Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
14492/19.0YIPRT
Relator: MARIA DA CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: NULIDADE DA CITAÇÃO
CONSULTA DO PROCESSO
CONSTITUIÇÃO DE MANDATÁRIO
REGULAMENTO (CE) 1393/2007
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I - Os termos em que o réu deve arguir a nulidade da citação são os seguintes: se lhe foi assinalado prazo para contestar, dispõe desse prazo para suscitar a nulidade; não lhe tendo sido indicado qualquer prazo ou tratando-se de citação edital, o réu pode arguir a nulidade no momento em que intervier pela primeira vez no processo.
II - Considera-se que o réu intervém no processo quando se apresenta efetivamente no mesmo a praticar um qualquer ato judicial, não bastando que o mesmo tenha conhecimento de algum ato ou atos nele praticados.
III - A simples consulta do processo por parte de advogado, mais tarde constituído mandatário do réu, não configura um ato processual relevante, por dele não se poder concluir que o réu tomou conhecimento do seu processado por forma a ficar em condições de assegurar o seu efetivo direito de defesa.
IV - Com o Regulamento nº 1393/2007, o objetivo prosseguido pelo legislador comunitário não foi o de enfraquecer as garantias de defesa dos citandos no espaço intracomunitário, mas adotar medidas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil, necessárias ao bom funcionamento do mercado interno, impondo as condições mínimas em que essas citações e notificações se processariam diretamente entre os Estados-Membros.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

A Autora O. R. – GRANITOS DE PEDRAS SALGADAS, LDA, , intentou ação de processo comum contra S. A. GRANIT IMPORT, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de capital em divida de € 35.596,86 (trinta e cinco mil, quinhentos e noventa e seis euros e oitenta e seis cêntimos), acrescida dos juros vincendos desde a data da entrada em juízo do requerimento injuntivo, até efetivo e integral pagamento; a quantia de € 461,19 (quatrocentos e sessenta e um euros e dezanove cêntimos), correspondente aos juros vencidos até à data da apresentação do requerimento de injunção; a quantia de €100,00 (cem euros) por tentativas extrajudiciais de resolução do litigio e € 153,00 de taxa de justiça, em custas e procuradoria.
A Ré S. A. GRANIT IMPORT não apresentou contestação.
A Ré arguiu a nulidade da citação, alegando que da citação efetuada não constava nem o meio nem o prazo de defesa.
Por despacho de 21.2.2020 foi indeferida a arguição da nulidade da citação.
Tendo sido considerada regularmente citada, nos termos do artigo 567.º, nº1, do Código de Processo Civil, foram julgados confessados os factos articulados na petição inicial, concretamente os referenciados nos arts. 1.º) a 3.º) e 6.º) a 8.º).
Consequentemente foi proferida decisão que condenou a Ré S. A. GRANIT IMPORT a pagar à Autora O. R. – GRANITOS DE PEDRAS SALGADAS, LDA a quantia de 35.596,86€ (trinta e cinco mil, quinhentos e noventa e seis euros e oitenta e seis cêntimos), a título de capital, acrescida dos juros moratórios vencidos no valor de 461,19€ (quatrocentos e sessenta e um euros e dezanove cêntimos) e de juros moratórios vincendos à taxa legal consignada para as obrigações comerciais até efectivo e integral pagamento.

Mais condenou a Ré S. A. GRANIT IMPORT no pagamento das custas processuais.
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Inconformada com a sentença e com a decisão que indeferiu a nulidade da citação veio a Ré delas interpor recurso, terminando com as seguintes conclusões:

1 - O despacho de 21.02.2020 indeferiu arguição de nulidade de citação por julgar a mesma extemporânea.
2 - O despacho considerou data de citação a data da notificação da Injunção.
3 - A notificação da Injunção foi devolvida aos autos antes de decorrida uma semana da notificação, com preenchimento do formulário que foi enviado anexo e que respeita à possibilidade de recusa de recebimento de citações/notificações, nos termos do nº 5 do artigo 8º do Regulamento (CE) N.o 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Novembro de 2007, directamente aplicável na nossa jurisdição.
4 - A recorrente veio a ser citada em 02.12.2019 da tradução de petição aperfeiçoada, mas em tal citação não foi indicado nem o meio de defesa nem o prazo para tal como determina o artº 227º nº 2 do CPC, o que acarreta nulidade da citação, como estipula o artº 191º nº 1 do CPC.
5 - Assim, a data de citação é 02.12.2019, como determina o nº 3 do já citado artigo.
6 - O nº 2 do artigo 191.º do CPC determina que se a nulidade consistir na não indicação de prazo para a defesa, "a nulidade pode ser arguida quando da primeira intervenção do citado no processo."
7 - É assim irrelevante o prazo supletivo fixado no artº 149º do CPC
8 - A arguição de nulidade foi o primeiro acto praticado pela Recorrente.
9 - Consta dos autos um requerimento do signatário mas tão só para poder consultar os mesmos por via eletrónica, como permite o artigo 27º nº 4 da Portaria 280/2013, de 26 de Agosto.
10 - A citação da petição traduzida decorreu da imposição do Regulamento Comunitário já referido, e não ao abrigo dos nºs 4 e 5 do artº 590º do CPC.
11 - É inequívoco e ninguém questionou que a citação não indicou o prazo de defesa, violando o disposto no artº 227.º nº 2 do CPC.
12 - Dado que a arguição da nulidade foi a primeira e até agora única intervenção da recorrente, que agora apresenta esta Apelação, foi a mesma tempestiva ao abrigo do nº 2 do artº 195º do CPC, que se mostra violado.
13 - A citação "válida" não indicou o prazo nem o meio de defesa, como determina o artº 227º nº 2 do CPC.
14 - Esta omissão acarretou nulidade da citação, como estipulado no artº 191º nº 1 do CPC, que foi arguida na primeira intervenção, como determina o artº 191.ºnº 2 do CPC.
15 - A sentença é nula porquanto não apreciou um dos pedidos formulados, concretamente a condenação no pagamento de 100 € a título de despesas com "diversas diligências", por ter despendido tal valor a "título administrativo e de contencioso", como determina o artº 615.º d) do CPC.

Pugna a Ré pela revogação do despacho de 21.02.2020, sendo anulados todos os actos posteriores e ordenada a realização da citação de acordo com o legalmente estabelecido, devendo ainda ser reconhecida a nulidade da sentença por omissão de pronúncia e ordenada a sanação de tal vício.
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a Recorrida pela manutenção do decidido.
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Já neste tribunal de recurso veio a Recorrente pedir a condenação da Recorrida como litigante de má fé invocando que a Recorrida nas suas contra alegações tentou induzir o Tribunal em erro, ao alegar que:

- o mandatário da Ré/Recorrente solicitou a consulta ao processo, arrogando-se, no formulário de submissão da peça processual “mandatário do réu”, o que não corresponde à verdade;
- o recurso da decisão de indeferimento da nulidade processual é extemporâneo, o que também não é verdade, pois que o despacho interlocutório não era recorrível, como dispõe o artº 644.º2h).

A Recorrida respondeu, pugnando pela improcedência do pedido de litigância de má-fé.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC).

No caso vertente, são três as questões a apreciar:

- tempestividade da arguição nulidade da citação;
- nulidade da sentença por omissão de pronuncia;
- da litigância de má-fé.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos a considerar são os seguintes:

1. A ação iniciou-se com a dedução de requerimento de injunção pela Autora, em 18.2.2019 (ref.ª 23323893);
2. Em 21.2.2019, o Balcão Nacional de Injunções remeteu notificação registada e com aviso de receção para a Ré AN. Granits Importation, SARL, com sede em “… Rue … – FRANÇA” (ref.ª 23336722);
3. A notificação foi recebida em 25.2.2019, tendo a Ré recusado a receção do ato, ao abrigo do artigo 8º, nº1, do Regulamento (CE) N.o 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Novembro de 2007, por não estar traduzido.
4. A ação foi então remetida à distribuição como ação de processo comum.
5. Por despacho proferido em 4.4.2019, determinou-se a notificação da Autora para proceder ao aperfeiçoamento da petição inicial;
5. Após junção da petição aperfeiçoada, em 2.6.2019, foi proferido despacho que determinou: “Por referência ao requerimento inicial aperfeiçoado, cite a Ré, nos termos e para os efeitos do art. 8º, nº3, do Regulamento 1393/2007”;
6. Em 3.12.2019, o Huissier de Justice entregou à Ré cópia traduzida da petição inicial aperfeiçoada e documentos juntos (ref.ª 2156988).
7. Dos documentos juntos pelo Huissier de Justice não consta a entrega à Ré da nota de citação com a indicação do prazo para contestar, indicação das consequências legais emergentes da falta de contestação e indicação da obrigatoriedade de constituição de advogado.
7. Em 18.12.2019, o Dr. L. C., Advogado, solicitou a consulta eletrónica do processo.
7. Por requerimento de 7.1.2020, a Ré veio arguir a nulidade da citação dizendo que da mesma não constava nem o meio nem o prazo de defesa.
8. Por despacho de 21.2.2020 foi indeferida a arguição da nulidade da citação, por extemporaneidade.
9. A Ré não apresentou contestação.
10. Com data de 16.9.2020 foi proferida sentença que condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 35.596,86€ (trinta e cinco mil, quinhentos e noventa e seis euros e oitenta e seis cêntimos), a título de capital, acrescida dos juros moratórios vencidos no valor de 461,19€ (quatrocentos e sessenta e um euros e dezanove cêntimos) e de juros moratórios vincendos à taxa legal consignada para as obrigações comerciais até efetivo e integral pagamento e ainda no pagamento das custas processuais.
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3.2. O Direito

3.2.1. Da subsunção jurídica

Da tempestividade da arguição da nulidade da citação:
A primeira questão a apreciar prende-se com a tempestividade da arguição da nulidade de citação, por da mesma não constar o meio e o prazo de defesa.
A citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se o chama ao processo para se defender (artigo 219.º, nº1, do Código de Processo Civil- diploma a que corresponderão os artigos citados sem menção de origem), visando assegurar a plena realização do princípio do contraditório, principio com consagração constitucional (artigos 2.º e 20.º, n.º 1, da Constituição) e estrutura do nosso processo civil.
Além de produzir relevantes efeitos processuais, a citação produz importantíssimos efeitos materiais, compreendendo-se, por isso, não só que a lei regule exaustivamente o ato de citação e comine com sanções processuais severas a preterição dessas formalidades processuais.
A lei distingue a falta de citação da nulidade da citação.
Nos termos do artigo 188.º, n.º 1, haverá falta de citação quando: (a) o ato tenha sido completamente omitido; (b) tenha havido erro de identidade do citado; (c) se tenha empregado indevidamente a citação edital; (d) se mostre que foi efetuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste tratando-se de pessoa coletiva ou sociedade; ou (e) quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável.
A falta de citação pode ser invocada em qualquer estado do processo, enquanto não dever considerar-se sanada (artigo 198.º, n.º 1).
Ocorrerá a nulidade da citação, quando na sua realização não hajam sido observadas as formalidades prescritas na lei.

Constam do artigo 227.º os elementos a transmitir obrigatoriamente ao citando:
1 - O ato de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem, comunicando-se-lhe que fica citado para a ação a que o duplicado se refere, e indicando-se o tribunal, juízo e secção por onde corre o processo, se já tiver havido distribuição.
2 - No ato de citação, indica-se ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia.

Seja qual for a modalidade de citação pessoal, existem requisitos comuns que devem ser cumpridos (1):

a) Entrega ao réu do duplicado da petição inicial e dos respetivos documentos, os quais devem mostrar-se legíveis;
b) Entrega ao réu de nota de citação da qual conste a comunicação de que fica citado para a ação a que se refere o duplicado, com indicação do tribunal e, sendo caso disso da secção onde pende o processo, se já tiver havido distribuição;
c) Indicação do prazo para contestar, com ou sem dilação;
d) Indicação das consequências legais emergentes da falta de contestação;
e) Indicação da obrigatoriedade de constituição de advogado, se for o caso.

Reconhecendo a importância fulcral o ato de citação, pelo qual o réu é chamado para se defender, esclarece o Prof. Lebre de Freitas, “o direito de defesa postula o conhecimento efectivo do processo instaurado, a concessão dum prazo suficientemente amplo para a oposição e o tempero da rigidez das preclusões e cominações decorrentes da falta de contestação” (2).
A “falta de citação” traduz-se na inexistência pura e simples do ato de citação ou quando se verifiquem determinadas circunstâncias legalmente equiparadas a essa falta de citação, enquanto a “nulidade de citação” pressupõe a realização da citação, embora tenha havido preterição de formalidades prescritas na lei no respetivo cumprimento (3).
Dispõe, por sua vez, o artigo 239º, que quando o réu resida no estrangeiro, observa-se o que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais.
Se o réu residir num país membro da EU, há que aplicar o Regulamento nº 1393/2007, de 13.11.2007, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros. De acordo com os artigos 5º e 8º, do Regulamento, é essencial que o destinatário seja avisado de que pode recusar a receção do ato, se a citação não estiver redigida ou não for acompanhada de tradução numa língua que o destinatário compreenda ou numa língua oficial do local onde deva ser efetuada a citação.
Se o citando recusar a citação devido a inadequação linguística, deverá proceder-se à tradução da documentação expedida, repetindo-se a citação (4).

A propósito dispõe o artigo 8º do Regulamento nº 1393/2007:

1. A entidade requerida avisa o destinatário, mediante o formulário constante do anexo II, de que pode recusar a recepção do acto quer no momento da citação ou notificação, quer devolvendo o acto à entidade requerida no prazo de uma semana, se este não estiver redigido ou não for acompanhado de uma tradução numa das seguintes línguas: a) Uma língua que o destinatário compreenda; ou b) A língua oficial do Estado-Membro requerido ou, existindo várias línguas oficiais nesse Estado-Membro, a língua oficial ou uma das línguas oficiais do local onde deva ser efectuada a citação ou notificação.
2. Se a entidade requerida for informada de que o destinatário recusa a recepção do acto ao abrigo do disposto no n.º1, deve comunicar imediatamente o facto à entidade de origem, utilizando para o efeito a certidão a que se refere o artigo 10.º , e devolver-lhe o pedido e os documentos cuja tradução é solicitada.
3. Se o destinatário tiver recusado a recepção do acto ao abrigo do disposto no n.º 1, a situação pode ser corrigida mediante citação ou notificação ao destinatário, nos termos do presente regulamento, do acto acompanhado de uma tradução numa das línguas referidas no n.o 1. Nesse caso, a data de citação ou notificação do acto é a data em que o acto acompanhado da tradução foi citado ou notificado de acordo com a lei do Estado-Membro requerido. Todavia, caso, de acordo com a lei de um Estado- -Membro, um acto tenha de ser citado ou notificado dentro de um prazo determinado, a data a tomar em consideração relativamente ao requerente é a data da citação ou notificação do acto inicial, determinada nos termos do n.º 2 do artigo 9.
Quanto ao prazo para arguição da nulidade, estabelece o artigo 191º, nº2, que é o que tiver sido indicado para a contestação; sendo, porém, a citação edital, ou não tendo sido indicado prazo para a defesa, a nulidade pode ser arguida quando da primeira intervenção do citado no processo.
Os termos em que o réu deve arguir a nulidade da citação são os seguintes: se lhe foi assinalado prazo para contestar, dispõe desse prazo para suscitar a nulidade; não lhe tendo sido indicado qualquer prazo ou tratando-se de citação edital, o réu pode arguir a nulidade no momento em que intervier pela primeira vez no processo.
Se o réu intervier no processo sem arguir logo a falta, considera-se sanada a nulidade (artigo 189º). Note-se que, para este efeito, considera-se que o réu intervém no processo quando se apresenta efetivamente no mesmo a praticar um qualquer ato judicial, não bastando que o mesmo tenha conhecimento de algum ato ou atos nele praticados. Na verdade, embora a lei não o diga expressamente, dada a gravidade da cominação imposta no normativo, ter-se-á de pressupor uma atuação ativa no processo do réu, através da prática ou intervenção em ato judicial, que lhe permita tomar pleno conhecimento de todo o processado ou, pelo menos, que façam presumir esse efetivo conhecimento (5).
Revertendo ao caso dos autos.
A Ré tem sede em França sendo, por isso, aplicável o Regulamento nº 1393/2007 de 13.11.2007.
Tendo a Ré antes recusado a receção do ato, foi determinada (e bem) a sua citação ao abrigo do artigo 8º, nº3, do citado Regulamento, isto é, a citação ao destinatário do ato acompanhado de tradução.
Sucede que, a citação foi realizada apenas com a entrega de cópia traduzida da petição inicial, sem a entrega à Ré da nota de citação com a indicação do prazo para contestar, indicação das consequências legais da falta de contestação e indicação da obrigatoriedade de constituição de advogado.
Resulta claro que a citação foi efetuada com preterição de formalidades essenciais, sendo uma delas a falta de indicação do prazo para contestar.
Evidencia-se, como se alcança dos considerandos n.ºs 1, 2, 6 e 7 do Regulamento nº 1393/2007, o objetivo prosseguido pelo legislador comunitário não foi o de enfraquecer as garantias de defesa dos citandos no espaço intracomunitário, mas apenas adotar medidas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil, necessárias ao bom funcionamento do mercado interno, impondo as condições mínimas em que essas citações e notificações se processariam diretamente entre os Estados-Membros. Citações e notificações que em tudo que não é contrariado pelas disposições do Regulamento, têm de ser efetuadas de acordo com as leis processuais dos Estados-Membros que as efetuam (6).
Não tendo sido indicado prazo para a defesa, a nulidade pode ser arguida quando da primeira intervenção do citado no processo.
A primeira intervenção do citado ocorreu a 7.1.2020, precisamente com a apresentação do requerimento a arguir a nulidade da citação por falta de indicação do meio de defesa e do prazo de defesa.
A simples consulta do processo por parte de advogado, mais tarde constituído mandatário do réu, não configura um ato processual relevante (sendo, ademais, discutível na jurisprudência que a simples junção de instrumento de mandato forense implique direta e necessariamente a preclusão de possibilidade de invocação da nulidade por falta de citação). Com efeito, este ato de consulta não configura intervenção processual da parte no processo, e nem dele se pode extrair a conclusão de que o réu tomou conhecimento do seu processado por forma a ficar em condições de assegurar o seu efetivo direito de defesa.
Em conclusão, a arguição da nulidade de citação é tempestiva.
Procede, nesta parte, a apelação.
Apreciemos, agora, as consequências da revogação da decisão que julgou extemporânea a arguição da nulidade.
O artigo 665º estabelece a regra da substituição ao tribunal recorrido, prevendo no seu nº2 que se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
No caso, os autos contêm todos os elementos necessários à prolação, por esta Relação, de decisão quanto à alegada nulidade da citação.
Decorre do artigo 227º, nº2, como elementos a transmitir obrigatoriamente ao citando no ato de citação, a indicação do prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia.
Dos autos resulta que a citação da Ré foi realizada sem a indicação destes elementos.
É, pois, nula a citação porquanto não foram observadas na sua realização as formalidades prescritas na lei (artigo 191º, nº1).
Todavia, a arguição só é atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado (artigo 191º, nº4).
Na verdade, considerando que a citação se destina a dar ao réu conhecimento da ação contra si proposta e conceder-lhe oportunidade de defesa, só serão tidos como geradores de nulidade os vícios que prejudiquem realmente a defesa. O que aqui temos é a salvaguarda em termos substanciais e não meramente formais, do principio do contraditório - A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (7).
A par do conhecimento que é dado ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação, é o réu chamado ao processo para se defender. Donde, a comunicação do prazo que dispõe para a sua defesa é elemento essencial para a concretização de um dos princípios basilares do processo civil: o contraditório.
Como ensina Antunes Varela a citação é “o ato processual essencial que visa assegurar o direito do demandado a defender-se, de molde a evitar ser surpreendido por uma decisão judicial não esperada, constituindo tal o corolário lógico do princípio do contraditório” (8).
Impõe-se, assim, a consideração de que a falta de indicação do prazo para defesa é uma formalidade capaz de prejudicar a defesa do citando.
Pelo que, a arguição deve ser atendida.
Em face do exposto, declara-se a nulidade do ato de citação, anulando-se subsequentemente todos os atos praticados depois dele, por dele dependerem absolutamente, incluindo a sentença proferida.
Em face do ora decidido, prejudicadas ficam as demais questões suscitadas no recurso.
Da litigância de má fé.

Já neste tribunal de recurso veio a Recorrente pedir a condenação da Recorrida como litigante de má fé, em multa e indemnização a fixar a final, invocando que a Recorrida nas suas contra alegações tentou induzir o Tribunal em erro, ao alegar que:

- o mandatário da Ré/Recorrente solicitou a consulta ao processo, arrogando-se, no formulário de submissão da peça processual “mandatário do réu”, o que não corresponde à verdade;
- o recurso da decisão de indeferimento da nulidade processual é extemporâneo, o que também não é verdade, pois que o despacho interlocutório não era recorrível.
Respondeu a Recorrida defendendo que apenas exerceu o seu direito à defesa, utilizando fundamentos juridicamente aceitáveis e factos que sabe serem verdadeiros.

Nos termos do disposto no artigo 542.º, n.º 2 diz-se litigante de má-fé quem com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Enquanto as alíneas a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má fé material ou substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas têm a ver com a má fé processual ou instrumental (9).
Resulta desta disposição legal que não só as condutas dolosas, como também as gravemente negligentes, são sancionáveis
O legislador deixou ainda clara a desnecessidade, quanto à prova, da consciência da ilicitude do comportamento e da intenção de conseguir objetivos ilegítimos (atuação dolosa), bastando que seja possível formular um juízo de censurabilidade (10).

No entanto, não deve confundir-se litigância de má-fé com:

· a mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento;
· a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
· discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos; ou
· com a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr convencer.

Constitui hoje entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artigo 542º do Código de Processo Civil. Haverá sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, recomendando-se na formulação do juízo sobre essa má fé uma certa prudência e razoabilidade (11).
Conformemente, a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave.
Ora, é manifesto no caso presente que a Recorrida ao sustentar nas suas contra alegações a extemporaneidade quer da arguição da nulidade da citação em face da consulta do processo pelo advogado que mais tarde viria a ser o mandatário da Ré, quer do recurso da decisão que considera dever ser feito autonomamente, mais não está que a exercer um legitimo direito de defesa.
A mera discordância na interpretação da lei aos factos, não faz incorrer a parte numa conduta processual censurável, por desconforme ao princípio da boa-fé pelo qual as mesmas devem reger a sua conduta.
Improcede, assim, o pedido de condenação como litigante de má fé.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido proferido a 21.02.2020 que indeferiu a arguição de nulidade da citação por extemporaneidade, e em consequência:
- julga tempestiva a arguição de nulidade da citação;
- declara a nulidade do ato de citação, determinando a sua repetição;
- anulam-se todos os atos posteriores, incluindo a sentença proferida.
Custas pela Recorrida.
Guimarães, 4 de Março de 2021

Assinado digitalmente por:

Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes



1. Código de Processo Civil Anotado, Vol I, A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao artigo 227º, pags 275 e 276.
2. In Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, págs. 330.
3. Neste sentido, pode ver-se o Acórdão desta Relação de Guimarães de 25/11/2010, publicado na CJ., 2010, T 5º, pág. 287.
4. Neste sentido, A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol I, anotação ao artigo 239º, pags 291 e 292.
5. Nesse sentido o Ac. da Relação de Coimbra, de 24/04/2018, disponível em www.dgsi.pt e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, pág. 369.
6. A propósito pode ver-se o acórdão desta Relação de Guimarães de 17/12/2018, disponível em www.dgsi.pt
7. In Código de Processo Civil Anotado, Vol I, pag. 243.
8. In Manual de Processo Civil, pág. 266.
9. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º., 3ª Ed., p. 457.
10. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 3ª ed., p. 341.
11. Neste sentido, acórdão da Relação de Coimbra, de 28.05.2019, disponível em www.dgsi.pt