Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
103/11.6IDBRG.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PRESTAÇÃO
TRIBUTAÇÃO
CRIME
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Não comete o crime de abuso confiança fiscal do art. 105º, do RGIT, quem apesar de não entregar à administração tributária o IVA deduzido, se vier a apurar que não havia recebido o montante respetivo.
II) Só haverá crime quando o agente tiver recebido os valores tributários e lhes der destino diferente daquele a que estava obrigado.
III) Outro entendimento poderia levar à condenação em casos em que o faltoso, que ainda não recebeu, estava em situação económica que o impedia, em absoluto, de cumprir a prestação. Isso violaria o princípio da culpa, que implica a proibição de punição criminal por facto não culposo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. nº 103/11.6IDBRG), foi proferida sentença que absolveu a arguida Susana B... pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelo art. 105.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT.
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A magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido interpôs recurso desta sentença.
Suscita as seguintes questões:
- os factos provados constituem o arguido na autoria do crime de que vinha acusado;
- a arguida deverá ser condenada na pena de 4 meses de prisão, cuja execução deve ser suspensa pelo período de um ano, subordinada à obrigação de pagamento da obrigação tributária em falta.
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Não houve resposta ao recurso.
Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
A arguida dedica-se à actividade de “comércio – retalho de vestuário para adulto”.
Na qualidade de sujeito passivo de obrigações fiscais encontra-se colectada na Repartição de Finanças de Esposende, pessoa singular com o NIF 218259336, registada na actividade de “comércio – retalho de vestuário para adultos”, CAE nº 047711, estando enquadrada, para efeitos do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de periodicidade mensal.
Desde sempre que a arguida efectuou as tarefas relacionadas com a contabilidade e entrega de valores a título de imposto, designadamente encetou contactos com o contabilista e entregou os documentos contabilísticos que serviam de base às declarações fiscais.
Apesar de ter entregue a declaração do imposto no prazo devido, não entregou ao Estado a quantia facturada a título de IVA, respeitante ao mês de Maio do ano de 2009, que, tendo em atenção as facturas e recibos, emitidos nesse período, bem como a declaração periódica apresentada pela sociedade arguida foi de €9.573,86, mas desse apuramento, o montante de IVA efectivamente recebido pela sociedade até 10 de Julho de 2009, data limite do pagamento foi de €5.916,25, inferior ao montante de IVA pago pela arguida a fornecedores.
A arguida, apesar de saber que estava legalmente obrigado a fazê-lo, não entregou €9.573,86 nos Serviços da Administração Fiscal na data limite supra mencionada, nem decorridos 90 (noventa) dias sobre o termo do referido prazo.
A 25 de Maio de 2011 foi a arguida notificada para, em 30 dias, proceder ao pagamento voluntário €9.573,86 sob pena de, não o fazendo, ser instaurado procedimento criminal.
Tal quantia, no valor global de €9.573,86 (cento e sessenta e oito euros e quarenta e um cêntimos) foi, por decisão da arguida, integrada no seu património.
A arguida, apesar de saber que estava legalmente obrigada a fazê-lo, não entregou o aludido montante à Administração Fiscal até ao termo dos prazos referidos supra, tornando-o coisa sua.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção concretizada de obter vantagem patrimonial indevida, bem sabendo que desse modo diminuía as receitas fiscais.
Tinha perfeito conhecimento de que o seu comportamento era proibido por lei.
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A arguida aufere €485,00. Vive só e suporta renda de casa no valor de €300,00 mensais. Completou o 12.º ano.
Por sentença transitada em julgado em 16 de Setembro de 2002, proferida em 18 de Junho de 2002, nos autos de processo comum singular n.º 1320/01.2TABRG, que correram termos no 2.º Juízo Criminal de Braga, reportada a factos ocorridos em 1 de Fevereiro de 2002, foi a arguida condenada pela prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo art. 348.º, n.º 1, alínea a), do CP, em pena de multa, fixada em 60 dias, à taxa diária de €3,50.
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Considerou-se não provado:
Que em data não determinada do ano de 2009, a arguida elaborasse um plano tendente a apropriar-se, em prejuízo do Estado, do montante do IVA que estava obrigada a entregar à Administração Fiscal.
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FUNDAMENTAÇÃO
O recurso incide sobre «matéria de direito» – saber se os factos provados constituem a arguida na autoria do crime de abuso de confiança p. e p. pelo art. 105 do RGIT.
Em resumo, relatam os factos que, relativamente à prestação de Maio de 2009, a arguida recebeu € 5.916,25 de IVA, valor inferior ao IVA por ela pago a fornecedores (no montante de € 18.076,92, segundo a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto). Como aquele valor recebido de € 5.916,25 se abate aos € 18.076,92 pagos pela arguida (art. 19 do CIVA), esta nenhum montante líquido de IVA tinha em seu poder.
Ainda assim, tinha a obrigação legal de, naquela data, entregar à administração tributária o montante de €9.573,86, porque liquidara um valor global de IVA de €27.650,78 (€27.650,78 liquidados – € 18.076,92 pagos a fornecedores = €9.573,86).
A questão está em saber se comete o crime de abuso confiança fiscal do art. 105 do RGIT quem não entregar à administração tributária o IVA deduzido, mesmo que não tenha recebido o montante respectivo.
A resposta é negativa.
Após a entrada em vigor do RGIT discute-se se a “apropriação” continua a ser elemento deste tipo de crime, tal como era, inequivocamente, na vigência do art. 24 da Lei nº 20-A/90, de 15/1 (RJIFNA), que o antecedeu.
Na realidade, a norma do art. 105 do RGIT passou a referir a “não entrega”, total ou parcial, à administração tributária da prestação tributária deduzida, quando, diferentemente, o art. 24 da Lei Lei nº 20-A/90 (na redacção do Dec-Lei 394/93 de 24-11) punia “quem se apropriar”.
A diferença está no elemento «apropriação», bastando, após o RGIT, a «não entrega». Compreende-se o fim visado pelo legislador com a alteração: a «apropriação» implicava que o agente tivesse a intenção de integrar os valores no seu património, dispondo deles animo domini. Agora, com o requisito da «não entrega», são também abrangidos os casos em que o agente dispõe das quantias para fins de que não tira proveito imediato. Por exemplo, usando-as no giro da empresa, de que pode, até, nem ser proprietário.
Porém, esta alteração na redacção da lei, não pode fazer esquecer o essencial: a ideia fulcral de todo o crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de punir quem dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que está obrigado – cfr. ac. do STJ de 23/04/2003, Proc. nº 620/03 – 3ª Secção, relator Leal-Henriques.
Uma vez recebido o montante de IVA, o obrigado tributário apenas fica depositário dos valores correspondentes, que passam a pertencer ao fisco, perante quem tem a obrigação legal de os entregar. É esta não entrega que é criminalmente punível e não a simples omissão de um pagamento. A norma do art. 105 nº 1 do RGIT não pune quem não pagar um imposto, mas, diferentemente, “quem não entregar à administração tributária (…) prestação deduzida nos termos da lei”. Só pode omitir a “entrega” de alguma coisa, quem a tiver, ou já tiver tido, em seu poder. Enquanto o obrigado tributário não receber os valores do IVA não pode cometer um crime de “abuso de confiança”.
Este enquadramento não é incompatível com a obrigação legal do responsável tributário pagar à administração fiscal todo o IVA que facturou, independentemente de o ter efectivamente recebido. Ao direito civil e ao direito fiscal não repugna a existência de antecipações de pagamento.
Porém, como se disse, só haverá crime quando o agente tiver recebido os valores e lhes der destino diferente daquele a que se estava obrigado. Outro entendimento poderia levar à condenação em casos em que o faltoso, que ainda não recebeu, estava em situação económica que o impedia, em absoluto, de cumprir a prestação. Isso violaria o princípio da culpa, que implica a proibição de punição criminal por facto não culposo. Só existe «culpa» se sobre o agente for possível formular um juízo de censura ético-jurídico por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316). Facilmente se conjecturam casos em que não é possível censurar alguém por não ter entregue valores que ainda não recebeu, nomeadamente por estar em situação de carência económica.
Termina-se transcrevendo do acórdão desta relação proferido no recurso 194/08.7IDBRG.G2 (relatora Nazaré Saraiva), citando Paulo Marques: o recebimento da prestação tributária «está pelo menos implícito no tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, mesmo no Regime Geral das infracções Tributárias (RGIT)», pois, caso contrário, avança o mesmo autor, «se o agente a não tiver recebido previamente, como poderemos falar em incumprimento ilícito e doloso do dever de restituição ou entrega? Aquele precede necessariamente este último. (…) Apenas se pode recusar a entrega de algo que se recebeu previamente, que se teve em mãos. De outro modo, como exigir um comportamento diferente do agente? Como então justificar a sua punição severa consubstanciada em pena de prisão?» Cfr. Crime de Abuso de Confiança Fiscal – Problemas do Actual Direito Penal Tributário, Coimbra Editora, págs. 57-58. . E, acrescenta o mesmo autor: «Quando, por exemplo, o contribuinte não recebeu previamente o IVA, resulta claro que não lhe é possível entregar o imposto, logo não poderia ter agido de outro modo, não se podendo falar em abuso de confiança, nem em crime omissivo doloso. A omissão dolosa pressupõe a decisão voluntária de não fazer nada quando podia e devia fazer o que a lei impõe. A não ser assim, um agente económico que nada recebesse dos seus clientes poderia inclusivamente ser condenado com pena de prisão apesar de não poder proceder de outro modo – não pode entregar o que nunca recebeu -. Daqui decorre a improcedência do sancionamento criminal, sem prejuízo da responsabilidade tributária, uma vez que o imposto é devido ao Estado independentemente de ter existido ou não recebimento prévio, assim como a dedução é permitida mesmo que o contribuinte não tenha pago a aquisição ao seu fornecedor». Cfr. Ob. cit., pág. 64.
Tem, pois, de ser negado provimento ao recurso.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas.