Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
163/09.0TBPVL.G1
Relator: MARIA LUÍSA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
ENTREGA DA COISA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Sendo o contrato de mútuo, pela doutrina e jurisprudência, considerado um contrato real, quoad constitutionem, quer se defina como contrato unilateral ( P. Lima e A.Varela, in Código Civil, anotado, Vol II, pg. 602 ), quer como contrato bilateral (Acs. Supremo Tribunal de Justiça infra citados), em qualquer caso, para sua constituição sempre necessário será que a coisa entregue pelo mutuante o seja a título de empréstimo e que, correlativamente, o mutuário se haja obrigado a restituir o equivalente ao que havia recebido a esse preciso título ( P. Lima e A.Varela, in Código Civil, anotado, Vol II, pg. 602; Ac Supremo Tribunal de Justiça de 3/1072013, Proc. 220/10.0TBPNI.L1.S1; Ac. de 25/1/2011, Proc. 4033/05.2TVLSB.L1.S1). in.  www.dgsi.pt.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

J…, instaurou acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário, nº 163/09.0TBPVL, do Tribunal Judicial de Póvoa de Lanhoso, contra J. C…, invocando, em síntese, ter emprestado ao Réu a quantia total de € 19.951,92, com vista a futura restituição ao Autor, e o Réu não lhe devolveu os montantes mutuados apesar das insistências do Autor, e, pedindo se declare nulo contrato de mútuo celebrado entre Autor e Réu, condenando-se o Réu a restituir ao Autor a quantia mutuada no valor de € 19.951,92, acrescida da quantia de € 7.661,54, a título de frutos civis, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação, ou, em alternativa, a quantia mutuada no valor de € 19.951,92, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação.
O Réu deduziu contestação, impugnando os factos e pedido do Autor.
Foi oferecida réplica.
Foi proferido despacho saneador e dispensada a selecção da matéria de facto assente e elaboração da B.I.
Procedeu-se a julgamento, tendo vindo a ser proferida sentença a julgar a acção improcedente, absolvendo-se o Réu do pedido, e, absolvendo-se Autor e Réu dos respectivos pedidos de condenação como litigantes de má-fé.
Inconformado veio o Autor interpor recurso de apelação.

O recurso foi recebido como recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.


Nas alegações de recurso que apresenta o apelante formula as seguintes conclusões:
1- Tal como plasmado na sentença recorrida, ficou provado em sede de julgamento que o autor ora apelante, preencheu e entregou ao réu ora apelado, dois cheques no montante global de 19.951,92€.
2- Cheques esses, que o réu recebeu e integrou no seu património, alegando posteriormente que os montantes recebidos não diziam respeito a nenhum contrato de mútuo, dada a inexistência de qualquer tipo de documento assinado pelo mutuário, no qual o mesmo se obrigaria a restituir o montante mutuado.
3- Diferente opinião, possui o autor aqui apelante, que com base na doutrina e jurisprudência de tribunal superior, considera que a entrega dos cheques e o seu recebimento, já implicam a celebração de contrato, sendo sua condição de validade e elemento essencial do mesmo negócio.
4- Pelo que o negócio de mútuo é consumado com a entrega dos montantes mutuados.
5- Efectivamente, no caso em apreço, o contrato de mútuo referente ao quantitativo supra referido de 19.951,92€ tornou-se perfeito, no dia em que o montante entrou na esfera patrimonial do réu, não se mostrando, porém, reduzido a documento particular, porquanto teve como únicos documentos de suporte que o titularam, os dois cheques, de igual montante.
6- Assim sendo, trata-se de um contrato nulo, por inobservância da forma, legalmente, com o consequente dever de restituição pelo mutuário de tudo o que lhe foi prestado pelo mutuante, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1143º, 219º, 220º, 286º e 289º, nº 1, todos do CC.
7- Deste modo, declarada a nulidade do negócio jurídico de mútuo, a obrigação de restituição da quantia em dinheiro, a cargo do réu, em consequência do negócio viciado, funda-se no preceituado pelo artigo 289º, nº 1.
8- Tal como defende a jurisprudência quando postula que a entrega, material ou simbólica, da coisa ou do dinheiro continua a ser o elemento constitutivo do contrato real em si, como acontece com o mútuo, para além do consenso das partes, e não apenas uma condição de eficácia do contrato já existente, não se tratando da execução do acordo, do cumprimento da obrigação, mas da existência do próprio contrato com a qual se completa.
9- O contrato tipificado de mútuo pode, por consenso das partes, firmado ao abrigo do princípio da liberdade negocial, constituir-se, por simples acordo, como um contrato atípico de mútuo, quando um dos contraentes se obriga a entregar dinheiro ou outra coisa fungível ao outro, ficando este vinculado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
10- O preenchimento e subscrição da declaração cartular pelo sacador do cheque cria, desde logo, para o mesmo uma obrigação cambiária que, embora perfeita, tem a sua eficácia dependente da entrada do cheque em circulação, a qual, mais do que uma “conditio iuris”, é um elemento essencial à própria validade daquela obrigação, que só se verifica com a subsequente entrega do título ao portador imediato, quando o sacador abre mão do mesmo, com a perda dos correspondentes direitos, que entram na esfera patrimonial do beneficiário.
11- O cheque nominativo só ao beneficiário da ordem de pagamento pode ser pago, cujo montante viria a ser descontado pela entidade bancária sacada, traduz a concretização da auto-regulamentação de interesses das partes constante da proposta de empréstimo e da correspondente aceitação, sendo suficiente para qualificar o acordo celebrado como um contrato de mútuo.
12- Sendo o contrato de mútuo nulo por falta de forma legal, a restituição abrange tudo o que tiver sido prestado, não havendo que atender as regras do enriquecimento sem causa, que constitui uma obrigação de natureza subsidiaria, dado que a eficácia retroactiva da declaração de nulidade do contrato obriga á restituição de tudo quanto tiver sido prestado.
13- Pelo que a douta sentença recorrida violou as disposições legais citadas, bem como fez uma errada valoração dos factos praticados por autor e réu tal como quando não classificou a relação negocial como integrante de um contrato de mútuo.
14- Pretendendo-se dessa forma, que seja reconhecido o contrato de mutuo entre as partes, que tendo sido celebrado sem respeitar a forma legalmente exigida, implica a sua anulação e restituição dos valores mutuados ao autor ora apelante, acrescido de juros legais desde a citação.


Não foram proferidas contra – alegações.

O recurso veio a ser admitido neste tribunal da Relação na espécie e com os efeitos e regime de subida fixados no despacho de admissão do recurso na 1ª instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Delimitação do objecto do recurso: Questões a decidir.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, tal como decorre das disposições legais dos artº 635º-nº3 do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras “( artº 608º-nº2 do CPC).
E, de entre estas questões, excepto no tocante aquelas que o tribunal conhece ex officio, o tribunal de 2ª instância apenas poderá tomar conhecimento das questões já trazidas aos autos pelas partes, nos termos do artº 5º do CPC, não podendo a parte nas alegações de recurso e respectivas conclusões vir suscitar e requerer a apreciação de questões ou excepções novas.
Atentas as conclusões da apelação deduzidas, e supra descritas, são as seguintes as questão a apreciar:
- reapreciação do mérito da causa - a entrega dos cheques e o seu recebimento, já implicam a celebração de contrato de mútuo, como defende o apelante ?
FUNDAMENTAÇÃO
I) OS FACTOS ( factos declarados provados na sentença recorrida):
A. Em 14 de Junho de 1993, o A. entregou ao R. o cheque nº 4610565420, preenchido pelo A. à ordem do R., no valor de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos), actualmente 9.975,96€ (nove mil novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), quantia que o R. recebeu.
B. Em 9 de Novembro de 1993, foi entregue ao R., o cheque nº 27339360, no valor de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos, actualmente, € 9 975, 96), sacado pela sociedade Construtora Ribeiro & Filhos, Lda. à ordem do R., quantia que o R. recebeu.
II) O DIREITO APLICÁVEL
Tendo o Autor, J…, instaurado a acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário, em curso, contra o Réu J. C…, pedindo se declare nulo contrato de mútuo celebrado entre Autor e Réu, condenando-se o Réu a restituir ao Autor a quantia mutuada no valor de € 19.951,92, acrescida da quantia de € 7.661,54, a título de frutos civis, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação, ou, em alternativa, a quantia mutuada no valor de € 19.951,92, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação, invocando o Autor, em síntese, e no essencial, ter emprestado ao Réu a quantia total de € 19.951,92, com vista a futura restituição ao Autor, e o Réu não lhe devolveu os montantes mutuados apesar das insistências do Autor, veio a ser proferida sentença, a julgar a acção a acção improcedente, por não provada, absolvendo-se o Réu do pedido, fundamentando o Mº Juiz “a quo“ a decisão no facto que refere de que “ face à matéria de facto assente, não se provou a celebração entre A. e R. de qualquer contrato de mútuo. Temos apenas a entrega de dois cheques e o recebimento pelo R. das quantias por eles tituladas”.
E bem decidiu.
O contrato de Mútuo, tal como definido nos termos da noção legal do art. 1142.º do Código Civil, é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
“ Quem empresta, não o faz com a finalidade de realizar uma atribuição patrimonial em benefício do mutário. O empréstimo é feito com o objectivo de atribuir a este o uso da coisa, a qual deverá ser restituída em género, qualidade e quantidade”. P. Lima e A.Varela, in Código Civil, anotado, Vol II, pg. 600.
“ A palavra emprestar continua a ser empregada com o sentido corrente, que sempre teve, - de atribuição de uma coisa para ser restituída em espécie ou coisa equivalente ” – autores e obra citada, pg. 589.
E, sendo o contrato de mútuo, pela doutrina e jurisprudência, considerado um contrato real, quoad constitutionem, quer se defina como contrato unilateral ( na doutrina, autores e obra citada), quer bilateral ( Acs. Supremo Tribunal de Justiça infra citados ), em qualquer caso, para sua constituição sempre necessário será que a coisa entregue pelo mutuante o seja a título de empréstimo e que, correlativamente, o mutuário se haja obrigado a restituir o equivalente ao que havia recebido a esse preciso título ( P. Lima e A.Varela, in Código Civil, anotado, Vol II, pg. 602; Ac.Supremo Tribunal de Justiça de 3/10/2013, Proc. nº 220/10.0TBPNI.L1.S1; Ac. de 25/1/2011, Proc. nº 4033/05.2TVLSB.L1.S1);
referindo-se, expressamente, no Ac. so Supremo Tribunal de Justiça de 25/1/2011, citado pelo apelante, e em sentido contrário ao que este preconiza: “ A entrega material ou simbólica, da coisa ou do dinheiro continua a ser, para a doutrina tradicional, um elemento constitutivo do contrato real em si, como acontece com o mútuo, para além do consenso das partes, (…)
O contrato tipificado de mútuo pode, por consenso das partes, firmado ao abrigo do princípio da liberdade negocial, constituir-se, por simples acordo, como um contrato atípico de mútuo, quando um dos contraentes se obriga a entregar dinheiro ou outra coisa fungível ao outro, ficando este vinculado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
No caso sub judice, dos factos provados resulta que se desconhece qual a “causa jurídica” determinativa da transferência monetária operada por via da entrega dos indicados cheques do Autor para o Réu, e, tendo o Autor, na petição inicial, invocado o contrato de mútuo como sendo a causa das deslocações patrimoniais realizadas, não o logrou provar, desde logo, não provando a entrega a título de empréstimo, nem a obrigação de restituição - elementos essenciais do contrato de mútuo nos termos da definição legal do artº 1142º do Código Civil.
“ … tornava-se necessário que, da prova produzida, resultasse que as quantias haviam sido entregues a título de empréstimo e que, correlativamente, a Ré se tivesse obrigado a restituir o equivalente ao que avia recebido a esse título “ – Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 3/10/2013, supra citado.

Conclui-se, nos termos expostos, pela improcedência da apelação.

DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Guimarães, 22 de maio de 2014
Maria Luisa Ramos
Raquel Rego
António Sobrinho