Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDO MONTERROSO | ||
Descritores: | BURLA ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 03/10/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário: | I – Resulta dos factos provados que no as assistentes e os arguidos celebraram uma escritura de permuta, nos termos da qual as assistentes deram um prédio urbano, recebendo, em contrapartida, a promessa de dádiva de seis fracções do prédio a erigir nessa parcela, sendo que, posteriormente, os arguidos procederam à alienação do prédio indicado, sem que nada ficasse a constar, na respectiva escritura, sobre o ónus a favor das ofendidas. II – Tais factos dir-nos-iam que os arguidos, ao celebrarem esta segunda escritura, actuaram com a intenção de não cumprir o contrato anteriormente celebrado com as ofendidas, causando-lhes um m prejuízo patrimonial de valor correspondente às fracções que iriam receber por permuta. III – Simplesmente, independentemente dos juízos morais que possam ser formulados, tal comportamento nunca poderia integrar a prática de um crime de burla. IV – Na verdade comete o crime de burla ”quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial … “ – v. art. 217 n° 1 do Cod. Penal. V – Ou seja, a decisão do agente do crime de enriquecer ilegitimamente à custa do burlado tem de ser anterior aos actos praticados por este, que causam prejuízo, actos estes que devem ser «determinados» pelo agente com o fito de enriquecimento, quando é certo que a situação em análise não configura mais do que a decisão de não cumprir um contrato, quando o mesmo já produziu todos os seus efeitos. VI – Já a acusação não continha factos suficientes para a condenação pois que, por um lado colocou a decisão de prejudicar as assistentes em momento posterior à escritura de permuta outorgada, por outro, não descreveu «factos» passíveis de integrarem o conceito de «erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados», limitando-se à afirmação conclusiva de que os “arguidos agiram por meio de engano”, pelo que, sendo a acusação que define o objecto do processo penal e limita os poderes de cognição do tribunal, a sua improcedência era inevitável. | ||
Decisão Texto Integral: | No Tribunal Judicial de Amares, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. 1.081/04.3TABRG), foi proferida sentença que absolveu os arguidos José N... e Manuel F... dos crimes de burla qualificada que lhes eram imputados, previstos e punidos pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), do Código Penal e do pedido de indemnização cível contra eles deduzido pelas assistentes e demandantes Ernestina R..., Anabela R..., Maria R... , Maria M... e Amália M.... * As assistentes Ernestina R..., Anabela R..., Maria R... Gomes Laranjo, Maria M... e Amália M... interpuseram recurso desta sentença. Suscitam as seguintes questões: - impugnam a decisão sobre a matéria de facto; - alterada a matéria de facto no sentido pretendido, visam a condenação dos arguidos no crime e no pedido cível. Respondendo a magistrada do MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso. * Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido. Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP. Colhidos os vistos, realizou-se a audiência. * I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição): 1. Ernestina , Anabela, Maria R..., Maria M... e Amália eram donas e legítimas possuidoras de um imóvel composto de parcela de terreno para construção, com a área de 1.555,70 m2, sito no Lugar de Arcela ou Santa Tecla, freguesia de S. Vítor, Braga. * Considerou-se não provado que: I. constantes da acusação pública: * FUNDAMENTAÇÃONos termos do art. 425 nº 5 do CPP: “os acórdãos absolutórios enunciados no art. 400 nº 1 al. d), que confirmem decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada”. É o que se faz neste acórdão, porque a decisão impugnada está fundamentada de forma clara sem merecer quaisquer reparos. Ainda assim acrescentar-se-á o seguinte: Os arguidos impugnam a decisão sobre a matéria de facto. No essencial, para além de ajustes de pormenor quanto aos «factos provados» (sem relevância para a caracterização do tipo de crime), pretendem que seja considerada provada a matéria das als. a) a e) dos «factos não provados». Uma dessas alíneas contém matéria de direito – al. c) “os arguidos agiram por meio de engano, com intenção de obter benefício económico, causando dessa forma um prejuízo patrimonial às ofendidas”. É uma conclusão que teria de resultar de outros factos provados. É certo que nem sempre é fácil distinguir as questões de facto das questões de direito. Não sendo este o local para a dilucidação exaustiva desta questão, sempre se dirá que há uma «questão de facto» quando se procura reconstituir uma situação concreta ou um evento do mundo real e há uma «questão de direito» quando se submete a tratamento jurídico a situação concreta reconstituída. Isto implica que o «facto» não pode incluir elementos que a priori contenham implicitamente a resolução da questão concreta de direito que há a decidir. Afirmar que alguém «agiu por meio de engano» sem concretizar em que consistiu esse engano é, não só, formular um juízo de valor que pressupõe o conhecimento duma situação concreta, mas também, incluir nesse juízo a resposta da questão a decidir, limitando-lhe ou traçando-lhe o destino. Por isso, a redacção da al. c) dos factos «não provados» nunca poderia passar a constar dos «factos provados». Aliás, como bem se assinala na sentença recorrida, em bom rigor, a acusação não descreve qualquer meio enganoso, o que, por si só, implicava o seu inevitável naufrágio. * Quanto à matéria das demais alíneas, ela era insusceptível de levar à condenação pelo crime de burla.Em resumo, resulta dos factos provados que no dia 17 de Julho de 2001, entre as assistentes e os arguidos (estes na qualidade de representantes da “TB..., Lda”) foi celebrada uma escritura de permuta, nos termos da qual as assistentes deram à “TB..., Lda, Lda” um prédio urbano composto de parcela de terreno para construção. Em contrapartida, a TB..., Lda deu (mais rigorosamente, prometeu dar) às assistentes seis fracções do prédio a erigir nessa parcela – cfr. escritura de fls. 14 e ss. Posteriormente, no mês de Novembro de 2002, os arguidos, em representação da sociedade “TM..., Lda.”, por escritura outorgada no Cartório Notarial de Amares, procederam à alienação do prédio indicado à sociedade “I... – Sociedade Imobiliária, Lda.”. Nesta escritura nada ficou a constar sobre o ónus a favor das ofendidas (factos provados nºs 7 e 8). Ora, os «factos não provados» das als. a), b) e d), se fossem considerados provados, dir-nos-iam que os arguidos, ao celebrarem esta segunda escritura, actuaram com a intenção de não cumprir o contrato anteriormente celebrado com as ofendidas, causando-lhes um prejuízo patrimonial de €500.000,00, valor correspondente às fracções que iriam receber por permuta. Independentemente dos juízos morais que possam ser formulados, tal comportamento nunca poderia integrar a prática de um crime de burla. Vejamos: Comete o crime de burla “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial…” – v. art. 217 nº 1 do Cod. Penal. Ou seja, a decisão do agente do crime de enriquecer ilegitimamente à custa do burlado tem de ser anterior aos actos praticados por este que causam prejuízo. Estes actos têm de ser «determinados» pelo agente com o fito de enriquecimento. No caso em apreço, o acto praticado pelas assistentes foi a celebração da escritura de 17 de Julho de 2001, em que dispuseram do prédio a favor da TM..., Lda. A proceder a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apenas ficaria assente que os arguidos em data posterior a terem recebido o prédio das assistentes, quando o alienaram à “I..., Lda” (Novembro de 2002), actuaram com intenção de não cumprirem o contrato. Isto não configura mais do que a decisão de não cumprir um contrato quando o mesmo já produziu todos os seus efeitos. Por outro lado, existe o requisito do «erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados». Quer se entenda que a mentira da astúcia tem de ser acompanhada da realização de actos exteriores destinados a dar-lhe maior credibilidade, quer se aceite que, consoante o caso concreto, é bastante uma mentira qualificada, que dê ao agente um genuíno domínio do erro, este não pode resumir-se ao convencimento de que a outra parte vai cumprir a sua prestação no contrato. Como se disse, já a acusação não continha factos suficientes para a condenação. Por um lado colocou a decisão de prejudicar as assistentes em momento posterior à escritura de permuta outorgada em 17 de Julho de 2001. Por outro, não descreve «factos» passíveis de integrarem o conceito de «erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados», limitando-se à afirmação conclusiva de que os “arguidos agiram por meio de engano”. Sendo a acusação que define o objecto do processo penal e limita os poderes de cognição do tribunal, a sua improcedência era inevitável. Finalmente, não será despropositado aqui lembrar o princípio da subsidiaridade do direito penal, a que alguns atribuem dignidade constitucional, segundo o qual a intervenção do direito criminal só é legítima quando a tutela dos bens jurídicos em causa não poder ser garantida por outras vias que implicam custos menos drásticos – cfr. ac. STJ de 1-7-98 CJ stj, tomo II, pag. 226. Tal como os factos foram configurados na acusação, está-se perante um mero não cumprimento contratual, para cuja solução o Direito prevê meios adequados, e que se situa num patamar bem distinto do patamar dos bens tutelados pelo direito penal. DECISÃO Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida. Custas pelas assistentes, fixando-se em 2 UCs a taxa de justiça devida por cada uma delas. |