sua rede de água, realizando as diligências indicadas no relatório pericial, com recurso a um manómetro para verificar o local de fuga de água e subsequente correção das tubagens e ligações necessárias das ligações de água e/ou saneamento, com início a 1 de agosto, do corrente ano.
- obrigou-se ainda, até ao início da realização das reparações referidas na cláusula anterior na sua fração, a não proceder à ligação da água.
6º - Resulta, pois, que, se no período condenado, de dezembro de 2019 a junho de 2022, os requerentes não retiraram utilidades da referida fração E, tal só se ficou a dever a sua única e exclusiva responsabilidade.
7º - De facto, como foi dado como assente, “desde setembro de 2019, a fração dos requerentes permaneceu sem abastecimento de água, energia elétrica e gás e que “os requerentes deixaram de habitar a fração desde setembro de 2019” - cfr. pontos 8 e 9 dos factos provados.
8º - Ninguém, no seu perfeito juízo, ocupa, arrenda ou adquire uma fração destinada a habitação desprovida de abastecimento de água, energia elétrica e gás e com a agravante de possuir roturas nas canalizações que - como ficou provado numa ação judicial - causavam inundações na fração situada por baixo.
9º - Daí que, no nosso modesto entendimento, o tribunal a quo errou ao dar como não provados os factos enunciados na alínea a) dos factos não provados, pois desde o ano de 2017 a fração dos requerentes (fração E) padecia de roturas e outras anomalias nas canalizações que chegaram a provocar infiltrações na fração imediatamente por baixo (fração ...), sendo que desde setembro de 2019, a fração dos requerentes permaneceu sem abastecimento de água, energia elétrica e gás.   
10º - De facto, para que a fração E dos requerentes poder ser habitada ou alienada, era necessário que, em primeiro lugar, eles reparassem as roturas comprovadas nas canalizações e dotasse tal apartamento de fornecimento de água, energia elétrica e gás - reitera-se que a requerente CC obrigou-se, até ao início da realização das reparações referidas na cláusula anterior na sua fração, a não proceder à ligação da água.
Acresce que: 
11º - A testemunha GG, arrolada pelos requerentes e promitente comprador da fração destes, declarou que “as reparações da cozinha, apenas careceriam de cerca de 5 dias de trabalho para serem concluídas” - cfr. pág. 8 e 9 da sentença recorrida.
12º - Daqui podemos concluir que a privação das utilidades da fração dos requerentes ocorreu apenas durante 5 dias por ser este o tempo necessário de trabalho para serem concluídas as reparações da cozinha.
13º - Assim, não podia o tribunal a quo imputar aos requeridos qualquer responsabilidade pela privação das utilidades da fração E dos requerentes no período tão longo de dezembro de 2019 a junho de 2022, quando concluiu na sentença que as reparações da cozinha, apenas careceriam de cerca de 5 dias de trabalho para serem concluídas.   
14º - Só se fica a dever aos requerentes a privação das utilidades daquela fração E num período tão longo de 31 meses.
15º - Com esta douta sentença, está-se a privilegiar a inércia/a falta de ação dos requerentes, não se aceitando que se esteja 31 meses (à ordem de € 500,00/mês) à espera para reparar uma cozinha, quando seriam suficientes 5 dias de trabalho.
16º - É indubitável que os requerentes pretenderam enriquecer à custa dos requeridos, «arrastando» a reparação da cozinha, pois não alegam nenhum facto para tão demora reparação.
17º - Daí ser injusta e desproporcional a sentença recorrida que fixa 31 meses de efetiva cessação da privação das utilidades de uma fração por causa da inundação na cozinha, à ordem de € 500,00/mês, cuja reparação demoraria 5 dias de trabalho, comprovada por uma testemunha arrolada pelos requerentes. Daí que não se possa manter esta decisão no nosso ordenamento jurídico.  
18º - Além do mais, a douta sentença proferida na ação principal, deu como assente que a inundação na fração dos requerentes ocorreu no mês de novembro de 2019, ou seja, quando a fração já estava inabitada, devoluta, sem abastecimento de água, energia elétrica e gás e com roturas nas canalizações.
20º - Pelo que não foi aquela inundação que privou os requerentes de retirarem as utilidades daquela fração.
21º - Da prova documental junta com a Oposição, resulta de forma evidente que requerentes já estavam privados de retirarem as utilidades daquela fração E por razões alheias aos requeridos.   
22º - Por tudo o supra exposto, tendo em conta a prova produzida, sobretudo a prova documental extraída do Processo: 3333/19.9T8GMR - Juízo Local Cível de Guimarães juiz ..., junta com a Oposição dos Requeridos, permite-nos, desde logo, concluir que o pedido de liquidação dos requerentes com o presente incidente, violou o princípio da boa-fé, incorrendo em abuso de direito, erradamente desconsiderado pelo tribunal a quo.   
23º - Ao condenar os requeridos no pagamento da quantia de € 15 500,00 por alegada privação - durante 31 meses, à ordem de € 500,00/mês - das utilidades da fração E no período em que os próprios requerentes estavam impedidos de utilizarem essa fração (nomeadamente, arrendando-a) por razões que só a eles assistem ou por eles foram causadas (rotura de canalizações, falta de abastecimento de água, energia elétrica e gás na própria fração E) e quando se apurou que bastavam 5 dias para reparar a cozinha inundada, a sentença recorrida desconsiderou errada e ilegalmente que o pedido dos requerentes é violador da boa-fé e abusivo e, como tal, não se pode manter. 
24º - Com efeito, o abuso de direito traduz-se essencialmente no exercício de um direito de forma anormal, quer na sua intensidade quer na execução, desde que desse exercício resulte a " negação " prática de direitos de terceiros, ou crie uma desproporção objetiva entre os benefícios que para o seu titular resultam, e as consequências que terceiros têm de suportar por força desse exercício (Ns. Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas segundo o C.C. de 1966, Vol. V, pág. 10 e Ac. STJ de 13/3/91, Acord. Dout. nº 361, pág. 135).
25º - Decidiu mal o tribunal a quo, fazendo uma interpretação desconforme o disposto no artigo 334º do CC.
26º - Ainda assim se alega que, quanto aos juros, nos termos dos artigos 805.º, n.º 3, e 559.º, n.º 1, do Código Civil, os juros de civis de mora à taxa legal de 4% [nos termos da Portaria n.º 291/03, de 08.04], são contados desde a data da decisão até efetivo e integral pagamento e não, como decidido, desde a citação.
Nestes termos, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, nos termos das articuladas conclusões, com as inerentes consequências.
Assim se fará, serena, sã e objectiva JUSTIÇA».
Os requerentes apresentaram contra-alegações, sustentando a improcedência da apelação.
O recurso foi admitido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), o objeto do presente recurso circunscreve-se às seguintes questões:

A) se estão verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso respeitante à decisão da matéria de facto; se existe erro no julgamento da matéria de facto;
B) se existe exercício abusivo do direito por parte dos requerentes;
C) se os juros são devidos desde a citação ou da decisão.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª instância na decisão recorrida:
1) Por sentença proferida nos autos principais foram os requeridos AA e BB condenados entre o mais, no pagamento aos requerentes “da quantia de €7.210,00, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos;” e no pagamento “da quantia de €500,00/mês desde dezembro de 2019 e até efetiva cessação da privação àqueles das utilidades da fracção id. em 1. (liquidação do julgado);”.
2) Com relevância para a decisão a proferir consideraram-se como provados na sentença identificada em 1), os seguintes factos:
1. Existe uma realidade predial que se encontra descrita na CRP sob o n.º ...75.../... e inscrito na matriz urbana sob o art.º ...38, aí designada de fração autónoma ..., correspondente a um apartamento Tipo 3 e como estando situada no ... andar nascente do prédio urbano sito na Rua ..., ..., da cidade ....
2. O domínio da realidade id. em 1. encontra-se inscrito, na proporção de metade indivisa para cada um, a favor da Autora e do Interveniente Principal.
3. Por sua vez, existe uma realidade predial que se encontra descrita na CRP sob o n .º ...75.../... e inscrito na matriz urbana sob o art.º ...85, aí designada de fração autónoma ..., correspondente a um apartamento Tipo 3 e como estando situada no ... andar nascente do mesmo prédio id. em 1.
4. O domínio sobre tal realidade consta como inscrito a favor dos RR.
5. A realidade id. em 3 situa-se imediatamente acima da id. em 1. […]     
7. Em dia não determinado do mês de Novembro de 2019, ocorreu uma inundação (presença) de água na realidade id. em 1., […]     
9. Naquela data, a Autora encontrava-se ausente da fração (não a estava a habitar). […]
18. A seguradora da fração id. em 1., a EMP01... S.A., efetuou uma peritagem ao apartamento da Autora para que se averiguasse a causa da inundação.
19. Nesse seguimento, no dia 03.12.2019, deslocaram-se ao prédio peritos da empresa EMP02..., S.A., que constataram que o contador de consumo de água dos RR, mesmo com as torneiras desligadas, apresentava consumo constante.  
20. Aqueles concluíram, após averiguação e análise, ser uma fuga de água proveniente da casa dos Réus a causa da inundação que se verificava no apartamento id. em 1.. […]
24. A Companhia de Seguros EMP03... foi acionada pelos RR e, nessa conformidade, fez uma peritagem ao apartamento dos Réus.
25. Os averiguadores que realizaram a peritagem para a EMP03... verificaram que as causas dos danos provocados na fracção da Autora eram consequência de uma fuga de água da casa dos Réus.   
26. Como consequência da inundação, do contacto com a água e sua quantidade na cozinha da fração id. em 1.: os móveis presos à parede caíram; os móveis ficaram inchados, apodrecidos; uma placa de indução, um esquentador, um forno eléctrico e uma exaustor, deixaram de poder funcionar.
27. O mobiliário e os electrodomésticos não têm qualquer possibilidade de reparação, uma vez que: i) a madeira ficou “podre e inchada” e/ou aluiu e rachou no chão da cozinha; ii) o interior dos equipamentos ficou afectado pela água que aí se introduziu, havendo risco de curto-circuito.
28. A substituição da mobília de cozinha orça na quantia de € 3.820,50.
29. A substituição do mármore - revestimento de granito preto e angola e rodamão nas mesmas características do que ficou destruído - orça na quantia de € 1.150,80.
30. A substituição dos electrodomésticos destruídos por outros da mesma marca e modelo equivalente, orçam na quantia de, pelo menos, € 1.000,00 correspondente a placa de indução, forno eléctrico, exaustor e esquentador.
31. Para além disso, a inundação causou escorrimentos líquidos, manchas de humidade, bolores, fungos e maus cheiros.    
32. O que impõem proceder à reparação dos tectos da cozinha e pintura em branco, bem como, proceder à reparação da luminária, trabalho este que orça na quantia de € 760,00.
33. Será ainda necessário proceder à limpeza e arrumação dos escombros, electrodomésticos e mobília destruídos para serem substituídos, bem como, ao transporte e descarga dos mesmos, cujos custos orçam em € 480,00.    
34. Acresce que a Autora viu-se privada da fruição do seu imóvel que não se encontra em condições de poder ser habitado, devido aos estragos e inutilização da cozinha, aos maus cheiros e humidades na casa. […]
36. Na data em que sucedeu este sinistro era pretensão da Autora arrendar o seu imóvel.
37. Tendo até sido contactada por interessados, sendo a renda mensal a pagar de € 500,00, que é o preço praticado para aquele tipo de apartamento naquela localização. […]”.
3) Por documento escrito denominado “Contrato de Promessa de Compra e Venda de Imóvel”, celebrado a ../../2022, os requerentes declararam prometer vender a GG, ou a quem este indicar, e este prometeu comprar, pelo preço de 100.000€ (cem mil euros), o prédio urbano fração autónoma designada pela letra ... tipo t3 no ... andar nascente destinado a habitação, donde faz parte esta fração garagem e arrecadação na cave designadas pela letra ..., descrito na conservatória do Registo predial ... sob o n.º ...75, matriz sob o n.º ...38, sito na rua ..., ... nascente, ... freguesia ..., concelho ....
4) Mais declararam os requerentes, no documento identificado em 3), que receberam, naquela data, de GG, a quantia de 3000 €, a título de sinal.
5) Do referido documento denominado de “Contrato de Promessa de Compra e Venda de Imóvel” resulta, ainda que “Os PRIMEIROS OUTORGANTES autorizam o SEGUNDO OUTORGANTE a realizar trabalhos de limpeza e restauro no interior da habitação, a partir da assinatura deste contrato.”.
6) Por “ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA”, elaborada no cartório notarial ..., em 16 de dezembro de 2022, perante a notária HH, os requerentes declararam vender a II, NIF. ...58, pelo preço de cem mil euros, que disseram já ter recebido, a fração identificada em 3), tendo esta II declarado aceitar o contrato nos termos exarados. 
7) Desde o ano de 2017 a fração dos requerentes (fração E) padecia de roturas e outras anomalias nas canalizações que chegaram a provocar infiltrações na fração imediatamente por baixo (fração ...) e que tal questão foi dirimida em Tribunal em que chegaram a acordo.
8) Desde setembro de 2019, a fração dos requerentes permaneceu sem abastecimento de água, energia elétrica e gás.
9) Os requerentes deixaram de habitar a fração desde setembro de 2019.
10) Depois de novembro de 2019 os requerentes não promoveram o arrendamento do imóvel identificado em 3) devido ao facto da cozinha precisar de reparação.
11) Na data da assinatura do documento identificado em 3) o identificado GG, iniciou obras de reparação da fração aí identificada, recebendo para o efeito as chaves do imóvel, as quais se prolongaram até novembro de 2022.
1.2. O Tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:
a) Os requerentes estiveram privados de retirar as utilidades da fração identificada em 3) desde setembro de 2019 a novembro de 2022 em virtude do descrito em 7) e 8). 
b) Os requerentes estavam contratualmente proibidos pela entidade bancária de arrendarem a fração identificada em 3), nos termos do contrato de empréstimo para habitação que contraíram para adquirir a fração.
2. Apreciação sobre o objeto do recurso
2.1. Alegam os recorrentes que o Tribunal a quo:
i) desconsiderou totalmente factos que afirmam resultar de documentos extraídos de outra ação judicial, que identificam, instaurada contra a ora recorrida, CC, por uma vizinha do mesmo prédio (proprietária da fração ..., imediatamente situada por baixo) e, por isso, aquele tribunal devia ter dado como assentes no presente processo os seguintes factos: « - em 16 de fevereiro de 2022, a requerente CC tinha uma a fuga da rede de água da sua fração E; - obrigou-se a efetuar a reparação da fuga na sua rede de água, realizando as diligências indicadas no relatório pericial, com recurso a um manómetro para verificar o local de fuga de água e subsequente correção das tubagens e ligações necessárias das ligações de água e/ou saneamento, com início a 1 de agosto, do corrente ano; - obrigou-se ainda, até ao início da realização das reparações referidas na cláusula anterior na sua fração, a não proceder à ligação da água»;
ii) errou ao dar como não provado o facto enunciado na alínea a) dos factos não provados, pois desde o ano de 2017 a fração dos requerentes (fração E) padecia de roturas e outras anomalias nas canalizações que chegaram a provocar infiltrações na fração imediatamente por baixo (fração ...), sendo que desde setembro de 2019, a fração dos requerentes permaneceu sem abastecimento de água, energia elétrica e gás e que os requerentes deixaram de habitar a fração desde setembro de 2019 - cf. os pontos 7, 8 e 9 dos factos provados.
Nas contra-alegações apresentadas, os réus/recorridos defendem a manutenção da decisão sobre a matéria de facto, sustentando que os recorrentes não impugnam especificadamente qualquer dos factos que o Tribunal declarou provados na sentença recorrida, pois não indicam um único facto e fundamento que imponha decisão diversa nem especificam os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, relativamente a cada um dos pontos da matéria impugnada.

Conforme resulta do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como de facto, sendo este último o meio adequado e específico legalmente imposto ao recorrente que pretenda manifestar divergências quanto a concretas questões de facto decididas em sede de sentença final pelo Tribunal de primeira instância que realizou o julgamento, o que implica o ónus de suscitar a revisão da correspondente decisão.
Com efeito, a impugnação da decisão de facto feita perante a Relação não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação[1].
Revertendo ao caso em apreciação, observa-se que os apelantes indicam expressamente os concretos pontos que consideram incorretamente julgados, mais especificando suficientemente a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre os factos impugnados.
Em relação ao pretendido aditamento à matéria provada do facto vertido na al. a) dos factos não provados, observa-se que os apelantes não cumpriram o ónus de alegação constante da alínea b) do n.º 1, do artigo 640.º CPC, impondo ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto o dever de especificar, sob pena de rejeição, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Sucede que os recorrentes não baseiam a impugnação deste facto em meios probatórios constantes do processo, antes alegam que os factos tidos como assentes em 7, 8 e 9 dos factos provados impunham a requerida alteração, pelo que a falta de indicação dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida não obstaculiza a admissão liminar da impugnação da matéria de facto em referência.
Porém, não se vislumbra que o aditamento à matéria de facto provada dos factos enunciados em i), na hipótese de proceder, permita obter um efeito juridicamente útil ou relevante face ao objeto da presente apelação, nem tal resulta das alegações de recurso e das correspondentes conclusões.
Aliás, como se viu, sobre esta matéria os recorrentes não impugnam os factos vertidos nos pontos 7, 8 e 9 dos factos provados, sendo exclusivamente com base nestes factos que sustentam a alteração da decisão proferida relativamente à al. a) dos factos não provados - cf. a conclusão 9.ª das alegações.
A impugnação da decisão da matéria de facto, atento o seu caracter instrumental, não constitui um fim em si mesma, mas antes um meio ou mecanismo para atingir um determinado objetivo, mostrando-se por isso absolutamente pacífica a orientação jurisprudencial dos nossos Tribunais superiores no sentido de que a Relação não deverá reapreciar a matéria de facto se a sua reapreciação se afigurar inútil ou inócua do ponto de vista da decisão a proferir, sob pena de levar a cabo uma atividade processual inconsequente e inútil que, por isso, lhe está vedada pela lei, atento o disposto no artigo 130.º do CPC[2].
Assim sendo, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto só se justifica quando recaia sobre matéria com relevância para a decisão da causa[3].
Neste enquadramento, revela-se manifesto que a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não pode dissociar-se da análise do objeto do recurso, cujo ónus de delimitação impende sobre os recorrentes.
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 639.º, n. º1 do CPC, o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
A propósito, esclarece Abrantes Geraldes[4]: «[e]m resultado do que consta do art. 639.º, n.º 1, as conclusões delimitam  a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação. Salvo quando se trate de matéria de conhecimento oficioso que, no âmbito do recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem».
Mais referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa[5], em anotação ao referido preceito: «[a] lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão. Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, com proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial. Rigorosamente, as conclusões devem (deveriam) corresponder a fundamentos que, com o objetivo de obter a revogação, alteração ou anulação da decisão recorrida, se traduzam na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com a decisão recorrida e com o resultado pretendido (…).
As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso (…). Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que o recorrente pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo».
Resulta do exposto que é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto às pretensões do recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que coloca.
Nestes termos, o aditamento suscitado pelos recorrentes em relação aos factos antes enunciados em i) revela-se manifestamente inconsequente e irrelevante à luz do objeto da presente apelação e ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Por outro lado, não vemos que a formulação vertida nos pontos 7, 8 e 9 dos factos provados imponha, por si só, a pretendida alteração da decisão proferida quanto à alínea a) dos factos não provados.
 Ademais, a matéria de facto já definitivamente assente no âmbito dos pontos 7.º, 34.º, 36.º e 37.º da sentença proferida nos autos principais, impede necessariamente que se dê como provado o facto enunciado na al. a) dos factos não provados e determina a manifesta irrelevância do aditamento suscitado pelos recorrentes em relação aos factos enunciados em i).
Acresce que os recorrentes não vêm impugnar expressamente o ponto 10.º, dos “Factos provados”, o que delimita o poder de cognição do Tribunal ad quem a propósito dos restantes factos impugnados.
No caso estamos perante um incidente de liquidação pós-sentença, previsto no artigo 358.º, n.º 2 do CPC: o incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e, caso seja admitido, a instância extinta considera-se renovada.
A propósito, elucida o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-05-2021[6]: «[n]o incidente de liquidação previsto nos arts. 358.º a 361.º do CPC já não é possível voltar a discutir a existência do fundamento do mesmo crédito de que a requerente é reconhecidamente titular sobre a requerida, uma vez que tal matéria - factual e jurídica - foi decidida, em termos definitivos, na acção principal e sobre a mesma foi proferida decisão judicial, de cariz condenatório, que transitou em julgado.
(…) No seu âmbito foram apurados determinados factos (com base na causa de pedir apresentada) com fundamento nos quais, por aplicação do pertinente enquadramento jurídico, foi reconhecida a existência de uma obrigação de pagamento que, a partir daí, deixou de ser questionável, não podendo voltar a ser objecto de apreciação (e muito menos de contradição), sob pena de directa, frontal e grosseira violação do caso julgado material (cfr. art. 619.º, n.º 1, do CPC)».
Assim, quando se relega para liquidação o apuramento do valor a receber pelo credor, tal significa, desde logo, que o Tribunal reconheceu a existência de um direito de crédito, que só não foi quantificado, ou seja, liquidado em montante certo, por não haver elementos para determinar o respetivo “quantum[7].
Tal como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de 08-02-2024[8]: «A liquidação da sentença destina-se a concretizar o objeto da condenação, com respeito do caso julgado formado na sentença liquidanda. É um incidente posterior à sentença de condenação e que a complementa. No incidente está apenas em causa a medida da liquidação e nunca a existência do direito respetivo. Dito de outro modo, a liquidação da sentença não serve para reabrir a discussão sobre se existe ou não a obrigação, mas apenas para concretizar a condenação genérica, fixando o seu objeto ou a sua quantidade.
Embora nem sempre seja plenamente entendido, numa ação declarativa como aquela que antecedeu este incidente, constitui ponto de referência de toda a atividade processual que a determinação do objeto da causa, isto é, da existência do dano (por exemplo, da obrigação de indemnizar por um concreto dano), não é relegável para o incidente de liquidação. Portanto, na liquidação já está perfeitamente delimitado qual é o dano e é este que se pretende quantificar. No fundo, resta apurar o quantum da condenação, mas a delimitação dos factos em que assenta, o seu “balizamento”, já se mostra feito.
(…)
Para delimitar o sentido e âmbito de tal condenação é indispensável verificar quais os factos que a esse propósito foram objeto de discussão e, a final, de decisão, seja como factos provados ou não provados».
Na ação de que estes autos são dependência os réus foram, entre o mais, condenados no pagamento à autora, CC, e ao interveniente principal, DD, da quantia de 500,00 €/mês desde dezembro de 2019 e até efetiva cessação da privação àqueles das utilidades da fração id. em 1. (liquidação do julgado).
Tal dispositivo teve na sua base a apreciação de determinadas questões preliminares que constituem antecedente lógico necessário da decisão, abrangendo os respetivos fundamentos de facto e de direito, entre os quais se destaca que a autora viu-se privada da fruição do seu imóvel que não se encontra em condições de poder ser habitado, devido aos estragos e inutilização da cozinha, aos maus cheiros e humidades na casa (cf. o ponto 34 dos factos provados na ação declarativa), que na data em que sucedeu este sinistro era pretensão da autora arrendar o seu imóvel (cf. o ponto 36 dos factos provados na ação declarativa) tendo até sido contactada por interessados, sendo a renda mensal a pagar de € 500,00, que é o preço praticado para aquele tipo de apartamento naquela localização (cf. o ponto 37 dos factos provados na ação declarativa), que a autora sofreu inquietações, arrelias e tristeza por ver a sua casa neste estado de destruição e por não poder utilizá-la ou arrendá-la (cf. o ponto 38 dos factos provados na ação declarativa), tendo os réus sido instados inúmeras vezes pela autora, no sentido de realizarem as obras necessárias a cessar os danos causados na fração desta (cf. o ponto 39 dos factos provados na ação declarativa), mas tendo estes demonstrado indiferença para com os bens da autora, bem como para com o bem-estar da mesma (cf. o ponto 40 dos factos provados na ação declarativa).
Pronunciando-se sobre a concreta pretensão indemnizatória subjacente ao pedido de condenação genérica agora em liquidação, a sentença proferida na ação declarativa em referência ponderou o seguinte: «Para além destes danos diretos, outros foram alegados na ação.
Desde logo, a perda de disponibilidade da fração para habitação, isto é, a privação do seu uso, o que, como se sabe, é um dano indemnizável.
Com efeito, mercê da danificação da fração e sem reparação voluntária e imediata, os respetivos proprietários, Autora e Interveniente, ficaram impedidos, durante um certo período, de usá-la, de fruir das utilidades que ela normalmente lhes proporcionaria.
(…)
In casu, está demonstrado que a fração se destinava a habitação, fora habitada pela Autora e Interveniente até setembro de 2019 e seria para ser arrendada pela Autora e Interveniente, de modo a ser rentabilizada e ajudar nas despesas da Autora e agregado familiar…
Está demonstrado que as rendas previstas para aquele tipo de fração, rondavam os €500,00.
Não se sabe, todavia, quando é que a fração foi arrendada após o evento; apenas se sabendo que os RR nada fizeram para a reparar desde a sua ocorrência.
Por conseguinte, devem os RR ressarcir a Autora e Interveniente no valor de €500,00/mês, desde a data do evento e até à cessação da privação das utilidades da fração id. em 1 (reparação da fração ou seu arrendamento).
(Obs.: desde a data do evento e até à propositura da causa - 26.10.2020 -, tal valor indemnizatório foi de € 5.500,00, como indicado na p.i.).
Por conseguinte, face ao considerado e decidido na sentença proferida na ação principal, agora em liquidação, cujos exatos termos foram mantidos por esta Relação em sede de recurso oportunamente interposto, resulta manifesto que não podem agora os recorrentes pretender introduzir novos factos incompatíveis com outros definitivamente assentes e que serviram de fundamento à condenação genérica, como é o caso da invocada exclusividade do processo causal que conduziu à privação das utilidades da fração identificada em 3, desde setembro de 2019, em virtude do descrito em 7) e 8) [al. a) dos factos não provados], nem é já possível concluir que não foi aquela inundação que privou os requerentes de retirarem as utilidades daquela fração, ou que os requerentes já estavam privados de retirarem as utilidades daquela fração E por razões alheias aos requeridos, como parecem pretender os recorrentes com a introdução dos novos factos que pretendem aditar à matéria provada.
 Daí que improceda integralmente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, mantendo-se, em conformidade, a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre os factos vertidos em 1.1. e 1.2. supra.  

2.2. Da reapreciação do mérito da decisão recorrida

O quadro fáctico que releva para a subsunção jurídica da causa é exatamente o mesmo que serviu de base à decisão recorrida.
Em sede de apelação os recorrentes aludem ainda ao tempo necessário de trabalho para serem concluídas as reparações da cozinha.
Porém, tal alegação assenta em matéria de facto não provada, pressupondo a prévia modificação da decisão de facto constante da sentença relativamente a factos que não foram alegados e, por isso, também não foram objeto de impugnação no presente recurso.
Como tal, em face dos factos apurados nos autos, entendemos que não se revela possível extrair diferente conclusão relativamente ao enquadramento efetuado pelo Tribunal a quo a propósito da medida da liquidação dos danos cuja existência resulta da sentença liquidanda, sendo por isso de manter a decisão alcançada em primeira instância.
Nas conclusões da alegação, os recorrentes retomam a invocação da exceção do abuso do direito.
Apreciando a questão em análise, concluiu-se na decisão recorrida que o exercício do direito pelos requerentes foi feito dentro dos limites da boa-fé, do fim económico do direito e da equidade, sendo fundamentado em sentença transitada em julgado e proporcional aos danos sofridos com a privação do uso da fração, assim julgando improcedente a invocada exceção.
O artigo 334.º do Código Civil, com a epígrafe «Abuso do direito», dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Tal como decorre do citado preceito legal, a verificação do abuso do direito pressupõe o exercício anormal, excessivo ou ilegítimo dos poderes inerentes a determinado direito.
Deste modo, para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. Em qualquer caso, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito[9].
É entendimento pacífico que a conceção de abuso do direito, adotada no sistema jurídico português, é a objetiva: «Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites»[10].
Neste domínio, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes[11]
Tal como esclarece Luís A. Carvalho Fernandes[12], a propósito do citado artigo 334.º do CC, «[o] preceito  identifica como abusivo o exercício de um direito com manifesto excesso dos limites que assim lhe são impostos. Esta nota, que, num exame preliminar, parece conduzir o abuso a uma figura unitária, não tem, porém, esse significado, porquanto das diferentes fontes desses limites resultam múltiplas e diversas situações de exercício abusivo, que não é possível reduzir a uma única categoria dogmática, pelo que respeita às suas modalidades e às suas consequências». Daí que o citado autor proceda de forma autónoma à identificação dos modos de exercício que são sancionados como abusivos, por referência a cada um dos limites nele elencados[13].
Certo é, porém, que «o abuso de direito visa sancionar comportamentos clamorosamente ofensivos da boa fé, do fim económico e social do direito ou dos bons costumes: comportamentos clamorosos no sentido de intoleráveis, inadmissíveis, chocantes do sentido de justiça, que o direito e a ética negocial não podem tolerar»[14].
Porém, também aqui, os apelantes fundamentam o alegado exercício abusivo do direito em pressupostos fácticos que não se mostram assentes.
Com efeito, os apelantes baseiam a invocação do exercício abusivo do direito alegando que ao condenar os requeridos no pagamento da quantia de € 15 500,00 por alegada privação - durante 31 meses, à ordem de € 500,00/mês - das utilidades da fração E no período em que os próprios requerentes estavam impedidos de utilizarem essa fração (nomeadamente, arrendando-a) por razões que só a eles assistem ou por eles foram causadas (rotura de canalizações, falta de abastecimento de água, energia elétrica e gás na própria fração E) e quando se apurou que bastavam 5 dias para reparar a cozinha inundada, a sentença recorrida desconsiderou errada e ilegalmente que o pedido dos requerentes é violador da boa-fé e abusivo e, como tal, não se pode manter.
Ora, do quadro fáctico definitivamente assente nos autos não resulta, a qualquer título, a matéria invocada pelos recorrentes em sede de abuso do direito.
Ao invés, mostra-se definitivamente assente nos autos que a inundação causada por uma fuga de água proveniente da fração dos requeridos foi determinante da privação do uso e fruição da fração pela requerente/autora, razão pela qual a sentença proferida nos autos principais - já devidamente transitada em julgado - impôs aos requeridos a obrigação de indemnizarem os requerentes pela quantia de €500,00/mês desde dezembro de 2019 até à cessação da privação das utilidades.
Deste modo, resulta indiscutível que os factos em apreciação não permitem configurar o exercício abusivo ou ilegítimo do direito por parte dos requerentes/recorridos.
Improcede, assim, também neste ponto, a apelação.
A sentença recorrida decidiu que os juros moratórios sobre o valor apurado e devido pelos requeridos a título de ressarcimento pelo dano da privação das utilidades da fração, são devidos desde a data da citação no âmbito do presente incidente - a qual foi efetivada em 10-05-2024 - até efetivo e integral pagamento, nos termos e com os fundamentos seguintes:
«(…)
Quanto ao pagamento de juros de mora peticionados, dispõe-se no art.º 805.º, n.º1, do Código Civil que «o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.».
Por sua vez, preceitua o n.º 2 do mesmo normativo que «há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação se a obrigação provier de facto ilícito».
Por fim, dispõe o n.º 3 do referido normativo legal que «se o crédito for ilíquido não há lugar a mora enquanto não se tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou por risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que haja já então mora, nos termos da 1.ª parte deste número».
Da conjugação destes normativos, resulta, assim, que no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos, os juros devidos só se começam a vencer a partir da citação, exceto se já houvesse mora e a iliquidez fosse imputável ao devedor.
In casu, os Requerentes apenas peticionaram juros de mora, não concretizando no pedido desde quando deveriam os mesmos ser contabilizados.
Não obstante, conforme resulta dos preceitos suprarreferidos, deverão os juros ser contabilizados desde a data da citação.
Os Requeridos foram citados no âmbito de presente incidente em 10.05.2024, conforme se pode aferir dos A/R assinados. Assim, sobre a quantia supra apurada (€ 15.500,00), são devidos juros de mora à taxa legal de juro civil desde 10.05.2024 e até efetivo e integral pagamento (art.ºs 559.º, 805.º e 806.º do CC e Portaria 291/03, de 08 de Abril)».
Os recorrentes discordam de tal entendimento, defendendo que os juros de mora são contados desde a data da decisão até efetivo e integral pagamento e não, como decidido, desde a citação.

A este propósito, dispõe o artigo 805.º do Código Civil:

1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
b) Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
3 - Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.

Ora, em situações como a presente, em que não obstante a formulação de pedido ilíquido, está em causa o direito a indemnização fundado em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, importa atender ao regime excecional previsto na 2.ª parte do citado n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil e, nessa perspetiva, considerar que, sobre o montante tornado líquido, são devidos juros, desde a data da constituição em mora - a citação na ação declarativa de que a liquidação é incidente[15].
Contudo, tendo a sentença recorrida condenado no pagamento de juros contados desde a citação no âmbito de presente incidente de liquidação, é sobre esta data que são devidos os juros moratórios e não apenas desde a data da sentença da primeira instância que fixou o valor da obrigação (sentença recorrida).
Daí que a decisão recorrida também não mereça censura nesta parte, improcedendo integralmente a apelação.

Síntese conclusiva:

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 27 de novembro de 2025
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis
(Juiz Desembargador - relator)
Afonso Cabral de Andrade
(Juiz Desembargador - 1.º adjunto)
António Beça Pereira
(Juiz Desembargador - 2.º adjunto)


[1] Cf. o Ac. do STJ de 19-05-2015 (relatora: Maria dos Prazeres Beleza), revista n.º 405/09.1TMCBR.C1. S1 - 7.ª Secção - disponível em www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, cf., por todos, os acórdãos do STJ de 09-02-2021 (relatora: Maria João Vaz Tomé), p. 26069/18.3T8PRT.P1. S1; 14-03-2019 (relatora: Maria do Rosário Morgado), p. 8765/16.16.1T8LSB.L1. S2; 13-07-2017 (relator: Fonseca Ramos), p. 442/15.7T8PVZ.P1. S1; 17-05-2017 (relatora: Fernanda Isabel Pereira), p. 4111/13.4TBBRG.G1. S1; disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Cf., o ac. do STJ de 24-05-2022 (relator: Tibério Nunes da Silva), p. 1610/20.5T8STR.E1. S1 disponível em www.dgsi.pt.
[4] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 - 5.ª edição -, p. 115.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pgs. 767-768.
[6] Relator Luís Espírito Santo, p. 35505/12.1YIPRT.P1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cf. o Ac. TRG de 25-01-2024 (relatora: Ana Cristina Duarte), p. 6111/20.9T8VNF-A. G1, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Relator Joaquim Boavida, p. 567/07.2TJVNF. 2.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Cf. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 1989, pgs. 515-516.
[10] Cf., Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 298.
[11] Cf., Pires de Lima e Antunes Varela - Obra citada - p. 299.
[12] Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 5.ª edição - revista e actualizada, ..., 2017, Universidade Católica Editora, p. 624.
[13] Obra citada, pgs. 624 a 630.
[14] Cf. o Ac. TRG de 10-01-2019 (relator: António José Saúde Barroca Penha), p. 2049/17.5T8GMR-G1, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Neste sentido, cf., por todos, os Acs. STJ de 14-07-2009 (relator: Fonseca Ramos), p. 630-A/1996.S1; TRC de 03-10-2006 (relator: Garcia Calejo), p. 497/2000.C1; ambos disponíveis em www.dgsi.pt.