Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
228/17.4T8PTL.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO
APLICAÇÃO AOS PROCESSOS PENDENTES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1- A interpretação a dar ao art. 26º, n.º 1 da Lei n.º 49/2018, de 14/08, que instituiu o regime jurídico do maior acompanhado, é no sentido de que o regime processual nela estabelecido se aplica imediatamente a todos os atos processuais a praticar nos processos de interdição e inabilitação que se encontrassem pendentes à data da sua entrada em vigor, mas que também se aproveitam todos os atos processuais neles antes praticados.

2- O pressuposto da legitimidade ativa afere-se pela relação material controvertida delineada pelo requerente na petição inicial (pedido, causa de pedir e sujeitos), por referência à data da citação da requerida para a ação (princípio da estabilidade da instância), pelo que quaisquer alterações legislativas que ocorram após essa citação, não interferem no pressuposto processual da legitimidade.

3- Tendo o requerente legitimidade ativa para propor a ação de interdição à data da citação da requerida para essa ação, a posterior entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, não retira ao requerente a legitimidade ativa para prosseguir com essa ação, agora transmutada em ação de maior acompanhado.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

Recorrente: (…)
Recorridos: Ministério Público e (…)

(…), instaurou a presente ação especial de interdição contra (…) sua mãe, em 29/03/2017, alegando, em síntese, que esta conta 78 anos de idade e desde 2007 tem vindo a perder progressivamente a sua audição, o que interfere no desenvolvimento da linguagem e da fala.
Acresce que desde janeiro de 2008, a requerida apresenta um quadro de demência e de debilidade.
Conclui que a requerida está incapaz de governar a sua pessoa e bens.

A requerida contestou impugnando a quase totalidade da factualidade alegada pelo Autor, requerendo que a ação seja julgada improcedente.
Realizou-se exame pericial à requerida.
Proferiu-se despacho em que se decidiu que o tribunal não procederia a interrogatório da requerida naquela concreta fase processual.
Fixou-se o valor da ação, proferiu-se despacho saneador tabelar e fixou-se o objeto do litígio e os temas da prova, não tendo havido reclamações.
Conheceu-se dos requerimentos probatórios apresentados pelas partes e sujeitou-se a requerida a novo exame médico.
Designou-se data para a realização de audiência final.

Aberta a audiência final o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

“Entrou entretanto em vigor, naquilo que para o presente processo importa, o regime jurídico do maior acompanhado previsto na Lei 49/2018, de 14 de Agosto.
Esse regime, de acordo com o seu artigo 26.º, tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor e é precisamente no âmbito deste processo que nos encontramos. Diz-se ainda no artigo 26.º, nº2 que «O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes».
Ora, uma das alterações produzidas com a entrada em vigor desta lei é aquela que foi levada ao artigo 141.º do Código Civil. Diz-se no nº1 desse artigo que «O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.». Diz-se ainda no nº 2 do mesmo artigo «O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível» parecendo, no nº3 do artigo 141.º que esse «pedido de suprimento» pode e deve ser apreciado neste processo.
Ora, se é inequívoco que em momento anterior à data da entrada em vigor da presente lei, o requerente filho da requerida/beneficiária tinha legitimidade para intentar a ação, parece, de acordo com esta norma levada ao Código Civil, que tem valor de direito adjetivo, que essa legitimidade terá agora que ser aferida para poder a requerente prosseguir com o processo, ou seja, parece resultar do artigo 141.º do Código Civil que o Tribunal só pode submeter o requerido a julgamento se a requerente demonstrar manter, de acordo com a nova lei agora em vigor, legitimidade para tal – legitimidade superveniente.
Para isso, de acordo com o artigo 141.º, terá o requerente de, ou obter autorização da requerida, ou então pedir, se não a obtiver, do Tribunal o suprimento dessa autorização, pois parece ao signatário que sem a verificação deste requisito, não pode submeter a requerida a julgamento, de acordo com as normas levadas ao novo regime do maior acompanhado.
Assim sendo, notifica-se a requerente para, em conformidade e no prazo de dez dias, demonstrar que a legitimidade originária que tinha se mantém agora, de acordo com a nova lei.
Face ao exposto, dou sem efeito a presente diligência”.

O Autor apresentou requerimento em que refuta os argumentos aduzidos pelo tribunal, sustentando que continua a dispor de legitimidade ativa para instaurar a ação de interdição e para com ela prosseguir e isto, não obstante a entrada em vigor da nova lei.
Por sua vez, a requerida pronunciou-se no sentido do Autor não dispor de legitimidade ativa para prosseguir com a presente ação de interdição face à entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14/08.
O tribunal a quo, ao abrigo do princípio da adequação formal, ordenou que fosse aberta vista ao Ministério Público no sentido de informar se pretende intervir nos autos, a título principal, do lado ativo da demanda.
Tendo tido vista nos autos, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que “face ao teor dos relatórios da perícia médico-legal juntos aos autos, não pretende intervir nos autos, a título principal, do lado ativo da demanda”.

Após, proferiu-se sentença julgando extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide e que consta do seguinte teor:

“Com a entrada em vigor da Lei 49/2018 de 14.8, vincou-se nas normas levadas ao artigo 891.º, 1 do Código de Processo Civil (designadamente com a aplicação das regras próprias dos processos de jurisdição voluntária ao processo de maior acompanhado) e ao artigo 141.º do Código Civil (com a obrigatoriedade de, fora dos casos da atuação do Ministério Público e suprimento judicial, o acompanhamento ser requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, por determinadas pessoas) o entendimento de que não há, ou não pode haver, conflitos de interesses a dirimir no regime jurídico do maior acompanhado. O interesse a prosseguir é o de apenas uma pessoa: o do/a maior que se pretende ver acompanhado/a. E, para tanto, não admite a nova lei, salvo nos casos que exceciona, que a manifestação desse interesse se faça ao arredio da vontade do interessado na medida (agora designado por beneficiário). Ou este requer a medida de acompanhamento ou concorda que esse requerimento seja deduzido por pessoa que a lei aponta.
Dito de outra forma: o interesse do requerido deixou, fora da atuação do Ministério Público e do suprimento da autorização do tribunal, de poder ser, sem a obtenção da autorização do interessado, questionado isoladamente.
E, perdendo a aqui requerente, ainda que supervenientemente, legitimidade para, isoladamente, questionar o interesse da aqui requerida em beneficiar de medida de acompanhamento, impossível se torna o prosseguimento da ação, sob pena de, em plena vigência do novo regime jurídico, se submeter a aqui requerida, contra a sua vontade, aos efeitos de uma decisão judicial, seja ela qual for – de procedência ou improcedência – decorrentes de um processo cuja existência não admite.
Assim sendo, perdendo a requerente a legitimidade ativa processual outrora prevista na lei, e não tendo a ilegitimidade sido, pela via do mecanismo da adequação processual, suprida, impõe-se a extinção dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277.º, e) do CPC.
Pelo exposto, julgo a ação extinta por impossibilidade superveniente da lide.
Valor: €30.000,01
Custas em partes iguais – artigo 536.º, 2, a) do CPC”.

Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

1) Vem o presente recurso interposto da sentença despacho proferido a fls… pela Instância Local de Ponte de Lima do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no processo supra referido, de acordo com a qual foi “Assim sendo, perdendo a requerente a legitimidade ativa processual outrora prevista na lei, e não tendo a ilegitimidade sido, pela via do mecanismo da adequação processual, suprida, impõe-se a extinção dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277.º, e) do CPC.”
2) Absit injuria verbo, não pode o Recorrente conformar-se com tal sentença/decisão. Isto porque, entendeu o digníssimo Tribunal “a quo” que “Com a entrada em vigor da Lei 49/2018 de 14.8, vincou-se nas normas levadas ao artigo 891.º, 1 do Código de Processo Civil (designadamente com a aplicação das regras próprias dos processos de jurisdição voluntária ao processo de maior acompanhado) e ao artigo 141.º do Código Civil (com a obrigatoriedade de, fora dos casos da atuação do Ministério Público e suprimento judicial, o acompanhamento ser requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, por determinadas pessoas) o entendimento de que não há, ou não pode haver, conflitos de interesses a dirimir no regime jurídico do maior acompanhado. O interesse a prosseguir é o de apenas uma pessoa: o do/a maior que se pretende ver acompanhado/a. E, para tanto, não admite a nova lei, salvo nos casos que exceciona, que a manifestação desse interesse se faça ao arredio da vontade do interessado na medida (agora designado por beneficiário). Ou este requer a medida de acompanhamento ou concorda que esse requerimento seja deduzido por pessoa que a lei aponta. (…)
3) E, perdendo a aqui requerente, ainda que supervenientemente, legitimidade para, isoladamente, questionar o interesse da aqui requerida em beneficiar de medida de acompanhamento, impossível se torna o prosseguimento da ação, sob pena de, em plena vigência do novo regime jurídico, se submeter a aqui requerida, contra a sua vontade, aos efeitos de uma decisão judicial, seja ela qual for – de procedência ou improcedência – decorrentes de um processo cuja existência não admite.
Assim sendo, perdendo a requerente a legitimidade ativa processual outrora prevista na lei, e não tendo a ilegitimidade sido, pela via do mecanismo da adequação processual, suprida, impõe-se a extinção dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277.º, e) do CPC.
Pelo exposto, julgo a ação extinta por impossibilidade superveniente da lide.”. – (cfr. com sentença recorrida).
4) Salvo o devido e merecido respeito por opinião diversa não se crê que assista razão ao digno tribunal a quo.
5) Estamos perante um problema de aplicação da lei processual no tempo, quanto à aplicação no tempo da lei processual civil, a regra é a mesma que vale na teoria geral do direito: a lei nova é de aplicação imediata aos processos pendentes, mas não possui eficácia retroactiva - artigo 12.º, n.º 1 do CC.
6) A lei só se aplica aos factos que depois da sua entrada em vigor se operaram; e, mesmo que normativamente permitida, a retroatividade está sujeita aos limites que o n.º 2 do art.º 12.º do CC lhe impõe para a sua real concretização.
7) A lei só não é injustamente retroativa se respeitar os direitos adquiridos, podendo apenas não respeitar as expetativas. De acordo com os critérios estabelecidos no artigo 12º do CC, a lei só dispõe para o futuro, não tendo eficácia retroativa, salvo se o legislador e nos limites consentidos claramente lhe atribuir essa eficácia, por isso, quando a lei nova regula os efeitos de certos factos, como expressão duma valoração dos factos que lhes deram origem, deve entender-se que só se aplica aos factos novos, nos termos da primeira parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil.
8) No mais fazemos nossas as palavras do CEJ muito mais sábias e merecedoras de leitura atenta:
“A aplicação no tempo em matéria processual é regulada no art.º 26.º, n.º 1, 2, 3, 5 e 8, L 49/2018. São, essencialmente, dois os aspetos a considerar:
- A aplicação no tempo do novo regime processual sobre o acompanhamento de maiores (art.º 26.º, n.º 1, 2 e 3, L 49/2018);
- As consequências da conversão das antigas interdições e inabilitações (art.º 26.º, n.º 4 e 6, L 49/2018) para a autorização da prática de actos pessoais e para a revisão dos acompanhamentos resultantes dessa conversão (art.º 26.º, n.º 5 e 8, L 49/2018).
9) O art.º 26.º, n.º 1, L 49/2018 estabelece que o novo regime é imediatamente aplicável aos processos de interdição e inabilitação que se encontrem pendentes no momento da sua entrada em vigor. Não se trata de nada inédito, dado que a aplicação imediata de novas regulamentações legais em matéria de processo, apesar de não ser imperiosa, é bastante comum. No caso do novo regime de acompanhamento de maiores, dadas as razões subjacentes a este regime e a sua nova fisionomia, a aplicação imediata da nova regulamentação processual é não só compreensível, como até desejável.
10) A isto acresce que, como se dispõe no art.º 26.º, n.º 3, L 49/2018, aos atos do requerido se aplica a lei vigente no momento da sua prática. Pretendeu-se salvaguardar o requerido – que, normalmente, será o beneficiário – quanto aos atos já praticados e a praticar em processos pendentes, mas, de acordo com a regra tempus regit actus, há que entender que a aplicação imediata do novo regime vale para qualquer das partes.
11) Disto decorre, grosso modo, o seguinte: - Aproveitam-se todos os actos praticados pelas partes em processos de interdição e de inabilitação que estejam pendentes no momento da entrada em vigor do novo regime de acompanhamento de maiores, mesmo que esses atos não tenham correspondência neste regime; - Todos os actos a praticar, depois da entrada em vigor do regime do acompanhamento de maiores, em processos de interdição ou de inabilitação pendentes devem ser realizados de acordo com este regime; é o que sucede, por exemplo, com a citação do beneficiário (art.º 895.º).
12) A aplicação do novo regime de acompanhamento de maiores às ações de interdição e de inabilitação que se encontrem pendentes é imediata, mas não é automática. Tal como se estabelece no art.º 26.º, n.º 2, L 49/2018, o juiz deve utilizar os seus poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547.º) para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes. Quer dizer: o novo regime é de aplicação imediata às acções de interdição e de inabilitação, mas cabe ao juiz compatibilizar essa aplicação com o estado em que se encontrarem essas ações.
13) Como é evidente, as adaptações necessárias são necessariamente distintas de ação para ação, pelo que só é possível fornecer como orientação geral que se aproveita tudo o que tenha sido praticado nessas ações, sem se afastar que possa ser repetido algo que importe fazer de acordo com o novo regime.
14) Os juízes continuam obrigados a julgar segundo a lei vigente e a respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art.º 4.º – 2 da Lei n.º 21/85, de 30/7) e, daí que o poder – dever que lhes confere o preceito em causa deva ser usado tão somente quando o modelo legal se mostre de todo inadequado às especificidades da causa e, em decorrência, colida frontalmente com o atingir de um processo equitativo. Trata-se de uma válvula de escape, e não de um instrumento de utilização corrente, sob pena de subverter os princípios essenciais da certeza e da segurança jurídica.

Mais se diga que,

15) Salvo o devido e merecido respeito por opinião diferente, a interpretação que o tribunal a quo faz do artigo 141º, n.º 1 do Código Civil na redacção dada pela Lei n.º 49/2018, conjugada com os artigos 26.º, n.ºs 1, 2, 3, 5 e 8, da referida Lei n.º 49/2018 ao entender que o Requerente perdeu a legitimidade ativa processual outrora prevista na lei (anterior artigo 141º do CC) é inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança.
16) Inconstitucionalidade, essa que, desde já se argui para todos os efeitos legais.
17) Diga-se, desde já, que ao longo do tempo o elenco de pessoas com legitimidade para propor a presente ação manteve-se estável e inalterável.
18) Como é bom de ver não era de prever, designadamente no que se refere às pessoas a quem o legislador atribui legitimidade para propor a presente ação que fossem retirados do elenco do artigo 141º, naturalmente que os destinatários da lei não poderiam razoavelmente contar com qualquer modificação operada na ordem jurídica, no sentido em que foi firmado, pelo que se deve concluir pela verificação de uma violação irrazoável das expetativas criadas.
19) Admite-se a eficácia retroativa da lei processual, por via, por exemplo, da consagração de disposições transitórias, todavia, tal retroatividade tem um limite: a Constituição da República Portuguesa.“uma aplicação retroativa ou retrospetiva da nova lei que afete de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos deve ser declarada inconstitucional com fundamento na violação do princípio da segurança e proteção da confiança ínsito no artigo 2º da Constituição (CRP)” (v. Maria João Galvão Teles in na Revista JULGAR on line -2013).
20) Uma nova lei não pode frustrar de forma intolerável ou arbitrária as expetativas dos cidadãos que haviam sido criadas por uma anterior tutela conferida pelo direito, sob pena de ser considerada inconstitucional por violação do princípio constitucional da confiança que integra o princípio do Estado de Direito Democrático.
21) Por conseguinte, a aplicação retroativa do artigo 141º do Código Civil na redação dada pela Lei n.º 49/2018, a processos pendentes à data da sua entrada em vigor, e já em fase de julgamento, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas.
22) Ponderando-se os dois interesses em confronto - os particulares têm interesse na estabilidade da ordem jurídica e das situações jurídicas constituídas a fim de organizarem os seus planos de vida, evitando-se o mais possível a frustração das suas expetativas fundadas; o interesse público preocupa-se com a transformação da ordem jurídica de modo a adaptá-la o mais possível às necessidades sociais – o método do juízo de avaliação e ponderação dos interesses relacionados com a proteção da confiança é igual ao que se segue quando se julga sobre a proporcionalidade ou adequação substancial de uma medida restritiva de direitos.
Mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança e adaptação do quadro legislativo vigente, ainda assim é necessário aferir, à luz de parâmetros materiais e axiológicos, se a medida do sacrifício é «inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa» (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 862/13 e n.º 287/90).
23) Senão pense-se na quantidade de trabalho e de processos conduzidos por magistrados e advogados por esse país fora, com elevados custos tanto para requerentes como para requeridos, - tudo isso na perspetiva do tribunal a quo é de se deitar pura e simplesmente ao “lixo”…e vamos começar tudo de novo…com duplicação de processos, de meios (tanto materiais como humanos), e de despesas!
24) Face ao supra exposto, deve assim ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, por violação nomeadamente dos artigos 2º, 205º da Constituição da República Portuguesa, 12º, 141º do Código Civil na redação da Lei n.º 49/2018, e 26.º, n.ºs 1, 2, 3, 5 e 8, da referida Lei n.º 49/2018, devendo ainda ser declarada inconstitucional a interpretação que o tribunal a quo faz do artigo 141º, n.º 1 do Código Civil na redação dada pela Lei n.º 49/2018, conjugada com os artigos 26.º, n.ºs 1, 2, 3, 5 e 8, da referida Lei n.º 49/2018 ao entender que o Requerente perdeu a legitimidade ativa processual outrora prevista na lei (anterior artigo 141º do CC) por violação do princípio da segurança e proteção da confiança.

A apelada contra-alegou, mas ordenou-se o desentranhamento das suas contra-alegações, por intempestivas.

O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação, apesentando as conclusões que se seguem:

1– O art.º26º, n.º1 da Lei nº49/2018, de 14/08, estabelece de forma clara e inequívoca a aplicação imediata de tal lei aos processos de interdição ou de inabilitação pendentes à data da sua entrada em vigor, pelo que se aplica ao processo em causa.
2- Para tal, a própria lei determinou no n.º2 do referido art.º26º que o julgador utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes para concretização do estatuído no n.º1 do mesmo preceito legal.
3- A Lei nº49/2018, de 14/08 acentuou a primazia da vontade do beneficiário na escolha do acompanhante e das medidas de que considere dever beneficiar com vista ao exercício pleno dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres, limitadas ao necessário.
4 – O requerente, apesar do prazo concedido para o efeito, não supriu a falta de autorização da beneficiária nem requereu que fosse suprida pelo Tribunal.
5- Face aos relatórios médicos juntos aos autos, ao interesse que se visa salvaguardar com esta ação, declinou o Ministério Público intervir no lado ativo com o requerente para que os autos pudessem prosseguir.
6 - Com o recurso ao mecanismo da adequação processual, legalmente contemplado, não ocorreu qualquer violação de princípios constitucionais na interpretação por parte do Tribunal a quo dos preceitos legais que aplicou.
7- A decisão proferida não é merecedora de censura e, por isso, deverá ser integralmente mantida.
Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, mantida a douta decisão recorrida.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento do que se caba de dizer, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste Tribunal são duas, a saber:

a- se ao julgar extinta a instância da presente ação especial de interdição (agora de acompanhamento de maior) por impossibilidade superveniente da lide, como decorrência da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14/08, que aprovou o regime jurídico do maior acompanhada e na sequência do apelante não ter comprovado nos autos ter obtido autorização da visada para prosseguir com a ação, sequer ter requerido o suprimento dessa autorização ao Tribunal e o Ministério Público ter declarado não pretender intervir no processo, a título principal, do lado ativo, a sentença recorrida padece de erro de direito; e
b- no caso negativo, se a interpretação do art. 141º, n.ºs 1, na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14/08, conjugado com o art. 26º, n.ºs 1, 2, 3 e 5 desta, nos termos da qual o apelante, em face do anteriormente referido, perdeu legitimidade ativa para prosseguir com a ação, não obstante deter essa legitimidade à data em que a propôs e do processo se encontrar em fase de julgamento, é materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da segurança e da proteção da confiança.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para a decisão a proferir no âmbito da presente apelação são os que constam do relatório acima elaborado.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Enunciadas supra as questões que se encontram submetidas à apreciação desta Relação, entrando na abordagem da primeira questão, impõe-se ter presente que a Lei n.º 49/2018, de 14/08, que criou o regime jurídico do maior acompanhado, entrada em vigor em 10/02/2019, eliminou da ordem jurídica civil nacional os institutos da interdição e da inabilitação.
Os institutos da interdição e da inabilitação encontravam-se regulados, respetivamente, nos arts. 138º a 151º e 152º a 156º do CC (Código este a que se referem todos os dispositivos legais que infra se identificarão, sem qualquer menção em contrário).
As causas que determinavam a interdição eram a anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira que tornasse o sujeito visado incapaz do exercício da sua pessoa e bens (art. 138º).
Todas as causas de interdição que, embora de carácter permanente, não fossem de tal modo graves que justificassem a interdição e, bem assim a habitual prodigalidade ou o uso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes por parte do visado que determinassem que este fosse incapaz de reger o seu património, eram fundamento de inabilitação (art. 152º).
Os institutos da interdição e da inabilitação colocavam o seu foco na primazia da segurança e certeza do comércio jurídico, isto é, dos terceiros que contratassem com a pessoa com incapacidade (1).
Punha-se igualmente em foco os interesses patrimoniais da família da pessoa visada, procurando-se defender o mesmo contra atos de má administração ou de dissipação e, por essa via, salvaguardar os futuros direitos sucessórios desses familiares, tanto assim que se atribuía legitimidade ativa para requerer a interdição ou a inabilitação da pessoa incapacitada, não só ao Ministério Público, mas, sem qualquer restrição, também a qualquer parente sucessível do visado (arts. 141º, n.º 1 e 156º do CC).
Tal significa que ao abrigo do precedente regime da interdição e da inabilitação, os direitos da pessoa incapacitada eram arredados e subordinados aos valores da segurança e certeza do comércio jurídico e à salvaguarda do património familiar, funcionando aqueles mecanismos como forma de eliminar a plena capacidade de exercício de direitos reconhecidos por lei aos maiores e emancipados (arts. 122º, 123º, 130º, 132º e 133º) em face do estado de incapacidade do incapaz.
Interdita a pessoa, esta ficava privada da capacidade do exercício dos seus direitos, sendo equiparada ao menor (art. 139º) e reconduzida ao estado de incapacidade e, por conseguinte, de menoridade e de inferioridade dos últimos, passando a sua pessoa e bens a serem regidos por terceiro, designado por “tutor”.
Por sua vez, inabilitada a pessoa visada, esta sofria uma ablação, maior ou menor, na capacidade de exercício dos direitos sobre o seu património, passando os atos de disposição entre vivos daquele e todos os que, em atenção às circunstâncias de cada caso, fossem especificados na sentença que decretou a inabilitação, a ficar dependentes da prévia autorização de um curador (art. 153º); a administração do património podia ser entregue pelo tribunal, no todo ou em parte, ao curador (art. 154º).
Claro que se estava na presença de um modelo essencialmente dualista, em que a pessoa ou era considerada “capaz” ou “totalmente incapaz”, em que o interdito era totalmente privado do exercício dos seus direitos pessoais e patrimoniais, sem se atender que a incapacidade, a existir, comporta graus diferenciados, nem sempre sendo total.
Não se compadecendo a incapacidade com a inabilitação do visado, este era pura e simplesmente declarado interdito e, por conseguinte, privado, em absoluto, isto é, totalmente, do exercício dos seus direitos, não se tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e menorizando-se, assim, a pessoa incapacitada.
Não admira pois, que não faltasse quem questionasse a conformidade constitucional deste modelo à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º da CRP, como pedra angular da ordem jurídica nacional, princípio este que, na nossa perspetiva, é um direito natural, ínsito à condição da pessoa humana e, por isso, supra constitucional, porque anterior à própria ideia de “Estado”.
Acresce que este regime se tornou incompatível com os instrumentos internacionais a que o Estado Português se vinculou, nomeadamente, com a Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Convenção de Nova York), entrada em vigor na ordem jurídica nacional, juntamente com o “Protocolo Adicional”, a 3 de maio de 2008.
Na verdade, desta Convenção resultam como princípios fundamentais e estruturantes da relação do Estado com a pessoa incapacitada: a subsidiariedade relativamente aos “deveres de proteção e acompanhamento comuns”, próprios das relações familiares; “limitações judiciais à capacidade”; “flexibilização da incapacidade a decretar, de modo a adequá-la à singularidade da situação”; “controlo judicial eficaz sobre qualquer constrangimento imposto”; “primado dos (…) interesses pessoais e patrimoniais” do visado; “agilização dos procedimentos e intervenção do Ministério Público em defesa e, se necessário, em representação do visado” (2).
Foram estas exigências constitucionais e internacionais a que a nova lei do maior acompanhado visou dar resposta.
Nela abandonou-se o processo dualista de interdição/inabilitação que, pela sua rigidez e centrar os seus objetivos no suprimento de uma incapacidade de exercício de direitos e de restrição da atuação do representante aos atos conservatórios do património do inabilitado, se mostrava desadequado à satisfação das necessidade das pessoas com incapacidade e desconforme ao princípio da dignidade da pessoa humana consagrado na Constituição e às obrigações assumidas internacionalmente pelo Estado Português (3).
No novo regime do maior acompanhado, o foco é agora colocado, não na salvaguarda do tráfego e segurança jurídicas e do património familiar da pessoa com incapacidade, face às limitações desta, mas na própria pessoa com incapacidade e no seu respeito enquanto ser humano, sujeito de direitos e obrigações, com dignidade própria, a quem se impõe, respeitar o seu direito à liberdade e autodeterminação.
Dentro desta nova filosofia, arreda-se o sistema da total incapacidade da pessoa humana, própria do anterior instituto da interdição, parte-se do princípio que todo o ser humano maior é capaz do exercício dos seus direitos, sejam pessoais ou patrimoniais, flexibiliza-se o sistema no sentido de se adaptar a ablação dessa capacidade à incapacidade própria da pessoa concreta, estabelece-se que essa ablação visa a satisfação dos interesses da própria pessoa com incapacidade e procura-se que esta, na medida do possível, isto é, na exata medida em que as suas capacidades e incapacidades o permitam fazer, participe na tomada das decisões relativamente à sua pessoa e/ou património e tenha a última palavra sobre esses assuntos, não sendo aquela, pura e simplesmente, “substituída”, mas sim tratada de acordo com o seu estatuto de pessoa humana, com dignidade própria e, por isso, sujeito de direitos e obrigações e com o direito à liberdade e autodeterminação.
Trata-se, nas palavras de Pinto Monteiro, de “proteger sem incapacitar”, em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisões (4).
O novo regime trouxe assim toda uma nova filosofia, um novo posicionamento, perante a pessoa com incapacidade.
Conforme resulta do art. 140º do CC., na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, o regime do maior acompanhado tem como objetivo garantir o seu bem estar, a recuperação, o pleno exercício dos seus direitos, bem como a observância dos deveres do sujeito maior de idade, concentrando-se na pessoa, nas suas especiais necessidades decorrentes das suas impossibilidades.
Dentro desta nova filosofia e dos escopos prosseguidos pelo novo regime, este limita-se à intervenção mínima possível, necessária e suficiente a garantir a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior incapacitada, dentro dos circunstancialismos concretos, máxime, suas capacidades e incapacidades.
Abandonou-se a filosofia do “tudo ou nada”, ou seja, da total incapacidade do exercício dos direitos pelo interdito e centra-se a intervenção do Estado e do acompanhante na prossecução dos direitos e interesses da própria pessoa incapacitada, no respeito pela sua dignidade, liberdade e autodeterminação, e restringe-se essa intervenção e a consequente limitação do exercício dos direitos ao mínimo necessário, adequado e indispensável à salvaguarda dos direitos e interesses pessoais e patrimoniais desta.
Este novo paradigma trouxe, como não podia deixar de ser, enormes modificações na ordem jurídica, quer em termos substantivos, quer processuais.
Em sede substantiva, eliminaram-se os precedentes institutos da interdição e da inabilitação e estabeleceu-se o novo regime do maior acompanhado, cuja filosofia, como dito, é totalmente distinta dos anteriores institutos.
Introduziram-se uma série de alterações a legislação avulsa, por forma a adequá-la ao novo regime e sua filosofia.
Em termos processuais alterou-se o regime do processo especial de interdição e inabilitação, previsto nos arts. 891º e 905º do CPC, e adoptou-se o mesmo à nova lei substantiva.
Dentro do enunciado novo paradigma, compreende-se que o art. 141º do CC, na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, tenha restringido a legitimidade ativa para a instauração da ação especial de maior acompanhado: a) ao próprio visado; b) ao cônjuge ou unido de facto deste ou a qualquer seu sucessível, desde que autorizado por aquele; e c) ao Ministério Público, independentemente dessa autorização.
Note-se, no entanto, que em relação ao cônjuge, unido de facto ou aos sucessíveis do visado, a autorização deste pode ser suprida pelo tribunal a quem é requerido o decretamento da medida de acompanhamento (arts. 141º, n.º 2 do CC e 892º, n.º 2 do CPC).
Reconhece-se, assim, que situações existem em que fruto da incapacidade do visado, este não disporá de capacidade e discernimento para prestar a sua autorização para a propositura da ação e para avaliar plenamente o significado e as consequências do seu ato de recusa e que, não obstante se conferir legitimidade ativa ao Ministério Público para propor a ação independentemente dessa autorização, esta válvula de segurança poderá ser insuficiente para salvaguardar cabalmente os interesses e direitos da pessoa com incapacidade.
Desta feita, se o visado não estiver em condições de dar a autorização para a propositura da ação, o cônjuge, unido de facto ou parente sucessível pode instaurar aquela, requerendo a medida de acompanhamento e solicitar, ao mesmo tempo, o suprimento da autorização da pessoa visada (5).
Neste caso, o suprimento da autorização da pessoa visada deve ser concedido quando aquela não a possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe um fundamento atendível para o conceder (art. 141º, n.º 2 ).
Porque a 1ª Instância decidiu não proceder ao interrogatório da visada, “nesta fase”, isto é, na fase em que se encontrava o processo, à data da prolação do despacho de fls. 150, salvaguardando a possibilidade daquela incorrer em nulidade, precise-se que como decorrência da nova filosofia que subjaz ao instituto do maior acompanhado, nos termos dos arts. 139º, n.º 1 do CC e 897º do CPC, na nova redação, a audição dessa pessoa é obrigatória.
Essa obrigatoriedade tem por finalidade assegurar que o juiz tem conhecimento efetivo da real situação em que a pessoa visada se encontra, não podendo, por isso, o tribunal, nessa avaliação, cingir-se aos relatórios periciais, até porque o “juiz é o perito dos peritos”, e, muito menos, à prova testemunhal que venha a ser produzida (6).
Deste modo, sob pena de nulidade, impõe-se ao tribunal que proceda obrigatoriamente à audição da requerida Maria, imposição esta que apenas se poderá afastar em caso de manifesta impossibilidade de se proceder a essa audição.

Avançando.

Em face das profundas alterações substantivas e processuais operadas pela Lei n.º 49/2018, de 14/08, não ignorando o legislador que à data da entrada em vigor daquele Lei existiam múltiplas pessoas já declaradas interditas ou inabilitadas e que existiam, necessariamente, processos pendentes visando a interdição ou inabilitação das pessoas aí visada, seria de todo inconveniente que aquele não estabelecesse o regime jurídico destinado a regular essas situações, com a inerente insegurança jurídica que essa não regulação necessariamente acarretaria.
Esse regime jurídico encontra-se regulado no art. 26º da Lei n.º 49/2018.
Pondo de parte os reflexos substantivos decorrentes para as pessoas já declaradas interditas ou inabilitadas à data da entrada em vigor da nova lei, posto que dessas situações não cuidam os presentes autos, cingindo-nos ao enunciado regime transitório previsto pelo legislador em relação aos processos pendentes, dispõe o n.º 1 daquele art. 26º, que o novo regime jurídico é imediatamente aplicável aos processos de interdição e inabilitação que se encontram pendentes no momento da sua entrada em vigor, acrescentando o seu n.º2, que com vista a proceder às adaptações necessárias decorrentes do novo regime processual para esses processos pendentes, o juiz usará dos poderes de gestão e adequação processual.

Conforme escreve Teixeira de Sousa, ao regular os reflexos processuais da entrada em vigor da nova lei nos processos pendentes, declarando que aquela é imediatamente aplicável a esses processos, não se está perante nada de inédito, dado que a aplicação imediata de novas regulamentações legais em matéria de processo, apesar de não ser imperiosa, é bastante comum (7).
A aplicação da nova legislação aos processos pendentes (e, inclusivamente, do novo regime substantivo previsto no art. 26º, n.ºs 4 a 6 e 8 da Lei n.º 49/2018, que regula a situação das interdições e inabilitações já decretadas aquando da entrada em vigor dessa Lei) também não padece de qualquer inconstitucionalidade, designadamente, material, uma vez que o princípio da não retroatividade da lei, salvo quanto à lei criminal (art. 29º da CRP), não tem assento constitucional e, daí que o art. 12º do CC se imponha ao juiz, mas não ao legislador (8).

Em todo o caso, sempre se dirá que quanto à aplicação do novo regime processual aos processos pendentes, à data da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, o regime nela determinado no seu art. 26º, n.º 1, que manda aplicá-lo imediatamente aos processos pendentes, já é aquele que resulta da orientação geral que tem prevalecido na doutrina e na jurisprudência a propósito das normas processuais.

Com efeito, tem-se entendido que “a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às ações que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os atos a realizar futuramente, mesmo que tais atos se integrem em ações pendentes, ou seja, em causas anteriormente postas em juízo”, isto porque, sendo o direito processual um ramo do direito público, acima dos interesses divergentes dos litigantes, pairam os interesses superiores do Estado e da coletividade. Depois, as normas processuais não regulam o conflito de interesse das partes, mas apenas o modo como devem fazer valer em juízo os poderes que a lei substantiva lhes concede, pelo que se o legislador entende que esse modo deve ser feito, de forma mais conveniente, legislando nesse sentido, essa nova legislação processual tem aplicação imediata, incluindo aos processos pendentes (9).

Decorre do que se vem dizendo que a aplicação imediata do regime processual previsto para o processo do maior acompanhado aos processos pendentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, e, inclusivamente, a regulação substantiva operada pelo legislador naquele art. 26º para as interdições e inabilitações já decretadas, não padece de qualquer inconstitucionalidade material, contanto que a aplicação da nova lei não se mostre arbitrária e desproporcionada.

Seguindo a lição de Teixeira de Sousa, na obra a que vimos fazendo referência, com a qual se concorda, resulta do enunciado regime transitório previsto nos n.ºs 1 e 2 do art. 26º, que manda aplicar a nova lei imediatamente aos processos pendentes, o seguinte: “aproveitam-se todos os atos praticados pelas partes em processos de interdição e de inabilitação que estejam pendentes no momento da entrada em vigor do novo regime de acompanhamento de maiores, mesmo que esses atos não tenham correspondência neste regime; todos os atos a praticar, depois da entrada em vigor do regime do acompanhamento de maiores, em processos de interdição ou de inabilitação pendentes devem ser realizados de acordo com este regime”.

Assente nestas premissas, tendo o presente processo entrado em juízo em 29/03/2017 (fls. 28), então como ação especial de interdição, tendo a nele requerida deduzido contestação, veio a proferir-se despacho saneador (fls. 150 a 152), a realizar-se novo exame médico e foi designada data para a realização da audiência final.
Aberta a audiência final, em 15/02/2019, entendeu a 1ª Instância notificar o apelante (requerente) para, em face da entrada em vigor da Lei n.º 46/2018, e do disposto no seu art. 26º, n.º 1 e, bem assim do novo regime dela resultante, fixado no art. 141º do CC., demonstrar que a legitimidade originária que detinha para propor a ação de interdição, se mantinha, de acordo com a nova lei.
Não tendo o apelante feito essa prova, com o argumento que a nova lei não lhe retirou a legitimidade ativa que possuía quando instaurou a ação e, bem assim, após ordenar que fosse aberta vista ao Ministério Público para informar se pretende intervir nos autos a título principal, do lado ativo da demanda, tendo obtido resposta negativa, entendeu a 1ª Instância proferir a sentença recorrida, julgando extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide, por perda da legitimidade ativa do apelante para com ela prosseguir face à entrada em vigor do novo regime do maior acompanhado.
Perscrutada essa sentença julga-se que aquele tribunal assenta essa sua decisão em duas ordens de razões: uma processual e outra material, isto é, que apela à ratio da solução preconizada pelo legislador ao ordenar a imediata aplicação do novo regime processual do maior acompanhado aos processos pendentes e à filosofia deste novo instituto, argumento último este em que julgamos pôr o Ministério Público especial ênfase no sentido da manutenção do decidido nas suas contra-alegações.
Quanto ao argumento processual, sustenta-se que determinando o art. 26º, n.º1 da Lei n.º 49/2018, a imediata aplicação da nova lei aos processos de interdição e inabilitação pendentes e prevendo a nova redação do art. 141º do CC, que a ação apenas pode ser intentada pela própria requerida, salvo nos casos nela expressamente previstos, dos quais decorre que o apelante tem de obter autorização da requerida para que possa intentar a ação ou teria de pedir ao tribunal que essa autorização fosse suprida, como este não comprovou essa autorização, sequer peticionou o suprimento da mesma pelo tribunal, perdeu a legitimidade ativa que antes possuía para prosseguir com a ação.
Já em sede argumento material ou substantivo, sustenta-se que presidindo ao novo instituto uma nova filosofia, em que se prossegue o interesse, a autodeterminação e bem-estar da requerida, não se pode submeter a última, já na vigência do novo instituto, contra a sua vontade, aos efeitos de uma decisão judicial, seja ela qual for – de procedência ou improcedência – decorrentes de um processo cuja existência a lei não admite.
Analisados ambos os enunciados argumentos, salvo o devido respeito por entendimento contrário, prefigura-se-nos que os mesmos não são de acolher.

Vejamos:

A legitimidade configura um pressuposto processual, tratando-se, por isso, de condições mínimas, consideradas indispensáveis pelo legislador para, à partida, se garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa (10).

A ausência de um pressuposto processual impede não só que o juiz profira sentença sobre o mérito da causa, como o impede de entrar na apreciação e discussão da matéria que interessa à decisão de fundo nela a proferir, nomeadamente, na produção da prova.

A falta de um dos pressupostos processuais configura exceção dilatória, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (art. 576º, n.º 2 do CPC).

Um dos pressupostos processuais é o da legitimidade das partes. A legitimidade diz-se ativa, quanto respeita à legitimidade do autor para propor a ação, e diz-se passiva, quando respeita à legitimidade do réu para contradizer a pretensão que o autor pretende exercer na ação contra aquele.

Mediante o pressuposto processual da legitimidade visa-se assegurar que entre a relação material controvertida, isto é, em litígio, e as partes exista relação. É essencial, no dizer de Henckel que no processo, atenta a relação jurídica nele em discussão, estejam como autor e como réu as partes exatas (die richtigen Parteien)”.

“Ser parte legítima na ação é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida. Se assim não suceder, a decisão que o tribunal viesse a proferir sobre o mérito da ação, não poderia surtir o seu efeito útil, visto não vincular os verdadeiros sujeitos da relação controvertida, ausentes da lide” (11).

Com o pressuposto processual da legitimidade visa-se, assim, que atenta a relação controvertida em discussão numa determinada ação, estejam no processo, figurando nele como autor, aquele a quem a lei reconhece o direito ou interesse que está nele a ser exercido e, bem assim, que nesse processo figure como réu a pessoa a quem a lei impõem o cumprimento dos direitos que nele estão a ser exercidos. Quando tal não aconteça, não estão reunidas as condições mínimas, indispensáveis para que o tribunal entre no conhecimento do mérito da causa, sequer na instrução desse processo, com vista ao apuramento dos factos que relevam para esse conhecimento.

É conhecido (pelo menos, entre juristas) o diferendo que se suscitou na doutrina, com iguais reflexos a nível jurisprudencial, a propósito sobre qual a relação jurídica se impunha atender para operar aquele juízo: se à delineada pelo autor na petição inicial, isto é, se se devia olhar ao pedido, aos sujeitos e aos factos nela alegados pelo autor e que servem de causa de pedir ao seu pedido e independentemente desses factos se virem ou não a quedar como provados, verificar se em função do direito substantivo, era ou não à pessoa que, na ação, figurava como autor a quem essa lei substantiva reconhecia o direito de exercer a pretensão formulada na ação (concluindo-se, segundo o juízo então feito, pela legitimidade ou ilegitimidade deste), e se a pessoa contra quem essa ação foi proposta (réu), em função dessa alegação, de acordo com a lei substantiva, era ou não a pessoa a quem assistia o direito de se opor à pretensão formulada; ou antes, se para se fazer esse juízo, se devia atender à relação jurídica verdadeira, isto é, que se viesse efetivamente a apurar.

É igualmente sabido que tratando-se de um pressuposto processual, o legislador veio a optar pela primeira das enunciadas hipótese, ao estabelecer no n.º 3 do art. 30º do CPC, que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

A relação controvertida configurada pelo autor, mais não é que a causa de pedir, por ele invocada na petição inicial, pedido nela formulado, e sujeitos.

Tal significa que para se aferir do pressuposto da legitimidade se impõe atender exclusivamente aos factos alegados pelo autor na petição inicial e que servem de substrato à causa de pedir por ele deduzida, à pretensão que aquele nela formula (pedido) e aos sujeitos que, nessa petição figuram como autor e como réu, isto independentemente do autor vir ou não a provar os factos alegados consubstanciadores dessa causa de pedir que alegou.
Decorre do que se acaba de dizer que o pressuposto processual da legitimidade carece de ser apreciado por referência ao momento da citação do réu para os termos da causa, uma vez que é por referência a esse momento que, salvas as exceções previstas na lei (despiciendas para o caso dos autos, uma vez que o autor (apelante), não veio a alterar a ação que intentou quanto ao pedido, causa de pedir ou às partes), por força do princípio da estabilidade da instância, essa causa de pedir, pedido e partes se estabilizam (art. 260º do CPC).
Porque é por referência ao momento da citação do réu para a ação que se deve apreciar os pressupostos processuais, atenta a relação jurídica delineada pelo autor na petição inicial, é que se compreende que, sob pena de preclusão do seu direito a fazê-lo posteriormente, o réu tenha de invocar a ausência desses pressupostos processuais na contestação (art. 573º do CPC); se impõe ao tribunal que, findos os articulados, se debruce sobre estes, a fim de verificar se existem ou não exceções e convide as partes a suprir as exceções que sejam supríveis, mediante a prolação de despacho pré-saneador (art. 590º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC); e que conheça dessas exceções em sede de despacho saneador a proferir em audiência prévia (art. 591º, n.º 1, als. b) e d) do CPC) ou após dispensa dessa audiência e observância do contraditório (arts. 592º, n.º 1, al. b) e 3º, n.º 3 do CPC), sem prejuízo de no caso de prolação de despacho saneador tabelar, ainda poder conhecer das exceções dilatórias na sentença final.
No caso é indiscutível que o autor (apelante), no momento em que propôs a presente ação de interdição de sua mãe dispunha de legitimidade ativa para instaurá-la, dado que essa legitimidade lhe é expressamente reconhecida pelo então vigente n.º 1 do art. 141º do CC.
O apelante continuou a dispor dessa legitimidade ativa até 10/02/2019, data da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14/08, que institui o regime jurídico do maior acompanhado, com as alterações profundas, quer em termos substantivos, quer em termos processuais, quer filosóficos, já acima enunciados ao sistema jurídico que até aí vigorou.
A entrada em vigor da nova lei ocorreu em 10/02/2019, numa altura em que há muito tinha sido proferido despacho saneador (tabelar) nos autos, se tinha realizado novo exame médico à requerida, encontrando-se o processo na fase do julgamento.
A nova lei alterou as regras da legitimidade ativa para a propositura da ação especial de maior acompanhado, conferindo apenas legitimidade ativa para a instaurar à própria requerida (a visada), ao MP, ao cônjuge, unido de facto e a qualquer parente sucessível desta, mas quanto a estes, desde que autorizados pela requerida ou, na ausência dessa autorização, mediante pedido formulado ao tribunal (na petição inicial) para que suprisse essa autorização.
A lei transitória prevista no art. 26º, n.º 1, da Lei n.º 49/2018, de 14/08, determinou que o novo regime jurídico processual seria imediatamente aplicável aos processos de interdição ou inabilitação que se encontrassem pendentes, à data da sua entrada em vigor em 10/02/2019.
O sentido e o alcance desta norma transitória é no sentido de que se aproveitam todos os atos praticados pelas partes em processos de interdição e de inabilitação que se encontrassem pendentes à data da sua entrada em vigor, que assim se aproveitarm, e que apenas aos atos processos ulteriores seria aplicado o novo regime processual.
De resto, esta interpretação é a única que se mostra compatível com a letra daquele art. 26º, n.º 1, sem que se olvide que o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, n.º 3 do CC), e é a única interpretação que se mostra conforme aos restantes critérios interpretativos, designadamente, hermenêutico, enunciados nesse art. 9º.
Precise-se, aliás, que interpretação diversa, isto é, que o alcance e o sentido daquela norma seria o de não apenas aplicar o novo regime processual do processo do maior acompanhado aos atos processuais que tivessem de ser praticados nos processos pendentes à data da entrada em vigor da nova lei, mas também às fases processuais anteriores, isto é, que já tivessem sido ultrapassadas no momento em que entrou em vigor a nova lei, que é aquilo que, a nosso ver, mais não faz a 1ª Instância, ao pretender aplicar os critérios da legitimidade ativa da nova lei ao presente processo de interdição (convertido, por imposição legal, em processo de maior acompanhado com a entrada em vigor da nova lei), fazendo-o retroagir à fase da citação, contrariaria todo o regime jurídico processual que informa o processo civil nacional, o qual, como se viu, estabelece várias fases processuais ao longo do processo civil, que vão sendo ultrapassadas, até ao seu desiderato final, que é a prolação da sentença que conheça do mérito da causa.
Na verdade, dispondo o apelante de indiscutível legitimidade ativa, atenta a relação material que delineou na petição inicial, à data da citação e não tendo, inclusivamente, essa questão sido colocada ou suscitada pelas partes nos respetivos articulados, sequer pelo tribunal, quando entrou em vigor a nova lei, essa fase processual da legitimidade já se encontrava há muito ultrapassada.
De resto, ao estatuir a norma do art. 26º, n.º 1 da Lei n.º 49/2018, de 14/08, caso em face da nova redação que deu ao art. 141º do CC, em sede de legitimidade ativa, tivesse sido intenção do legislador que os processos de interdição e inabilitação já pendentes à data da entrada em vigor dessa nova lei, retroagissem à fase da citação, obrigando o neles autor a obter autorização da pessoa visada para poder prosseguir com a ação ou, na ausência dessa autorização, que pedisse ao tribunal que essa autorização fosse suprida, pelas implicações profundas que esse entendimento forçosamente teria no regime processual civil em geral, afastando-o e, bem assim, à respetiva filosofia de fases processuais, é indiscutível que o legislador não deixaria de dar outra formulação à previsão legal daquele art. 26º, n.º 1 da Lei n.º 41/2018, por forma a deixar bem expressa, de forma clara e inequívoca, ser essa a sua intenção.
Acresce dizer que se essa fosse a intenção do legislador, necessário seria concluir que o mesmo, longe de agilizar o processo e de promover a celeridade processual e de, por essa via, promover o interesse da própria visada, complexá-lo-ia e poria em crise os próprios interesses desta última, que o novo regime visa promover.
É que na ausência da obtenção de autorização da visada para o requerente prosseguir com a inicial ação de interdição, agora transmutada em processo especial de maior acompanhado, caso aquele tivesse de pedir ao tribunal que essa autorização fosse suprida, a fim de assegurar a manutenção da sua legitimidade ativa para a ação, o mesmo teria forçosamente de formular pedido (através de articulado superveniente) junto do tribunal nesse sentido, alegar factos que ancorassem essa sua nova pretensão e arrolar prova quanto a esses novos factos, igual direito, em observância do princípio do contraditório, se impondo reconhecer à visada e ao Ministério Público, o que tudo redundaria num complexificar da ação já pendente, com os necessários atrasos processuais e o consequente prejuízo da própria visada, que viria o seu estado de indefinição quanto à sua capacidade de reger a sua pessoa e bens prorrogado.
Acresce que nas situações em que o autor dessas ações não obtivesse essa autorização da pessoa visada e não requeresse ao tribunal que essa autorização fosse suprida, como aconteceu no caso, a circunstância de se vir a julgar a ação supervenientemente impossível e extinta a instância face à entrada em vigor da nova lei que institui o regime do maior, por perda da legitimidade ativa do autor dessa ação em poder com ela prosseguir, o trânsito em julgado dessa sentença, não impediria que este viesse a instaurar nova ação, requerendo que fosse decretado00 acompanhamento à requerida, alegando os pertinentes factos para o efeito, a ausência de autorização desta para aquele instaurar a ação e as razões que, na sua perspetiva, justificavam que essa ausência de autorização fosse suprida pelo tribunal, e pedindo esse suprimento, o que tudo, mais uma vez, iria contra os próprios interesses da visada, que o novo regime visou promover.
Finalmente diremos que semelhante entendimento, pelas repercussões jurídicas e processuais profundas que teria, afastando o regime processual civil e indo ao arrepio dos próprios interesses que o legislador afirma prosseguir no regime jurídico que implementou na Lei n.º 49/2018, porque seria manifestamente desproporcional e, inclusivamente, desnecessário e contrário aos interesses eleitos pelo legislador para justificar a implementação da nova legislação, seria materialmente inconstitucional, por violação do princípio da tutela da tutela jurisdicional efetiva, na sua vertente de ser assegurado às partes um processo equitativo (art. 20º, n.º 4 do CRP).
Aqui chegados, impera concluir que o argumento processual invocado pela 1ª Instância para ancorar a interpretação jurídica que faz do art. 26º, n.ºs 1 e 2 da Lei 49/2018, de 14/08, com vista a aplicar retroativamente as novas regras da legitimidade ativa previstas no atual art. 141º do CC ao presente processos, já pendente à data da entrada em vigor daquela Lei, não tem, na nossa perspetiva, qualquer suporte jurídico na letra daquele art. 26º, n.ºs 1 e 2 e na ratio que lhe preside, além de que contraria todo o regime jurídico previsto no CPC.
Passando ao argumento material utilizado pela 1ª Instância para ancorar a sua decisão, conforme cremos já demonstrado, a mesma não tem qualquer suporte possível à luz da filosofia que preside ao novo regime do maior acompanhado. É que a prossecução da ação com vista à rápida definição do estado jurídico da visada, apurando-se se a mesma se encontram ou não incapacitada de reger a sua pessoa e/ou bens e, no caso positivo, em que medida, definindo-se o concreto estado da sua incapacidade e a medida em que deverá ser aquela coarctada da sua capacidade de exercício dos seus direitos, é reclamada pelo próprio interesse da visada, conforme supra já, cremos amplamente, se demonstrou,
Reafirma-se, a sentença recorrida, além de não ter qualquer suporte processual e material nas várias vertentes já apreciadas, não obsta a que o apelante instaure nova ação de maior acompanhado contra a requerida, mesmo sem autorização desta (bastando-lhe pedir que o tribunal supra essa falta de autorização e alegando as razões que, na sua perspetiva, justificam essa supressão), pelo que a breve trecho aquela se poderia ver (e se veria, ao que tudo indica) confrontada com nova ação, vendo o seu estado de capacidade novamente posto em crise.
Resulta do que se vem dizendo que na procedência da presente apelação, se impõe revogar a sentença recorrida e determinar o prosseguimento dos autos, alertando-se a 1ª Instância para a necessidade de proceder à audição (obrigatória) da visada Maria.
*
*
Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação procedente e, em consequência:

- revogam a sentença recorrida e ordenam o prosseguimento dos autos, alertando a 1ª Instância para a necessidade de proceder à audição (obrigatória) da visada Maria.
*
Sem custas, uma vez que o Ministério Público, único que contra-alegou (e que decaiu), delas se encontra isento - arts. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC e 4º, n.º 1, al. a) do RCP.
Notifique.
*
Guimarães, 12 de setembro de 2019
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dr. José Manuel Alves Flores (2º Adjunto)



1. Ac. RP. de 26/02/2019, Proc. 6137/17.6T8VNG.P1, in base de dados da DGSI.
2. Maria dos Prazeres Beleza, “Brevíssimas Notas Sobre a Criação do Regime do Maior Acompanhado em Substituição da Interdição e Inabilitação”, cadernos do CEJ, acessíveis em sítio do CEJ na Internet.
3. Ac. RC. de 04/06/2019, Proc. 577/18.4T8CTB.C1, in base de dados da DGSI.
4. António Pinto Monteiro, “Das Incapacidades ao Maior Acompanhado – Breve Apresentação da Lei n.º 49/2018”, in cadernos do CEJ.
5. Teixeira de Sousa, “O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspetos Processuais”, caderno do CEJ, pág. 146, disponível no sítio do CEJ na Internet. No mesmo sentido, Maria Paz, “o Ministério Público e o Novo Regime do Maior Acompanhado”, caderno do CEJ, pág. 117, no mesmo sítio da Internet.
6. Neste sentido, Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 51 e Ac. RL de 04/06/2019, Proc. 647/18.9T(ACB.C1, in base de dados da DGSI.
7. Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 50.
8. Batista Machado, “Aplicação no Tempo”, pág. 56.
9. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 47 e 48.
10. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, ob. cit., pág. 104.
11. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 129.