Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3465/19.3T9VCT-D.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: RECURSO
FALTA DE CONDIÇÕES PARA RECORRER
ARGUIDO E ADVOGADO EM CAUSA PRÓPRIA
ARGUIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/15/2022
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: RECLAMAÇÃO ATENDIDA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Decisão Texto Integral:
I - Relatório
           
AA veio reclamar do despacho do Sr. Juíz da Comarca de Viana do Castelo – Juízo Local Criminal de Ponte de Lima, datado de 07.07.2022, que não lhe admitiu o recurso por si interposto, cujo conteúdo é o seguinte:

«Inconformado com a sentença condenatória proferida nos autos, veio o arguido dela interpor recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Fá-lo enquanto arguido, invocando a sua qualidade de Advogado e o pretenso direito de auto-representação.
Ora, conforme já se encontra explanado e decidido no despacho proferido a 01.10.2021, também nós, e aderindo na íntegra aos fundamentos aí explanados, entendemos que o arguido não pode representar-se a si próprio, estando-lhe vedada a interposição de recurso sem a intervenção da Il. Defensora nomeada.
Desse modo, por legalmente inadmissível, não se admite o recurso interposto e subscrito pelo arguido.
Notifique o arguido, Ministério Público e Defensora, sendo esta com cópia do requerimento de recurso apresentado pelo arguido, para os fins tidos por convenientes».

Segundo o reclamante o recurso deveria ter sido admitido, apresentando, para tanto e resumidamente, os seguintes fundamentos:
«O despacho reclamado é nulo de pleno direito, porquanto releva da aplicação, decisivamente, de normativo inconstitucional, a saber:
a) a norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP, interpretada no sentido de que o direito do arguido a constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor é antes o dever do arguido a constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor;
b) a norma da alínea do n.º 1 do artigo 64.º do CPP, interpretada no sentido de que a obrigatoriedade de assistência do defensor consiste na dispensa e supressão da actuação do próprio arguido;
c) a norma do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição Portuguesa, interpretada no sentido de que a mesma não assegura todas as garantias de defesa, designada e concretamente, a defesa propria persona, garantida pelo direito internacional e supranacional europeu;
d) a norma do n.º 1 do artigo 3.º da Directiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22-10-2013, interpretada no sentido de que o direito de acesso a um advogado em processo penal «de forma a permitir ao arguido exercer efectivamente os seus direitos de defesa» consiste na obrigação do arguido de ser representado e defendido por um advogado ou defensor sem direito à própria defesa;
e) a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º da Directiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22-10-2013, interpretada no sentido, revogatório, de que a mesma não garante ao arguido o direito de renunciar ao direito de acesso a um advogado».

Pede que se revogue o despacho reclamado e substituído por outro que ordene o seguimento do recurso interposto pelo arguido.

Decidindo:

As incidências fáctico-processuais a considerar são as constantes do Relatório I supra e ainda o seguinte:

1 - O reclamante foi condenado por sentença, na sua parte dispositiva, deste modo:
a) Condenar o arguido, AA, pela prática, como autor material, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos arts. 180º, nº1 e 184º, por referência ao art. 132º, nº2, al.l), todos do C.Penal, na pena de 05 (cinco) meses de prisão;
b) Tendo em conta a imagem global dos factos, afigura-se que a simples censura do facto e a ameaça de prisão serão suficientes para dissuadir o arguido da prática de futuros crimes, pelo que se decide substituir a pena de 05 (cinco) meses de prisão aplicada por uma pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz um montante total de €1.000,00 (mil euros) (cfr. art.º 45º do C.Penal);
c) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido por BB totalmente procedente, e consequentemente, condenar o demandado cível no pagamento da quantia de €2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença, e até integral pagamento».
*
Os fundamentos da presente reclamação alicerçam-se essencialmente no pressuposto de que deve ser atendida a reclamação por haver violação das subsequentes normas:
« a) a norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP, interpretada no sentido de que o direito do arguido a constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor é antes o dever do arguido a constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor;
b) a norma da alínea do n.º 1 do artigo 64.º do CPP, interpretada no sentido de que a obrigatoriedade de assistência do defensor consiste na dispensa e supressão da actuação do próprio arguido;
c) a norma do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição Portuguesa, interpretada no sentido de que a mesma não assegura todas as garantias de defesa, designada e concretamente, a defesa própria pessoa, garantida pelo direito internacional e supranacional europeu;
d) a norma do n.º 1 do artigo 3.º da Directiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22-10-2013, interpretada no sentido de que o direito de acesso a um advogado em processo penal «de forma a permitir ao arguido exercer efectivamente os seus direitos de defesa» consiste na obrigação do arguido de ser representado e defendido por um advogado ou defensor sem direito  à própria defesa;
e) a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º da Directiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22-10-2013, interpretada no sentido, revogatório, de que a mesma não garante ao arguido o direito de renunciar ao direito de acesso a um advogado».

Vejamos:
Como preceitua o artº 405º, nº 1, do Código de Processo Penal (CPP), a reclamação para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige destina-se apenas contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso.
Não visa conhecer do mérito do recurso.

No caso sub judice, a questão reclamanda para a rejeição do recurso (com base na falta das condições necessárias para o arguido recorrer) entronca directamente na questão preliminar imanente a tal recurso, qual seja a de auto-representação do arguido, sendo advogado, por não reunir as condições necessárias para se defender por si, sem ser assistido pelo respectivo defensor oficioso, estando em causa, desde logo, o exercício do direito (ou não) à renúncia de acesso a defensor.

É este estrito fundamento - de não admissibilidade de o arguido se ‘auto-representar’, renunciando ao direito de acesso a um defensor em processo penal - que alicerça ab initio quer a questão (prévia) no recurso interposto, quer o despacho reclamado, quer ainda a reclamação apresentada.
E este encadeamento vicioso não foi, aliás, ignorado pelo tribunal a quo, aquando da prolação do despacho sobre a reclamação, apresentada apenas pelo arguido em causa própria, abrindo a porta à sua admissibilidade.
Ora, não se ignorando - bem pelo contrário - a tendência maioritária quer da doutrina, quer da jurisprudência, designadamente de índole constitucional, no sentido de refutar essa ‘auto-representação’ do arguido-advogado em processo penal (ainda que não se descure também a posição oposta inerente ao voto de vencido do Exmº Cons. Guilherme da Fonseca no Acórdão do TC nº 578/2001, de 18.01.2001, Processo nº 58/2001 e também o clausulado no artº 9º da Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Outubro de 2013) – certo é que, no caso presente, tendo em vista esse estrito motivo de a possibilidade ou não de o arguido se fazer representar por si em processo penal (e afinal no pressuposto de lhe não assistir a renúncia ao direito de acesso a advogado em processo penal)  ter servido viciosamente de suporte para o indeferimento da pretensão do arguido de impugnação da decisão recorrida, tendemos a admitir a reclamação, já que et por cause tal fundamento constitui o cerne da questão prévia suscitada no próprio recurso interposto.
Em suma, em matéria desta natureza, relativa a direitos de defesa do arguido, importa não cercear a apreciação pelo tribunal ad quem de questão recursiva que constitui um dos fundamentos do recurso interposto, sendo a razão da rejeição deste precisamente a mesma que serviu de base à tramitação processual que desembocou na decisão recorrida.
Caso contrário, salvo melhor opinião, a reclamação não deixaria de configurar uma abordagem desta questão de mérito, extrapolando os contornos da previsão normativa ínsita ao artº 405º, nº 1, do CPP.
Traduzir-se-ia, assim, numa forma enviesada de se afastar o direito ao recurso, imiscuindo-se na decisão de mérito, pelo menos parcialmente.

Fica prejudicado o conhecimento das questões de inconstitucionalidade e de reenvio prejudicial suscitados.

Concluindo, atende-se a reclamação pelos motivos aduzidos.

III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, atende-se a reclamação apresentada, devendo o Tribunal de 1ª instância proferir despacho de admissão do recurso, se não houver outros fundamentos que obstem à admissibilidade dos mesmos.

Sem custas.
Guimarães, 15 de Novembro de 2022

O Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,

António Júlio Costa Sobrinho