Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | EDUARDO AZEVEDO | ||
Descritores: | NULIDADE DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA TERCEIRO INTERESSE EM AGIR | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 10/08/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | Sumário, da única responsabilidade do relator 1- Nos termos do artº 286º do CC não é interessado para invocar a nulidade de um contrato de compre e venda de imóvel celebrado entre terceiros, por falta de licença de utilização e com utilização de documento com declaração falsa, quem alega para tanto que lhe foram dadas “algumas expectativas” pelo vendedor de que o prédio lhe seria antes vendido ainda que pretextando impedimentos de vária ordem relacionados com a situação legal do prédio. 2- Nessa medida também não tem interesse em agir em ação intentada contra esses terceiros pedindo a declaração de nulidade do negócio. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães E. C. intentou ação com processo comum contra X, Detergentes Químicos …, Lda, J. P. e seu cônjuge M. P.. Pediu: “1) Julgar-se nula e de nenhum efeito a escritura de compra e venda datada de 30.05.2018 e, consequentemente, nulo e de nenhum efeito o negócio de compra e venda celebrado entre I. e II. RR. titulado pela mesma escritura, relativa ao prédio identificado no artº 1º da P.I.; 2) Ordenar-se o cancelamento na Conservatória do Registo Predial de … do registo de inscrição feito pelos II. RR. com base na mencionada escritura; (…); subsidiariamente, ser: 4) declarada a ineficácia do contrato de compre e venda celebrado entre os RR. restituindo-se o imóvel alienado ao património do I Réu. 5) Ordenar-se o cancelamento na Conservatória do Registo Predial de … do registo de inscrição feito pelos II. RR. com base na mencionada escritura;”. Alegou, em síntese: em 30.05.2018 foi celebrada escritura de compra e venda de prédio misto entre a R e o 2º R; a 1ª R tinha-lhe criado expectativas que lhe vendia o prédio; essa escritura radica na falsidade da certidão emitida pela Câmara Municipal de …, na parte em que declara que a parte urbana foi edificada anteriormente ao ano de 1951; a escritura pública de compra e venda teria de ser instruída com licença de utilização; e não o tendo sido, o negócio de compra e venda é nulo. Os 1º e 2ª RR contestaram, além do mais, arguindo a falta de interesse em agir e a litigância de má-fé, pedindo a condenação em multa e indemnização. O A pronunciou-se, invocando o exercício abusivo de direito e mantendo a sua posição inicial, já que, além do mais, “perante o conflito entre a manutenção dos atos praticados (cuja nulidade é invocada, por se fundarem em documento falso) e a consideração do interesse em agir do A., deverá, a nosso ver, prevalecer o direito do A. em ver tais atos declarados inválidos e ineficazes”. Na oportunidade da condensação e saneamento foi proferido despacho: “O autor intentou a presente ação contra os réus, tendo em vista que se declare a nulidade da escritura de compra e venda celebrada entre estes, radicada na falsidade da certidão emitida pela Câmara Municipal de …, na parte em que declara que a casa de rés-do-chão e primeiro andar contida no prédio objeto da venda foi edificada anteriormente ao ano de 1951. Entende o autor que, sendo aquela declaração falsa, a escritura pública de compra e venda teria de ser instruída com licença de utilização, nos termos do previsto no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 281/99 de 26 de Julho. Não o tendo sido, o negócio de compra e venda é, segundo crê, nulo por ter sido celebrado contra disposição legal de carácter imperativo (artigo 294.º do Código Civil). O autor justifica a sua iniciativa de propor a presente ação, uma vez que a ré X “foi dando ao A. algumas expectativas” de que lhe venderia o prédio objeto dos autos e, contrariando essas expectativas, a primeira ré vendeu o prédio aos segundos réus. Os réus arguiram a falta de interesse do autor em agir, uma vez que o mesmo não pode ser considerado interessado para os efeitos previstos no artigo 286.º do Código Civil (“A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado”). Convidado o autor a pronunciar-se sobre a matéria de exceção invocada na contestação, o autor pugnou pela sua não verificação, reafirmando que o seu interesse em agir, fundado na expectativa que tinha de adquirir da primeira ré o prédio objeto da ação. Interessado na invocação do vício da nulidade de um negócio jurídico há-de ser o titular de um direito prejudicado na sua consistência jurídica, prática ou económica pelo negócio jurídico nulo, apresentando-se, por conseguinte, o seu interesse na declaração de nulidade como direto e não reflexo ou indireto (neste sentido, veja-se Antunes e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 263, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, p. 620, e LEBRE DE FREITAS - O conceito de interessado no artigo 286º do Código Civil e sua legitimidade processual, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, 2007, p. 384). Significa então que não basta ao autor apresentar um interesse vago, devendo alegar ser titular de relação jurídica que, de algum modo, possa ser afetada pelos efeitos que o negócio jurídico em crise tendia a produzir. Ora, o autor não alegou ser titular de qualquer direito afetado pelo negócio jurídico em causa. Alega o autor que a ré X lhe foi dando algumas expectativas de que lhe venderia o prédio objeto dos autos e, contrariando essas expectativas, vendeu-o aos segundos réus. Ora, a existência de alguma expectativa de compra do prédio não corresponde à titularidade de qualquer direito de compra ou mesmo sequer à existência de qualquer expectativa de compra juridicamente fundada. A declaração de nulidade do negócio jurídico de compra e venda em nada mudaria a posição do autor, que nunca poderia exigir da primeira ré a venda a si do prédio. Quer isto dizer que a celebração do contrato de compra e venda pela primeira ré aos segundos não consubstanciou a violação de qualquer direito ou interesse legítimo juridicamente fundado do autor, não servindo a presente ação para obter a reposição de qualquer direito ou interesse jurídico do autor violado pela X. E se assim é, o autor carece de interesse em agir, exceção dilatória inominada que impede este Tribunal de conhecer o mérito da causa. Atentas as considerações e os fundamentos expostos e, bem assim, o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º do Código de Processo Civil, julgo verificada a exceção dilatória inominada de falta processual de interesse em agir do autor e, em consequência, absolvo os réus da instância. Custas processuais pelo autor, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil. Registe e notifique. * Apesar de os réus terem sido absolvidos da instância, subsiste para decidir a questão de saber se o autor atuou como litigante de má fé, motivo pelo qual deverá esta ação prosseguir apenas com esse objetivo.”. O A recorreu e concluiu: “1. Têm legitimidade ativa para propor ações de nulidade, ao abrigo do art.º 286º do Código Civil, quaisquer interessados e não apenas as pessoas diretamente interessadas. 2. Por "qualquer interessado" entende-se não apenas a pessoa diretamente afetada pelo registo, mas ainda todo aquele que revele possuir um interesse meramente indireto ou mediato. 3. A disciplina do regime geral estabelecido no Código Civil Código Civil quanto à legitimidade ativa consubstancia interesse em agir como um titular de qualquer relação que possa ser afetada na sua consistência, jurídica ou prática, pelo negócio inválido, independentemente de ser direta ou indiretamente afetado, o que aliás se reflete transversalmente na Doutrina citada. 4. Até porque o regime da nulidade é estabelecido em casos de violação de regras imperativas, de interesse público, que são do conhecimento oficioso, não sendo, portanto, de exigir, sob pena de frustração dessa sua natureza, requisitos demasiados exigentes para a legitimidade ativa da sua arguição. 5. O A. aqui recorrente é parte legítima para arguir a nulidade da escritura de compra e venda datada de 30/05/2018, bem como do alegado negócio de compra e venda que titula e lhe subjaz, celebrado entre I. e II. RR., relativo ao prédio em questão nos autos. 6. É, pois, legíitima a pretensão do A. em poder vir a adquirir o identificado prédio nos termos alegados, cujo processo negocial alegado pode, em razão da matéria que se venha a provar em sede de discussão e audiência de julgamento, configurar incumprimento contratual e, bem assim, abuso de direito nos termos invocados nos autos. 7. Ademais, face à previsão da Lei - art.º 30º Código de Processo Civil - para efeitos de aferir da legitimidade interessa apenas a relação jurídica controvertida com a configuração subjetiva que o autor (unilateralmente) lhe dá. 8. Assim, apesar da legitimidade constituir matéria de conhecimento oficioso, o Tribunal está vinculado aos factos que as partes apresentaram nos autos e é com base nesses elementos que pode apreciar do pressuposto processual, em obediência ao princípio do dispositivo - art.º 5.º do citado diploma. 9. O que, naturalmente, não se coaduna com a decisão prolatada no despacho saneador, até porque, apesar de os RR terem sido absolvidos da instância, a ação prosseguirá com vista a apurar se o A. atuou como litigante de má fé. 10. Por outro lado ainda, porque se trata de uma invalidade que tem por causa obviamente um interesse público, não pode o aplicador da lei ser demasiado exigente quanto aos requisitos da legitimidade ativa, até por se tratar de vício que é de conhecimento oficioso do tribunal, no cumprimento da estrita legalidade. 11. Ademais, o limitar o direito de arguição da nulidade do negócio jurídico preconiza ainda uma interpretação inconstitucional do art.º 286º do Código Civil, que não se compatibiliza com o direito constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva estabelecida no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa. 12. Daí que, no provimento desta apelação, a decisão recorrida deva ser revogada, julgando-se improcedente a exceção dilatória inominada de falta processual de interesse em agir do A., devendo ordenar-se o prosseguimento dos autos, mediante a necessária produção dos meios de prova em sede de audiência de julgamento. 13. Ao assim não ser entendido, não foi feita a melhor interpretação e aplicação ao caso, designadamente, dos normativos previstos nos artigos 286 C.Civil e 5º e 30º do CPC. Termos em que, no provimento do presente recurso, requer-se seja revogada a decisão recorrida, julgando-se improcedente a exceção dilatória inominada de falta de interesse processual em agir do autor, ordenando-se o prosseguimento da presente ação, ….”. Contra-alegou-se no sentido da manutenção do julgado. *** Cumpre decidir.As questões a conhecer revertem para a existência do interesse em agir do recorrente, o exercício abusivo de direito e a inconstitucionalidade. A matéria fáctica a considerar é a que objetivamente resulta do relatório. **** O recorrente afirma: “7. Ademais, face à previsão da Lei - art.º 30º Código de Processo Civil - para efeitos de aferir da legitimidade interessa apenas a relação jurídica controvertida com a configuração subjetiva que o autor (unilateralmente) lhe dá. 8. Assim, apesar da legitimidade constituir matéria de conhecimento oficioso, o Tribunal está vinculado aos factos que as partes apresentaram nos autos e é com base nesses elementos que pode apreciar do pressuposto processual, em obediência ao princípio do dispositivo - art.º 5.º do citado diploma. 9. O que, naturalmente, não se coaduna com a decisão prolatada no despacho saneador, até porque, apesar de os RR terem sido absolvidos da instância, a ação prosseguirá com vista a apurar se o A. atuou como litigante de má fé.”. Não nos equivoquemos. Enquanto pressupostos processuais uma coisa é a legitimidade das partes e outra a falta de interesse em agir. Ambas exceções dilatórias, é certo. Mas não se confundem. Os respetivos institutos obviamente não se entrelaçam ou condicionam. Além disso, o despacho de que se recorre unicamente apreciou a segunda exceção e, em conformidade, decidiu pela sua verificação e a consequente absolvição dos recorridos da instância. E no recurso tão pouco se invoca qualquer irregularidade relativamente à circunstância de se ter apreciado uma e não a outra. Como tal, sendo o objeto do recurso bem delimitado será aqui levado em conta apenas o interesse em agir do recorrente. Relativamente à absolvição da instância dos recorridos e ao prosseguimento da ação para conhecimento da litigância, a referência que lhe é feita é necessariamente espúria para a sorte do recurso e indiretamente da lide. Com efeito, estamos perante patamares processuais diferenciados, sendo que a relação jurídica-processual da alegada litigância qualificada ainda que enxertada, contudo permite-se-lhe autonomia processual plena em ordem ao seu conhecimento dada a sua génese, natureza e desenvolvimento. Visto isto. O recorrente, ao intentar a ação pretende, grosso modo, que se declare a nulidade do negócio de compra e venda do prédio misto celebrado entre a 1ª recorrida como vendedora e o 2º recorrido comprador, subsidiariamente a ineficácia, ao abrigo do artº 286º do CC, segundo o qual “a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”. Tudo, porquanto, o negócio foi realizado com base em documento camarário a certificar relativamente à parte urbana uma situação de facto alegadamente falsa, pelo que sem que o vendedor estivesse munido de licença de utilização requisito essencial para a sua perfeição, nos termos conjugados dos artºs 1º do DL 281/99, de 26.07 e 8º do RGEU, aprovado pelo DL 38 382/1951, de 07.08. Invoca ter interesse em agir já que, tal como invocou nos seus articulados iniciais, a 1ª recorrida criou-lhe a expectativa de lhe vender o prédio que já tinha sido seu e que tinha saído do seu domínio em virtude de execução de hipoteca de que beneficiava essa recorrida, pretendendo, assim, que voltasse ao seu património. Em concreto em que consiste essa alegada expectativa? O recorrente disponibilizou-se em readquirir o prédio adiantando uma proposta de 40.000,00€ e a recorrida R foi-lhe “dando algumas expectativas que tal assim sucedesse”, mas pretextando impedimentos de vária ordem relacionados com a situação legal do prédio (registo, embargo de obra nova e falta de licença de habitabilidade). Isto na petição inicial, onde se afirma também que tal recorrida lhe foi alimentando a ideia que ultrapassados os obstáculos “se poderia avançar para a concretização do negócio”. Já no articulado de pronúncia sobre a exceção em discussão, o recorrente revaloriza a expectativa e refere antes que lhe foi assegurado, adiantando ainda outra circunstância, mas já intermediada por terceiro, a quem foi dito pela 1ª recorrida, após ser confrontada com a intenção de impugnação da escritura que “se o Tribunal anulasse a escritura imediatamente lhe venderia o prédio”. Neste conspecto o tribunal a quo recusou reconhecer interesse em agir ao recorrente fundado no disposto no citado artº 286º com o argumento de que quer pela natureza da alegada expetativa quer pela finalidade da ação não se poderia concluir ser o recorrente interessado para tal normativo: “Significa então que não basta ao autor apresentar um interesse vago, devendo alegar ser titular de relação jurídica que, de algum modo, possa ser afetada pelos efeitos que o negócio jurídico em crise tendia a produzir. Ora, o autor não alegou ser titular de qualquer direito afetado pelo negócio jurídico em causa. Alega o autor que a ré X lhe foi dando algumas expectativas de que lhe venderia o prédio objeto dos autos e, contrariando essas expectativas, vendeu-o aos segundos réus. Ora, a existência de alguma expectativa de compra do prédio não corresponde à titularidade de qualquer direito de compra ou mesmo sequer à existência de qualquer expectativa de compra juridicamente fundada. A declaração de nulidade do negócio jurídico de compra e venda em nada mudaria a posição do autor, que nunca poderia exigir da primeira ré a venda a si do prédio. Quer isto dizer que a celebração do contrato de compra e venda pela primeira ré aos segundos não consubstanciou a violação de qualquer direito ou interesse legítimo juridicamente fundado do autor, não servindo a presente acção para obter a reposição de qualquer direito ou interesse jurídico do autor violado pela X.”. Julgamos ter o tribunal a quo decidido bem e sem que se possa afirmar, apesar da nomeação de doutrinadores, que se acabou por interpretar restritivamente o conceito de “interessado”, de modo a nele abarcar apenas, como afirma o recorrente “um especial elevado grau de interesse”. Mas, de resto, decisão essa que está ainda em conformidade com a citação que o recorrente faz de Ana Prata in Dicionário Jurídico (3ª ed, 332), de que “são terceiros interessados não apenas aqueles que são titulares de um direito incompatível com o das partes, mas também aqueles que se encontram numa situação dependente da relação negocial.”. E se quisermos até com a citação de Castro Mendes (Direito Civil, Teoria Geral, 1979, III, 629) “ao dizer que terceiros mediatamente interessados são aqueles cuja esfera jurídica não é direta e atual, mas só indireta ou eventualmente afetada pelo negócio jurídico.”. Vejamos. Em síntese, o conceito de interesse em agir deve ser perspetivado enquanto relação recíproca de necessidade e adequação. Assim, quanto ao primeiro, “O interesse em agir, como pressuposto processual, traduz-se na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir o processo” (cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 186 e 187). Para Teixeira de Sousa: “O interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjetiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela”; “O autor tem interesse processual se, dos factos apresentados, resulta que necessita da tutela judicial...” (As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, 97 e 99). A adequação, relaciona-se com a “idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação” (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, II, 1982, 253). Em complemento com o anteriormente referido, decidiu-se no acórdão do STJ de 08.03.2001 (CJ 2001, I, 150 e segs): “O interesse em agir constitui um pressuposto processual que não se identifica com qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, exigindo-se que seja objetiva e grave a incerteza relativamente á qual o autor pretende reagir e que, a proceder, a ação se revista de utilidade prática.” (cfr ainda Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, 82; José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 3.ª, 2013, Coimbra Editora, 34 e 35, nota 17). No caso o interesse em agir depende da noção de interessado que devidamente deve ser extraída do conceito do disposto no artº 286º do CC. E uma coisa é certa, inegável mesmo: nem o recorrente se atreveu a qualificar juridicamente a alegada factualidade com que consubstanciou a denominada e conclusiva expetativa, primeiramente alimentada, depois assegurada. Nunca estabelece qualquer baia para a relação jurídica a considerar devido a essa expectativa. A violação das regras da boa fé tanto é sancionada na fase da execução dos negócios como nos respetivos atos preliminares e preparatórios, respondendo-se por danos se for caso disso (artº 227º do CC), e o recorrente na ação tão pouco envereda por esse desiderato tanto a nível de alegação como de pretensão concretizada. E nunca servirá de justificação, por todas as formas, não querer prejudicar a possibilidade de vir a realizar de qualquer negócio com a 1ª recorrida, pois esta ação poderá por si ser já considerada um obstáculo irremovível para o efeito. Acresce, nada é alegado em termos de ser extraível qualquer condição ou termo (artºs 270º a 279º do CC) ou, menos ainda, situação jurídica de promessa unilateral (artº 411º do CC). No alegado nem se precisam elementos essenciais do negócio como, nomeadamente, o preço e o momento da translação do bem (artº 874º do CC). Por seu turno, do alegado não se pode afirmar definitivamente que foi mediante uma manifestação de vontade inequívoca, que a 1ª recorrida pretendia fazer o negócio com o recorrente. Tão pouco que este, pessoa que tudo indica experiente nos negócios como afirma na petição inicial, pudesse apenas concluir da conduta da 1ª recorrida que estava garantida a formalização do negócio com a mesma. Pelo contrário, face também às regras de experiência comum, o comportamento alegadamente atribuído à 1ª recorrida podem ser configuráveis com meros pretextos para, eventualmente até, não ter que dizer diretamente e definitivamente que com o recorrente não faria qualquer negócio. O que ainda se enquadra na conduta típica de quem tem um imóvel e está perante o desejo de terceiro de o adquirir havendo mais interessados e considerando o modo como o prédio entrou na esfera jurídica dessa recorrida. O que significa que não se demonstra qualquer lesão ou iminência de lesão de qualquer direito ou situação de facto que reclame tutela jurídica por meio de processo judicial como o presente, nem, por conseguinte, a existência de um verdadeiro e atual conflito de interesses com os recorridos. Por tudo isto não se pode considerar que o recorrente podia intentar a ação com as respetivas pretensões por ser titular de uma situação jurídica ou de facto digna de tutela. Tão pouco, que se é titular de uma situação mediata ou reflexamente condicionada pela compra e venda celebrada entre os recorridos e que qualquer pretensão deduzida na ação é suscetível da aludida “reposição de qualquer direito ou interesse jurídico do autor violado pela X.”. Dito de outro modo, no alegado nos articulados do recorrente não se constata motivo adequado e idóneo para as pretensões deste processo, ou seja, uma situação de incerteza quanto à existência ou inexistência do direito ou também de situação de facto que se pretende tutelar e a respetiva necessidade ou carência de tutela judiciária. Deste modo, bastaria o recorrente atentar nisto para não cair em erro persistente que perverte o sentido logico da construção jurídica que defende ao afirmar desnecessariamente que o seu interesse individual “não tem natureza de mero interesse simples ou difuso, pois estes são interesses de toda a comunidade, genericamente tutelados pelo direito, por normas jurídicas, e que não têm portador ou titular singular.” ou que “…, perante o conflito entre a manutenção dos atas praticados, cuja nulidade é invocada, e a consideração do interesse em agir do A, deverá, a nosso ver, prevalecer o interesse do A em ver tais atas declarados inválidos e ineficazes.”. Ou também que no caso sempre existirá “o interesse mediato ou indireto em ordem à invocação da nulidade de um negócio jurídico ou de um simples ato jurídico a que se devam aplicar as regras do negócio jurídico não é apenas o meramente reflexo mas atual, mas ainda o futuro e eventual, posto (a nosso ver) que esta eventualidade se antolhe como deveras consistente”. De qualquer forma, vale a pena citar de novo Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil anotado (I, 4ª edição, Coimbra Editora, 263): “A nulidade pode ser invocada, diz a lei, por qualquer interessado, isto é, pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio. Cfr., quanto aos credores, o disposto no artº 605º.”. Reza este preceito, sob a epígrafe “Legitimidade dos credores”: 1. Os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos atos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o ato produza ou agrave a insolvência do devedor. 2. A nulidade aproveita não só ao credor que a tenha invocado, como a todos os demais.”. Tal como citar ainda o Comentário ao CC (Parte Geral, Univ Católica, 708 e 709): “Legitimidade: Quanto à determinação das pessoas com legitimidade para a arguir a nulidade, a lei usa o conceito “qualquer interessado”, querendo significar que pode invocar a nulidade o “sujeito de qualquer relação jurídica afetada, pelos efeitos a que o negócio jurídico se dirigia” (Mota Pinto, 2005, 620). O direito de invocação da nulidade não é conferido a todos. Não é qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração de nulidade do negócio, que preenche os requisitos do conceito de interessado para efeito do artigo 286.º. O sujeito legitimado deve ter um interesse direto na nulidade e não apenas um interesse vago e indireto. O interesse que atribui a uma pessoa legitimidade para invocar a nulidade de um negócio jurídico segundo o artigo 286.º, é um interesse de direito substantivo, que pressupõe a oponibilidade do negócio, porque o negócio nulo prejudica a consistência prática ou económica, de um direito seu (Lebre Freitas, 2007, 384). Por exemplo, são terceiros legitimados para invocar a nulidade o cônjuge responsável por dívida contraída pelo outro através de contrato nulo celebrado sem a sua intervenção e os adquirentes de direitos reais ou pessoais sobre o mesmo bem. (…) A legitimidade do tribunal para declarar oficiosamente a nulidade baseia-se em razões de interesse público. Contudo, nos casos em que a nulidade se fundamenta, em termos predominantes, na tutela de um interesse particular, não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal nem invocada por terceiro interessado, sob pena de se frustrar a intenção protetora do legislador. É o caso da nulidade do contrato-promessa por falta de forma (art.º 410º, n.º 3), conforme resulta de dois assentos proferidos pelo STJ (Assentos n.º 15/94, 28-06-1994, e n.º 3/95, 01-02-95).”. E sem olvidar a doutrina de Rui de Alarcão citada no aresto que, por sua vez, foi aludido no recurso: «A redação da lei exige que se dê alguma atenção ao interesse que funda a legitimidade. Em primeiro lugar, há que ter em conta que dificilmente alguém assumirá os encargos de uma ação judicial sem ter nisso um interesse sério. Em segundo lugar importa não esquecer que, uma vez proposta uma ação de declaração de nulidade, ou invocada como exceção a nulidade numa ação pendente, o tribunal tem de se pronunciar oficiosamente sobre ela, seja qual for a qualidade da pessoa que tomou a iniciativa de suscitar a questão. O artº 286º ao reconhecer legitimidade substantiva a “qualquer interessado”, não deve ser interpretado como admitindo a invocação da nulidade por “qualquer pessoa”, o que seria talvez demasiado amplo, mas também não deve sê-lo no sentido de restringir a legitimidade para invocar a nulidade a pessoas que sejam titulares de um interesse especialmente privilegiado, porque esse é o caso da regra de legitimidade para a anulação dos negócios jurídicos anuláveis. O interesse exigido no artº 286º não pode ser simplesmente fútil ou frívolo, nem abusivo, mas não deve ser restrito à titularidade de uma situação ou relação que seja afetada na sua consistência prática ou jurídica pela subsistência do ato nulo. (…) uma vantagem económica direta ou indireta deve ser suficiente para integrar o interesse a que se refere o artº 286º. Ao admitir a invocação da nulidade “por qualquer interessado”, o preceito deve melhor ser interpretado no sentido de que tem legitimidade qualquer pessoa que esteja interessada na declaração da nulidade, tal como o entende Rui de Alarcão. O interesse não deve ser apreciado objetiva, mas antes subjetivamente. No caso concreto deve ser aferido se aquela pessoa obtém alguma utilidade, ou remove alguma desvantagem com a declaração de nulidade. Se assim for, é parte legítima. Finalmente, deve ser recordado que, uma vez suscitada a questão da nulidade, o juiz tem de se pronunciar sobre ela (…). Atento o poder-dever de o tribunal conhecer oficiosamente a nulidade, perdem muito do seu sentido as orientações restritivas em matéria de legitimidade para a arguição da nulidade.». Em conclusão, o recorrente não deve ser considerado interessado para efeitos do disposto no artº 286º do CC. ***** Não o fazendo na motivação o recorrente invoca nas conclusões o abuso de direito de forma sumária. Ainda assim de modo mais extenso que no seu segundo articulado.Mas refere-o também de forma inconsequente porquanto, agora, argui um incumprimento contratual e que constituindo uma questão nova, mais do que já se decidiu não poderá este tribunal apreciar, por isso estando prejudicada. Sabe-se, está vedado ao tribunal ad quem o conhecimento de questões novas, se não foram alegadas na devida oportunidade e adquiridas no processo com respeito pelo contraditório. Com efeito, os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia sobre questões novas. Trata-se de rever ou reponderar (Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Coimbra Editora, Abril de 2009, 50, 51 e 81). Ou, como dizem Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, “é, por isso, constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la.” (CPC, anotado, 3º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, 8). No entanto, o instituto jurídico do abuso de direito é de conhecimento oficioso, porquanto é de interesse e ordem pública (“Um abuso de direito é sempre de ter oficiosamente em consideração no processo, pois é função do Tribunal determinar os limites internos de um direito, mesmo que as partes os não invoquem (...).”, Vaz Serra, RLJ 113º, 301; cfr acórdãos do STJ de 04.12.2014, proc 2606/07.8TJVNF.P1.S1, e de 08.09.2015, proc 910/13.5TBVVD-G.G1.S1, www.dgsi.pt). Mas não assim no que concerne aos pressupostos de facto que a ele conduzem (AUJ de 05.07.2016, procº 752-F/1992.E1-A.S1-A, www.dgsi.pt, DR, I, 208, 28.10.2016). Por isso. Sendo o incumprimento contratual, conforme o predito, que o tribunal não poderá apreciar em si, em que poderá consistir para o recorrente o abuso de direito? Não esclarece ao certo e, efetivamente, não vislumbramos fundamentos a apontar no sentido do disposto artº 334º do CC. Até por aquilo que foi decidido até esta oportunidade, das circunstâncias alegadas pelo recorrente nada transparece donde se retire a violação da tutela da confiança. No seguimento do que já expendemos, um conjunto circunstâncias pelas quais inelutavelmente existissem razões para o recorrente crer que a 1ª recorrida renunciava à venda a terceiros de modo a que o recorrente viesse a adquirir o prédio, isto, independentemente das vicissitudes que rodeassem o domínio predial, acarretando, pois, entretanto, uma expectativa séria de permanência na mesma situação. Ou também que tenha havido da 1ª recorrida uma declaração de vontade séria resultante de uma obrigação legal do comércio jurídico criadora no recorrente da confiança de que ela procedia com correção e lealdade no negócio e, assim, por essa conduta tivesse sido determinado a sua própria conduta. ***** O recorrente ainda clama por inconstitucionalidade, mas nunca aludida nos seus articulados.Refere que “limitar o direito de arguição da nulidade do negócio jurídico preconiza ainda uma interpretação inconstitucional do art.º 286º do Código Civil, que não se compatibiliza com o direito constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva estabelecida no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa.”. Mas visto a previsão da norma constitucional nada menciona sobre como a aplicação do direito, nos termos em que se norteou o tribunal a quo, constituiria uma violação material de qualquer uma das suas vertentes. Norma constitucional essa que faria mais sentido ser conciliada antes com a interpretação de norma processuais das quais resulta a apreciação da exceção dilatória nos termos em que se procedeu. Mas o que a recorrente possa entender por interpretação inconstitucional em face deste artº 20º, mais uma vez não se vislumbra qualquer desrespeito no caso. Aconteceu somente que não se interpretou uma norma de direito substantivo com o qual o recorrente legitimamente discorda, mas nada mais do que isso. ***** Deve, portanto, improceder o recurso confirmando-se a decisão recorridaDecisão Por todo o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida. Custas pelo recorrente. ****** 08-10-2020 |