Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
| Processo: |
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| Relator: | RAQUEL BATISTA TAVARES | ||
| Descritores: | CITAÇÃO NULIDADE REGULAMENTO (CE) Nº 1393/2007 | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 06/29/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I - O artigo 7º do Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007 estabelece que a entidade requerida procede ou manda proceder à citação ou notificação do ato, quer segundo a lei do Estado-Membro requerido, quer segundo a forma específica pedida pela entidade de origem, a menos que essa forma seja incompatível com a lei daquele Estado-Membro. II - Tendo a Exequente iniciado a ação, onde foi proferida a sentença dada à execução, perante Tribunal Judicial Belga, a tramitação dessa ação obedeceu às regras processuais próprias desse país, não sendo de aplicar, quanto à citação em causa, levada a cabo pelo Tribunal ..., a regra prevista no artigo 227º do Código de Processo Civil Português. III - Para efeitos da recusa do seu reconhecimento ou da sua execução, não está em causa saber se a decisão proferida noutro Estado Membro é, em si mesma, contrária à ordem pública do Estado requerido, mas sim, determinar se a sua execução no Estado Membro requerido viola princípios jurídicos fundamentais do seu ordenamento. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório L..., LD.ª deduziu oposição, mediante embargos, à execução que lhe é movida por N..., invocando, em síntese, a nulidade da citação para o processo que gerou a sentença dada à execução, a inexequibilidade da mesma por violação da ordem pública portuguesa e, por fim, pagamentos efetuados por conta da relação jurídica apreciada nessa sentença. Notificada, a Exequente/Embargada deduziu contestação, pugnando pela improcedência total da oposição deduzida. Veio a ser proferido saneador sentença decidindo: “Pelo exposto, julgo a presente oposição deduzida por L...,LD.ª, à execução que lhe é movida por N... parcialmente procedente, por provada apenas em partes e, consequentemente, decido: A) Determinar que, à quantia exequenda, seja deduzido o valor de 3.000,00€ (três mil euros), a imputar, em primeiro lugar, nas despesas referidas em 2.4) dos factos assentes, o remanescente na indemnização convencional prevista em 2.2) desses factos assentes e, por último, o valor sobrante na indemnização por rescisão do ponto 2.3) dos factos assentes; B) Determinar, no mais, o prosseguimento da execução pelo remanescente da quantia exequenda e, bem assim, no segmento referente à entrega de coisa certa; C) Condenar a embargante L..., LD.ª e a N... no pagamento das respetivas custas processuais, na proporção dos decaimentos respetivos. Registe e notifique”. Inconformada, apelou a Embargante da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma: “1.ª) A sentença deu erradamente como provado o facto sob o número 5. Após a apresentação ação intentada pela exequente, no dia 18/09/2020, o Tribunal Belga (Nederlandstalige Ondernemingsrechtbank Brussel) ordenou a citação da executada L..., LD.ª, dando-lhe conta da propositura da ação intentada por N... e determinando a comparência da citada, naquele Tribunal, no dia 20/11/2020, para efeitos de comparência em audiência introdutória, com a advertência, entre o mais, de que, em caso de revelia, poderia haver lugar à prolação de sentença (parte final da citação); 2.ª) Não se extraí, da tradução da citação, essa advertência, mas antes a impressão que o Tribunal já formou a suas conclusões e convicção, omitindo elementos essenciais do ato de citação, como a forma e prazo de defender, cópia dos documento relevantes ou informação sobres cominações; 3.ª) Este ato de citação, analisado no seu conjunto e contexto, não cumpre a função de chamar o Réu / citando para se defender; 4.ª) O Tribunal a quo não deveria ter dado como não provado que a citação foi feita “…com a advertência, (…) de que, em caso de revelia, poderia haver lugar à prolação de sentença..”; 5.ª) Ocorre a nulidade de citação, uma vez que este ato foi realizado sem qualquer menção de que podia apresentar defesa (i) e do respetivo prazo (ii), sem estar acompanhado de cópia dos vários documentos ( como exemplo, faturas, contratos, cartas) que menciona (iii), sem menção das cominações em caso de revelia (iv), sem uma tradução correta e que permitisse, ao destinatário, apreender o conteúdo e função do ato (v); 6.ª) Ocorre, ainda, nulidade da citação, porque o citado não foi avisado da possibilidade de recusa, mediante o formulário anexo II, previsto no art.8º, do Reg.to (CE) 1393/2007; 7.ª) A tradução do ato de citação, em português, não contém a informação mínima para se cumprirem os requisitos da citação. 8.ª) A forma como a citação se concretizou prejudicou o exercício de defesa e do contraditório da ora Embargante; 9.ª) O Tribunal a quo fez uma errada interpretação do artigos 3º, 4º, 191º, todos do Código de Processo Civil, do art.8.º, do Regulamento (CE) n.º1393/2007, de 13/11, e do art.45º, do Regulamento (UE) n.º1215/2012, de 12/12, e deveria, de acordo com uma correta interpretação dos mencionados artigos, recusar o reconhecimento da sentença estrageira por ser contrária à ordem pública de Portugal”. Pugna a Recorrente pela procedência do recurso e pela alteração da sentença no sentido de serem considerados os embargos totalmente procedentes, por recusa do reconhecimento de sentença estrangeira. A Recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. *** II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSOO objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC). As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente são as seguintes: 1 – Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto; 2 – Saber se deve ser julgada nula a citação: 3 – Saber se deve ser recusado o reconhecimento ou a execução. *** III. FUNDAMENTAÇÃO3.1. Os factos Factos considerados provados em Primeira Instância: A) FACTOS ASSENTES 1. No dia 21/12/2021, a exequente N... intentou execução comum contra L..., LD.ª, tendo em vista o pagamento coercivo da quantia 188.279,48€ [99.000,00€ (a título de valores de aluguer e indemnizações de consumo) + 75,00€ (danos convencionais) + 67.500,00€ (indemnização por rescrição contratual) + 2.110,25€ (745,25€ de citação, 1.200,00€ de taxa de justa e 165,00€ de direito de rol) + 19.594,34€ (juros moratórios)], bem como a entrega coerciva dos bens discriminados no requerimento inicial (18 STM ... Omni Module; 12 STM S118 Sub Bass module; 6 Powered Digital TD controller 4x4C 220V version; 6 Input Digital metering unit; 6 output digital patching unit; 6 FC with power distribution; 6 ... dolly 3units; 6 cover for single 3xstm ... dolly; 6 stm single dolly; 6 cover for single stm dolly x4; 6 stm dolly roof; 2 stm crossbow; 2 stm bottom bumper; 2 stm one rigging point vario bumper; 2 chain lever hoist 750kg; 1 2xlaser inclinometers, 1x meter unit, 1x case kit; 8 PS15R2 single cabinet; 2 powered digital TD controller 4x4C 220V version; 4 FC 2xNexo PS15, wheels; 1 VA011: soundcraft V14 surface incl flightcase, stage rack 48in/32 + 4 AES out incl flightcase, local rack incl flightcase, optical multi; 1 VA011: soundcraft V16 surface incl flightcase, stage rack 64in/24 + 4 AES out incl flightcase, local rack incl flightcase, optical multi); 2. Ofereceu, como título executivo, a sentença proferida pelo Tribunal Neerlandófono das Empresas de ... - Bélgica [Nederlandstalige Ondernemingsrechtbank Brussel], datada de 23/04/2021, no âmbito da qual a executada foi condenada no seguinte (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido): 2.1) Pagamento da quantia 99.000€ (valor do aluguer e indemnizações de utilização), acrescida de juros de mora à taxa de juros especificada no art.º 5.º da Lei n.º 2/08/2022, sobre o combate aos atrasos no pagamento das transações comerciais, contados desde a data de vencimento das faturas até integral pagamento; 2.2) Pagamento da quantia 75,00€ (indemnização convencional); 2.3) Pagamento da quantia de 67.500,00€ (indemnização por rescisão), acrescida de juros à taxa de juros normal legal, desde a citação até à data do pagamento integral; 2.4) Pagamento da quantia de despesas judicias no valor de 1.945,25€ [745,25€ (citação) e 1.200,00€ (taxa de justiça]; 2.5) Pagamento da quantia de 165,00€ a título de direito de rol; 2.6) Restituição à exequente, a custas da executada, do equipamento objeto do contrato de locação financeira, no prazo de 01 (um) mês a contar da notificação da sentença, sob pena de pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 5.000,00€ por cada dia de atraso, até ao limite máximo de 23.500,00€. 3. A sentença referida em 2) foi notificada à executada no dia 21/10/2021; 4. A exequente instruiu a execução apensa com certidão da sentença mencionada em 2), bem como certidão judicial emitida por Tribunal Belga (Nederlandstalige Ondernemingsrechtbank Brussel), ao abrigo dos artigos 36.º, 37.º, 39.º a 42.º e 53.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho 12 de dezembro de 2012 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial; § 5. Após a apresentação ação intentada pela exequente, no dia 18/09/2020, o Tribunal Belga (Nederlandstalige Ondernemingsrechtbank Brussel) ordenou a citação da executada L..., LD.ª, dando-lhe conta da propositura da ação intentada por N... e determinando a comparência da citada, naquele Tribunal, no dia 20/11/2020, para efeitos de comparência em audiência introdutória, com a advertência, entre o mais, de que, em caso de revelia, poderia haver lugar à prolação de sentença (parte final da citação); 6. O Tribunal Belga (Nederlandstalige Ondernemingsrechtbank Brussel) efetuou a citação referida em 5) por carta registada recebida pela executada a 30/09/2020 e, para além desta via, através de pedido de cooperação, para efeitos de citação [Regulamento(CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007], expedido para o Tribunal ...; 7. No dia 20/10/2020, a secção de Serviço Externo do Tribunal de ... efetuou a citação solicitada pelo Tribunal Belga (Nederlandstalige Ondernemingsrechtbank Brussel), nos termos pedidos e descritos em 5), na pessoa de mandatária constituída para o efeito pela executada (Dr.ª AA); 8. No dia da audiência introdutória [20/11/2020], a executada não compareceu em juízo, tendo os autos prosseguido, com a executada como parte revel, com realização de audiência final a 26/03/2021; 9. No dia 23/04/2021, o Tribunal Neerlandófono das Empresas de ... [Nederlandstalige Ondernemingsrechtbank Brussel] proferiu a sentença referida em 2) e a mesma foi notificada à executada no dia 21/10/2021; § 10.Após o encerramento da audiência, ocorrida no dia 26/03/2021, a executada pagou à exequente a quantia de 3.000,00€, através de transferência bancária executada a 05/05/2021. *** 3.2. Da modificabilidade da decisão de facto O recurso interposto pela Embargante visa a reapreciação da decisão de facto. Nos termos do disposto no artigo 662º n.º 1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Relativamente à prova e à sua valoração, impõe-se referir que quer na 1.ª Instância, quer na Relação, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios, em particular o da livre apreciação da prova consagrado no artigo 607º n.º 5 do CPC. Prevê este preceito que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; tal resulta também do disposto nos artigos 389º, 391º e 396º do Código Civil, respetivamente para a prova pericial, para a prova por inspeção e para a prova testemunhal, sendo que desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido nº 5 do artigo 607º). Conforme o ensinamento de Manuel de Andrade[1] segundo o princípio da livre apreciação da prova “o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas”. A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza. Está, por isso, em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”[2]. É claro que a livre apreciação da prova não se pode traduzir numa arbitrária apreciação da prova, pelo que impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como indique as razões justificativas da sua opção de entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto. In casu, a Recorrente veio impugnar a decisão relativa à matéria de facto quanto ao ponto 5) dos factos provados sustentando que a parte final do mesmo (onde consta “…com a advertência (…) de que, em caso de revelia, poderia haver lugar à prolação de sentença”) não podia ter sido dado como provado. Vejamos se lhe assiste razão. O ponto 5) tem a seguinte redação: “5. Após a apresentação ação intentada pela exequente, no dia 18/09/2020, o Tribunal Belga (Nederlandstalige Ondernemingsrechtbank Brussel) ordenou a citação da executada L..., LD.ª, dando-lhe conta da propositura da ação intentada por N... e determinando a comparência da citada, naquele Tribunal, no dia 20/11/2020, para efeitos de comparência em audiência introdutória, com a advertência, entre o mais, de que, em caso de revelia, poderia haver lugar à prolação de sentença (parte final da citação)”. Na motivação constante da sentença recorrida o Tribunal a quo consignou a este propósito que: “(…) Por sua vez, os factos mencionados de 5) a 7) resultam demonstrados do expediente da citação junto pela própria executada [ref.ª ...64 – 23/06/2022 – oposição à execução], donde decorre que, no dia 18/09/2020, foi ordenada a citação da executada nos termos indicados em 5) e, bem assim, que essa citação foi rececionada pela executada, tanto por carta como por contacto estabelecido por via da Seção Externa do Tribunal de ..., sendo inequívoco que, nessa citação, foi fixado o dia 20/11/2020 para comparência em audiência introdutória e, bem assim, que em caso de revelia poderia ser proferida sentença contra a parte revel (…)”. Resulta do exposto que o Tribunal a quo formou a sua convicção relativamente à matéria do ponto 5) dos factos provados na prova documental constante dos autos junta pela própria Recorrente, ou seja, o expediente da citação concretizada pela Seção Externa do Tribunal de ... e ordenada pelo Tribunal Belga (Nederlandstalige Ondernemingsrechtbank Brussel). Analisada tal prova documental facilmente se conclui que pela referida citação foi dada conta à Recorrente da propositura da ação intentada pela Exequente N... e determinado que a citada (Recorrente) deveria comparecer naquele Tribunal Belga no dia 20/11/2020 para uma audiência. Sustenta a Recorrente que da referida prova documental não há qualquer evidencia que suporte a matéria por si impugnada, isto é, a advertência que em caso de revelia poderia haver lugar à prolação de sentença. Entendemos, contudo, que não lhe assiste razão. Do referido expediente de citação consta efetivamente a menção à prolação de sentença no final da audiência em caso de revelia. Tal informação mostra-se antecedida da menção “Comunicação importante”, onde consta a advertência de que as partes e seus advogados devem apresentar-se na receção exatamente 15 minutos antes da hora prevista para fazerem o registo da sua presença antes de irem para a sala de audiência e também que “pode ser fornecida uma sentença à revelia no final da audiência”. Em face da prova documental junta aos autos concluímos não ser merecedora de crítica a motivação da decisão da matéria de facto quando nela se afirma que na citação consta que em caso de revelia poderia ser proferida sentença contra a parte revel. Não vemos, por isso, qualquer erro de julgamento que justifique a alteração da decisão recorrida quanto à matéria dada como provada, devendo manter-se integralmente a redação do ponto 5) dos factos provados. *** 3.3. Reapreciação da decisão de mérito Importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa que, julgando parcialmente procedente a presente oposição à execução, determinou que, à quantia exequenda, seja deduzido o valor de €3.000,00 e, no mais, o prosseguimento da execução pelo remanescente da quantia exequenda e, bem assim, no segmento referente à entrega de coisa certa, analisando os demais fundamentos constantes da apelação. A Recorrente pretende que a oposição à execução seja julgada totalmente improcedente e invoca na presente apelação a nulidade da citação, a violação do direito de defesa e a recusa do reconhecimento de sentença estrangeira por ser contrária à ordem pública portuguesa. Sustenta, para o efeito, que ocorre a nulidade de citação com base nos seguintes fundamentos: a) o ato foi realizado sem qualquer menção de que podia apresentar defesa e do respetivo prazo; b) sem estar acompanhado de cópia dos vários documentos (como exemplo, faturas, contratos, cartas) que menciona; c) sem menção das cominações em caso de revelia; d) sem uma tradução correta que permitisse, ao destinatário, apreender o conteúdo e função do ato; e) o citado não foi avisado da possibilidade de recusa, mediante o formulário anexo II, previsto no art.8º, do Reg.to (CE) 1393/2007; f) a tradução do ato de citação, em português, não contém a informação mínima para se cumprirem os requisitos da citação.; g) a forma como a citação se concretizou prejudicou o exercício de defesa e do contraditório da Recorrente. Sustenta ainda que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação dos artigos 3º, 4º e 191º, todos do CPC, do artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 1393/2007, de 13/11 e do artigo 45º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12/12, pois de acordo com uma correta interpretação destes artigos devia recusar o reconhecimento da sentença estrageira por ser contrária à ordem pública de Portuguesa. Adiantando desde já a nossa posição, e aderindo integralmente à apreciação jurídica efetuada em 1ª Instância, cujos fundamentos aqui se dão por reproduzidos, e que se mostra adequada e correta face à factualidade apurada, entendemos não merecer qualquer censura a sentença do Tribunal a quo, a qual se mostra exaustiva e conforme com as normas legais aplicáveis, não se mostrando necessário, em face da mesma, qualquer outra argumentação de forma a concluir pela integral improcedência da pretensão da Recorrente. Salientamos ainda assim, e porque improcedeu a pretensão da Recorrente de ver alterada a redação do ponto 5) dos factos provados, que na citação da Recorrente lhe foi dado conta não só da propositura da ação intentada pela Exequente N..., mas também que deveria comparecer naquele Tribunal Belga no dia 20/11/2020 para uma audiência, tendo sido advertida, entre o mais, de que, em caso de revelia, poderia haver lugar à prolação de sentença. Assim, decai desde logo o argumento da Recorrente de que a citação seria nula por não ter menção das cominações em caso de revelia. Quanto à questão de o ato ter sido realizado sem qualquer menção de que a Recorrente podia apresentar defesa e do respetivo prazo, e sem estar acompanhado de cópia dos vários documentos (como exemplo, faturas, contratos, cartas), impõe-se apenas salientar que, tal como consta da decisão recorrida, a Exequente iniciou a ação, onde foi proferida a sentença dada à execução, perante Tribunal Judicial Belga[3], pelo que a tramitação dessa ação obedeceu às regras processuais próprias desse país, não sendo de aplicar, quanto à citação em causa, as regras previstas no Código de Processo Civil Português. Ora, na Bélgica, a citação para os termos da ação não tem de conter a atribuição qualquer prazo processual, dento do qual, o citando tenha de apresentar a sua defesa escrita; tal como consta da decisão recorrida, o ordenamento jurídico processual Belga, no Code Judiciaire De La Procédure Civile[4] (cfr. artigos 554 a 1385) determina a citação da parte contrária dando-lhe conta que, contra si, foi proposta uma ação em juízo e convocando-a para comparecer em tribunal, numa determinada data, para efeitos de audiência introdutória (cfr. artigo 702º do referido Code Judiciaire). Conforme bem se identifica na decisão recorrida na sequência da citação, o referido Code Judiciaire “conhece duas hipóteses: a) No caso de comparência voluntária do citado (art.º 706.º), há lugar a uma audiência introdutória onde, não havendo conciliação das partes (art.º 731.º), o processo avança para a fase de instrução e julgamento contraditórios (art.º 735.º e ss) (6), na qual as partes apresentam as suas peças processuais, documentos e conclusões (art.º 736.º, 741 e 744, 745) e, por fim, o processo prossegue para a fase da audiência e julgamento da causa (art.º 756.º e ss e 769.º); b) No caso de não comparência voluntária do citado na audiência contraditória (art.º 802 e ss.), o processo segue já a tramitação própria da instrução e julgamento à revelia (7), onde, no essencial, a parte será considerada revel (art.º 802.º) e os autos prosseguem para audiência final, com julgamento à revelia (art.º 804.º), ao que se seguirá prolação de sentença, na qual o juiz dará procedência ao pedido (exceto se os mesmo forem contrários à ordem pública), em conformidade com o direito que oficiosamente possa conhecer (art.º 806.º).” Se é certo que o artigo 227º (elementos a transmitir obrigatoriamente ao citando) do CPC português prevê que o ato de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem, comunicando-se-lhe que fica citado para a ação a que o duplicado se refere, e indicando-se o tribunal, juízo e secção por onde corre o processo, se já tiver havido distribuição (n.º 1) e que no ato de citação, indica-se ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia (n.º 2), a verdade é que a citação tinha de ser feita segundo a forma específica pedida pela entidade de origem e que é, no caso, o Tribunal Belga, em conformidade com o Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007.[5] Estabelece o artigo 7º deste Regulamento que a entidade requerida procede ou manda proceder à citação ou notificação do ato, quer segundo a lei do Estado-Membro requerido, quer segundo a forma específica pedida pela entidade de origem, a menos que essa forma seja incompatível com a lei daquele Estado-Membro. In casu, tendo em vista a citação, não só foi enviada carta registada à Recorrente, que a recebeu a 30/09/2020 (conforme alega no artigo 1º da petição inicial), como o Tribunal Belga solicitou ao Tribunal Judicial ..., nos termos do Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, que levasse a cabo a citação, o que ocorreu a 20 de outubro de 2020, pedindo que a Recorrente fosse citada e convocada para comparecer em audiência na data indicada de 20 de novembro de 2020, em conformidade as regras processuais civis belgas. Assim, o Tribunal ... executou o ato de citação segundo uma forma permitida no ordenamento jurídico português, concretizando a citação na pessoa de mandatária judicial (cfr. artigo 225º, n.º 5 do CPC) e nos termos que lhe foi solicitado pelo Tribunal Belga, segundo a tramitação processual prevista no processo civil do tribunal de origem. Impõe-se, por isso, concluir pela inexistência de qualquer nulidade na realização da citação pelo facto de o ato ter sido realizado sem qualquer menção de que podia apresentar defesa e do respetivo prazo e sem estar acompanhado de cópia dos vários documentos (como exemplo, faturas, contratos, cartas) que menciona, uma vez que segundo a tramitação processual prevista no Estado de origem tal não se encontra previsto para o ato de citação. Não podemos deixar de salientar, ainda assim, que a Recorrente foi citada por duas vezes, através de carta que recebeu em 30/09/2020 e, por solicitação do Tribunal Belga, o Tribunal ..., concretizou a citação em 20 de outubro de 2020 na pessoa de mandatária judicial, para comparecer numa audiência no dia 20/11/2020! E do expediente de citação consta expressamente “[q]ue a requerente pretende deixar tratar a causa na audiência introdutória, se necessário à revelia” e ainda, antecedida da menção “Comunicação importante”, a advertência de que “pode ser fornecida uma sentença à revelia no final da audiência”. Tal como se consigna na decisão recorrida não pode “a embargante alegar desconhecer as consequências da revelia em que voluntariamente se colocou, escudando-se em questões semânticas relativas à tradução da citação, posto que a mesma não impedia a embargante de compreender o que, essencialmente, se pretendia com tal ato: dar-lhe a saber que, contra si, pendia um processo num Tribunal Belga e que, por tal razão, teria de comparecer em juízo numa determinada data, sob pena da causa ser sentenciada à sua revelia”. Quanto à possibilidade de recusa a mesma não tem aplicação ao caso concreto uma vez que a citação foi acompanhada de tradução em língua portuguesa. Vejamos. O artigo 8º do Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de novembro de 2007, respeitante à recusa de receção do ato, estabelece que a entidade requerida avisa o destinatário, mediante o formulário constante do anexo II, de que pode recusar a receção do ato quer no momento da citação ou notificação, quer devolvendo o ato à entidade requerida no prazo de uma semana, se este não estiver redigido ou não for acompanhado de uma tradução numa das seguintes línguas: a) Uma língua que o destinatário compreenda; ou b) A língua oficial do Estado-Membro requerido ou, existindo várias línguas oficiais nesse Estado-Membro, a língua oficial ou uma das línguas oficiais do local onde deva ser efetuada a citação ou notificação. In casu, a citação foi acompanhada da necessária tradução; e nem se diga que a mesma não permitia à Recorrente apreender o conteúdo e função do ato. A citação destinava-se a dar-lhe a saber que a Exequente tinha instaurado contra si um processo no Tribunal Belga e que deveria comparecer em juízo na data aí indicada para uma audiência, sob pena de ser proferida no fim da audiência uma sentença à sua revelia, o que resulta percetível da leitura da tradução. Do exposto decorre ainda não poder concluir-se que a forma como a citação se concretizou prejudicou o exercício de defesa e do contraditório da Recorrente; atente-se que o objetivo da citação, para além de dar conhecimento da pendencia do processo, era convocar para a audiência, na qual, como já vimos, não havendo conciliação das partes, o processo avança para a fase de instrução e julgamento contraditórios, sendo aí que as partes apresentam as suas peças processuais, documentos e conclusões. Não pode, pois, afirmar-se que tenha sido negado à Recorrente os direitos de defesa e de um processo equitativo. Quanto à “recusa do reconhecimento de sentença estrangeira por ser contrária à ordem pública portuguesa”, importa referir que a Recorrente nada especifica nas suas alegações, para além da argumentação já analisada relativamente à nulidade da citação e violação do direito de defesa e de um processo equitativo. Tanto bastaria, segundo entendemos, para que nada mais houvesse para apreciar. Contudo, dir-se-á que, atentando na argumentação que consta da sua petição inicial quanto à “recusa de execução”, que também aqui não lhe assiste razão, não merecendo censura a decisão recorrida. A Recorrente invocou na petição inicial os artigos 45º e 46 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12/12, sustentando que a decisão é contrária à ordem pública do Estado Português. O artigo 45º, respeitante à recusa de reconhecimento, estabelece no seu n.º 1 que a pedido de qualquer interessado, o reconhecimento de uma decisão é recusado se: a) Esse reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido; b) Caso a decisão tenha sido proferida à revelia, o documento que iniciou a instância – ou documento equivalente – não tiver sido citado ou notificado ao requerido revele, em tempo útil e de modo a permitir-lhe deduzir a sua defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão tendo embora a possibilidade de o faze; c) A decisão for inconciliável com uma decisão proferida no Estado-Membro requerido entre as mesmas partes; d) A decisão for inconciliável com uma decisão anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em ação com a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido; e) A decisão desrespeitar: i) o disposto no Capítulo II, Secções 3, 4 ou 5, caso o requerido seja o tomador do seguro, o segurado, um beneficiário do contrato de seguro, o lesado, um consumidor ou um trabalhador, ou ii) o disposto no Capítulo II, Secção 6. O artigo 46º, referente à recusa de execução, dispõe que a pedido da pessoa contra a qual é requerida a execução, a execução de uma decisão é recusada por qualquer dos fundamentos referidos no artigo 45º. Sustentou a Recorrente na petição inicial que o contrato em causa é um contrato de locação financeira de bens móveis, e que a Exequente não é uma instituição de crédito e não se acha autorizada pelo Banco de Portugal a exercer essa atividade. Tal como se afirma na decisão recorrida é uma evidência que, em Portugal, apenas podem exercer a atividade de locação financeira os Bancos e as sociedades financeiras, particularmente as sociedades de locação financeira, entidades estas cuja constituição depende de autorização do Banco de Portugal[6]. Mas, como aí se faz notar, “a exequente não se acha em território nacional a exercer a atividade de locação financeira, mas sim, ao invés, a executar judicialmente uma sentença proferida Tribunal de estado membro da União Europeia que lhe declarou determinados direitos, cujos fundamentos não podem ser revistos pelo Tribunal do Estado onde se pretende obter a execução dessa decisão, pois, segundo o art.º 52.º do citado regulamento, «as decisões proferidas num Estado-Membro não podem em caso algum ser revistas quanto ao mérito da causa no Estado-Membro requerido”. Ora, nos termos do disposto no artigo 41º, uma decisão proferida num Estado-Membro que seja executória no Estado-Membro requerido deve nele ser executada em condições iguais às de uma decisão proferida nesse Estado-Membro. Como vem plasmado no Considerando n.º 26 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12/12 “[a] confiança mútua na administração da justiça na União justifica o princípio de que as decisões proferidas num Estado-Membro sejam reconhecidas em todos os outros Estados-Membros sem necessidade de qualquer procedimento específico. Além disso, o objetivo de tornar a litigância transfronteiriça menos morosa e dispendiosa justifica a supressão da declaração de executoriedade antes da execução no Estado-Membro requerida. Assim, as decisões proferidas pelos tribunais dos Estados-Membros devem ser tratadas como se se tratasse de decisões proferidas no Estado-Membro requerido”. Só assim não é em casos excecionais, podendo o pedido de execução de uma decisão ser recusado, ou ser recusado o seu reconhecimento, se a execução da decisão for manifestamente contrária à ordem pública do Estado-Membro requerido. Seguindo o entendimento de Luís Lima Pinheiro é o reconhecimento ou a execução, e não a decisão em si mesma, que deve ser compatível com a ordem pública do estado membro requerido[7]. No mesmo sentido se pronuncia Rui Torres Vouga[8] considerando que não se trata de que a “decisão” proferida noutro Estado Membro “seja contrária à ordem pública do Estado requerido. Trata-se, unicamente, de impedir que a introdução duma decisão na ordem jurídica do Estado Membro requerido dê lugar a uma violação dos princípios jurídicos fundamentais do seu ordenamento. Por conseguinte, os termos da contradição são, dum lado, o “reconhecimento” e, do outro, a “ordem pública”. Não é, portanto, a decisão estrangeira em si mesma que será confrontada com a ordem pública do foro, mas antes os efeitos que ela provocará no Estado requerido quando ela for reconhecida ou executada.” Daqui decorre que, para efeitos da recusa do seu reconhecimento ou da sua execução, não está em causa saber se a decisão proferida noutro Estado Membro, em si mesma, é contrária à ordem pública do Estado requerido, mas sim, determinar se a sua execução no Estado Membro requerido viola princípios jurídicos fundamentais do seu ordenamento. Mostra-se, por isso, também acertada a conclusão constante da decisão recorrida de que no caso concreto a executoriedade da decisão proferida pelo Tribunal Belga, não perturba, danifica e nem viola os princípios jurídicos fundamentais do Estado Português porquanto também em território nacional é lícito, coercivamente, exigir o pagamento de quantias monetárias e a entrega de bens certos e determinados. Improcede, por isso, integralmente a apelação, sendo as custas da exclusiva responsabilidade da Recorrente atento o seu decaimento, nos termos do disposto no artigo 527º do CPC. *** IV. Decisão*** Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida. Custas pela Recorrente. Guimarães, 29 de junho de 2023 Raquel Baptista Tavares (Relatora)Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária Maria Luísa Duarte Ramos (1ª Adjunta) Alcides Rodrigues (2º Adjunto) [1] Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384. [2] (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Atualizada, p. 435 a 436). [3] V. os artigos 5.º (2.ª parte) e 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. [4] A consultar em http://www.ejustice.just.fgov.be/img_l/pdf/1967/10/10/1967101055_F.pdf [5] Relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros. [6] V. artigos 4º, n.º 1, al. b), 6º, n 1, b), al. iii) e 16º, todos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF). [7] Direito Internacional Privado, Vol. III - Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, 2.ª Ed., Coimbra, 2012, p. 419. [8] Reconhecimento e Execução de decisões no âmbito do Regulamento Bruxelas I-Bis, Coleção Caderno Especial, Centro de Estudos Judiciários, pág. 100, acessível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=AGVisiY_Syo%3D&portalid=30. |