Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2367/07-1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: BURLA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Resulta dos factos provados que no as assistentes e os arguidos celebraram uma escritura de permuta, nos termos da qual as assistentes deram um prédio urbano, recebendo, em contrapartida, a promessa de dádiva de seis fracções do prédio a erigir nessa parcela, sendo que, posteriormente, os arguidos procederam à alienação do prédio indicado, sem que nada ficasse a constar, na respectiva escritura, sobre o ónus a favor das ofendidas.
II – Tais factos dir-nos-iam que os arguidos, ao celebrarem esta segunda escritura, actuaram com a intenção de não cumprir o contrato anteriormente celebrado com as ofendidas, causando-lhes um m prejuízo patrimonial de valor correspondente às fracções que iriam receber por permuta.
III – Simplesmente, independentemente dos juízos morais que possam ser formulados, tal comportamento nunca poderia integrar a prática de um crime de burla.
IV – Na verdade comete o crime de burla ”quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial … “ – v. art. 217 n° 1 do Cod. Penal.
V – Ou seja, a decisão do agente do crime de enriquecer ilegitimamente à custa do burlado tem de ser anterior aos actos praticados por este, que causam prejuízo, actos estes que devem ser «determinados» pelo agente com o fito de enriquecimento, quando é certo que a situação em análise não configura mais do que a decisão de não cumprir um contrato, quando o mesmo já produziu todos os seus efeitos.
VI – Já a acusação não continha factos suficientes para a condenação pois que, por um lado colocou a decisão de prejudicar as assistentes em momento posterior à escritura de permuta outorgada, por outro, não descreveu «factos» passíveis de integrarem o conceito de «erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados», limitando-se à afirmação conclusiva de que os “arguidos agiram por meio de engano”, pelo que, sendo a acusação que define o objecto do processo penal e limita os poderes de cognição do tribunal, a sua improcedência era inevitável.
Decisão Texto Integral: No Tribunal Judicial de Amares, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. 1.081/04.3TABRG), foi proferida sentença que absolveu os arguidos José N... e Manuel F... dos crimes de burla qualificada que lhes eram imputados, previstos e punidos pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), do Código Penal e do pedido de indemnização cível contra eles deduzido pelas assistentes e demandantes Ernestina R..., Anabela R..., Maria R... , Maria M... e Amália M....
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As assistentes Ernestina R..., Anabela R..., Maria R... Gomes Laranjo, Maria M... e Amália M... interpuseram recurso desta sentença.

Suscitam as seguintes questões:

- impugnam a decisão sobre a matéria de facto;

- alterada a matéria de facto no sentido pretendido, visam a condenação dos arguidos no crime e no pedido cível.

Respondendo a magistrada do MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.


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Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos, realizou-se a audiência.


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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):

1. Ernestina , Anabela, Maria R..., Maria M... e Amália eram donas e legítimas possuidoras de um imóvel composto de parcela de terreno para construção, com a área de 1.555,70 m2, sito no Lugar de Arcela ou Santa Tecla, freguesia de S. Vítor, Braga.
2. O referido imóvel está descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º 2.900 e nela estava inscrito a favor de todas as ofendidas, em comum e sem determinação de parte ou de direito, nos termos da respectiva inscrição G-Um, omissa na matriz, mas para cuja inscrição foi apresentada declaração na 1ª Repartição de Finanças de Braga, em 4 de Julho de 2001.
3. Em 17 de Julho de 2001, por escritura de permuta outorgada no 1º Cartório Notarial de Barcelos, as ofendidas deram a título de permuta à sociedade “TM....”, o imóvel supra identificado.
4. Pela mesma escritura, a sociedade “TM..., Lda.” deu às ofendidas, a título de permuta, três habitações tipo T3, no prédio a construir, uma no segundo andar, outra no terceiro andar e outra no quarto andar, todas com a respectiva garagem, e o que iria corresponder a todo o rés-do-chão do prédio, constante de três fracções destinadas a comércio.
5. Ainda na mesma escritura ficou lavrado que a “TM..., Lda.” tinha de entregar às queixosas as referidas fracções até 12 meses após a concessão da licença de construção, acabadas, vistoriadas, com a respectiva licença de habitabilidade e registadas como fracções autónomas em propriedade horizontal.
6. Em representação da sociedade “TM..., Lda.” apresentaram-se sempre os arguidos José António Antunes e Manuel Faria.
7. No mês de Novembro de 2002, os arguidos, em representação da sociedade “TM..., Lda.”, por escritura outorgada no Cartório Notarial de Amares, procederam à alienação do prédio indicado em 1 e 2 à sociedade “I... – Sociedade Imobiliária, Lda.”, sita em Rendufe, Amares, pelo preço de €250.000,00, a qual o destinou a revenda.
8. Na aludida escritura nada ficou a constar sobre o ónus a favor das ofendidas.
9. Até Outubro de 2005, as ofendidas apenas receberam uma fracções, por permuta.
Mais se provaram os seguintes factos constantes do pedido de indemnização civil:
10. As demandantes eram donas e legítimas possuidoras do imóvel constituído por um prédio urbano, composto de parcela de terreno para construção, com a área de 1.555,70 m2, situado no Lugar de Arcela ou Santa Tecla, freguesia de Braga (S. Vítor), concelho de Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o número 2.090/ Braga (S. Vítor) e nela inscrito a seu favor em comum e sem determinação de parte ou direito, nos termos da respectiva inscrição G-Um, omissa na matriz, para cuja inscrição foi apresentada declaração na Primeira Repartição de Finanças de Braga, em 4 de Julho de 2001.
11. Por escritura de permuta, outorgada no Primeiro Cartório Notarial de Barcelos, em 17 de Julho de 2001, as demandantes, com autorização dos respectivos maridos, deram, a título de permuta, à sociedade TM...., pessoa colectiva n.º 504456881, com sede na Rua do Campo do Futebol, n.º 40, freguesia de Vilaça, concelho de Braga, matriculada na CRC de Braga sob o n.º 06249, na altura representada por Manuel Faria e sua mulher Maria Cecília da Silva Maia, o prédio urbano identificado em 10.
12. Pela mesma escritura a referida sociedade “deu” às demandantes, a título de troca, os seguintes bens, a construir no aludido prédio urbano:
· habitação tipo T3, no segundo andar norte, à direita da saída dos elevadores, destinado a habitação, com a terceira garagem do lado direito em relação à entrada, na cave;
· habitação tipo T3, no terceiro andar norte, do lado direito da saída dos elevadores, destinado a habitação, com a quarta garagem do lado direito em relação à entrada, na cave;
· habitação tipo T3, no quarto andar norte, do lado direito em relação à saída dos elevadores, destinado a habitação, com a quinta garagem do lado direito em relação à entrada, na cave;
· todo o rés-do-chão, a que correspondem três fracções destinadas a comércio.
13. Ficou ainda assente na referida escritura que a sociedade TM..., Lda. tinha a obrigação de entregar às demandantes os bens identificados em 12, até 12 meses após a concessão da licença de construção, todos livres de quaisquer ónus ou encargos e completamente acabados, sem nada lhes faltar, com todas as despesas a seu cargo, devidamente vistoriadas e já com licença de habitabilidade.
14. Ficou igualmente obrigada a sociedade TM..., Lda. a proceder ao registo das fracções autónomas objecto da permuta, juntamente com o título constitutivo da propriedade horizontal.
15. Até à presente data, apenas foi entregue uma fracção correspondente a uma habitação Tipo T3.
16. Os demandados, em representação da sociedade TM..., Lda., por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Amares, procederam à alienação do prédio urbano identificado supra à sociedade “I... – Sociedade Imobiliária, Lda”, NIPC 504.737.040, com sede no Lugar de Terrões, freguesia de Rendufe, concelho de Amares, pelo preço de €250.000,00.
17. Na referida escritura ficou declarado que o imóvel adquirido pela sociedade “I...” se destinava a revenda.
18. Os demandados / arguidos, ao venderem em representação da TM..., Lda. o imóvel referido em 1 e 2, ficaram impossibilitados de, por si só, cumprirem o acordo referido em 3 e 4.
19. Em 30 de Dezembro de 2004, a sociedade “I... – Sociedade Imobiliária, Lda.”, representada pelo seu sócio-gerente Abel Serafim Pimenta Lopes, através de documento escrito denominado “Acordo”, comprometeu-se a entregar às demandantes três habitações tipo T3 e duas fracções autónomas destinadas a comércio, em vez das 6 fracções referidas em 4.
20. As demandantes aceitaram o compromisso da “I...” referido em 19.
21. Tal entrega deveria ter sido efectuada até ao dia 31 de Março de 2005.
22. Comprometeu-se ainda a sociedade mencionada em 19 a fazer o registo provisório de aquisição dos referidos bens, a favor das demandantes, até ao dia 30 de Abril de 2005.
23. Até hoje apenas uma das fracções em apreço foi entregue às demandantes.
24. Aquando da outorga do contrato referido em 3 e seguintes, sobre o imóvel referido em 1 e 2 encontrava-se já implantado um edifício, cuja construção havia sido iniciada anteriormente pelos arguidos, em representação da sociedade TM..., Lda., e continuava a ser por ambos executada.
25. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

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Considerou-se não provado que:

I. constantes da acusação pública:
a) ao agirem nos termos referidos em 7 a 9, os arguidos fizerem-no com intenção de não cumprir o contrato celebrado com as ofendidas;
b) e causar-lhes um prejuízo patrimonial de €500.000,00 (quinhentos mil euros), valor correspondente às fracções que iriam receber por permuta;
c) os arguidos agiram por meio de engano, com intenção de obter benefício económico, causando dessa forma um prejuízo patrimonial às ofendidas;
d) ao vender o imóvel nos termos descritos em 7 e 8, os arguidos sabiam que estavam a lesar os interesses patrimoniais das ofendidas e fizeram-no com intenção de obter para si benefício ilegítimo;
e) agiram livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
II. constantes do pedido de indemnização civil:
f) Nem a sociedade TM..., Lda., representada pelos demandados / arguidos, nem a sociedade “I...” pretendiam concluir qualquer construção no imóvel supra identificado, uma vez que seria posteriormente revendido por esta;
g) A alienação do imóvel em apreço pelos demandados / arguidos à sociedade “I...” foi feita com a intenção de não cumprirem o contrato existente com as demandantes e sem o conhecimento das demandantes;
h) Ao alienarem o imóvel referido à sociedade “I..., Lda.”, estavam os arguidos conscientes que esta não pretendia concluir qualquer edifício no dito prédio.
i) Até hoje não foi feito o registo provisório de aquisição das fracções.

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FUNDAMENTAÇÃO
Nos termos do art. 425 nº 5 do CPP: “os acórdãos absolutórios enunciados no art. 400 nº 1 al. d), que confirmem decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada”.
É o que se faz neste acórdão, porque a decisão impugnada está fundamentada de forma clara sem merecer quaisquer reparos.
Ainda assim acrescentar-se-á o seguinte:
Os arguidos impugnam a decisão sobre a matéria de facto. No essencial, para além de ajustes de pormenor quanto aos «factos provados» (sem relevância para a caracterização do tipo de crime), pretendem que seja considerada provada a matéria das als. a) a e) dos «factos não provados».
Uma dessas alíneas contém matéria de direito – al. c) “os arguidos agiram por meio de engano, com intenção de obter benefício económico, causando dessa forma um prejuízo patrimonial às ofendidas”.
É uma conclusão que teria de resultar de outros factos provados.
É certo que nem sempre é fácil distinguir as questões de facto das questões de direito. Não sendo este o local para a dilucidação exaustiva desta questão, sempre se dirá que há uma «questão de facto» quando se procura reconstituir uma situação concreta ou um evento do mundo real e há uma «questão de direito» quando se submete a tratamento jurídico a situação concreta reconstituída. Isto implica que o «facto» não pode incluir elementos que a priori contenham implicitamente a resolução da questão concreta de direito que há a decidir.
Afirmar que alguém «agiu por meio de engano» sem concretizar em que consistiu esse engano é, não só, formular um juízo de valor que pressupõe o conhecimento duma situação concreta, mas também, incluir nesse juízo a resposta da questão a decidir, limitando-lhe ou traçando-lhe o destino.

Por isso, a redacção da al. c) dos factos «não provados» nunca poderia passar a constar dos «factos provados».

Aliás, como bem se assinala na sentença recorrida, em bom rigor, a acusação não descreve qualquer meio enganoso, o que, por si só, implicava o seu inevitável naufrágio.

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Quanto à matéria das demais alíneas, ela era insusceptível de levar à condenação pelo crime de burla.
Em resumo, resulta dos factos provados que no dia 17 de Julho de 2001, entre as assistentes e os arguidos (estes na qualidade de representantes da “TB..., Lda”) foi celebrada uma escritura de permuta, nos termos da qual as assistentes deram à “TB..., Lda, Lda” um prédio urbano composto de parcela de terreno para construção. Em contrapartida, a TB..., Lda deu (mais rigorosamente, prometeu dar) às assistentes seis fracções do prédio a erigir nessa parcela – cfr. escritura de fls. 14 e ss.
Posteriormente, no mês de Novembro de 2002, os arguidos, em representação da sociedade “TM..., Lda.”, por escritura outorgada no Cartório Notarial de Amares, procederam à alienação do prédio indicado à sociedade “I... – Sociedade Imobiliária, Lda.”. Nesta escritura nada ficou a constar sobre o ónus a favor das ofendidas (factos provados nºs 7 e 8).
Ora, os «factos não provados» das als. a), b) e d), se fossem considerados provados, dir-nos-iam que os arguidos, ao celebrarem esta segunda escritura, actuaram com a intenção de não cumprir o contrato anteriormente celebrado com as ofendidas, causando-lhes um prejuízo patrimonial de €500.000,00, valor correspondente às fracções que iriam receber por permuta.
Independentemente dos juízos morais que possam ser formulados, tal comportamento nunca poderia integrar a prática de um crime de burla.
Vejamos:
Comete o crime de burlaquem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial…” – v. art. 217 nº 1 do Cod. Penal.
Ou seja, a decisão do agente do crime de enriquecer ilegitimamente à custa do burlado tem de ser anterior aos actos praticados por este que causam prejuízo. Estes actos têm de ser «determinados» pelo agente com o fito de enriquecimento.
No caso em apreço, o acto praticado pelas assistentes foi a celebração da escritura de 17 de Julho de 2001, em que dispuseram do prédio a favor da TM..., Lda. A proceder a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apenas ficaria assente que os arguidos em data posterior a terem recebido o prédio das assistentes, quando o alienaram à “I..., Lda” (Novembro de 2002), actuaram com intenção de não cumprirem o contrato.
Isto não configura mais do que a decisão de não cumprir um contrato quando o mesmo já produziu todos os seus efeitos.
Por outro lado, existe o requisito do «erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados». Quer se entenda que a mentira da astúcia tem de ser acompanhada da realização de actos exteriores destinados a dar-lhe maior credibilidade, quer se aceite que, consoante o caso concreto, é bastante uma mentira qualificada, que dê ao agente um genuíno domínio do erro, este não pode resumir-se ao convencimento de que a outra parte vai cumprir a sua prestação no contrato.
Como se disse, já a acusação não continha factos suficientes para a condenação. Por um lado colocou a decisão de prejudicar as assistentes em momento posterior à escritura de permuta outorgada em 17 de Julho de 2001. Por outro, não descreve «factos» passíveis de integrarem o conceito de «erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados», limitando-se à afirmação conclusiva de que os “arguidos agiram por meio de engano”. Sendo a acusação que define o objecto do processo penal e limita os poderes de cognição do tribunal, a sua improcedência era inevitável.
Finalmente, não será despropositado aqui lembrar o princípio da subsidiaridade do direito penal, a que alguns atribuem dignidade constitucional, segundo o qual a intervenção do direito criminal só é legítima quando a tutela dos bens jurídicos em causa não poder ser garantida por outras vias que implicam custos menos drásticos – cfr. ac. STJ de 1-7-98 CJ stj, tomo II, pag. 226. Tal como os factos foram configurados na acusação, está-se perante um mero não cumprimento contratual, para cuja solução o Direito prevê meios adequados, e que se situa num patamar bem distinto do patamar dos bens tutelados pelo direito penal.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.
Custas pelas assistentes, fixando-se em 2 UCs a taxa de justiça devida por cada uma delas.