Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7/17.9T8BRG.G1
Relator: MARIA DA CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora)

I - O contrato de transporte é um contrato de resultado, que apenas se mostra cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário, entendendo-se mesmo que é essa a obrigação essencial do transportador.

II - O contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada está sujeito a um regime próprio, a Convenção CMR, assinada em Genebra, em 19 de Maio de 1956, aprovada pelo Decreto-Lei n° 46.235, de 18 de Março de 1965, a qual regula, além do mais, a responsabilidade do transportador.

III - Não obstante terem as partes celebrado um contrato de transporte, pode suceder que as vicissitudes ocorridas na relação negocial estabelecida não respeitem ao transporte das mercadorias, enquanto tal.

IV - É o que ocorre com a não entrega da mercadoria na data e local convencionado, por motivo não relacionado com o transporte.

V - Sendo este incumprimento o facto jurídico de que emerge o direito da parte e fundamenta, portanto, a sua pretensão, o prazo de prescrição é o prazo geral de 20 anos previsto no artigo 309º do Código Civil, e não o prazo de prescrição estabelecido no artigo 32º da Convenção CMR.

VI - Do mesmo modo, o disposto nos arts. 19.º e 23.º, n.º5 da Convenção CMR que acolhe uma limitação da responsabilidade do transportador, decorrente do atraso na entrega da mercadoria, estabelecendo um desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos, não é aplicável.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

(…) com sede na Rua (…), Parque Industrial (...), em (…), intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra (…) com sede no Parque Comercial(..), peticionando, a final, a condenação da R. no pagamento à A. da quantia de €14.856,93, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos.
Alega, para fundamentar a sua pretensão, que celebrou contrato de transporte de mercadorias com a R., mediante o qual esta se obrigou, contra o pagamento de um preço, a entregar certas mercadorias e bens da A. em Espanha, num local onde se iria realizar uma feira em que a A. estava inscrita para participar. Alega, ainda, que a R. não entregou os bens no local acordado, com o que lhe causou danos patrimoniais e não patrimoniais.
Citada, ofereceu a R. contestação, por exceção e impugnação.
Além de outras exceções, arguiu a R. a prescrição do direito da A., por ter transcorrido mais de um ano desde a ocorrência dos factos que, segundo a A., deram origem a danos.
Impugna os danos alegados, sustentando a inadmissibilidade legal de indemnização superior ao valor do transporte, e alega a existência de contrato de seguro, mediante o qual transferiu para a X – Companhia de Seguros, SA a responsabilidade pela perda total/parcial de mercadoria, atrasos e danos nas mesmas, causados no exercício da sua actividade de transportador de mercadorias. Conclui peticionando a improcedência da ação e a intervenção provocada da referida companhia de seguros, principal ou acessória.
Foi admitida a intervenção principal de X – Companhia de Seguros, SA. Que ofereceu articulado próprio.
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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente quanto à interveniente (…) – Companhia de Seguros, SA., e julgou parcialmente procedente a ação relativamente à R. (..) condenando-a pagar à A. (...), Lda a quantia de € 6.356,93 (seis mil trezentos e cinquenta e seis euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros, à taxa prevista para as dívidas civis, vencidos desde 14/Março/2016 e vincendos até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se a R. do demais peticionado.
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Inconformada com a sentença veio a Ré interpor recurso terminando com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

1. Salvo o devido respeito, não pode o Recorrente concordar com o teor da decisão em causa, porquanto efetuou um errado julgamento sobre a matéria de facto, bem como se afasta do melhor enquadramento jurídico.

DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO:

2. Sob o ponto d) da matéria de facto provada, o Tribunal a quo julgou provado que, no contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada as partes convencionaram que a mercadoria transportada deveria ser entregue, no destinatário, impreterivelmente, no dia 01 de Outubro de 2015. Entende a Recorrente que esta decisão foi incorretamente julgada, pelo que aqui a impugna.
3. Lendo e relendo a prova documental junta aos autos não resulta da mesma nenhum documento, cujo respetivo teor permita a conclusão de que as partes (transportador e expedidor) convencionaram um prazo, ou data fixa para a entrega da mercadoria, sob pena de a Recorrida perder o interesse na execução do serviço.
4. Em concreto, não resulta da guia de transporte que titula o serviço de transporte discutido nos autos – junta aos autos com a contestação da Recorrente, sob o doc. n.º 8 - o estabelecimento de um prazo, dentro do qual deveria ser efectuado o transporte. Caso a Recorrente se tivesse obrigado, perante a Recorrida, a executar o serviço de transporte num determinado prazo, essa obrigação deveria ter ficado exarada na respetiva guia de transporte, tal como determina o disposto na al. f) do n.º 2 do art. 6.º da Convenção CMR.
5. A prova produzido nos autos e, em concreto, a prova invocada na douta sentença sob recurso para fundamentar a sua decisão permite concluir que, no contrato de transporte aqui discutido, não foi convencionado, entre Recorrente e Recorrida, um prazo dentro do qual deveria efetuar-se o transporte, nem que a mercadoria transportada deveria impreterivelmente ser entregue em Bilbao no dia 01.10.2015.
6. Assim, por um lado, quer a fatura que titula o serviço de transporte – junta aos autos com a contestação sob o doc. n.º 4 – quer a referida nota de crédito – junta aos autos com a PI, sob o doc. n.º 1 – não fazem menção a uma qualquer obrigação do transportador (aqui Recorrente), quanto ao prazo de entrega.
7. Por outro lado, a testemunha M. C., no seu depoimento, não fez qualquer menção aos termos em que a Recorrida contratualizou, junto da Recorrente, o contrato de transporte de mercadorias dos autos, designadamente os seus contornos, pressupostos e prazos estabelecidos. – cfr. depoimento da testemunha gravado no sistema “H@bilus Media Studio” no dia 24/04/2018; inicio às 14:07:23; termo às 14:44:56. Sobre esta concreta matéria, a testemunha L. G. referiu que, no âmbito do contrato dos autos, a Recorrida não requereu absolutamente nada de diferente - cfr. declarações da testemunha aos 01:45m até aos 03:05m; aos 21:36m até aos 21:57m in depoimento gravado através no sistema “H@bilus Media Studio” no dia 24.04.2018; inicio às 14:45:27 h; termo às 15:11:25.
8. Ao abrigo do supra exposto deverá o Tribunal ad quem proferir uma decisão diametralmente oposta àquela que foi proferida em primeira instância, no sentido de julgar como não provado o ponto d) do elenco da matéria de facto provada.
9. Sob o ponto v) do elenco da matéria de facto provada, o Tribunal a quo julgou provado que “a falta de participação na feira implicou que a Autora não realizou, de vendas na mesma, mercadorias do valor de € 4.000,00.” Esta decisão deve merecer censura pelo Julgador ad quem, no sentido de julgar tal facto como não provado, porquanto não tem suporte na prova produzida nos autos.
10. A Recorrida não teve o cuidado de carrear para os autos qualquer prova documental da qual se possa concluir e determinar que, no âmbito daquele evento, existia uma expetativa real de efetuar vendas num valor de € 4.000,00 (quatro mil euros).
11. Tal matéria, para ser julgada provada pelo M.mo Julgador a quo, deveria estar devidamente sustentada com documentação que permitisse determinar uma base na série histórica, constituída pelos valores de faturação que a Recorrida teve com a participação na referida feira realizada em Bilbao, em anos anteriores, ou em eventos/ feiras de dimensão e mercado semelhantes, agregada, portanto, a elementos contabilísticos da Recorrida, seja pela demonstração do valor da faturação que esta obteve, naquele evento ou em eventos similares, nos anos anteriores; seja pela verificação de estudos de mercado que permitissem projetar um valor de faturação resultante da participação na feira.
12. Por outro lado, a prova testemunhal realizada sobre esta matéria em concreto não permite quantificar as denominadas “perdas com as vendas”, sendo, aliás, contraditória com a própria alegação da Autora. Com efeito, as declarações da testemunha M. C., por um lado, contradizem a própria alegação da Recorrida relativa a esta questão e, por outro lado, evidenciam que, quer a Recorrida, quer a testemunha, limitaram-se a indicar um valor, a título de vendas não realizadas, suportado por meras conjeturas, sem assentar numa base fáctica realística.
13. Mais relevante, a própria testemunha reconhece que “não tem ideia”, “não sabe exatamente”, qual o volume de vendas expectável com a participação da feira de Bilbao; sabe apenas o volume de vendas obtido pela Autora, pela participação de outras feiras realizadas em Madrid, Barcelona, Sevilha e Valencia - Cfr. depoimento da testemunha aos 18:40m até 19:42 m; aos 21:46m até 22:10 m; aos 32:12m até 34:23 m, gravado no sistema “H@bilus Media Studio” no dia 24.04.2018; inicio às 14:07:23; termo às 14:44:56.
14. Como se sabe, as cidades em cima indicadas (Madrid, Barcelona, Sevilha e Valencia) têm um substancial maior número de habitantes. O recurso a critérios de probabilidade permite a conclusão de que uma feira do ramo de atividade a que se dedica a Autora, em Madrid ou Barcelona terá necessariamente mais visitantes e, logo, mais clientes do que uma feira realizada em Bilbao.
15. Do exposto resulta que todo o raciocínio da testemunha M. C. que a levou a concluir que o volume de vendas expectável seria calculável entre um valor de € 6.000,00 a € 8.000,00 está manifestamente distorcido e não assenta numa base fáctica realista, porquanto assenta sobre cenários que não são, entre si, comparáveis.
16. Em sentido contrário, a sentença a quo evidencia erro de julgamento na matéria de facto ao julgar como não provado a seguinte matéria: 8) O destinatário colocou a sua assinatura, na respetiva guia de transporte, sem, na mesma, apor qualquer reserva;
12) A mercadoria que não chegou ao destino no referido dia 01.10.2015 foi entregue pela Ré à Autora, por solicitação expressa desta em 15.10.2015.
17. A decisão, proferida pelo Tribunal a quo de julgar não provado que o destinatário colocou a sua assinatura, na respetiva guia de transporte, sem, na mesma, apor qualquer reserva deve merecer censura pelo Julgador ad quem, porquanto resulta de uma incorreta interpretação do documento junto com a contestação sob o n.º 8 (guia de transporte que titula o serviço de transporte internacional de mercadorias descrito nos autos.
18. Com efeito, do teor da referida guia de transporte resulta que, no local destinado à aposição da assinatura do destinatário, foi colocado o carimbo da entidade que organizou a referida feira de Bilbao, tendo, ainda sido colocada uma menção com a data da aposição do carimbo (01.10.2015). Mais resulta do referido documento que não foi exarada qualquer reserva pelo destinatário, no caso a entidade organizadora da feira.
19. Acresce que, tal como refere a douta sentença sob recurso, a testemunha L. G., sobre esta concreta matéria, confrontado com o teor do referido doc. n.º 8, junto com a contestação da Recorrida, referiu que o respetivo teor o levou a concluir que a mercadoria transportada tinha sido entregue em 01.10.2015, por ali ter sido aposto a data de entrega e o carimbo do destinatário - cfr. declarações da testemunha L. G. aos 03:18m até aos 07:37m in depoimento gravado através no sistema “H@bilus Media Studio” no dia 24.04.2018; inicio às 14:45:27 h; termo às 15:11:25.
20. Em face das declarações, em cima revisitadas, da testemunha L. G. e do teor da guia de transporte que titula o serviço de transporte descrito nos autos, junto com a contestação da Recorrente, sob o doc. n.º 8 deveria o Tribunal a quo julgar provado que o destinatário da mercadoria transportada colocou a sua assinatura, na guia de transporte que titula o serviço de transporte dos autos, sem, na mesma, apor qualquer reserva.
21. Em matéria de erro na apreciação da prova, importa, ainda verificar que o Tribunal a quo, em face da prova produzida, deveria julgar provado que a mercadoria que não chegou ao destino no referido dia 01.10.2015 foi entregue pela Ré à Autora, por solicitação expressa desta em 15.10.2015.
22. Com efeito, a guia de transporte n.º …-D, junta, sob o doc. n.º 1, com o requerimento da Recorrente, datado de 01.03.2017, titula um transporte expedido de Bilbao, Espanha com destino às instalações da Recorrida. Do teor deste documento extrai-se que a mercadoria transportada no serviço de transporte descrito nos autos foi, posteriormente, devolvida à Recorrida que a recebeu e a aceitou sem reservas, em 15.10.2015.
23. O teor deste referido documento corrobora, ainda as declarações das testemunhas L. G. e M. S. que, de forma clara, demonstrando um perfeito e direto conhecimento dos factos e sem que o teor das respetivas declarações fosse contrariado por qualquer outra prova, explicaram ao Tribunal que o processo de devolução da mercadoria foi previamente combinado com a Recorrida – cfr. declarações da testemunha L. G. aos 14:35m até aos 17:13m; aos 22:58m até aos 23:55m in depoimento gravado através no sistema “H@bilus Media Studio” no dia 24.04.2018; inicio às 14:45:27 h; termo às 15:11:25 e declarações da testemunha M. S. aos 04:12m até aos 05:20m in depoimento gravado através no sistema “H@bilus Media Studio” no dia 24.04.2018; inicio às 15:19:48 h; termo às 15:26:50.
24. A própria sentença sob recurso, em sede de explanação do direito aplicável refere que a Recorrente provou que a mercadoria foi restituída à Recorrida em Outubro de 2015. No entanto, não transpôs este facto para a matéria de facto julgada provada, tendo, ao invés, o integrado da matéria de facto não provada.
25. A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo é, portanto, nesta parte ambígua, o que, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 615.º configura uma das causas de nulidade da sentença.
26. Atento o acima exposto quanto à prova produzida, impõe-se, salvo melhor entendimento, que o Tribunal ad quem altere a matéria de facto julgada provada, o que, em conjunto com a demais factualidade provada impõe conclusão distinta daquela a que chegou o Tribunal a quo, devendo-se julgar improcedente do pedido da Recorrente.

A APLICAÇÃO DO DIREITO:

a) O Regime Legal Aplicável ao Contrato Celebrado entre as Partes:

27. Atentas as concretas relações jurídicas estabelecidas entre as partes, está em causa o transporte de mercadorias de Portugal para um país diferente (Espanha), por estrada e mediante o pagamento de um preço, por via do qual a Recorrente, na qualidade de transportadora, assumiu uma obrigação de resultado: entregar a respetiva mercadoria da Recorrida no local previamente, por esta, estabelecido.
28. A Convenção CMR expressamente refere – e disciplina os termos dessa responsabilidade que o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega (cfr. arts. 17º a 29.º da Convenção).
29. A sentença sob recurso viola o disposto no art. 1.º da Convenção CMR que expressamente refere que “a presente Convenção aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, e independentemente do domicílio e nacionalidade das partes” e o disposto nos arts. 19.º e 23.º, n.º5 da Convenção CMR que acolhe uma limitação da responsabilidade do transportador, decorrente do atraso na entrega da mercadoria, estabelecendo um desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos.
30. Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.05.2013 (Disponível in www.dgsi.pt .proc. n.º 693/10.0TBVRL.P1), em que é Relator Aristides Rodrigues de Almeida, o qual decide que o direito de indemnização pela entrega da mercadoria fora de prazo convencionado, no âmbito de um contrato de transporte internacional rodoviário encontra-se regulado pelas normas contidas na Convenção CMR (no caso daquele Acórdão discute-se a aplicabilidade do regime de prescrição previsto no art. 32.º da Convenção). Faz-se notar que a factualidade discutida naquele Acórdão de 02.05.2013 é muito próxima da discutida no presente processo: i) naquele processo, tal como neste, estava em causa a execução de um transporte de mercadorias internacional por estrada, cuja mercadoria deveria ser entregue num evento de promoção dos produtos do expedidor; ii) naquele processo, tal como neste, ocorreu um atraso da mercadoria, o que determinou que o expedidor não pudesse participar no evento, nas datas previamente agendadas; iii) naquele processo, ao contrário do aqui decidido, o regime da responsabilidade do transportador foi julgado à luz do disposto na Convenção CMR.

b) A Prescrição do Direito da Recorrida:

31. O art. 32..º da Convenção CMR rege especificamente sobre a prescrição do direito de indemnização sobre o transportador e que, portanto, na parte prevista por esta afasta, a aplicação das normas internas relativas à prescrição, designadamente aquelas que estabelecem prazos distintos.
32. O art. 32.º do CMR estabelece dois prazos diferentes de prescrição: nos casos de conduta dolosa ou de falta que a lei da jurisdição a que se recorreu considere equivalente ao dolo, o prazo de prescrição é de três anos. Nos restantes casos, o prazo de prescrição é de apenas um ano. Uma vez que nos autos, em momento algum, foi alegado que ao não entregar a mercadoria no prazo fixado a Recorrente atuou dolosamente ou cometeu qualquer falta específica que possa ser equiparada a um comportamento doloso, segue-se que o direito da autora se encontrava sujeito a um prazo de prescrição de um ano, com início de contagem, nos casos de mora na entrega, como aqui sucede, no dia imediatamente a seguir ao dia em que a mercadoria foi entregue (16.10.2015).
33. O n.º 2 do referido dispositivo legal dispõe que uma reclamação escrita suspende a prescrição até ao dia em que o transportador rejeitar a reclamação por escrito e restituir os documentos que a esta se juntaram, sendo que as reclamações ulteriores com a mesma finalidade não suspendem a prescrição.
34. Perante o teor das comunicações trocadas entre as partes, em 06.10.2015 e 18.11.2015 (cfr. pp. ag) e ah) da matéria de facto provada) é patente que a comunicação enviada pela Recorrida configura uma reclamação, com a virtualidade de suspender o prazo prescricional em curso, nos termos do citado art. 32º, nº 2, da Convenção CMR, sendo também correto afirmar que da mensagem enviada pela Recorrente à Recorrida emerge uma rejeição à mencionada reclamação.
35. Nestes termos, o prazo de prescrição iniciou a sua contagem em 19.10.2015 e terminou em 19.10.2016. Portanto, terá sempre que se concluir que na data em que a ação foi instaurada (02.01.2017) estava seguramente decorrido bem mais de um ano após a resposta da Recorrente e, portanto, prescrito o direito que a Autora pretende fazer valer neste processo.
36. Ao decidir em sentido contrário, a douta sentença sob recurso fez uma incorrecta aplicação do art. 32.º da Convenção CMR.

c) A Responsabilidade do Transportador por demora na entrega da mercadoria:

37. O art. 17.º da Convenção CMR refere que o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim com pela demora na entrega.
38. Dispõe o preceito constante do n.º 5 do art.º 23º da Convenção CMR que “no caso de demora, se o interessado provar que disso resultou prejuízo, o transportador terá de pagar por esse prejuízo uma indemnização que não poderá ultrapassar o preço do transporte”.
39. A decisão sob recurso, na parte em que condena a Recorrente a pagar uma indemnização à Recorrida de valor superior ao valor do preço do transporte (€ 212,98) viola o disposto nos arts. 19.º, 20.º e n.º 5 do art.º 23º, todos, da Convenção CMR.

d) Os Lucros Cessantes:

40. A atribuição de uma indemnização deve pautar-se pelo critério da diferença entre a situação existente e aquela que existiria se não houvesse responsabilidade civil.
41. Nessa medida, em abstrato, a douta sentença sob recurso, entendendo condenar a Recorrente por lucros cessantes, não deveria considerar o valor de vendas não efetuadas, mas antes a margem de lucro da Recorrida com as referidas vendas naquele quantitativo.
42. Por um lado, importa verificar que a mercadoria que, segundo a sentença sob recurso poderia determinar um valor de vendas de € 4.000,00, foi integralmente entregue à Recorrida que a pode integrar no seu circuito comercial e a vender, retirando daí o respetivo lucro. Por outro lado, segundo a configuração que a Recorrida fez da feira, estas vendas seriam efetuadas ao consumidor final e, nesta medida, porque realizadas em Espanha, estariam sujeitas a imposto sobre o consumo (Impuesto sobre el Valor Añadido), tributados à taxa de 21%.
43. O Mmo Juiz da 1ª Instância quantificou, nesta medida, erradamente o valor do dano, a título de lucros cessantes, porquanto o referido valor de € 4.000,00 (quatro mil euros) é superior aos benefícios que o lesado não obteve se não fora o acto lesivo e, nesta medida fez uma incorreta aplicação do art. 564.º do CC.

e) A Emissão da Nota de Crédito n.º 1500400:

44. O correto enquadramento jurídico do presente caso deverá levar à conclusão de que a Recorrente já indemnizou a Recorrida pelos prejuízos a que esta teria direito, pelo atraso na entrega da mercadoria, com a emissão da nota de crédito n.º 1500400 no valor de € 212,98 (duzentos e doze euros e noventa e oito cêntimos) que foi integrada na conta corrente das partes (vide pp. q) ah) e am) dos factos dados como provados).
45. Sem prescindir, tendo o Tribunal a quo decidido pela condenação da Recorrente no pagamento de um valor superior, deveria ter considerado o crédito titulado na referida nota de crédito e, nesta medida, deduzir ao valor condenatório o respectivo valor de € 212,98 (duzentos e doze euros e noventa e oito cêntimos).
46. A douta decisão impugnada não pode manter-se, pois fez uma incorrecta aplicação das normas legais supra citadas.
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a Recorrida pela manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).

No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões do Recurso interposto são as seguintes:

- Se a sentença recorrida é nula nos termos do disposto nas alíneas c) do nº 1 do art. 615º do CPC;
- Se deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto;
- Se ao caso é aplicável a Convenção CMR que regula o transporte internacional de mercadorias por estrada;
- Se o direito da Autora se encontra prescrito;
- Se a indemnização a atribuir deve ser calculada de acordo com a limitação da responsabilidade do transportador, estabelecida na Convenção CMR.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos

3.2.1. Factos Provados

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

a) A A. dedica-se à venda de produtos alimentares, nomeadamente produtos naturais e orgânicos. (artigo 1º e 2º da petição inicial)
b) No âmbito da sua actividade a A. inscreveu-se como participante numa feira que se iria realizar nos dias 2 a 4 de Outubro, em Bilbao. (artigo 3º da petição inicial)
c) Nessa sequência, a A. contratou a R. para proceder ao transporte do material de montagem de um stand de exposição. (artigo 4º da petição inicial)
d) Nos termos do contrato celebrado, o material deveria ser impreterivelmente entregue em Bilbao no dia 1 de Outubro de 2015, i.e., no dia anterior àquele em que a feira teria o seu início. (artigo 5º da petição inicial)
e) A R. não procedeu à entrega da mercadoria objecto do contrato de transporte no local referido em c) e d). (artigo 6º da petição inicial)
f) A R. não informou sequer a A. de que não iria proceder à entrega do material. (artigo 7º da petição iniciali)
g) No dia 1 de Outubro de 2015, cerca das 16:00h, ao chegar ao stand n.º 55, que lhe estava destinado, a A. constatou que as mercadorias não tinham ainda sido entregues. (artigo 8º da petição inicial)
h) A A. procurou de imediato aferir do paradeiro das mesmas. (artigo 9º da petição inicial)
i) A A. questionou então o responsável pela feira sobre se havia recebido alguma mercadoria por parte da R., tendo o mesmo respondido que havia recebido diversas mercadorias, mas que não havia controlado onde as mesmas haviam sido guardadas ou em que stand depositadas. (artigo 10º da petição inicial)
j) Julgando que a mercadoria havia sido entregue, ainda que num stand errado, a A. tentou de imediato contactar telefonicamente a R., mas sem sucesso. (artigo 11º da petição inicial)
k) A A. decidiu então solicitar ajuda policial, pois estando convencida que a mercadoria havia sido entregue, a única explicação que alcançava era a mesma ter sido furtada. (artigo 12º da petição inicial) l) Durante os dias imediatos – 2 e 3 de Outubro de 2015 – a A. procurou o paradeiro da mercadoria. (artigo 13º da petição inicial)
m) Sem que a mesma tivesse aparecido. (artigo 14º da petição inicial)
n) A par, a A. por diversas vezes tentou contactar a R., de modo a que esta pudesse orientar a A. quanto ao local onde a mercadoria havia sido entregue. (artigo 15º da petição inicial)
o) O que também resultou infrutífero. (artigo 16º da petição inicial)
p) Só no dia 4 de Outubro é que a A. tomou conhecimento que a mercadoria estava na posse da R. e que nunca havia saído sequer dos seus armazéns. (artigo 17º da petição inicial)
q) A R. emitiu em 15/11/2015 a Nota de Crédito n.º 1500400: «… – Bilbao …», no valor de €212,98. (artigo 21º da petição inicial)
r) Porque a R. não entregou o material em causa, a A. não conseguiu efectivar a sua presença na feira de exposições. (artigo 23º da petição inicial)
s) Sem stand de exposição e sem material, a mesma não tinha os meios indispensáveis e necessários para participar na mesma. (artigo 24º da petição inicial)
t) Não podendo, assim, alcançar os objectivos a que se propôs, nomeadamente a projecção da marca e a venda directa ao público. (artigo 25º da petição inicial)
u) A A. suportou, com vista à participação na feira, as seguintes despesas:
- Bilhetes de avião - €: 169,53;
- Bilhetes de comboio - €: 38,50;
- Viagens em transportes públicos - €: 167,15;
- Alojamento - €148,02;
- Refeições - €169,73;
- Custo de participação na feira - €864,00;
- Recursos Humanos - €800,00. (artigo 29º da petição inicial)
v) A falta de participação na feira implicou que a A. não realizou, de vendas na mesma, mercadorias do valor de €4.000,00. (artigo 29º da petição inicial)
w) A. A. tinha terminado a colaboração com o distribuidor da zona e tinha mudado de distribuidor, pelo que tinha informado as lojas do ramo no país Basco para visitar o seu stand, a fim de poder formalmente apresentar o novo distribuidor. (artigo 32º da petição inicial)
x) Consumidores que vêem e conhecem a marca da A. foram informados, por diversos meios, nomeadamente Instagram e Facebook, da sua presença na feira. (artigo 34º da petição inicial)
y) Porque a R. nunca informou de que iria incumprir o acordado, a A. não teve hipótese de informar os clientes de que, afinal, não ia poder participar na feira. (artigo 35º da petição inicial)
z) Findo o evento que motivou a celebração do contrato de transporte de mercadorias, a entrega da mercadoria em Bilbao deixou de ter qualquer utilidade para a A.. (artigo 45º da petição inicial)
aa) A Ré intentou contra a aqui Autora, em 23/2/2016, um procedimento de injunção no qual pede a condenação da Autora - ou a notificação desta – para o pagamento de € 5.571,49 (cinco mil quinhentos e setenta e um euros e quarenta e nove cêntimos), fundamentando tal pedido na execução de vários serviços de transporte, pela Ré, por solicitação e interesse da Autora, todos eles titulados nas seguintes facturas emitidas por aquela em nome desta: i. Factura n.º 15000100/150036151, no valor de € 1.559,76, datada de 30.09.2015; ii. Factura n.º 15022122/150005612, no valor de € 510,00, datada de 30.09.2015; iii. Factura n.º 15000100/150038402, no valor de € 877,30 datada de 15.10.2015. iv. Factura n.º 15022122/150006064, no valor de € 440,00 datada de 19.10.2015; v. Factura n.º 15022122/150006241, no valor de € 530,00 datada de 27.10.2015; vi. Factura n.º 15000100/150040640, no valor de € 622,39 datada de 31.10.2015. vii. Factura n.º 15000100/150042781, no valor de € 463,95 datada de 15.11.2015; viii. Factura n.º 15022122/150006746, no valor de € 790,00 datada de 16.11.2015; ix. Factura n.º 15000100/150044970, no valor de € 82,59 datada de 30.11.2015.. (artigo 3. da contestação)
ab) A Autora deduziu oposição ao requerimento de injunção, tendo o processo sido distribuído no Juízo Local J1 da Instância Local do Tribunal, sob o processo n.º 18207/16.7YIPRT. (artigo 5. da contestação)
ac) Foi proferida sentença, já transitada em julgado, no âmbito do processo judicial n.º 18207/16.7YIPRT que homologou um acordo, celebrado em 29/12/2016 entre Autora (ali Ré) e Ré (ali Autora), nos seguintes termos: 1. A Autora reduz o pedido para o montante de € 5.321,09 (cinco mil, trezentos e vinte e um euros e nove cêntimos) não se opondo a Ré à redução do mesmo. 2. A Ré obriga-se a pagar a referida quantia em duas prestações mensais e sucessivas, no montante de € 2.660,55 cada, a vencerem-se nas seguintes datas: 1.ª prestação – 8 de Janeiro de 2017; 2.ª prestação – 8 de Fevereiro de 2017; 3. As prestações serão pagas através de transferência bancária para a conta bancária da A. com o NIB …. Com o pagamento do valor referido na cláusula 1.º, Autora e Ré declaram nada mais ter a receber uma da outra, seja a que título for, no que respeita às facturas e serviços objecto da presente acção e definidos no petitório. 5. Os montantes que, ainda assim, se mostrarem devidos a juízo serão suportados por ambas as partes, prescindindo ambas de custas de parte. (artigo 6. da contestação)
ad) Entre as facturas que integram os serviços objecto da acção n.º 18207/16.7YIPRT e definidos naquele petitório encontra-se a factura n.º 15000100/150036151, no valor de € 1.559,76, datada de 30.09.2015. (artigo 7. da contestação)
ae) No descritivo da factura n.º 15000100/150036151 consta, entre outros, o seguinte serviço de transporte de mercadorias: GUIA DATA EXPEDIDOR Destinatário DESCARGA VOLUME PESO VALOR IVA 81-4117798 25.09.15 (...), Lda. … – BILBAO … 2 999,00 212,98 0,00%.(artigo 8. da contestação)
af) A factura n.º 15000100/150036151 descreve e titula, entre outros, o serviço de transporte de mercadorias descrito pela Autora, na petição inicial. (artigo 9. da contestação)
ag) Em 6/10/2015 a A. remeteu à R. a mensagem de correio electrónico constante do documento junto a fls. 70 e 71, cujo teor se dá por reproduzido. (artigo 28. da contestação)
ah) Por e-mail, enviado pela Ré à Autora, em 18.11.2015, aquela comunicou a conclusão do processo de averiguações, mais informando que iria “proceder ao crédito dos portes” daquele serviço de transporte. (artigo 30. da contestação)
ai) O que fez nos termos constantes da alínea q). (artigo 31. da contestação)
aj) No âmbito de vários mails trocados entre as partes, em 23.12.2015, a Ré volta a comunicar à Autora a conclusão do processo de averiguações e o seu entendimento de que não se encontra por regularizar qualquer valor em sequência da reclamação apresentada. (artigo 33. da contestação)
ak) A Autora deu entrada da presente acção em Tribunal em 02.01.2017, tendo a Ré sido citada em 05.01.2017(artigo 34. da contestação)
al) A Ré obrigou-se a executar o serviço de transporte de mercadorias em causa nos autos, pelo preço de € 212,98 (duzentos e doze euros e noventa e oito cêntimos). (artigo 41. da contestação)
am) A Ré integrou a nota de crédito na conta corrente das partes. (artigo 51. da contestação)
an) A Ré celebrou com a X, Companhia de Seguros, S.A. um contrato de seguro de responsabilidade civil, titulada pela Apólice nº …, até ao montante máximo de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), com um máximo seguro por cada camião ou contentor de € 200.000,00, incluindo 10 € de fretes e gastos. (artigo 67. da contestação)
ao) O contrato de seguro iniciou a sua vigência em 13.11.2013, mantendo os seus efeitos à data do transporte descrito no presente processo. (artigo 71. da contestação)
ap) Das condições particulares do seguro contratado constam, entre outras as seguintes cláusulas e condições: Sob a epígrafe “Franquia Aplicável/Viatura”: “Será aplicada uma franquia de EUR 500,00, em sinistros até EUR 5.000,00 e de EUR 1.000,00 em sinistros de valor superior aos referidos EUR 5.000,00.”. (artigo 23. da contestação da interveniente)
aq) O contrato de seguro “abrange, até ao limite do valor seguro constante das Condições Particulares, o pagamento das indemnizações que, nos termos da Convenção, sejam devidas pelo Segurado na qualidade de transportador, em consequência de perdas ou danos causados às mercadorias transportadas no veículo transportador, exclusivamente durante o respectivo transporte.” (artigo 29. da contestação da interveniente)
ar) O contrato “nunca garante os danos, perdas ou despesas que decorram, directa ou indirectamente, de: v) Perdas de mercado, demora na entrega ou quaisquer outras perdas consequenciais”. (artigo 32. da contestação da interveniente)
as) No dia 14 de Março de 2016 os mandatários da A. interpelaram a R. para o pagamento de €15.000, correspondente aos prejuízos sofridos em consequência do incumprimento do contrato de transporte para Bilbao. (artigo 26º da réplica)
at) Em 10 de Outubro de 2016, a R. deduziu pedido reconvencional no âmbito do já mencionado nos presentes autos Proc. n.º 18207/16.7YIPRT. (artigo 27º da réplica)
au) Pedido esse que não foi apreciado, por ser entendimento do tribunal que no âmbito das acções previstas no Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro não é admissível reconvenção. (artigo 28º da réplica).
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3.1.2. Factos Não Provados

Inversamente, foi dada como não provada a seguinte factualidade:

1) Só no dia 5 de Outubro é que a A. tomou conhecimento que a mercadoria estava na posse da R. e que nunca havia saído sequer dos seus armazéns. (artigo 17º da petição inicial)
2) A A. viu a sua imagem e bom nome afectados pela falta de participação na feira. (artigo 30º da petição inicial)
3) A Autora, mediante a aceitação do acordo estabelecido pelas partes, no âmbito do processo judicial n.º 18207/16.7YIPRT criou na Ré a legitima expectativa de que não iria reclamar da Ré qualquer indemnização pela execução do serviço de transporte descrito nos autos, seja a que título for. (artigo 21. da contestação)
4) A mercadoria foi entregue no dia 01.10.2015. (artigo 28. da contestação)
5) A Autora apenas efectuou uma reclamação junto da Ré em 06.10.2015. (artigo 28. da contestação)
6) A mercadoria foi expedida no dia 30.09.2015, tendo chegado ao seu destino em 01.10.2015. (artigo 42. da contestação)
7) A mercadoria transportada foi expedida em data que permitisse, considerando os prazos médios do transporte, chegar ao destinatário em 01.10.2015. (artigo 43. da contestação)
8) A mercadoria foi entregue ao destinatário que a conferiu e colocou a sua assinatura, na respectiva guia de transporte, sem, na mesma, apor qualquer reserva. (artigo 44. da contestação)
9) Em 06.10.2015, em face da reclamação da Autora, a Ré efectuou novas diligências tendo verificado que parte da mercadoria não tinha chegado ao seu destino. (artigo 46. da contestação)
10) Verificou a Ré que parte da mercadoria havida ficado retida no centro de logística que integrou o circuito do transporte da mercadoria descrita nos autos. (artigo 47. da contestação)
11) Tal circunstância apenas foi possível apurar após a referida reclamação da Autora. (artigo 48. da contestação)
12) A mercadoria que não chegou ao destino no referido dia 01.10.2015 foi entregue pela Ré à Autora, por solicitação expressa desta e, desta forma, não seguiu para o destino convencionado. (artigo 49. da contestação)
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3.2. O Direito

3.2.1. Da nulidade da sentença

Sustenta a Recorrente que a sentença enferma da nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do art. 615º do C.P.C., porquanto reconhece que a Recorrente provou que a mercadoria foi restituída à Recorrida em Outubro de 2015, no entanto, não transpôs este facto para a matéria de facto julgada provada, tendo, ao invés, o integrado na matéria de facto não provada.

As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no art. 615º nº 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece, além do mais, que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).

O Prof. Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 308), após a análise dos vícios da sentença conclui que uma sentença é nula quando “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.

Na senda da delimitação do conceito, adverte o Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, pg. 686), que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.

Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. A propósito refere o Prof. Lebre de Freitas “Se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.” – Código Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2008, nota 3. ao artigo 668º, pág. 704).

Aponta a Recorrente a ambiguidade da sentença.

Uma sentença é obscura ou ambígua quando for ininteligível, confusa ou de difícil interpretação, de sentido equívoco ou indeterminado, traduzindo-se a obscuridade na ininteligibilidade e a ambiguidade na possibilidade de à decisão serem razoavelmente atribuídos dois ou mais sentidos diferentes.

Salvo o devido respeito, quanto à invocação deste vício, não está correta a derivação efetuada pela Recorrente, na medida em que a alusão em sede de explanação do direito de que a mercadoria foi restituída à Recorrida em Outubro de 2015, não sustenta a prova do facto que a Recorrente pretendia ver provado com determinado sentido e alcance e que, como tal, foi dado como não provado.

Evidenciou-se com clareza na decisão que o facto de a mercadoria ter sido restituída à Autora, em meados de Outubro de 2015 (circunstância que se provou) é, em matéria de cumprimento contratual, totalmente inócuo. A prestação a cargo da Ré não era a da entrega da mercadoria nas instalações da Autora, mas sim a entrega da mercadoria em Bilbao a tempo de a Autora participar na feira em que se tinha inscrito.

O raciocínio expresso na fundamentação está de acordo com o quadro factual apurado e com a consequência jurídica tirada na conclusão. Não se vê que à decisão seja possível razoavelmente atribuir dois ou mais sentidos diferentes.

A discordância da decisão é coisa totalmente diversa da existência de ambiguidade daquela. Tal, porém, não configura a nulidade da sentença.

Pelo exposto, não se verifica a nulidade invocada pela Recorrente.
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3.2.2. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do artigo 662º, do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 7.4.2016 (disponível em www.dgsi.pt), “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.
Apesar disso, sem prejuízo de uma valoração autónoma dos meios de prova, essa operação não pode nunca olvidar os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.
O Recorrente considera incorretamente julgados os seguintes factos:
Factos provados al. d) e v) e factos não provados nº 8 e nº12.

Os factos são os seguintes:

d) Nos termos do contrato celebrado, o material deveria ser impreterivelmente entregue em Bilbao no dia 1 de Outubro de 2015, i.e., no dia anterior àquele em que a feira teria o seu início. (artigo 5º da petição inicial);
v) A falta de participação na feira implicou que a A. não realizou, de vendas na mesma, mercadorias do valor de €4.000,00. (artigo 29º da petição inicial).
8) A mercadoria foi entregue ao destinatário que a conferiu e colocou a sua assinatura, na respectiva guia de transporte, sem, na mesma, apor qualquer reserva. (artigo 44. da contestação);
12) A mercadoria que não chegou ao destino no referido dia 01.10.2015 foi entregue pela Ré à Autora, por solicitação expressa desta e, desta forma, não seguiu para o destino convencionado. (artigo 49. da contestação).

A Senhora Juiz a quo fundamentou a sua decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

«O vertido nas alíneas aa) a af), ak), an), ao) a ar), at) e au), está assente por força dos documentos juntos – cópias dos articulados, documentos e despachos produzidos na acção especial n.º 18207/16.7YIPRT, que electronicamente se consultou, assim se verificando o respectivo teor e apólice e condições gerais e especiais do seguro junta em 21/7/2017 e cujo teor não se mostra impugnado – e por consulta dos presentes autos (no que concerne à data de instauração da acção).---

No mais, atentou o tribunal à conjugação da prova testemunhal e documental (para além dos documentos a que se faz expressa referência na factualidade – cfr. fls. 14, 57 a 69 e 92 a 102) produzida.—

Quanto ao acordo celebrado entre as partes, com vista ao transporte de mercadorias aqui em causa, contornos, pressupostos, valores acordados, destino e prazo – alíneas a) a d) e al), foram relevantes os documentos juntos (facturas e nota de crédito), bem como os depoimento das testemunhas M. C., funcionária da A. e L. G., funcionário da R., os quais, quanto a esta matéria foram, no entender do tribunal, unânimes, tendo, face às respectivas funções, conhecimento suficiente de tais factos.

A emissão e integração na contabilidade da R. da nota de crédito nº 1550/400 está provada por força do documento que a própria A. juntou e por acordo dos intervenientes em tal relação, assim se enunciando as alíneas q), ai) e am).

Importa referir que, conjugando-se este documento – mormente a respectiva data de emissão - com o teor da transacção celebrada na acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias referida supra (n.º 18207/16.7YIPRT) e a tramitação desses autos, que verificamos, repete-se, por consulta electrónica dos mesmos, considera-se infirmado o que se inseriu no ponto 3). Na verdade, o valor relativo ao transporte aqui em causa não estava incluído no pedido daquele processo na medida em que – como dissemos aquando da apreciação da excepção do caso julgado – em data anterior havia a aqui R. creditado o mesmo. Para mais, tendo havido dedução de reconvenção que, por questões processuais, não foi admitida, e tendo o acordo sido feito pelo valor peticionado pela ali autora (a aqui R.), não poderia em boa-fé, entender-se que havia uma quitação global de valores. Acresce que nenhuma prova foi produzida em abono desta factualidade em sede de julgamento.
As vicissitudes da execução do contrato – alíneas e) a p), z), ag), ah), aj) e as) e pontos 1) e 4) a 12) – resultaram apuradas (como provadas e/ou não provadas), por conjugação do depoimento da testemunha M. C. (acima referida) com os documentos atinentes às comunicações trocadas entre A. e R. (fls. 70, 71, 73, 74 e 91, cuja veracidade não foi impugnada pelos intervenientes em causa). Esta testemunha, acompanhou de perto o desenrolar dos acontecimentos, já que, como comercial, foi juntamente com um colega (que se deslocou a partir de Portugal), destacada para representar a A. na feira em causa, o que faz parte das suas funções desde Março de 2015, altura em que começou a trabalhar para a A.. Descreveu a mesma, de forma completa mas espontânea, pormenorizada mas não estudada, os acontecimentos daqueles dias, o que a própria e o colega fizeram na tentativa de localizar a mercadoria e demais bens que compunham a carga remetida através da R. (nomeadamente com contactos directos telefónicos com o motorista ao serviço da R. e com o armazém desta). Do depoimento resultou, além disso, estabelecida a cronologia dos eventos – data de chegada à feira e data da localização dos bens, ocorrida já quando a feira estava terminada – e o destino dado ao material transportado quando o mesmo foi encontrado, em armazém afecto à actividade da R.. O depoimento desta testemunha não foi contrariado pelas testemunhas arroladas pela R., L. G. (já mencionado) e M. S., ambos seus funcionários.

A testemunha L. G. exerce, na R., as funções de responsável pelo departamento de gestão de sinistros, tendo sido no âmbito das mesmas que teve conhecimento da situação em causa nos autos. Contrariamente ao alegado – de forma algo temerária, parece-nos – pela R. em sede de contestação, confirmou o mesmo que não foi entregue no local da realização da feira qualquer parte da mercadoria expedida pela A., facto que confirmou através do representante/parceiro da R. (uma transportadora espanhola que leva a cabo normalmente os transportes internos em Espanha denominada ...). Confrontado com o documento junto pela R. a fls.75, confirmou que, num primeiro momento pensaram que tal atestaria a entrega, mas que entretanto aperceberam-se de que outro transporte (de outro cliente) tinha tido vicissitudes, pois que se a mercadoria foi entregue, não havia comprovativo documental, o que levou a concluir que, neste caso, foi emitido documento mas não entregue o material. Confirmou, por outro lado, que o material foi, entretanto, devolvido às instalações da A., em Portugal, já em meados de Outubro de 2015 (o que está documentado a fls. 106). No que tange às reclamações, esclareceu que apenas tomaram conhecimento segunda ou terça-feira (já que se intermediou um fim de semana e, acrescentamos nós, um feriado, altura em que estão encerrados, não recebendo, sequer, telefonemas). Contudo, não negou – nem estava habilitado a isso – que contactos hajam sido feitos (como o referiu a testemunha M. A.), directamente com o transportador no local (a mencionada ...). Relativamente à testemunha M. S., técnico de qualidade, confirmou a existência de processo de averiguação espoletado pela reclamação apresentada por escrito em 6 de Outubro (primeiro dia útil após os factos), que foi tramitado e considerado findo pela emissão da nota de crédito referida nos autos.

O depoimento da testemunha M. C., já referida foi, em conjugação com os documentos de fls. 15 a 23 (comprovativos de despesas suportadas com os dois funcionários da A. destacados para realizar a feira) suficiente para o tribunal considerar provados os danos sofridos pela A. em razão da falta de entrega da mercadora nos termos acordados em Bilbao e enunciados nas alíneas r) a y). Foi a testemunha clara a apontar e justificar a frustração dos objectivos delineados para a feira, com perda das vendas e falta de resposta aos clientes (avisados por instagram e facebook) que ali se dirigiam para interagir com a A. no seu stand de vendas. No que respeita a estas, as vendas, mostrou-se a testemunha segura e demonstrou ter experiência (prévia e posterior aos factos), para sustentar o valor reclamado como perda (declarando, até, com convicção que seria até superior, considerando a natureza da feira em causa).

Entendemos, porém, que, quanto a efeitos no bom nome e imagem da A., não logrou a testemunha apresentar-se com o mesmo grau de consistência (note-se que a própria se referiu a feiras posteriores, na mesma área geográfica, e com resultados francamente positivos de vendas), sendo assim, face à inexistência de outra prova (nomeadamente documental) considerado como não demonstrado o vertido no ponto 2).».

Pois bem.

Ouvidos os depoimentos das testemunhas e examinados os documentos juntos aos autos, formamos convicção inteiramente coincidente com a convicção do tribunal recorrido.

A factualidade que foi dada como provada e que a Recorrente pretende ver como não provada, referem-se à data convencionada para a entrega e ao valor das vendas não realizadas.

Considerou-se provado que nos termos do contrato celebrado, o material deveria ser impreterivelmente entregue em Bilbao no dia 1 de Outubro de 2015, i.e., no dia anterior àquele em que a feira teria o seu início.

Entende a Recorrente que quer a fatura que titula o serviço de transporte quer a nota de crédito respetiva não fazem menção a qualquer obrigação do transportador quanto ao prazo de entrega, por outro lado, a testemunha M. C., funcionária da Recorrida desde Março de 2015, no seu depoimento não fez qualquer menção aos termos em que a Recorrida contratualizou, junto da Recorrente, o contrato de transporte de mercadorias dos autos e a testemunha L. G. que exerce as funções de gestor de sinistros na Recorrente, referiu não ter sido convencionada data especifica para entrega.

As passagens destacadas quer do depoimento da testemunha M. A., quer do depoimento da testemunha L. G. não permitem a conclusão extraída pela Recorrente de que não havia data convencionada para a entrega da mercadoria.

A testemunha M. A., que exercendo as funções de comercial foi destacada para representar a A. na feira de Bilbao, acompanhou todo o desenrolar dos acontecimentos e descreveu de forma completa, pormenorizada e precisa as ocorrências daqueles dias, e todas as diligências que encetou na tentativa de localizar a mercadoria e demais bens que compunham a carga remetida através da R. (nomeadamente com contactos diretos telefónicos com o motorista ao serviço da R. e com o armazém desta). Do seu depoimento resultou, claramente, estabelecida a cronologia dos eventos – data de chegada à feira e data da localização dos bens, ocorrida já quando a feira estava terminada – e o destino dado ao material transportado quando o mesmo foi encontrado, em armazém afeto à atividade da R..

Por outro lado, do que se retira do depoimento da testemunha L. G. responsável pelo departamento de gestão de sinistros da Recorrente, é que não foi entregue no local da realização da feira a mercadoria expedida pela A., confirmado em face da exibição do documento junto a fls.75 que, num primeiro momento pensaram que tal atestaria a entrega, mas que entretanto aperceberam-se de que outro transporte (de outro cliente) tinha tido vicissitudes, pois que se a mercadoria foi entregue, não havia comprovativo documental, o que levou a concluir que, neste caso, foi emitido documento mas não entregue o material. Confirmou, por outro lado, que o material foi, entretanto, devolvido às instalações da A., em Portugal, já em meados de Outubro de 2015 (o que está documentado a fls. 106).
Está assente, que no âmbito da sua actividade a A. inscreveu-se como participante numa feira que se iria realizar nos dias 2 a 4 de Outubro. Ora, como é bom de ver, destinando-se a mercadoria à referida feira, a mesma teria que ser entregue antes do início da feira.

Está assente, também, que tal não aconteceu.

Em face disso, considera a Recorrente que a data para entrega não consta de qualquer documento, havendo que se entender assim não existir data pretendida para a entrega.

Com relevo para o depoimento da testemunha M. A., resultou claro da prova feita a essencialidade do prazo de entrega, bem sabendo a Recorrente a que se destinavam as mercadorias e a data da feira.

Alcança-se, ainda, da documentação que foi junta aos autos a existência de uma reclamação apresentada pela Recorrida por escrito em 6 de Outubro, que corresponde ao primeiro dia útil após os factos, donde emerge o incumprimento quanto ao prazo, o que leva a considerar que as partes acordaram a data para a entrega da mercadoria.

Quanto ao prejuízo sofrido pela A., considera a Recorrente que não foi carreada para os autos qualquer prova documental da qual se possa concluir e determinar que, no âmbito daquele evento, existia uma expetativa real de efetuar vendas num valor de € 4.000,00.

Não vemos que a prova de tal facto haja de ser exclusivamente documental.

A testemunha M. A. foi clara a indicar e justificar a frustração dos objetivos delineados para a feira, com perda das vendas e falta de resposta aos clientes (avisados por instagram e facebook) que ali se dirigiam para interagir com a A. no seu stand de vendas. Esta testemunha demonstrou ter experiência (prévia e posterior aos factos), para sustentar o valor reclamado como perda.

A Recorrente considera que não deve ser conferida credibilidade ao seu depoimento, na medida em que aludiu a um valor superior.

É certa a indicação de tal valor superior, tendo-se expressado na motivação recorrida, que a testemunha com convicção declarou que o valor da perda seria até superior, considerando a natureza da feira em causa, mas estribado no valor a esse título pedido pela própria A., o tribunal fixou-o em € 4.000,00.

Cremos, contudo, que a redação do facto v) pode possibilitar a interpretação (errónea) de que se trata do valor das mercadorias não vendidas, quando do que se trata é da margem de lucro com as vendas não efectuadas.

Vejamos.

Este facto corresponde ao artigo 29º, da petição inicial que tem a seguinte redação:

29.º Assim, o referido incumprimento causou sérios prejuízos patrimoniais à A., os quais ascendem a €6.356,93, tal como a seguir discriminados:
- (…)
- Vendas não realizadas (lucros cessantes) - €4.000,00.
O valor de € 4.000,00 respeita ao dano causado com as “vendas não realizadas”, isto é, ao lucro não obtido (lucro cessante).
Resulta deste artigo e da alegação no seu conjunto no tocante aos prejuízos, que enquanto tal foi atendida pelo tribunal a quo.
Decorre, também, de forma muito clara do depoimento da testemunha M. A. que este valor é o do lucro que a Recorrida não obteve com a impossibilidade de vender na feira. Esta testemunha referiu que levaram para a feira produtos no valor de cerca de € 8.000,00, e contavam com muitas encomendas.
Pelo que, os € 4.000,00 correspondem ao lucro que a Recorrida perspetivava obter com a venda dos seus produtos na feira de Bilbao.

Nestes termos, impõe-se uma resposta explicativa ao facto provado v) no sentido de que:

v) A falta de participação na feira implicou que a A. não realizou vendas de mercadorias deixando de auferir um lucro no valor de €4.000,00. (artigo 29º da petição inicial).

Considera, ainda, a Recorrente que deveriam ser dados como provados os factos 8º e 12º e cuja redação é a seguinte:

8) A mercadoria foi entregue ao destinatário que a conferiu e colocou a sua assinatura, na respectiva guia de transporte, sem, na mesma, apor qualquer reserva.
12) A mercadoria que não chegou ao destino no referido dia 01.10.2015 foi entregue pela Ré à Autora, por solicitação expressa desta, em 15.10.2015.
Cremos, ressalvado o devido respeito, que considerando a globalidade da factualidade apurada, jamais estes factos poderiam ser dados como provados por estarem em contradição com aquela.
A materialidade fáctica que é apreendida pelo tribunal tem uma significação jurídica que é aferida, em termos de relevância, na sua globalidade e interconexão com a realidade mais abrangente que constitui o objeto do litígio e não em moldes estanques e desprovidos de sentido ou finalidade.
Para além de não se extrair do documento nº8 junto com a contestação (guia de transporte) a ilação pretendida pelo impugnante, recebimento da mercadoria pelo destinatário sem reserva, é reconhecido pelo próprio que o “destinatário” a que ali se alude é afinal um outro transportador a quem recorre para a entrega das mercadorias em Espanha. Cremos também não haver dúvida que no dia 1 de Outubro a mercadoria ainda nem sequer tinha saído das instalações da Recorrente. Portanto, não se pode afirmar que a mercadoria foi entregue à A., pois que outro destinatário para o caso não interessa.
Por outro lado, o facto não provado 12 não tem a redação que lhe é dada pela Recorrente, mas antes a que decorre da respetiva alegação e que é: “A mercadoria que não chegou ao destino no referido dia 01.10.2015 foi entregue pela Ré à Autora, por solicitação expressa desta e, desta forma, não seguiu para o destino convencionado.
Como acima dissemos, este facto mostra-se contrariado por todos os demais que foram apurados respeitantes ao incumprimento da entrega, sendo que nos autos não se suscitou a questão da data da devolução da mercadoria, para que agora se justificasse o exarar da data de 15 de Outubro.
Resulta, pois, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido.

Não assiste, assim, razão à Recorrente na impugnação da matéria de facto.
*
3.2.3. Da subsunção jurídica

Tendo por base o quadro factual, façamos a sua subsunção jurídica.
A Autora contratou a Ré para proceder ao transporte do material de montagem de um stand de exposição tendo a Ré se obrigado a executar o serviço de transporte pelo preço de € 212,98 (duzentos e doze euros e noventa e oito cêntimos).

Em conformidade com os termos do acordo, a Ré assumiu a obrigação de planificar e coordenar as operações necessárias à expedição das mercadorias para o seu destino, atuando como intermediário na celebração do contrato de transporte necessário para o efeito, o que se ajustaria à sua atividade de transitário, mas assumiu igualmente a obrigação de ela própria transportar a mercadoria e de a entregar no seu destino, o que configura um típico contrato de transporte.

Tem sido pacífica na doutrina e na jurisprudência a definição do contrato de transporte internacional como a convenção consensual através da qual uma pessoa se obriga perante outra mediante o preço denominado “frete” a realizar, por si ou por terceiros, a deslocação de uma determinada mercadoria desde um ponto de partida, situado num dado país, até um outro de destino, situado num outro país.

O contrato de transporte é um contrato de resultado, que apenas se mostra cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário, entendendo-se mesmo que é essa a obrigação essencial do transportador. (1)

O contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada está sujeito a um regime próprio – a Convenção CMR, assinada em Genebra, em 19 de Maio de 1956, aprovada pelo Decreto-Lei n° 46.235, de 18 de Março de 1965, a qual regula, além do mais, a responsabilidade do transportador.

Sucede, no entanto, que no caso presente as vicissitudes ocorridas na relação negocial estabelecida entre as partes, não respeita ao transporte das mercadorias, enquanto tal. Como claramente resulta do acervo factual, a mercadoria simplesmente não foi entregue, na data e local acordado.

Embora o contrato que une as partes seja um contrato de transporte, a questão não se centra nas “anomalias” ocorridas com o transporte das mercadorias, na medida em que os danos em causa não emergem do ato de transportar lato sensu.

O cerne da questão em litígio está, precisamente, no incumprimento pela Ré da obrigação de entrega da mercadoria, à margem do seu transporte, e os prejuízos sofridos pela Autora por força desse incumprimento.

A primeira questão que vem suscitada pela Recorrente é a da prescrição do direito de indemnização reclamado pela Autora.

Para sustentar essa pretensão, invocou a Recorrente o art. 32º da Convenção CMR, que estipula que: “1. As acções que podem ser originadas pelos transportes sujeitos à presente Convenção prescrevem no prazo de um ano. No entanto a prescrição é de três anos no caso de dolo, ou de falta que a lei da jurisdição a que se recorreu considere equivalente ao dolo. O prazo de prescrição é contado: a) A partir do dia em que a mercadoria foi entregue, no caso de perda parcial, avaria ou demora; b) No caso de perda total, a partir do 30º dia após a expiração do prazo convencionado, ou, se não tiver sido convencionado prazo, a partir do 60º dia após a entrega da mercadoria ao cuidado do transportador; c) Em todos os outros casos, a partir do termo de um prazo de três meses, a contar da conclusão do contrato de transporte. O dia indicado acima como ponto de partida da prescrição não é compreendido no prazo.”

Ora, como assertivamente se evidenciou na decisão recorrida, a questão situa-se a montante da articulação dos prazos previstos na citada norma e reconduz-se à aplicabilidade da mesma ao caso dos autos.

Fundamentou-se da seguinte forma, com a qual concordamos: Pese embora a relação contratual estabelecida estivesse sujeita ao regime legal consagrado pela Convenção CMR, a mesma não é aplicável a todas as vicissitudes da relação, pois que o âmbito de tal convenção é limitado às perdas e danos da mercadoria transportada.

Com efeito, essa limitação decorre da própria redacção da norma (“acções que podem ser originadas pelos transportes sujeitos à presente Convenção”) deixando-se em aberto que haja acções não originadas por esses transportes, ou seja, acções que não respeitem à perda (total ou parcial) e danos (ou deterioração) da mercadoria.

A situação em causa nos autos reconduz-se ao incumprimento do contrato celebrado, imputável à R., resultante da falta de entrega, no tempo e locais acordados, dos bens a transportar”.

Insurge-se a Recorrente sustentando que este entendimento viola o disposto no art. 1.º da Convenção CMR que expressamente refere que a Convenção se aplica a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes e o disposto nos arts. 19.º e 23.º, n.º5 da Convenção CMR que acolhe uma limitação da responsabilidade do transportador, decorrente do atraso na entrega da mercadoria.

Ocorre, como deixámos explanado, que não estamos perante uma situação de demora na entrega, decorrente de alguma vicissitude no transporte, antes perante um incumprimento definitivo, decorrente da não entrega da mercadoria na data e local convencionado, por motivo não relativo ao transporte.

O contrato de transporte rodoviário é objeto de regulamentação normativa resultante de diversas fontes. Trata-se, porém, de regulamentações parcelares: o transporte terrestre não goza de uma regulação sistemática e completa, que cubra todos os aspetos por ele suscitados. Assim sucede, nomeadamente, em matéria de formação e conclusão do contrato. Atente-se, designadamente, nos arts. 366.º a 393.º do Código Comercial, dedicados, precisamente, ao transporte, enquanto contrato objetivamente mercantil: são aí tratados diversos aspetos de regime, sem que, todavia, se encontre, nessa sede, resposta para todas as vicissitudes que, a propósito do transporte, poderão ocorrer (2).

A este propósito escreveu-se no Acórdão desta Relação de Guimarães de 13/09/2007 (3) que o contrato de transporte, não obstante estar sujeito a regime próprio – a Convenção CMR, assinada em Genebra, em 19 de Maio de 1956, aprovada pelo Decreto-Lei n° 46.235, de 18 de Março de 1965 – está também sujeito ao regime geral, designadamente à disciplina do art. 406º do C. Civil, segundo o qual os contratos devem ser pontualmente cumpridos, coincidindo, ponto por ponto e em toda a linha coma prestação a que o devedor se encontra adstrito. E afirma-se em seguida (…) verifica-se, assim, consubstanciarem os factos alegados uma situação de cumprimento defeituoso do contrato celebrado por parte da ré, sendo que, neste caso, o art. 798º do C. Civil, a lei faz recair sobre o devedor a obrigação de indemnizar os prejuízos causados ao credor. Mas, se é esta a causa de pedir invocada pelo autor, daí decorre que o prazo de prescrição para o autor exercer tal direito é o prazo geral de 20 anos previsto no art. 309º do C. Civil, e não o prazo de prescrição estabelecido no art. 32º da Convenção CMR, posto que este reporta-se ao transporte propriamente dito designadamente às perdas e danos da mercadoria transportada.

Porque assim, inserindo-se o litígio no âmbito do artigo 798º, do Código Civil o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
Sendo este incumprimento o facto jurídico de que emerge o direito da Autora e fundamenta, portanto, a sua pretensão, daí decorre que o prazo de prescrição é o prazo geral de 20 anos previsto no artigo 309º do Código Civil, e não o prazo de prescrição estabelecido no artigo 32º da Convenção CMR.

De igual forma se entenderia se estivéssemos perante o pedido do pagamento do preço do transporte (e aqui a A. fosse a ora R.), já que, tal como a situação vertente nos autos, também a falta de cumprimento por banda do cliente não está consagrada na Convenção CMR e, por essa razão, é regida pelas normas do direito das obrigações.

Em suma, por não ser aplicável a norma prevista no art. 32º da Convenção CMR mas outrossim as normas relativas à prescrição em direito civil e, concretamente, as que se reportam à responsabilidade contratual (cfr. o art. 309º do Cód. Civil), é improcedente a exceção de prescrição invocada pela Recorrente.

Quanto ao incumprimento contratual e suas consequências.

A Ré obrigou-se, contra o pagamento de um preço, a entregar em Bilbao, até ao dia 1/10/2015, o material de montagem de um stand de exposição para uma feira em que a Autora se inscreveu e que decorreu nos dias 2 a 4 desse mês.

A Ré não procedeu à entrega da mercadoria nos termos convencionados, tendo posteriormente restituído a mesma à Autora, nas instalações desta em Portugal.

Estamos perante um incumprimento do acordo celebrado, na medida em que, o pressuposto era a entrega em Bilbao com vista à participação da Autora na feira ali realizada, com exposição dos seus produtos.

O facto de a mercadoria ter sido restituída à Autora (em meados de Outubro de 2015) é, em matéria de cumprimento contratual, totalmente inócuo, como bem se fez notar na decisão recorrida, pois que a prestação a cargo da Ré não era a de entregar a mercadoria nas instalações da Autora, mas sim a entrega da mercadoria em Bilbao a tempo de a Autora participar na feira em que se tinha inscrito.

Como claramente decorre do disposto nos artigos 762º, nº1 e 763º, nº1, do Código Civil, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado e a realiza integralmente.

Em consequência da falta de entrega da mercadoria – que apenas tinha interesse para a Autora até à data de início da feira - a Autora não pode participar no dito certame o que lhe trouxe prejuízos.

As limitações ao montante da indemnização a atribuir sustentadas pela Recorrente têm por base o enquadramento da responsabilidade do transportador por demora na entrega da mercadoria, à luz da Convenção CMR. Não sendo esta aplicável, nos termos antes expostos, falece a consideração de tais limitações.

Com efeito, o disposto nos arts. 19.º e 23.º, n.º5 da Convenção CMR que acolhe uma limitação da responsabilidade do transportador, decorrente do atraso na entrega da mercadoria, estabelecendo um desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos, não tem aplicação uma vez afastado ao caso este particular regime.

Este regime tem a sua validade restringida à responsabilidade do transportador emergente da perda total ou parcial, ou da avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora na entrega (art. 17.º, nº1, da Convenção CMR). Mas, não é desses danos que aqui se cura. Aquilo que se reclama não é que o transportador, em cumprimento do contrato de transporte, indemnize o expedidor por danos resultantes da perda, avaria ou demora na entrega da mercadoria, mas sim dos danos resultantes do não cumprimento pontual do contrato, o que são coisas distintas. Concretizando, a indemnização em causa não tem a ver com danos emergentes diretamente da (má) execução do transporte, mas com os prejuízos - danos emergentes ou lucros cessantes - ocasionados pela falta de cumprimento contratual da parte que se traduziu na não entrega da mercadoria, por razões alheias ao transporte. Evidencia-se, aqui, a circunstância de tendo já terminado a feira as mercadorias ainda se encontrarem no armazém da Ré.

Esses danos computaram-se em € 6.356,93 (seis mil trezentos e cinquenta e seis euros e noventa e três cêntimos) de danos emergentes e lucros cessantes.

Do mesmo modo, a alegação em sede de recurso de que a mercadoria pode ser novamente integrada no circuito comercial da Recorrida bem como a sujeição a imposto sobre o consumo tributado à taxa de 21%, é matéria que não tem amparo no quadro factual apurado, havendo que ser dasatendida.

Finalmente, a invocação de que foi emitida uma nota de crédito no valor de € 212,98, que corresponde ao preço do transporte, que deveria ser deduzido ao valor condenatório, carece de fundamento, posto que tal valor não foi considerado no cômputo da indemnização atribuída à Autora, não tendo sido um custo por esta reclamado..

Termos em que improcede a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - O contrato de transporte é um contrato de resultado, que apenas se mostra cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário, entendendo-se mesmo que é essa a obrigação essencial do transportador.
II - O contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada está sujeito a um regime próprio, a Convenção CMR, assinada em Genebra, em 19 de Maio de 1956, aprovada pelo Decreto-Lei n° 46.235, de 18 de Março de 1965, a qual regula, além do mais, a responsabilidade do transportador.
III - Não obstante terem as partes celebrado um contrato de transporte, pode suceder que as vicissitudes ocorridas na relação negocial estabelecida não respeitem ao transporte das mercadorias, enquanto tal.
IV - É o que ocorre com a não entrega da mercadoria na data e local convencionado, por motivo não relacionado com o transporte.
V - Sendo este incumprimento o facto jurídico de que emerge o direito da parte e fundamenta, portanto, a sua pretensão, o prazo de prescrição é o prazo geral de 20 anos previsto no artigo 309º do Código Civil, e não o prazo de prescrição estabelecido no artigo 32º da Convenção CMR.
VI - Do mesmo modo, o disposto nos arts. 19.º e 23.º, n.º5 da Convenção CMR que acolhe uma limitação da responsabilidade do transportador, decorrente do atraso na entrega da mercadoria, estabelecendo um desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos, não é aplicável.
*
IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 6 de Junho de 2019

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. Heitor Gonçalves (voto vencido)

Voto de vencido

Segundo o que resulta dos factos provados, o contrato celebrado entre as partes deve ser qualificado como um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, regulado pela Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), integrada no direito português pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18.03, contrato que a ré definitivamente deixou de cumprir ao não fazer entrega da mercadoria em Bilbao no dia convencionado – impreterivelmente no dia 1 de outubro 2015.
A obrigação incumprida era parte essencial e integrante desse contrato de transporte, e nessas circunstâncias a indemnização só poderia exceder os limites previstos no regime especial da CMR (artigos 23º e ss) por aplicação do normativo do artigo 29º, ou seja, caso de provasse que os danos provieram de dolo do transportador ou de qualquer agente ou comissário, e também entendo que o regime de prescrição aplicável é o expressamente previsto no artigo 32º.


1. Neste sentido, Francisco Costeira da Rocha, O contrato de transporte de mercadorias: contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias, obra citada, página 65.
2. Carlos Lacerda Barata, Contratos de Transporte Terrestre: formação e conclusão, volume III dos Temas de Direito dos Transportes, do Centro de Direito Marítimo e dos Transportes da Faculdade de Direito da Universidade de lisboa, pag. 628/629.
3. Disponível em www.dgsi.pt.