Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1064/18.6BEBRG.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: TRIBUNAL DE TRABALHO VS TRIBUNAL COMUM
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - Os juízos do trabalho não têm competência para conhecer de questão em que o autor pretende retirar da conduta do réu o direito a reparação nos termos previstos no Código do Trabalho – sendo certo que ao tribunal que for competente caberá, sem sujeição a tal pretensão, indagar, aplicar e interpretar o direito – se alicerçou tal direito num «contrato emprego-inserção+», cuja denominação, qualificação e subsunção ao regime previsto na Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, republicada pela Portaria n.º 20-B/2014, de 30 de Janeiro, não colocou em causa, nada tendo alegado em contrário, nem de facto, nem de direito.
II - Compulsado o art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, a questão não cabe igualmente na competência daqueles tribunais, designadamente por também não estar em causa uma relação de emprego público, recaindo, consequentemente, na competência residual dos juízos cíveis (arts. 64.º e 65.º do Código de Processo Civil e 40.º, 117.º e 130.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Alda Martins
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. Relatório

J. M. intentou acção administrativa de condenação à prática de actos administrativos devidos nos termos da lei ou de vínculo contratualmente assumido, contra MUNICÍPIO X, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, alegando, em síntese:
- o A. e o R. celebraram contratos de emprego-inserção + em 31/09/2015 e 31/01/2017, no âmbito de medida cujos destinatários são os desempregados beneficiários do rendimento de inserção e outros desempregados elegíveis, para prestar trabalho socialmente necessário na área de limpeza e conservação dos espaços públicos;
- o A. recebeu comunicação do R. datada de 8/02/2017, a resolver o contrato de emprego-inserção + com efeitos a 7/02/2017, sem qualquer outra fundamentação que não fosse a invocação da b) do n.º 4 da cláusula 7.ª do contrato, violando, assim, o n.º 5 da mesma cláusula, que esclarece que a resolução deve indicar o motivo e observar a antecedência mínima de oito dias;
- o A. não faltou injustificadamente ao trabalho e limitou-se a aguardar indicações em casa, conforme lhe ordenou o R..
- assim, pelo despedimento ilícito, o A. tem direito a ser reintegrado no R. e a receber as retribuições devidas desde o despedimento, bem como tem direito a indemnização por violação do direito a ocupação efectiva, nos termos dos arts. 381.º, 389.º, 390.º e 129.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho.

Termina, pedindo que seja declarada a ilicitude do despedimento do A. e o R. condenado a reintegrá-lo e a pagar-lhe as retribuições desde o despedimento até ao trânsito em julgado da sentença, sendo a quantia vencida no valor de 7.322,00 €, e indemnização por danos não patrimoniais no valor de 3.000,00 €.

Após os articulados, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga foi proferido despacho em 23/10/2019, que terminou com o seguinte dispositivo:

«Em face do exposto, julgo materialmente incompetente este Tribunal para apreciar a questão objecto dos autos e, em consequência, absolvo a Entidade Demandada da instância.»

Na sequência de requerimento do A., ao abrigo do preceituado no art. 99.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, ex vi art. 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o mesmo Tribunal proferiu despacho a remeter o processo ao Juízo do Trabalho de Barcelos, o qual proferiu despacho em 16/12/2019, que terminou com o seguinte dispositivo:

«Nestes termos e pelo exposto, julgo este tribunal absolutamente incompetente para conhecer da presente acção e absolvo da instância o réu, MUNICÍPIO X.»

O A., inconformado, interpôs recurso deste despacho, formulando as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos em epígrafe, na parte em que o tribunal julgou-se absolutamente incompetente para conhecer a presente ação, exceção dilatória que implicou a absolvição da Ré da instância.
2. O presente recurso tem na sua base o entendimento que a decisão recorrida não traduz corretamente a solução adequada.
3. O ora recorrente intentou “Acão administrativa de condenação à prática de atos administrativos devidos, nos termos da lei ou de vínculo contratualmente assumido” contra o recorrido MUNICÍPIO X.
4. Em 31.01.2017 foi celebrado contrato de emprego - inserção + com inicio em 01.02.2017 e termo em 31.01.2018.
5. Mais tarde o recorrente recebeu do recorrido comunicação datada de 08.02.2017 com referência ao assunto “cessação e resolução” do referido contrato, com efeitos a partir do dia 07.02.2017, alegando faltas injustificadas durante cinco dias consecutivos ou dias interpolados.
6. A presente ação do recorrente versa, em linhas gerais, sobre o despedimento ilícito de que o mesmo foi alvo com todas as devidas e legais consequências, tais como indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como a reintegração do recorrente sem prejuízo da sua antiguidade e categoria e as remunerações que deixou de auferir até trânsito em julgado
7. Assim e aquando da análise da petição inicial pelo douto Tribunal Administrativo de Braga, no que concerne à questão da sua competência foi proferida sentença a declarar-se materialmente incompetente, absolvendo a recorrida.
8. Desta feita, nos termos do artigo 14º nº 2 do CPTA foi requerida a remessa do processo para o tribunal competente no prazo de 30 dias a contar do trânsito, sem qualquer oposição da recorrida.
9. Cumpre atender que, conforme bem explica a sentença do tribunal Administrativo de Braga, a competência do Tribunal é determinada pelo pedido feito pelo Autor, ora recorrente, e pelos fundamentos que invoca.
– cfr acórdão do Tribunal dos Conflitos nº 05/10, proferido em 09.06.2010 disponível em www.dgsi.pt), o qual refere que: “a determinação do tribunal materialmente competente, como este Tribunal de Conflitos, o Supremo Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Administrativo têm afirmado inúmeras vezes, deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, segundo a versão apresentada em juízo pelo autor, isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respetivos fundamentos — pedido e causa de pedir”.
10.É pois a estrutura da causa apresentada pela parte que recorre ao tribunal que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material.
11.Assim sendo e uma vez que o recorrente pretende a análise do seu despedimento ilícito, a reintegração do mesmo, a condenação da recorrida no pagamento das retribuições desde a data do despedimento ilícito até trânsito em julgado e indemnização por danos não patrimoniais, não ficam dúvidas, quando analisada a questão, salvo melhor e diverso entendimento, que o tribunal competente é então o Tribunal de Trabalho.
12.Assim e apesar do contrato celebrado entre o recorrente e a recorrida tratar-se de contrato de emprego – inserção +, a verdade é que, conforme dita a jurisprudência do Tribunal dos conflitos, a competência pertence aos tribunais judiciais.
13.Pois que se do contrato celebrado entre as partes decorre a existência de uma relação de trabalho subordinado (o Município enquanto destinatário da atividade prosseguida pelo trabalhador define e enquadra o trabalho a prestar e controla a sua prestação efetiva), sendo que se trata de uma relação atípica, com componentes retributivas e com uma dimensão de precaridade, como bem sublinha a sentença do Tribunal Administrativo de Braga.
14.Sendo o recorrido o destinatário do trabalho em causa, que enquadra e que dirige, assumindo igualmente a parte da contrapartida devida pelo trabalho prestado.
15. Pelo que não se pode considerar as funções prestadas pelo recorrente como “funções públicas”.
16.DESTA FORMA, e uma vez que o artigo 212º nº 3 da Constituição da República Portuguesa dispõe que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativa e fiscais.
17.Sendo assim da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes de vínculo de emprego público.
18.Destarte, emprego público é aquele pelo qual uma pessoa singular presta a sua atividade a um empregador público, de forma subordinada e mediante remuneração, revestido as modalidades de contrato de trabalho em funções públicas, nomeação e comissão de serviço.
19.Encontrando-se excluídos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (artigo 4.º n.º 4 al. b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, com a redação conferida pelo Decreto-Lei 214-G/2015, de 02 de outubro) a “ apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.
20.Repare-se deste modo, com bastante detalhe, no acórdão proferido em 19.10.2017 processo 015/17 pelo Tribunal dos Conflitos, na medida que o mesmo, embora trate de um acidente de trabalho, em muito se vê espelhada a presente situação, tendo por analogia aplicabilidade e sendo a final atribuída a competência aos Tribunais Judiciais.
21.Em face do exposto, entendeu o tribunal administrativo de Braga que embora o contrato “Contrato de Emprego – Inserção +”, não configure um contrato de trabalho, do mesmo decorre uma relação de trabalho subordinado entre o Autor e a Entidade Demandada, relação esta que fundamenta os pedidos formulados pelo Autor no presente litígio, aliás, pedidos típicos de litígios decorrentes de contrato de trabalho.
22.Sendo ainda, de acordo com o disposto no artigo 211.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Do mesmo modo, o artigo 64.º do Código de Processo Civil (CPC) prevê que são da competência dos Tribunais Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
23.Uma vez que os tribunais judiciais gozam de competência genérica ou não discriminada, o que significa que são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, enquanto os tribunais administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas.
24.Considerando-se por isso competente o Tribunal de Trabalho. Posição que se perfilha.
25. Considerando-se, com todo o devido respeito por entendimento diverso, ser o TRIBUNAL DE TRABALHO o tribunal competente.»
O R. apresentou resposta ao recurso do A., pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos nesta Relação, o Senhor Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Vistos os autos pelas Exmas. Adjuntas, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a única questão que se coloca a este tribunal é a de saber se o juízo do trabalho tem competência para conhecer da acção em apreço.

3. Fundamentação de facto

A factualidade relevante é a decorrente do Relatório supra.

4. Apreciação do recurso

Antes de mais, cabe referir que a questão em apreço é em tudo semelhante à que constituiu objecto do Acórdão desta Relação de 19 de Março de 2020, proferido no processo n.º 2953/17.0T8BCL.G1 (disponível em www.dgsi.pt), tendo as ora Relatora e 1.ª Adjunta aí intervindo como 1.ª e 2.ª Adjuntas, respectivamente, pelo que a resposta à mesma não pode deixar de ser similar.

Estabelece a Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, no que ao presente caso pode interessar:

Artigo 126.º
Competência cível
1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:
(…)
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
(…)
f) Das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho;
g) Das questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio;
(…)

Refere-se na decisão recorrida:

«Importa, pois, aferir se a relação contratual que é invocada nestes autos pode ser considerada uma relação de trabalho subordinado, uma relação equiparada a um contrato de trabalho ou um contrato de aprendizagem ou tirocínio.
A relação contratual invocada consubstanciou-se na celebração dos contratos cuja cópia está junta a fls 8-10 e 11-13, denominados “Contrato Emprego-Inserção+”, contratos esses que, como é referido no próprio documento, foram celebrados no âmbito da Medida Contrato Emprego-Inserção+, destinado a desempregados beneficiários do Rendimento Social de Inserção e outros desempregados, nos termos do estipulado pela Portaria nº 128/2009, de 30 de Janeiro (posteriormente alterada, tendo sido alterada e republicada pela Portaria nº 20-B/2014, de 30 de Janeiro), regulamentada pelo Despacho nº 1573-A/2014, de 30 de Janeiro.
Nos termos do artº 1º da Portaria vinda de referir, os contratos de Emprego-Inserção destinam-se à realização de “trabalho socialmente necessário”, tendo como objetivos, nos termos do artº 2º, promover a empregabilidade de pessoas em situação de desemprego, preservando e melhorando as suas competências socioprofissionais através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho, fomentar o contacto dos desempregados com outros trabalhadores e atividades, evitando o risco do seu isolamento, desmotivação e marginalização, e satisfazer necessidades sociais ou coletivas, em particular ao nível local ou regional.
Podem ser beneficiários destes contratos desempregados beneficiários do rendimento social de inserção, sendo a seleção dos beneficiários feita pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. (arts. 5.º-A, n.º 2 e 6.º). O contrato tem a duração máxima de 12 meses, com ou sem renovação (art.º 8.º, n.º 3), e durante a execução do mesmo o beneficiário aufere uma “bolsa de ocupação mensal” de montante correspondente ao valor do indexante dos apoios sociais, paga pela entidade promotora mas comparticipada pelo IEFP, I. P. (art.º 13.º, n.os 3 e 4).
Ora, este enquadramento legal do contrato celebrado entre o autor e o MUNICÍPIO X não pode deixar margem para dúvidas quanto a não estarmos perante uma relação de trabalho, equiparada a tal ou de aprendizagem ou tirocínio. Os contratos de Emprego-Inserção+ destinam-se a desempregados, que não deixam de o ser por força do desempenho de funções ao abrigo daqueles contratos. De tal forma assim é que o artº 10º da Portaria é claro ao estatuir que “durante o período de exercício das atividades integradas num projeto de trabalho socialmente necessário, o desempregado subsidiado é abrangido pelo regime jurídico de proteção no desemprego”. Nenhum sentido faria que o legislador considerasse aquele contrato como sendo fonte de uma relação laboral e continuasse a assegurar a proteção no desemprego. Por outro lado, no próprio contrato celebrado entre as partes destes autos (cláusula 5.ª, n.º 6) se prevê expressamente que o aqui autor pudesse ter de faltar por ter sido convocado pelo IEFP, I.P. “tendo em vista a obtenção de emprego ou a frequência de ações de formação profissional”, o que claramente demonstra que este contrato não é de trabalho, pois durante a sua execução continuava o aqui autor adstrito ao cumprimento das obrigações tendentes à obtenção de emprego. Por isso, é claro que não se pretende com os contratos aqui em apreço constituir qualquer relação laboral em que o beneficiário passe a estar na dependência jurídica ou económica da entidade promotora, mas apenas proporcionar aos desempregados a melhoria das suas competências socioprofissionais, através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho, o fomento do contacto com outros trabalhadores e atividades, evitando o risco do seu isolamento, desmotivação e marginalização, e a satisfação de necessidades sociais ou coletivas. Não se trata, pois, de qualquer relação laboral ou sequer que a ela possa ser equiparada.
Por outro lado, o contrato de aprendizagem ou tirocínio visa a aquisição pelo aprendiz de conhecimentos técnicos que o habilitem a desempenhar as funções aprendidas num momento posterior, ao abrigo de um contrato de trabalho. Tal tipo de contratos pressupõe a perspetiva de eventual contratação posterior para o cargo que se está a desempenhar, o que no caso que nos ocupa não se verifica. Aqui estamos perante o desempenho de funções socialmente necessárias, que podem não ter qualquer relação com o emprego que o beneficiário venha eventualmente a conseguir na sequência das diligências levadas a cabo pelo IEFP, I.P., e que não têm de implicar a aquisição de quaisquer conhecimentos por parte do beneficiário. Não se vê, portanto, de que modo possa enquadrar-se a relação contratual trazida a juízo pelas partes como um contrato de aprendizagem ou tirocínio.
Do que vem de ser dito resulta, pois, que o contrato celebrado entre as partes destes autos não é fonte de qualquer relação jurídico-laboral ou de emprego. No mesmo sentido se decidiu nos acórdãos da Relação de Guimarães de 26/02/2015 e da Relação de Évora de 04/12/2014 e 05/11/2015 (disponíveis em www.dgsi.pt, com os n.os de processo, respetivamente: 243/11.1TTBCL.G1, 294/13.1TTEVR.E1 e 503/13.7T2SNS-A.E1).
Não se desconhece o que vem sendo decidido pelo Tribunal de Conflitos, nomeadamente nos acórdãos proferidos em 25/01/2018, 31/01/2019 e 28/02/2019 (disponíveis em www.dgsi.pt, com os n.os de processo, respetivamente: 053/17, 040/18 e 042/18) e o que, na sequência de tais decisões e para elas remetendo, decidiu a Relação do Porto no acórdão de 10/07/2019 (idem, com o n.º de processo: 1942/18.2T8VNG.P1). Contudo, e salvo sempre o devido respeito, os argumentos ali expendidos não conseguem afastar o que acima se disse quanto às características do contrato aqui em apreço, que não se vê de que modo possam ser enquadradas numa relação de emprego e muito menos numa “relação laboral sui-generis”, conforme se afirma no último acórdão citado. Há elementos (legais e contratuais) que claramente apontam para a inexistência de características essenciais da relação laboral no tipo contratual aqui em apreço, conforme acima se disse. Quanto à análise feita pelo Tribunal de Conflitos, não há dúvidas (e nessa parte se concorda com tais decisões) quanto a não estarmos perante uma relação de emprego público que determine a competência dos tribunais administrativos. Isso não significa, porém, que se possa automaticamente concluir pela existência de uma relação de emprego privado. O que há é – salvo sempre o devido respeito por melhor entendimento – uma relação contratual que não é subsumível a uma relação laboral (seja de emprego público ou privado) e, nessa medida, a competência para a sua apreciação cabe na competência residual da jurisdição cível.»
A competência material dos tribunais deve aferir-se em função da relação material controvertida tal como configurada pelo autor na petição inicial, e, assim, conforme referido no citado Acórdão desta Relação de 19 de Março de 2020, não obstante a posição do tribunal de conflitos, mantemos que o entendimento correcto é o perfilhado no Acórdão desta Relação de 26 de Fevereiro de 2015, proferido no processo n.º 243/11.1TTBCL.G1 (disponível em www.dgsi.pt), invocado na decisão recorrida.

Ambos os aludidos arestos desta Relação invocaram em seu abono, desde logo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Novembro de 2001, proferido no processo n.º 01S888 (disponível em www.dgsi.pt), em que se refere:

“Estamos antes perante uma relação de segurança social, especificamente de ação social, fundamentalmente estabelecida entre os serviços públicos competentes (IEFP e Centros de Emprego) e os beneficiários, intervindo as "entidades promotoras" das atividades ocupacionais como colaboradoras da Administração na execução dessas finalidades de solidariedade e segurança social.
Como se viu, é expressamente proibido que a atividade ocupacional consista no preenchimento de postos de trabalho existentes, não podendo as entidades promotoras que se candidatam à execução de projetos de atividades ocupacionais preencher postos de trabalho nem sequer exigir aos trabalhadores o desempenho de tarefas que não se integrem nos projetos aprovados. Por sua vez, os trabalhadores em situação de comprovada carência económica que prestem uma atividade ocupacional não auferem uma retribuição, tendo apenas direito a um subsídio mensal de montante igual ao valor do salário mínimo nacional (isto é, completamente independente do tipo e natureza do trabalho executado, o que demonstra que não se pretendeu remunerar essa atividade mas antes garantir ao beneficiário "um rendimento de subsistência", como se refere no preâmbulo da Portaria), que, no caso concreto, é comparticipado a 100% pelo IEFP. A entidade promotora da atividade apenas suporta as despesas de transporte, alimentação e seguro de acidentes (acidentes pessoais, que não acidentes de trabalho -cfr. n.º 6.º, n.º 2, alínea a)). É extensa e claramente dominante a intervenção do IEFP e dos Centros de Emprego, quer na fiscalização da execução da atividade, visando impedir o preenchimento de postos de trabalho, quer mesmo na cessação dos acordos, pois grande parte das causas dessa cessação resulta de incumprimento de obrigações dos trabalhadores para com os serviços oficiais de segurança social, que não do incumprimento de obrigações dos trabalhadores para com as entidades promotoras das atividades.”
Em conformidade, é de entender que a relação material controvertida que sustenta a pretensão do A., tal como ele próprio a configura na petição inicial, não pode ser considerada como tendo natureza laboral ou equiparada, como decorre das suas características, nos termos da Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, republicada pela Portaria n.º 20-B/2014, de 30 de Janeiro, regulamentada pelo Despacho n.º 1573-A/2014, de 30 de Janeiro.

Assim:

- a entidade promotora do trabalho não escolhe o beneficiário, sendo o IEFP, I.P. quem o selecciona, embora em conjugação com aquela, de acordo com os seguintes critérios: a) Pessoa com deficiências e incapacidades; b) Desempregado de longa duração; c) Desempregado com idade igual ou superior a 45 anos de idade; d) Ex-recluso ou pessoa que cumpra pena em regime aberto voltado para o exterior ou outra medida judicial não privativa de liberdade;
- são expressamente indicadas as actividades a que se destina o «Contrato emprego-inserção» e o «Contrato emprego-inserção+», tratando-se necessariamente de actividades de natureza social ou colectiva, concretamente “actividades que satisfaçam necessidades sociais ou colectivas temporárias”, nos dizeres do art. 2.º;
- a entidade promotora não pode encarregar o “beneficiário” de uma qualquer tarefa relativa à sua actividade, antes lhe sendo vedado fazê-lo. Como refere o art. 5.º, n.º 1, al. b), “não visam a ocupação de postos de trabalho”, e o n.º 7 do art. 9.º, “a entidade promotora não pode exigir ao beneficiário o exercício de actividades não previstas no projecto”;
- o contrato emprego-inserção tem uma duração máxima de 12 meses e não pode ser celebrado por um período de duração superior ao termo do período previsto para a concessão da prestação de desemprego, cessando logo que o beneficiário obtenha emprego, recuse emprego ou perca o direito às prestações de desemprego (ou RSI);
- o art. 10.º, sob a epigrafe «Regime jurídico de protecção no desemprego», estipula que “durante o período de exercício das actividades integradas num projecto de trabalho socialmente necessário, o desempregado subsidiado é abrangido pelo regime jurídico de protecção no desemprego”;
- o complemento além do subsídio normal é qualificado como “bolsa complementar” ou “bolsa de ocupação mensal”, a qual, embora seja paga pelas entidades promotoras, e, no caso de entidades privadas sem fins lucrativos, comparticipada pelo IEFP, I.P. em 50 %, nunca é referida como retribuição ou equiparada a tal.

As obrigações referidas no art. 9.º e os poderes de direcção da entidade promotora visam a boa execução do contrato, tendo em vista a prossecução dos objectivos da medida, mas não têm o condão de alterar a natureza do contrato. Pode até dizer-se que se se tratasse de contrato com contornos laborais, a remissão efectuada no art. 9.º para “o regime da duração e horário de trabalho, descansos diário e semanal, feriados, faltas e segurança e saúde no trabalho aplicável à generalidade dos trabalhadores da entidade promotora” volver-se-ia numa redundância. Já quanto a férias nada se refere, aludindo-se ao direito a “um período de dispensa até 30 dias consecutivos”, a que o “desempregado subsidiado pode renunciar”, ao contrário do que se verifica no contrato de trabalho.

Em suma, o «Contrato emprego-inserção» ou o «Contrato emprego-inserção+» inscreve-se nas medidas de protecção social da eventualidade de desemprego dos trabalhadores por conta de outrem, como resulta do DL n.º 220/2006, de 3 de Novembro, ao abrigo do qual foi emitida a citada Portaria. Refere-se no preâmbulo daquele diploma que se “(…) impõe um aumento dos esforços no sentido da activação rápida dos trabalhadores que temporariamente se encontrem em situação de desemprego, pois o ciclo de deterioração das qualificações é hoje substancialmente mais acelerado. Considerando que as medidas passivas de emprego devem ter a duração do período de tempo estritamente necessário para que seja possível o retorno ao mercado de trabalho, são previstos mecanismos de activação dos beneficiários, reforçando-se para o efeito a acção do serviço público de emprego.”
Por seu turno, a Portaria, no seu preâmbulo, alude a que assume “(…) particular valor estratégico a revisão da regulamentação das medidas activas de emprego que, em complementaridade aos instrumentos de protecção social, procuram melhorar os níveis de empregabilidade e estimular a reinserção no mercado de trabalho dos trabalhadores que se encontram em situação de desemprego.
O contrato emprego-inserção e o contrato emprego-inserção+ integram-se no conjunto destas medidas, considerando que, ao permitirem aos desempregados o exercício de actividades socialmente úteis, promovem a melhoria das suas competências socioprofissionais e o contacto com o mercado de trabalho”. Trata-se de “apoios públicos ao desenvolvimento de trabalho socialmente necessário por parte de desempregados, enquanto estes aguardam por uma alternativa de emprego ou de formação profissional.”
Ou seja, os contratos em apreço visam a protecção social no desemprego, constituindo uma medida activa, a par das medidas passivas (subsidiação), tal como resulta das normas dos arts. 1.º, n.º 2, 2.º, 4.º, n.º 1, al. e), 6.º, al. a), 7.º e 41.º, als. b) e d) do referido DL n.º 220/2006. Note-se a diferenciação feita no art. 11.º, als. b) e c) deste diploma entre “emprego conveniente “e “aceitação de trabalho socialmente necessário”. Relativamente a este, refere o art. 15.º: “Considera-se trabalho socialmente necessário o que deva ser desenvolvido no âmbito de programas ocupacionais cujo regime é regulado em diploma próprio, organizados por entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, em benefício da colectividade e por razões de necessidade social ou colectiva, para o qual os titulares das prestações tenham capacidade e não recusem com base em motivos atendíveis invocados.”
A Lei n.º 13/2003, de 21/05, de modo semelhante, refere na al. c) do n.º 6 do art. 11.º, relativamente ao contrato de inserção, a “participação em programas de ocupação ou outros de carácter temporário que favoreçam a inserção no mercado de trabalho ou satisfaçam necessidades sociais, comunitárias ou ambientais e que normalmente não seriam desenvolvidos no âmbito do trabalho organizado”.

De todo o exposto resulta que o “trabalho socialmente necessário” tem um enquadramento jurídico próprio, no âmbito da protecção social no desemprego, que nada tem a ver com o estabelecido no Código do Trabalho para o contrato de trabalho ou equiparado, cujas noções resultam dos arts. 10.º e 11.º.

Retornando à situação dos autos, constata-se que o A. alegou, em síntese:

- o A. e o R. celebraram contratos de emprego-inserção + em 31/09/2015 e 31/01/2017, no âmbito de medida cujos destinatários são os desempregados beneficiários do rendimento de inserção e outros desempregados elegíveis, para prestar trabalho socialmente necessário na área de limpeza e conservação dos espaços públicos;
- o A. recebeu comunicação do R. datada de 8/02/2017, a resolver o contrato de emprego-inserção + com efeitos a 7/02/2017, sem qualquer outra fundamentação que não fosse a invocação da b) do n.º 4 da cláusula 7.ª do contrato, violando, assim, o n.º 5 da mesma cláusula, que esclarece que a resolução deve indicar o motivo e observar a antecedência mínima de oito dias;
- o A. não faltou injustificadamente ao trabalho e limitou-se a aguardar indicações em casa, conforme lhe ordenou o R..

Posto isto, conclui-se que, não obstante o A. pretenda retirar da conduta do R. o direito a reparação nos termos previstos no Código do Trabalho – sendo certo que ao tribunal competente caberá, sem sujeição a tal pretensão, indagar, aplicar e interpretar o direito –, alicerçou-o num «contrato emprego-inserção+», cuja denominação, qualificação e subsunção ao acima analisado regime não colocou em causa, nada tendo alegado em contrário, nem de facto, nem de direito, pelo que é por demais evidente que o conhecimento da questão não cabe na competência dos juízos do trabalho.

Como refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu Parecer, «(…) anuindo-se ao entendimento que vem sendo seguido nesta Relação - em desconformidade com o do Tribunal de Conflitos, no que se refere a acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores desempregados, na execução de contratos de emprego-inserção - atenta a causa de pedir e pedidos formulados na p.i, somos de parecer que o tribunal do trabalho é materialmente incompetente para conhecer da acção proposta, tal como se decidiu no despacho recorrido, por não estar em questão matéria cível, prevista no art. 126º, nº1, alíneas b), f) e g), da LOSJ:

-emergente de relação de trabalho subordinado;
-emergente de contratos equiparados por lei aos de trabalho (art 10º, do CT);
-emergentes de contrato de aprendizagem ou tirocínio.»

É certo que, compulsado o art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, nos parece que a questão não cabe igualmente na competência daqueles tribunais, designadamente por também não estar em causa uma relação de emprego público, recaindo, consequentemente, na competência residual dos juízos cíveis (arts. 64.º e 65.º do Código de Processo Civil e 40.º, 117.º e 130.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).
Assim se entendeu também, aliás, na decisão recorrida, e é esse também o parecer do Senhor Procurador-Geral Adjunto junto desta instância.
Ao Supremo Tribunal de Justiça caberá decidir se assim é, nos termos dos arts. 101.º, n.º 1, 629.º, n.º 2, al. b) e 671.º, n.ºs 1 e 3 a contrario do Código de Processo Civil, no recurso que vier a ser interposto do presente Acórdão, se for o caso, podendo o A., em alternativa, usar da faculdade prevista no art. 99.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo vencido a final.
Em 25 de Junho de 2020

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso