Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
577/20.4T8PTL.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
EMPREITADA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O tribunal, em regra, não só não pode conhecer senão das questões que lhe tenham sido colocadas pelas partes, como também não pode decidir ultrapassando os limites do pedido que foi formulado, sob pena da decisão ficar afectada de nulidade.
II - A nulidade da decisão quando o Tribunal condene em objecto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio do dispositivo, que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor.
III - Contudo é lícito ao tribunal, “através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter”.
IV - Incumpre definitivamente o contrato de empreitada a Ré, empreiteira, que não tendo chegado a dar início aos trabalhos, apesar de diversas vezes tal ter sido solicitado pela Autora, a informa que não pode executar os trabalhos de construção da moradia por razões de incapacidade técnica e programação de outras obras, sugerindo à Autora que contrate outra empresa, apresentando-lhe até para esse efeito um orçamento de outra empresa.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

R. G., residente na Rua …, na Freguesia e concelho de Arca e Ponte de Lima, interpôs a presente ação de processo comum contra CONSTRUÇÕES E. C., UNIPESSOAL LDA., com sede no Lugar …, freguesia da …, concelho de Ponte de Lima, pedindo a título principal a condenação da Ré a pagar à Autora o valor de €10.843,84, acrescida de juros, calculados à taxa legal de 4%, desde a data de 09/07/2020 até efetivo e integral pagamento, e subsidiariamente, a restituir à Autora, por via do enriquecimento sem causa, a quantia de €10.843,84, acrescida de juros, calculados à taxa legal de 4%, desde a data de 01/06/2020 até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alegou a Autora, em síntese, que acordou com a sociedade Ré a execução por esta de trabalhos de edificação de uma moradia para residência da autora, tendo para o efeito entregue à Ré, aquando da adjudicação e assinatura do contrato, a 01/06/2018, a quantia global de €10.000,00.
Mais alegou a Autora que as partes acordaram na revogação do contrato celebrado, sem que a Ré tenha chegado a dar início à execução dos trabalhos contratados, por impossibilidade desta, tendo-se a Ré comprometido a devolver à Autora a referida quantia de €10.000,00 até ao final do mês de março de 2019, o que esta não fez.
Regularmente citada, veio a Ré contestar arguindo a exceção da compensação de créditos e impugnando, no essencial, a factualidade alegada pela Autora, assim como deduziu a pedido reconvencional peticionando a condenação da Autora a pagar à Ré/Reconvinte a quantia global de €10.000,00, invocando, para tanto e em síntese, ser titular de um crédito nesse valor sobre a Autora, emergente dos prejuízos que sofreu na sequência da denúncia/desistência do contrato pela Autora.
A Autora replicou, pugnando pela improcedência da matéria de exceção e da reconvenção deduzida.
Foi admitido o pedido reconvencional.

Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, tudo visto e ponderado, decide-se:
A) Julgar a ação totalmente procedente, por provada e, em consequência condenar a ré a restituir à autora a quantia de € 10.000,00, acrescida dos respetivos juros de mora, contabilizados, à taxa legal, desde o dia 01.06.2018 e até efetivo e integral pagamento;
B) Julgar a reconvenção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolver a autora/reconvinda do peticionado pela ré/reconvinte.
*
Custas a cargo da ré/reconvinte. Registe e notifique”.

Inconformada, apelou a Ré da sentença concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“CONCLUSÕES:

1. A douta sentença, ora recorrida, decidiu julgar procedente o procedimento cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova, e, em consequência não procedeu à ratificação do mesmo.
2. Salvo o devido respeito, que aliás é muito, entendemos que carece de razão, o tribunal a quo, ao julgar como julgou.
3. Continuando o Recorrente a sustentar que devia o Tribunal a quo ter julgado a ação improcedente por não provada e consequentemente deve a Ré ser absolvida de todos os pedidos, com todas as legais consequências. Mais deve ainda ser procedente por provada a reconvenção, condenando-se a A. a pagar à R. a quantia global de 10.000,00 (dez mil euros); não se conformado, assim, a Recorrente com a decisão recorrida.
4. A matéria de facto e de direito foi incorretamente julgada, ocorreu errada valoração da prova, sendo que a fundamentação oferecida pela Mma. Juiz do Tribunal a quo, afigura-se, com o devido respeito, desacertada quanto à interpretação da prova produzida e das conclusões que retirou da mesma.
5. Pelo que, O Recorrente contesta a decisão recorrida por três razões distintas, a saber:
6. Da Nulidade da Sentença – art.º 615.º, n.º1 al. d) e/ou e) do CPC
7. Matéria de Facto considerada incorretamente julgada, sua impugnação, errada valoração da prova e reapreciação da prova gravada. E consequentemente,
Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio, impugnando
8. Matéria de Direito, já que, o Tribunal faz uma errada apreciação e aplicação do direito.
Ponderando, especificadamente, cada um dos fundamentos:
9. Nulidade da Sentença – art.º 615.º, n.º 1 al. d) e/ou e) do CPC:
10.A Recorrida na petição inicial alegou que Autora e Ré acordaram em revogar e dar sem qualquer efeito o contrato celebrado entre as partes, sem penalizações para a Ré, tendo esta assumido o compromisso de devolver à Autora os € 10.000,00 que esta lhe havia entregue até final do mês de março, o que a Autora aceitou. Facto que foi considerado não provado pelo Tribunal a quo (Vide 2. Dos Factos não Provados, alínea a) da douta sentença).
11.Para além disso, a Autora, também na petição inicial, formulou o seguinte pedido: “a) Ser a Ré a condenada a pagar à Autora o valor de 10.843,84 euros, acrescida de juros, calculados à taxa legal de 4%, desde a data de 09.07.2020 até efetivo e integral pagamento.”
12.Acresce que, o Tribunal a quo decidiu que: “…Por conseguinte, demonstrado o incumprimento definitivo pela ré, do contrato de empreitada celebrado entre as partes, concluímos, ao abrigo do disposto no artigo 801.º, n.º 2, do Código Civil, que assiste à autora o direito à resolução do contrato celebrado entre as partes e a exigir da ré a restituição da quantia de € 10.000,00 que lhe entregou antecipadamente como pagamento de parte da obra (cfr. factos insertos em 3) e 4) dos factos provados), pelo que impende sobre a ré a obrigação de restituir à autora a aludida quantia, acrescida dos respetivos juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data do seu recebimento pela ré (01.06.2018) e até efetivo e integral pagamento (cfr. artigos 289.º, n.º 1, 433.º e 434.º, n.º 1, todo do Código Civil).”
13. Ora, salvo o devido respeito, a Recorrida não alegou que efetuou resolução do contrato por incumprimento definitivo por parte da Recorrente, mas que ocorreu por acordo uma revogação do referido contrato.
14.Assim sendo, não pode o Tribunal a quo decidir que merce de um alegado incumprimento contratual definitivo, assiste à Autora o direito a resolver o contrato, quando esta não alega, que resolveu o contrato por incumprimento definitivo por parte da Recorrente, nem tão pouco o requereu ao Tribunal para o declarar judicialmente.
15.Por tal facto, ocorreu nulidade da Sentença nos termos do art.º 615.º, n.º 1 d) e/ou e) do CPC, a qual expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
16.Matéria de facto considerada incorretamente julgada, sua impugnação, errada valoração da prova e reapreciação da prova gravada.
17.Flui da douta Sentença em recurso, no que concerne aos factos provados e no que ao presente recurso importa: “1. FACTOS PROVADOS: ….” – Vide supra na motivação para a qual se remete por economia processual.
18.Entendeu o digno Tribunal a quo não resultarem como provados os seguintes factos: “2. FACTOS NÃO PROVADOS …” – Vide supra na motivação para a qual se remete por economia processual.
19. Para dar a factualidade como assente, o Tribunal a quo baseou-se na seguinte “MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO …” - Vide supra na motivação para a qual se remete por economia processual.
Ora,
20.Salvo o devido respeito que é muito, os pontos 5 a partir de “apesar de diversas vezes tal ter sido solicitado pela autora”, 6 e 7 dos factos provados da sentença ora recorrida não podem ser dados como provados
Isto porque:
21.Dissecando a decisão em crise, com o devido respeito, é possível concluir que o Tribunal a quo errou no julgamento, mal apreciando a prova carreada nos autos, nomeadamente a prova testemunhal, nomeadamente do depoimento das testemunhas M. R., M. G. e A. F., impunha-se decisão diversa, quanto a estes factos.
22.A testemunha M. R., depoimento gravado com início pelas 10h21m e termo pelas 10h53m, conforme ata de audiência de julgamento, datada de 27 de abril de 2021, mencionou:
A instâncias do Ilustre Mandatário da Recorrida:

Acompanhou…a relação…portanto do que foi estabelecido entre ela e a E. C. e a D. M. G. ?
Acompanhei o que ela ia falando… …
No gabinete nunca foi discutido qualquer assunto sobre orçamentação…o que ouvi foi sempre dela fora do gabinete…
23.Por sua vez, a testemunha M. G., depoimento gravado, com início pelas 10h53m e termo pelas 11h18m, conforme ata de audiência de julgamento, datada de 27 de abril de 2021, mencionou:
Quando instada pela Sr.ª Juiz:
…Tem conhecimento do contrato de empreitada que foi celebrado, os termos, o que foi acordado, acompanhou os contratos?
Não isso não… …
Essas contratações não foram diretamente comigo…
24.A testemunha A. F., depoimento gravado, com início pelas 11h18m e termo pelas 11h28m, conforme ata de audiência de julgamento, datada de 27 de abril de 2021, mencionou:
Quando instado pelo Ilustre Advogado da Recorrida: …
…Por quem foi contactado para dar orçamento…? …
Ele não tinha calendário para fazer a obra se eu estava interessado em fazer a obra…
E disponibilidade financeira?
Não disse nada quanto a isso …só que não tinha disponibilidade de calendário…
A instância da Advogada da Recorrente:
Se o Sr. E. C. dissesse assim: Precisava que me fizesse o orçamento apenas para demonstrar …que o dinheiro não era suficiente, o senhor dava-se a esse trabalho?
… Não é para brincar… Claro que não …hoje o tempo é precioso… 25.Posto isto, do depoimento das testemunhas não se pode concluir os factos que ora se impugnam, já que, em primeiro lugar as testemunhas M. R. e M. G., nunca assistiram a qualquer conversação entre a Recorrida e a aqui Recorrente. Nem tão pouco a Testemunha A. F..
26.Ora, o Tribunal não pode dar como provados os factos 5 a partir de “apesar de diversas vezes tal ter sido solicitado pela autora”, 6 e 7 dos factos provados da sentença ora recorrida, já que nenhuma passagem dos seus depoimentos faz denotar isso.
Assim sendo,
27.Salvo o devido respeito, que é muito, não pode o Tribunal dar como provados os factos consubstanciados nos pontos 5 a partir de “apesar de diversas vezes tal ter sido solicitado pela autora”, 6 e 7 dos factos provados da sentença ora recorrida quando as testemunhas não foram capazes de o fazer.
28.Destarte, atentos os registos de prova dos depoimentos supra identificados e com base no disposto no art.º 662.º do Código de Processo Civil, deverá a decisão proferida sobre a matéria de facto ser alterada, dando-se por não provados os pontos acima mencionados, na medida em que a prova testemunhal produzida o não admite.
29.Modificada neste sentido, a decisão sobre a matéria de facto e conjugada com os restantes factos tidos como assentes, deveria o Tribunal a quo ter concluído pela improcedência da ação.
Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio, impugnando
a
30. Matéria de Direito, já que, o Tribunal faz uma errada apreciação e aplicação do direito.
31.A violação dos deveres emergentes do contrato de empreitada faz incorrer o empreiteiro em responsabilidade contratual (art.º 798º do Cód. Civil).
32.Efetivamente, o empreiteiro, por virtude do contrato que o liga ao dono da obra, está obrigado a realizar uma obra (cit. art. 1207º), se o empreiteiro deixa de efetuar a sua prestação em termos adequados, dá-se o inadimplemento da obrigação, com a consequente responsabilidade.
33.O não cumprimento da prestação do empreiteiro será definitivo se a obra, não tendo sido realizada, já o não puder ser, por o comitente ter nela perdido o interesse (art.º 808º, nº 1, 1ª parte), ou por não ter sido realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo dono da obra (art.º 808º, nº 1, 2ª parte).
34.Se a obra não foi atempadamente realizada e já não puder vir a sê-lo, na medida em que, entretanto, se tornou impossível a sua execução por causa não imputável ao empreiteiro, a situação é legalmente equiparada ao incumprimento definitivo (art. 801º, nº 2).
35.Perante o incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro, cabe ao dono da obra resolver o contrato e exigir a restituição da sua prestação caso a tenha realizado (art. 801º, nº 2).
36.Assim, o empreiteiro só entra automaticamente em mora se foi estabelecido um termo certo para a entrega da obra; caso contrário, a situação de mora apenas surge após a interpelação que o comitente faça (art.º 777º, nº 1), tendo em conta o prazo razoável para a execução da obra (art. 777º, nº 2).
37.O que não aconteceu no presente caso.
38.Uma vez constituído em mora, o empreiteiro ainda pode efetuar um cumprimento retardado, desde que indemnize o dono da obra dos danos causados pelo atraso (purgação da mora).
39.De quanto precede resulta, pois, que a simples mora do empreiteiro na execução da obra (isto é, a não conclusão atempada da obra) não concede ao dono da obra o direito de resolver imediatamente o contrato, salvo se este já tiver perdido o interesse na realização da obra.
40.Em princípio, o dono da obra só pode resolver o contrato e exigir uma indemnização (art. 801º, nº 2, do Cód. Civil) se o empreiteiro não ultimar a obra dentro daquele outro prazo que, razoavelmente, lhe for fixado pelo dono da obra (art. 808º, nº 1, 2ª parte, do mesmo diploma).
41.Para além disso, a resolução contratual, nos termos do art.º 436º do Cód. Civil, faz-se mediante declaração à outra parte, sendo que, dos factos provados aferimos que esta declaração nunca foi efetuada à Recorrente, nem verbalmente, nem judicialmente, já que a Recorrida não alegou a mesma na causa de pedir e nem a formulou no pedido.
42.Não obstante, tem-se entendido que, se o empreiteiro declarar expressamente que já não vai realizar a obra ou se ele tiver uma conduta reveladora de uma intenção firme e definitiva no sentido de não cumprir a obrigação contratual de concluir a respetiva obra, ainda que anterior ao termo do prazo convencionado para a execução desta, está-se perante uma situação de incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro, pelo que cabe ao dono da obra resolver o contrato e exigir uma indemnização.
43.Mas tem sempre que proceder à resolução, que se opera por meio de uma declaração unilateral, reptícia do credor, que se torna irrevogável quando chega o poder do devedor, e como tal a resolução implica uma comunicação à Recorrida, seja ela verbal, mediante envio de missiva escrita ou até judicial.
44. Ora, a referida declaração de resolução nunca foi efetuada pela Recorrida.
45.Por tudo quanto se deixa exposto, o Tribunal faz uma errada apreciação e aplicação do direito, o contrato não foi resolvido, motivo pelo qual, a ação tem obrigatoriamente que improceder”.
Pugna a Ré pela integral procedência do recurso e, consequentemente, pela declaração de nulidade da sentença e pela alteração da decisão quanto à matéria de facto e de direito, bem como pela revogação da sentença e sua substituição por outra que julgue a ação totalmente improcedente.
A Autora veio apresentar contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

O tribunal a quo pronunciou-se quanto à nulidade da sentença arguida pela Recorrente nos seguintes termos:
“Veio a ré recorrer da sentença proferida nestes autos arguindo, ademais, a nulidade da mesma por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, para tanto alegando, em suma, que a autora não alegou que efetuou a resolução do contrato por incumprimento definitivo, antes alegando que o contrato foi revogado por acordo entre as partes, pelo que, defende, não podia o Tribunal decidir que devido ao alegado incumprimento definitivo, lhe assistia o direito à resolução do contrato.
Cumpre, assim, apreciar a nulidade suscitada, nos termos do disposto no artigo 617.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Analisando as questões suscitadas pela recorrente, desde já se adianta que não se reconhece que lhes assista razão. Estipula o artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
In casu, não se vislumbra que se tivesse este Tribunal ocupado senão de questões que lhe foram suscitadas pelas partes ou que tivesse conhecido de questões que não fossem de conhecimento oficioso, por forma a que pudéssemos concluir pela verificação de excesso de pronúncia.
Com efeito, o excesso de pronúncia apenas se verifica quando o Tribunal conhece ou emite pronúncia sobre questões de que não deveria conhecer, ou seja, só ocorrerá quando o Juiz conhece de pedidos, causas de pedir ou exceções de que não podia tomar conhecimento, porque não foram suscitadas pelas partes ou porque não eram de conhecimento oficioso. “O vício de excesso de pronúncia – a que se alude na al. d) do nº 1 do artº 668º do CPC -, capaz de levar à nulidade da sentença, ocorre sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, ou seja, ele ocorre sempre que o julgador vai além do conhecimento que lhe foi pedido pelas partes (excluídas aquelas questões que são de conhecimento oficioso)” (vide Acórdão do Tribunal da relação de Coimbra de 30/11/2010, processo n.º 2345/09.5TBFIG.C1, disponível in www.dgsi.pt).
Ora, no caso em apreço, ao contrário do que propugna a ré, afigura-se-nos manifesto que a factualidade tida por assente e na qual se fundou o Tribunal para a decisão proferida, de nenhuma forma extravasa o âmbito da factualidade que consubstancia a causa de pedir alegada pela autora, antes incidindo sobre esta, sendo certo que nada obsta que o Tribunal leve ainda em consideração, além dos factos instrumentais que resultem da instrução da causa, também os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.
Acresce que, se é certo que não pode o Tribunal conhecer ou considerar factos essenciais que não tenham sido alegados pelas partes, também é certo que não está o Tribunal sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Entendemos, assim, não padecer a sentença recorrida da nulidade arguida pela ré.
Em face do exposto, afigurando-se não se verificar a nulidade arguida, decide-se manter integralmente e nos seus precisos termos a sentença recorrida.
Notifique”.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:
1 – Saber se a sentença é nula;
2 – Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto;
3 – Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:
(factos alegados pela autora na petição inicial)
1) A ré é uma empresa que se dedica à atividade de construção e remodelação de edifícios, construção de muros e vedações e arruamentos, exploração e canalização de águas, limpeza de matas e valetas, atividades que constam do seu objeto social.
2) Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 01.06.2018 (data do pagamento infra mencionado em 4) dos factos provados), autora e ré celebraram um acordo escrito denominado “Contrato de empreitada”, mediante o qual a ré, pelo preço global de € 140.000,00, comprometeu-se a edificar para a autora uma moradia para a residência desta, executando os trabalhos descritos no ponto 2 do referido acordo, conforme consta do documento junto aos autos a fls. 7 – verso a 9, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3) No mesmo acordo as partes acordaram num plano de pagamentos pelo qual a autora, “com a adjudicação e assinatura do contrato de empreitada” tinha de entregar à ré a quantia de € 10.000,00.
4) No dia 01.06.2018, a autora entregou à ré a quantia de € 10.000,00, o que fez através dos seguintes meios de pagamento que entregou ao legal representante da ré, E. C.:
a. € 2.000,00 em numerário;
b. € 2.000,00 através de um cheque, datado do dia 01.06.2018, subscrito pela autora sobre a conta da mesma no Banco … S.A. e emitido a favor da ré;
c. € 6.000,00 através de um cheque, datado para o dia 04.06.2018, subscrito pela autora sobre conta da mesma na Caixa … e emitido a favor da ré.
5) A ré nunca chegou a dar início aos trabalhos de execução contratados, apesar de diversas vezes tal ter sido solicitado pela autora.
6) Na sequência das insistências da autora, no mês de Fevereiro de 2019, a ré informou a autora que, por razões de incapacidade técnica e programação de outras obras, não podia executar os trabalhos de construção da moradia.
7) No mesmo momento, a ré sugeriu que a autora contratasse os trabalhos à firma A. F. – Engenharia e Construção Lda., apresentando-lhe um orçamento para tal efeito, datado de 12.02.2019, cujo valor ascendia a € 168.477,05.
8) A autora, porque o valor era muito superior ao que estava contratado com a ré, informou-a que não estava interessada em efetuar contrato com a empresa que ela sugeria.
9) Até à presente data a ré não devolveu à autora a quantia de € 10.000,00 acima mencionada em 4).
_________________________
(factos alegados pela ré na contestação/reconvenção)
10) A ré no âmbito da sua atividade comercial, foi contactada pela autora, para realizar a construção de uma moradia e piscina, no Loteamento do …, sita na Rua do …, freguesia de …. e …., Ponte de Lima.
11) Tendo fornecido à ré um projeto de arquitetura para a construção de uma moradia e piscina, para a qual ainda não havia logrado obter licenciamento por parte da Câmara Municipal de ....
12) Foi quanto a esse projeto que a ré orçamentou a obra, nos termos constantes do contrato acima mencionado em 2).
13) A autora acabou por desistir do processo de obras com o n.º 181/18, junto da Câmara Municipal de ..., depois de ter sido notificada do teor da informação técnica que apontava para o seu indeferimento, já que, além do mais, ultrapassava a área máxima de implantação permitida pelo Alvará de Loteamento para o local da obra.
(factos alegados pela autora na réplica)
14) O contrato que foi celebrado entre a autora e a ré acima mencionado em 2), tinha por base a execução de uma obra cujo projeto e pedido de licenciamento foi apresentado na Câmara Municipal de ... em 26.07.2018 e teve o n.º 181/18.
15) Sobre esse projeto foi emitida, a 02.08.2018, uma informação técnica que apontava para o seu indeferimento.
16) A autora desistiu então do pedido de licenciamento do referido projeto no dia 15.10.2018.
17) A autora apresentou o pedido de licenciamento na Câmara Municipal de ... de um novo projeto para construção de uma moradia diferente, em 17.10.2018, o qual deu origem ao processo de obras n.º 238/18.
18) Em consequência desse novo projeto, a autora questionou a ré sobre se havia diferença de custo.
19) A ré informou a autora de que o custo era igual e que lhe executava a nova moradia pelo mesmo valor já contratado.
20) Em 19.10.2018, a ré redigiu uma comunicação à autora pela qual lhe referiu que se propunha levar a cabo a execução da moradia acima referida em 17), pelo mesmo valor de € 140.000,00, discriminando os trabalhos que iria executar, conforme resulta do documento junto aos autos a fls. 29, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
21) No contrato acima mencionado em 2), já estavam incluídos, entre outros, os trabalhos de construção de muros de vedação frente à moradia em betão armado, de construção de muro de suporte de terras na rampa de acesso à cave e restante vedação em betão armado, de construção de muro de suporte nas traseiras do lote e de construção de varandas suspensas em betão armado, igualmente previstos na proposta acima mencionada em 20).
***
Factos considerados não provados em Primeira Instância:
(factos alegados pela autora na petição inicial)
a) Autora e ré acordaram em revogar e dar sem qualquer efeito o contrato celebrado entre as partes, sem penalizações para a ré, tendo esta assumido o compromisso de devolver à autora os € 10.000,00 que esta lhe havia entregue até final do mês de março, o que a autora aceitou.
_________________________
(factos alegados pela ré na contestação/reconvenção)
b) A autora solicitou alterações à obra inicial, nomeadamente, aumentando a área de construção, construção adicional de um muro para regularizar quotas de soleiras e suporte de terras em betão armado; construção de um muro para suporte de terras para acesso à garagem, e construção de varandas suspensas em betão armado.
c) Mercê de tais alterações, a ré informou a autora que o valor da construção da moradia objeto do contrato celebrado entre ambas, sofreria um aumento de mais € 10.000,00 acrescido de IVA à taxa legal em vigor.
d) As alterações solicitadas pela autora ao projeto anteriormente apresentado à ré, eram superiores às permitidas pelo Alvará de Loteamento em que se encontra inserido o lote da construção.
e) Perante o acréscimo ao valor contratado, mercê das alterações solicitadas, a autora não aceitou, entendia que o valor agora peticionado, era muito elevado e que deveria manter-se o mesmo apresentado inicialmente.
f) A ré fez ver à autora que a mesma tinha efetuado alterações ao proposto inicialmente, logo o valor de construção teria que sofrer alterações sob pena de a ré ter prejuízos.
g) Foi nesse seguimento que o sócio-gerente da ré disse à autora para contactar outra empresa do ramo, para aferir se o valor contratado e o valor adicional orçamentado, estaria na média, já que não tinha qualquer termo de comparação, mas nunca a ré mencionou que não podia construir a moradia.
h) A autora mencionou que não conhecia mais empresas de construção, questionando o sócio-gerente da ré, se não conhecia ninguém, ao que o mesmo disse que sim e entregou o contacto de uma outra empresa, para que solicitasse um orçamento.
i) Porém a autora pediu ao sócio-gerente da ré que solicitasse ele, já que conhecia o gerente da outra empresa, ao que este assentiu, numa derradeira tentativa para que esta percebesse que o valor por ele proposto não era de facto elevado.
j) Nesse contexto, o sócio-gerente da ré dirigiu-se ao Sr. A. F., gerente da Sociedade A. F. Engenharia & Construção, Lda., para que este procedesse ao orçamento da construção da moradia, agora já com alterações da dona da obra.
k) O sócio-gerente da ré, logrou assim, obter o orçamento acima mencionado em 7) a pedido da autora.
l) A autora não gostou dos valores apresentados no referido orçamento, considerando-os muito elevados.
m) Nessa circunstância, a autora decidiu denunciar o contrato com a ré, porque esta teve que, face às alterações por ela unilateralmente decididas, retificar em conformidade o valor inicialmente contratado.
n) A autora aproveitou-se da boa-fé do sócio-gerente da ré, alterando e distorcendo os factos.
o) O levantamento do alvará de construção pela autora era condição essencial para que a ré desse início às obras de construção.
p) Com a denúncia do contrato por parte da autora, a ré teve prejuízos, já que não lucrou com a referida construção, porque não a realizou e porque deixou de aceitar novas obras na convicção que iria realizar a moradia objeto do contrato de empreitada celebrado com a autora, bem como adquiriu materiais nos quais teve que investir dinheiro, acabando por utilizá-los muito mais tarde, ficando dessa forma com menos dinheiro disponível, sendo que, tudo acarretou prejuízos, na ordem dos €10.000,00.
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3.2. Da nulidade da sentença
A Recorrente vem arguir a nulidade da sentença recorrida com fundamento nas alíneas d) e/ou e) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil por entender que o tribunal a quo não podia decidir que, mercê, de um alegado incumprimento contratual definitivo, assiste à Autora o direito a resolver o contrato, quando esta não alega que resolveu o contrato por incumprimento definitivo por parte da Recorrente, nem tão pouco requereu ao Tribunal para o declarar judicialmente.
Vejamos se lhe assiste razão.

Estabelece o n.º 1 deste preceito de forma taxativa as causas de nulidade da sentença:
“1- É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.

Começamos por precisar que as causas de nulidade taxativamente enumeradas neste preceito não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável, sendo coisas distintas, mas muitas vezes confundidas pelas partes, a nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo-se este numa apreciação em desconformidade com a lei.
Não deve por isso confundir-se o erro de julgamento com os vícios que determinam as nulidades em causa.
De facto, as decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respectiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respectiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º.
Segundo o invocado pela Recorrente estão em causa as nulidades previstas na alínea d) e/ou e) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
No que se refere à alínea d), prende-se a nulidade aí prevista com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento).
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há-de assim resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Mas, a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os factos alegados, os argumentos suscitados ou as considerações tecidas, e nem tão pouco com meios de prova, não se confundindo, mais uma vez, com o designado erro de julgamento.
Quanto à nulidade prevista na alínea e), isto é, quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, relaciona-se com o previsto no artigo 609º n.º 1 do Código de Processo Civil onde se estabelece que: “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.
O tribunal, por regra, não só não pode conhecer senão das questões que lhe tenham sido colocadas pelas partes, como também não pode decidir ultrapassando os limites do pedido que foi formulado, sob pena da decisão ficar afectada de nulidade.
A nulidade da decisão quando o Tribunal condene em objecto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio do dispositivo, que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, Relator Conselheiro Oliveira Abreu, também disponível em www.dgsi.pt).
Como sustenta Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 362, apud o citado Acórdão de 21/03/2019) “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art. 660°, n° 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 661°, n.° 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado [art. 668°, n° 1, al. e)]”.
É incontornável que de acordo com o previsto no artigo 609º n.º 1 do Código de Processo Civil a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido (e da causa de pedir) não podendo o juiz condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (v. António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código se Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 728).
A decisão que ultrapassar o pedido formulado, passando a abranger matéria distinta, está ferida da nulidade prevista na referida alínea e).
In casu, se bem interpretamos a alegação da Recorrente, esta entende que o tribunal a quo conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento ao pronunciar-se sobre o incumprimento definitivo por parte da Recorrente e o direito da Autora a resolver o contrato e, consequentemente, terá condenado em objeto diverso do pedido, uma vez que aquela invocou a revogação por acordo e não ter resolvido o contrato por incumprimento, não tendo sequer pedido ao tribunal que o declarasse judicialmente.
Vejamos.
É inequívoco que o pedido do autor, conformando o objeto do processo, irá condicionar a decisão de mérito: o juiz não pode, na sentença, extravasar os pedidos formulados pelas partes, encontrando-se limitado por eles; a sentença terá de manter-se dentro dos limites definidos pela pretensão do autor ou da reconvenção, se deduzida pelo réu, não podendo o juiz transpor os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade, quer quanto ao seu próprio objeto.
Se o fizer a sentença ficará efetivamente ferida de nulidade.
O princípio do dispositivo encontra no artigo 3º do Código de Processo Civil a sua consagração mais inequívoca e manifesta-se, para além do mais, na consagração do ónus de iniciativa processual e na conformação do objeto do processo, que ocorre por via da enunciação do pedido, delimitando este objetivamente o âmbito decisório do tribunal (cfr. o citado artigo 609º n.º 1).
Ou seja, através do pedido as partes “circunscrevem o thema decidendum, isto é, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se perante a real situação conviria, ou não, providência diversa. Trata-se de uma esfera em que domina o princípio do dispositivo, o qual, em termos paralelos, também vigora em sede da sustentação fáctica da pretensão. Em ambos os casos prevalece a estratégia assumida pelo autor, sem que nela se deva imiscuir o juiz. Consequentemente, a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido (e da causa de pedir), não podendo o juiz condenar (ou fazer a apreciação que corresponder ao tipo de ação em causa) em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” (v. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Filipe Pires de Sousa, ob. cit., p. 728).
Contudo, como salientam estes Autores (ob. cit. p. 728 a 730), a prática judiciária revelou situações cuja resolução implicou alguma atenuação da rigidez desta regra tendo-se admitido, designadamente, a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor considerando-se ser lícito ao tribunal atribuir ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter, tendo-se em atenção que essa será por vezes, a única forma de resolver o litígio de forma definitiva.
Conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/04/2016 (Processo n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1, Relator Conselheiro Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt): “1. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado. 2. Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular”.
Tem vindo ainda a ser entendido que a interpretação do pedido não deve cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão.
De facto, vem sendo defendida a necessidade de interpretar o princípio do dispositivo em moldes mais flexíveis que permita, sem violação dos limites expressos no artigo 609º, solucionar de forma definitiva o litígio entre as partes, quando o decidido se contenha ainda assim no âmbito da pretensão formulada; ou seja, que permita ainda retirar do processo o seu efeito útil.
Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/02/2015 (Processo n.º 607/06.2TBCNT.C1.S1 Relator Conselheiro Abrantes Geraldes disponível em www.dgsi.pt), sufragando entendimento que também perfilhamos, “(…) também o art. 609º, nº 1, carece de um esforço interpretativo, contando, além do mais, com os contributos de diversos Assentos e Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência do STJ.
Entre tais arestos, destaca-se o Assento nº 4/95, in D.R. de 17-5, ao admitir que numa acção em que seja deduzida uma pretensão fundada num contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada o réu seja condenado a restituir o que tenha recebido no âmbito desse contrato, por aplicação do art. 289º do CC, desde que do processo constem os factos suficientes.
A conjugação entre o princípio do dispositivo e os limites do pedido encontra também largo desenvolvimento na fundamentação do ACUJ nº 13/96, in D.R., I Série, de 26-11, ainda que no caso se tenha vedado ao tribunal a actualização oficiosa da quantia peticionada.
Outro importante elemento auxiliar da interpretação emerge do ACUJ nº 3/01, in D.R., I Série-A, de 9-2, que firmou a jurisprudência segundo a qual numa acção de impugnação pauliana em que tenha sido erradamente formulado o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do acto jurídico impugnado o juiz deve corrigir oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia que emerge do direito substantivo. (…)
Na integração do caso não podem ainda descurar-se os objectivos apontados pelas sucessivas reformas processuais, designadamente quando delas emerge a sobreposição de aspectos de ordem material a outros de ordem formal, ou a necessidade de atribuir ao processo a necessária eficácia que permita alcançar uma efectiva e célere resolução de litígios.
Importa ponderar também o que emana da doutrina que, fazendo coro com os referidos objectivos, aponta para a flexibilização do princípio do pedido, como é defendido por Miguel Mesquita, em anotação a um aresto sobre direitos reais, na RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs. intitulada precisamente “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”.
Assim, se é verdade que a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido, não podendo o juiz condenar (rectius apreciar) nem em quantidade superior, nem em objecto diverso do que se pedir, tal não dispensa um esforço suplementar que permita apreender realmente o âmbito objectivo do pedido que foi formulado na presente acção (…) Tomando de empréstimo as palavras de Miguel Mesquita na mencionada anotação em torno da necessidade de compreender o princípio do dispositivo de um modo mais flexível, ajustado à realidade social e aos avanços que se têm sentido também no processo civil, se acaso a Relação tivesse adoptado a mesma “postura rígida e inflexível relativamente ao pedido, bem ao estilo oitocentista”, acabaria por absolver os RR. do pedido, “decisão que seria, sem dúvida alguma, do imediato agrado dos RR., mas que redundaria numa vitória de Pirro” (pág. 147).
Ora, como refere o mesmo autor, “o interesse público da boa administração da justiça nem sempre coincide com os interesses egoístas das partes, fazendo, pois, todo o sentido, num processo moderno, a intervenção do juiz destinada a alcançar a efectividade das sentenças” (pág. 150). Desiderato que, com muita razoabilidade e bom senso, foi conseguido pela Relação quando, reconhecendo para o muro uma situação de compropriedade, concluiu que se deveria pôr um esclarecedor ponto final no conflito”.
Também neste sentido se afirma no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2018 (Processo n.º 588/12.3TBPVL.G2.S1, Relatora Conselheira ROSA TCHING, disponível em www.dgsi.pt) que “(…) IX. O nosso atual modelo de processo civil, assente no primado do direito substantivo sobre o direito adjetivo e no princípio da gestão processual, torna inevitável a flexibilização do princípio do pedido contido no art. 609º, nº1 do Código de Processo Civil, no sentido da necessidade de se apreender realmente o âmbito objetivo do pedido que foi formulado na ação”.
Perfilhamos também o entendimento que o atual modelo de processo civil, que assenta no primado do direito substantivo sobre o direito adjetivo e no princípio da gestão processual consagrado no artigo 6º do Código de Processo Civil (introduzido pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), “atribui ao juiz o poder de exercer influência sobre o processo, quer a nível do procedimento propriamente dito, quer ao nível do «coração» do processo, ou seja, do pedido, da causa de pedir e das provas” (v. Miguel Mesquita, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”, RLJ, ano 143, p. 145) e torna inevitável a flexibilização do princípio do pedido no sentido de se apreender realmente o âmbito objetivo do pedido que foi formulado na ação.

No caso dos autos, a Autora veio pedir, a título principal, a condenação da Ré a pagar o valor de €10.843,84, acrescida de juros desde a data de 09/07/2020 até efetivo e integral pagamento, e subsidiariamente, a restituir à Autora, por via do enriquecimento sem causa, essa quantia de €10.843,84, acrescida também de juros contados desde 01/06/2020 até efetivo e integral pagamento, invocando para o efeito que Autora e Ré acordaram na revogação do contrato de empreitada (para edificação de uma moradia) celebrado, sem que a Ré tenha chegado a dar início à execução dos trabalhos contratados, por impossibilidade desta, tendo-se a Ré comprometido a devolver à Autora a quantia de €10.000,00.
A Ré apresentou-se a contestar, deduzindo ainda reconvenção, peticionando a condenação da Autora a pagar a quantia global de €10.000,00, invocando ter sofrido prejuízos com a denúncia/desistência do contrato pela Autora (v. em particular os artigos 22º e 46º do seu articulado).
O tribunal a quo veio a julgar a ação totalmente procedente e condenou a Ré a restituir à Autora a quantia de €10.000,00, acrescida dos respetivos juros de mora, contabilizados, à taxa legal, desde o dia 01/06/2018 e até efetivo e integral pagamento; mais julgou a reconvenção totalmente improcedente e absolveu a Autora do peticionado pela Ré.
Pelo tribunal a quo foi considerado verificar-se o incumprimento definitivo pela Ré do contrato de empreitada, assistindo direito à Autora à resolução do contrato e a exigir da Ré a restituição da quantia de €10.000,00 que lhe entregara antecipadamente como pagamento de parte da obra.
A Recorrente sustenta que não tendo a Autora alegado que resolveu o contrato por incumprimento definitivo e nem tendo pedido ao tribunal que o declarasse judicialmente não podia o tribunal a quo decidir que por força de um alegado incumprimento definitivo assiste à Autora o direito a resolver o contrato, entendendo, por isso, que a sentença recorrida, conheceu de questão não colocada pela Autora e decidiu em objecto diverso, o que fere a mesma de nulidade.
In casu, o tribunal a quo não considerou provado o acordo para revogação do contrato e nem a denuncia da Autora nos termos invocados pela Ré e entendeu verificar-se uma situação de incumprimento definitivo imputável à Ré.
Afirma ainda o tribunal a quo que a factualidade tida por assente e na qual se fundou para a decisão proferida, não extravasa o âmbito da factualidade que consubstancia a causa de pedir alegada pela Autora, antes incidindo sobre esta, e que, se não pode o Tribunal conhecer ou considerar factos essenciais que não tenham sido alegados pelas partes, também é certo que não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
De facto, a Autora invocou um acordo com a Ré no sentido de revogar o contrato e o compromisso desta de devolver aquela quantia de €10.000,00, mas alegou como fundamento da sua pretensão que em inícios de fevereiro de 2019 a Ré a tinha contactado informando que por razões de incapacidade técnica e programação de outras obras não podia executar os trabalhos de construção da moradia, e peticionou, seja a título principal, seja subsidiariamente, a condenação da Ré a pagar a quantia de €10.843,84 (sendo a quantia €10.000 que antecipadamente havia pago à Ré e os juros)
É, por isso, inequívoco, que a pretensão da Autora é a de ver devolvida tal quantia, acrescida de juros, e tem por base a cessação do contrato de empreitada sem que a Ré tenha dado início aos trabalhos contratados (artigo 6º da petição inicial) e após a Ré a ter informado que não podia executar os trabalhos de construção da moradia (artigo 7º da petição inicial).
E a cessação do contrato de empreitada é também expressamente aceite pela Ré no seu articulado de contestação/reconvenção, ainda que invoque como fundamento dessa cessação a denuncia/desistência por parte da Autora, na qual, alegando prejuízos, sustenta o seu pedido reconvencional.
Conforme já referimos, perfilhamos o entendimento de que importa interpretar o princípio do dispositivo em moldes flexíveis para que, sem violação dos limites expressos no artigo 609º, seja possível de forma definitiva solucionar o litígio entre as partes, quando o decidido se contenha ainda assim no âmbito da pretensão formulada.
E o que caracteriza a pretensão do autor, enquanto elemento individualizador da acção, não é a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico (veja-se que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – cfr. artigo 5º n.º 3 do Código de Processo Civil), mas o efeito prático-jurídico por ele pretendido.
Entendemos, por isso, ser lícito ao tribunal, partindo dos factos alegados pelas partes e julgados provados, alterar a qualificação jurídica, convolando para o decretamento do efeito jurídico adequado e, procedendo a “uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido”, atribuir ao autor o bem jurídico que ele pretendia obter, ainda que por uma via jurídica distinta da que foi invocada como fundamento da pretensão deduzida, sem que tal constitua o julgamento de objecto diverso do peticionado.
No caso concreto a pretensão material da Autora, face à cessação do contrato de empreitada sem que a Ré tenha chegado a dar início aos trabalhos, é a de obter a condenação desta no pagamento da quantia de €10.000,00 (acrescida de juros), correspondente ao valor que lhe entregou com a adjudicação e assinatura do contrato de empreitada, conforme acordado.
Se é certo que invocou um acordo com a Ré para revogar o contrato e devolução da referida quantia, a verdade é que invocou também que tal decorreu da Ré a ter informado que não podia executar os trabalhos de construção da moradia, e o pedido que deduziu a título principal e subsidiário, foi efectivamente o da condenação da Ré a pagar à Autora a já referida quantia.
E o tribunal a quo, ainda que seguindo um caminho jurídico distinto, qualificando de forma diferente os factos alegados pela Autora, não se pronunciou para além da pretensão desta, sustentando a sua decisão nos factos alegados pela própria Autora para fundamentar a sua pretensão, em particular os constantes dos já referidos artigos 6º e 7º da petição inicial, matéria julgada provada nos pontos 5) e 6).
De facto, e ainda que assumindo uma distinta via jurídica, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre a obrigação de pagamento dessa quantia e juros, e, julgando a acção procedente condenou a Ré a pagar à Autora a referida quantia €10.000,00 (acrescida de juros).
Acresce ainda dizer que da posição plasmada nos autos pelas partes resulta de forma inequívoca a cessação do contrato de empreitada; aliás, é com base na sua cessação que a Ré invoca prejuízos que sustentam o pedido reconvencional que formula. A própria Ré alega que a Autora pôs fim ao contrato, ainda que em vez de lhe chamar resolução qualifique a atuação da Autora como denuncia/desistência.
As figuras da resolução, revogação e denúncia surgem precisamente por referência aos modos de extinção da relação contratual ao gerarem a cessão do vínculo contratual. Mas, como se consta em diversas ações, muitas vezes as partes não qualificam de forma adequada e com o sentido técnico-jurídico rigoroso a forma de cessação do contrato.
Podemos afirmar de forma simples que a revogação consiste na vontade do declarante ou de ambas as partes extinguirem os efeitos jurídicos decorrentes de um negócio jurídico anteriormente válido e pode ser por acordo das partes ou unilateral, apenas por uma das partes, sendo que a revogação unilateral de contratos bilaterais só pode ocorrer nos casos previstos na lei e por acordo entre as partes.
Quanto à denúncia podemos defini-la como o modo de cessação unilateral do vínculo obrigacional nos contratos com duração indeterminada ou de impedir a prorrogação de contratos sujeitos a termo por períodos sucessivos; está em causa uma vontade motivada por razões de oportunidade ou interesse do contraente que não precisa de ser justificada.
Já a resolução é uma forma de extinção unilateral, com base na lei ou no contrato, por meio normal de uma normal declaração extrajudicial, de uma relação contratual, total ou parcialmente alterada ou perturbada (v. José Carlos Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra Editora, 2006, p. 39).
De forma distinta da denúncia, a resolução é motivada e sem dependência ou observância de qualquer prazo contratual, ocorrendo quando uma das partes não cumpre o contrato ou quando há uma alteração anormal da base negocial que atinge o equilíbrio das prestações.
Assim, aceitando a Ré que a Autora pôs termo ao contrato de forma unilateral, o facto de fazer apelo à figura da denuncia não é impeditivo de se qualificar essa atuação por referência à figura da resolução, também ela uma forma de extinção unilateral, quando resulta de forma inequívoca dos autos a vontade da Autora na cessação do contrato e a sua comunicação à Ré (é a Ré que afirma que a Autora denunciou o contrato), concluindo depois em face da matéria de facto se lhe assistia ou não o direito à resolução.
Em face do exposto, julgamos ser de concluir que o tribunal a quo não conheceu de questão não suscitada pelas partes e nem extravasou os limites do pedido, não ocorrendo a nulidade da sentença invocada pela Recorrente.
Assim, analisada a sentença proferida em 1ª Instância não se verifica a invocada nulidade, improcedendo desde já e nesta parte o recurso.
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3.3. Da modificabilidade da decisão de facto

O recurso interposto pela Ré visa também a reapreciação da decisão de facto.
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A Autora nas contra-alegações que apresenta sustenta que a Recorrente não cumpriu o ónus imposto pelo n.º 2 alínea a) do artigo 640º do Código de Processo Civil.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil que dispõe que “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.

De acordo com este preceito é de exigir ao recorrente que obrigatoriamente especifique:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- Quando a impugnação dos pontos da decisão da matéria de facto se baseie em provas gravadas deverá ainda indicar com exatidão as passagens da gravação relevantes e proceder se o entender à transcrição dos excertos que considere oportunos;
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

O legislador impõe de forma expressa ao recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto tal ónus de especificar e o incumprimento do ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.
A este propósito escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, Almedina, 2014, p. 133) que “O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)” mas também que importa que “não se exponenciem os requisitos a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a pretendida reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador” e que, por outro lado, “quando houver sérios motivos para rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto; quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia; ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afetados (…)”.
Temos entendido como essencial que das conclusões formuladas pelo recorrente constem efectivamente os pontos da matéria de facto que impugna e o sentido da decisão que pretende seja proferida; é que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, que definem as questões a reapreciar pela Relação, pelo que o cumprimento do ónus decorrente do referido artigo 640º (alínea a) do n.º 1) impõe que nas mesmas sejam indicados todos os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar (v. a este propósito, entre vários outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/2019, Relator Conselheiro António Leones Dantas, disponível em www.dgsi.pt).
Por outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem ainda distinguindo, para efeitos do disposto no referido artigo 640º, a previsão constante das alíneas a), b) e c) do n.º 1 (exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir) considerando que constituem um ónus primário “na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto” (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, Relatora Conselheira Rosa Tching, também disponível em www.dgsi.pt) da exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, a que se refere a alínea a) do nº 2 e que constitui um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
Como se afirma no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, salientando-se ainda que os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, “enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso”.
Analisadas as alegações apresentadas pela Recorrente conclui-se que se refere à prova gravada por indicação do início e termo dos depoimentos e à ata de audiência em que foram prestados, mas também que procedeu à transcrição das partes dos mesmos que entende justificarem que a decisão da matéria de facto, quanto aos pontos impugnados, seja outra.
A concretização do ónus de indicação das passagens da gravação deve ser considerada atendendo ao fim ou objetivo, à ratio legis da norma que lhe está subjacente e que é responsabilizar o recorrente pelas afirmações em que funda o seu recurso, sujeitando-o, no limite, à disciplina legal da litigância de má-fé, e impedir também impugnações da decisão da matéria de facto sem um mínimo de concretização e de assento na prova pessoal produzida em audiência.
Por outro lado, o cumprimento do ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser analisado casuisticamente e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não se justificando a imediata e liminar rejeição do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto se, perante a indicação/transcrição efetuada, não existe dificuldade na localização dos excertos da gravação em que o recorrente fundou o invocado erro de julgamento; de referir ainda que a indicação de forma cirúrgica de partes do depoimento, com especifica menção à concreta passagem da gravação, pode nem corresponder à forma como o depoimento da testemunha foi prestado, ao contexto em que a resposta foi dada e a pergunta formulada, ou aos subsequentes esclarecimentos que foram prestados, designadamente pelo confronto com prova documental, enfim de todo o enquadramento que se estabelece no decurso do depoimento da testemunha e que muitas vezes as vezes nem sequer deve (pode) ser extrapolado para afirmações isoladas e delimitadas, que comprometem na maior parte dos casos toda a lógica do depoimento.

In casu, considerando o exposto, inexistindo qualquer dificuldade na localização dos excertos da gravação, e mostrando-se essencial, tal como decorre da própria posição da Recorrida constante das suas contra-alegações, atender à totalidade do depoimento das testemunhas em causa para se perceber o contexto das afirmações e a lógica do respetivo depoimento, sem esquecer o já referido principio da proporcionalidade, entendemos que se deverão considerar-se cumpridos pela Recorrente os ónus impostos pelo artigo 640º n.º 1 do Código de Processo Civil, não sendo de rejeitar o recurso na parte respeitante à reapreciação da matéria de facto, pelo que iremos conhecer do mesmo.
Questão distinta é se devem manter-se os pontos 5), 6) e 7) dos factos provados tal como julgados pelo tribunal a quo ou se existe erro no julgamento desta matéria de facto.
Vejamos.
Conforme decorre do disposto no artigo 607º n.º 5 do CPC a prova é apreciada livremente; prevê este preceito que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”; tal resulta também do disposto nos artigos 389º, 391º e 396º do Código Civil, respectivamente para a prova pericial, para a prova por inspecção e para a prova testemunhal, sendo que desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido nº 5 do artigo 607º).
Conforme o ensinamento de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 384) “segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas”.
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Atualizada, Coimbra Editora, p. 435 a 436). Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
É claro que a “livre apreciação da prova” não se traduz numa “arbitrária apreciação da prova”, pelo que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a “menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (cfr. Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, ob. cit. p. 655). O “juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
É, por isso, o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, que está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este conclua, com a necessária segurança, que a prova produzida aponta em sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª instância, quando tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto.
No mesmo sentido salienta Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, p. 609) que “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
De facto, a questão que se coloca relativamente à prova, quer na 1.ª Instância quer na Relação, é sempre a da valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação, pois que, em ambos os casos, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios.
Tendo por base tais considerandos analisemos então se existe erro de julgamento.
Sustenta a Recorrente que a matéria constante dos pontos 5), a partir de “apesar de…”, 6) e 7) não pode ser julgada provada, fazendo apelo, para o efeito, às declarações prestadas pelas testemunhas M. R., M. G. e A. F., as quais foram indicadas pela Autora.
De salientar desde já que a Recorrente não faz qualquer menção às declarações da testemunha por si indicada, a propósito da qual o tribunal a quo considerou que “a única testemunha arrolada pela ré, E. L., arquiteta, que referiu ter trabalhado no gabinete de arquitetura L. P., durante cerca de 5/6 anos, não revelou qualquer préstimo adicional para o apuramento da factualidade controvertida, na medida em que se limitou a confirmar que analisou e assinou o primeiro projeto elaborado por aquele gabinete para a construção da moradia da autora, esclarecendo que, apesar de o ter assinado, não foi a autora do projeto, não tendo feito a conceção do desenho, não se recordando, sequer, do mesmo”.
De referir ainda que a Recorrente também não impugna a matéria de facto julgada não provada em primeira instância pelo que temos de concluir que aceita não ter resultado demonstrada em face da prova produzida a sua versão dos factos, apenas questionando a Ré que a Autora tenha logrado demonstrar parte dos factos por si alegados.
Ora, analisando a motivação exposta pelo tribunal a quo, verificamos que considerou toda a prova testemunhal ouvida em audiência, designadamente as testemunhas ora indicadas pela Recorrente, em conjugação com a prova documental, que analisou também à luz das regras da experiência.
E em concreto consignou na decisão recorrida (que aqui transcrevemos na parte que releva) que:
“(…) Relativamente à factualidade inserta em 2), 3), 4), 5), 9), 10), 11), 12), 13), 14), 15) e 16), além de não ter também sido alvo de dissídio entre as partes (sendo certo que não questionou a ré, além do mais, a celebração com a autora do contrato mencionado em 2) dos factos provados e a não realização dos trabalhos acordados, assim como não questionou a ré a entrega pela autora da quantia referida em 4) dos factos provados, bem como não infirmou, antes admitindo, que não devolveu à autora tal quantia, ao passo que não questionou a autora, além do mais, a não aprovação do primeiro projeto apresentado junto da Câmara Municipal), mais resultou tal factualidade demonstrada em face da análise conjugada entre os documentos, cujo teor e força probatória não resultou infirmada em face da demais prova produzida, juntos aos autos a fls. 7 – verso a 9 (contrato de empreitada mencionado em 2) dos factos provados), a fls. 9 – verso e 10 (cópias dos cheques mencionados em 4) dos factos provados) e o processo de obras n.º 181/18, apenso por linha aos presentes autos, do qual linearmente se extrai, além do mais, que o projeto inicialmente entregue pela autora à ré não obteve licenciamento por parte da Câmara Municipal de ..., tendo sobre o mesmo sido apresentada uma informação técnica que apontava para o seu indeferimento, razão pela qual desistiu a autora do pedido de licenciamento de tal projeto (cfr. fls. 65 do processo de obras n.º 181/18).
A convicção do Tribunal quanto à demonstração da demais factualidade assente em 6), 7), 8), 17), 18), 19), 20) e 21), fundou-se na conjugação entre os depoimentos das testemunhas arroladas pela autora, os quais se revelaram seguros, desinteressados, objetivos, coerentes entre si e consentâneos com a prova documental produzida e na qual igualmente se suportou o Tribunal para a aquisição da mesma factualidade, a saber, os documentos juntos aos autos a fls. 7 – verso a 9 (contrato de empreitada mencionado em 2) dos factos provados), a fls. 10 – verso a 13 – verso (orçamento mencionado em 7) dos factos provados), a fls. 29 (proposta mencionada em 20) dos factos provados) e do processo de obras n.º 238/18, apenso aos presentes autos, cujo teor e força probatória não resultaram infirmados pela demais prova produzida.
Com efeito, a testemunha M. R., arquiteta, que denotou ter conhecimento pessoal e direto dos factos em questão, por ter trabalhado e trabalhar nos gabinetes de arquitetura onde foram elaborados os projetos para a construção da moradia da autora (numa primeira fase no gabinete de arquitetura L. P. e mais tarde no gabinete de arquitetura R. G. Unipessoal, Lda.), declarou que acompanhou ambos os projetos, esclarecendo, em consonância com o teor do processo de obras n.º 181/18, que o primeiro projeto elaborado não foi aprovado pela Câmara Municipal porque não cumpria, em termos de áreas, o alvará de loteamento, razão pela qual teve que proceder-se à elaboração de um novo projeto que cumprisse tais limitações, segundo projeto este que veio já a ser aprovado. Mais esclareceu, a mesma testemunha, que apesar da referida necessidade de elaboração de um novo projeto para a construção da moradia da autora, manteve-se a sociedade ré como empreiteira, tanto que foi esta quem levantou o respetivo alvará de construção, acrescentando que a ré apresentou um novo orçamento, mas com o mesmo valor do primeiro, ou seja, € 140.000,00 (o que se revela absolutamente corroborado pela conjugação entre o teor dos mencionados documentos juntos aos autos a fls. 7 – verso a 9 e 29, ambos naquele valor de € 140.000,00). Declarou ainda que a ré não executou os trabalhos, adiando sistematicamente o seu início, ora alegando falta de disponibilidade/tempo, ora alegando falta de condição financeira (negando que a ré alguma vez tivesse dito que não iniciava a obra por causa da alteração do projeto e correlativa alteração do respetivo custo), até que acabou a ré por apresentar à autora um orçamento para a execução da obra de uma outra empresa, o que referiu ter surpreendido a autora, que nunca pediu, nem aceitou tal orçamento, referindo a testemunha que a ré pretendeu mesmo “desligar-se da obra” (sic). Esclareceu ainda a mesma testemunha que o segundo projeto não ficaria a um custo superior relativamente ao primeiro, na medida em que no segundo projeto, ao contrário do que sucedia no primeiro, já não estava prevista a execução de um piso subterrâneo/cave, explicando que a execução deste piso subterrâneo/cave implicava maior gasto de betão, assim como a necessidade de serem feitas drenagens e a execução de sistema de sustação de terras, o que já não se verificou no segundo projeto.
A testemunha M. G., que denotou também conhecimento pessoal e direto dos factos em apreço, por ser a legal representante do já mencionado gabinete de arquitetura e engenharia R. G. Unipessoal, Lda., para o qual transitou o projeto de arquitetura da moradia da autora, que se iniciou no gabinete de arquitetura L. P., do qual fez também parte a mesma testemunha, razão pela qual demonstrou ter também conhecimento do primeiro projeto elaborado, afirmou igualmente que o custo da construção do segundo projeto não seria mais elevado que o custo da construção do primeiro projeto (assim corroborando o depoimento da testemunha M. R. e infirmando a versão da sociedade ré quanto a esta matéria). Esclareceu, para tanto, que no segundo projeto, ao contrário do que estava previsto no primeiro, já não estava contemplada nem a construção de piscina, nem a construção de uma cave (referindo, do mesmo modo, que a construção de cave implicaria custos acrescidos), explicando que existe no segundo projeto uma rampa de acesso à garagem, mas que a garagem passou a ser no piso zero, acrescentando que fora o muro de acesso à garagem, não existe no segundo projeto mais nenhum muro de regularização de quotas. Acrescentou que no segundo projeto os vãos das varandas são mais estreitos relativamente aos do primeiro, o que não obriga ao gasto de tanto betão. Mais afirmou (em consonância com o teor dos documentos juntos aos autos a fls. 7 – verso a 9 e 29 e com os processos de obras apensos aos presentes autos), que as varandas suspensas também já existiam no primeiro projeto. Declarou ainda, a mesma testemunha, que a sociedade ré não podia ignorar o teor do segundo projeto elaborado, na medida em que foi a ré quem foi levantar o respetivo alvará à Câmara Municipal, sendo certo que, para elaborar o segundo orçamento que apresentou à autora (junto a fls. 29), forçosamente teria que ter conhecimento do projeto a que respeitava tal orçamento (assim infirmando que a não execução pela ré dos trabalhos acordados com a autora tenha ficado a dever-se às alterações ao projeto e ao aumento do custo respetivo).
Ora, analisados conjugadamente os documentos juntos aos autos a fls. fls. 7 – verso a 9 (contrato de empreitada mencionado em 2) dos factos provados) e a fls. 29 (proposta mencionada em 20) dos factos provados, datada de 19.10.2018, ou seja, com data posterior à data da desistência da autora do pedido de licenciamento do primeiro projeto – cfr. factos insertos em 15) e 16) dos factos provados – e à data de apresentação pela autora do pedido de licenciamento do segundo projeto – cfr. factos insertos em 17) dos factos provados), cuja autoria a ré não logrou infirmar, constatamos, efetivamente, que em ambos, a ré apresenta a quantia de € 140.000,00 (acrescido de IVA) como o valor total da obra a realizar, donde manifestamente se extrai, à luz das mais elementares regras da experiência e da lógica, desde logo, que a necessidade de elaboração de um novo projeto diferente do primeiramente orçamentado pela ré, não implicou um acréscimo no custo da obra em €10.000,00, bem pelo contrário, na medida em que o segundo orçamento elaborado pela ré, tem exatamente o mesmo valor que o segundo, donde logicamente também se extrai que não foi qualquer acréscimo no custo da construção que esteve na base da não execução da obra pela ré (sendo certo que não logrou a ré produzir qualquer prova que demonstrasse, como alegou, que tivesse informado ou apresentado à autora orçamento superior em € 10.000,00 relativamente ao primeiro, pelo contrário, a prova produzida, pelas razões vindas de aduzir, infirma o alegado pela ré).
Por sua vez, a testemunha A. F., legal representante da sociedade que elaborou o orçamento junto aos autos a fls. 10 – verso a 13 – verso (acima mencionado em 7) dos factos provados), afirmou não conhecer a autora e ter sido o legal representante da sociedade ré quem lhe pediu para elaborar o predito orçamento, dizendo-lhe este não ter calendário para fazer a obra em questão, acrescentando que o legal representante da ré deixou no seu escritório o respetivo caderno de encargos para que pudesse elaborar o orçamento. Mais esclareceu a mesma testemunha que não cobra pelos orçamentos que faz, como é, aliás, prática reiterada no mercado.
(…) Assim, analisada conjugadamente entre si a prova vinda de referir, à luz das regras da experiência e da lógica, resultou firme a convicção deste Tribunal acerca da demonstração da factualidade assente em 6), 7), 8), 17), 18), 19), 20) e 21) (…)”.
Constata-se da motivação transcrita que o tribunal a quo equacionou toda a prova, designadamente os depoimentos das testemunhas que a Recorrente ora invoca, e fê-lo de forma crítica e fundamentada, esclarecendo através de raciocínio lógico a forma como formou a sua convicção, especificando os fundamentos decisivos para a formação da mesma e justificando os motivos da sua decisão, designadamente porque deu credibilidade às declarações das testemunhas indicadas, cujos depoimentos considerou seguros, desinteressados, objetivos, coerentes entre si e consentâneos com a prova documental produzida.
Como é evidente a prova tem de ser analisada de forma critica na sua globalidade, não bastando invocar pequenas referências a afirmações feitas pelas testemunhas no decurso do seu depoimento, em particular quando desenquadrados e descontextualizados da globalidade do mesmo; e, ouvidos os respetivos depoimentos integralmente, conjugados com a prova documental, e não apenas as afirmações que de forma cirúrgica a Recorrente transcreveu, não vemos que deva ser outra a decisão quanto à referida matéria de facto, mostrando-se os respetivos depoimentos efetivamente desinteressados e objetivos e, para além de coerentes entre si, em sintonia com a prova documental constante dos autos.
In casu, a Recorrente não só se abstém de apresentar uma apreciação critica de toda a prova produzida, designadamente documental, omitindo, aliás qualquer referência à mesma, como se limita, relativamente às declarações prestadas pelas referidas testemunhas, a transcrever pequenas afirmações, algumas desenquadradas do contexto global do respetivo depoimento.
Assim, e relativamente ao depoimento da testemunha M. R., omite a Recorrente que a mesma afirmou ser arquiteta e trabalhar nos gabinetes de arquitetura onde foram elaborados os projetos para a construção da moradia da Autora, inicialmente o gabinete de arquitetura L. P. e posteriormente o gabinete de R. G. Unipessoal, Lda, e ter, por isso, conhecimento de ambos os projetos, esclarecendo porque o primeiro não foi aprovado pela Câmara Municipal e porque foi elaborado outro projeto que veio já a ser aprovado, sendo do seu conhecimento que a Ré se manteve como empreiteira, tendo levantado o respetivo alvará de construção, tendo ainda apresentado um novo orçamento, mas com o mesmo valor do primeiro uma vez que a execução do segundo projeto não ficaria a um custo superior.
Se efetivamente a testemunha referiu não ter relacionamento direto com a Ré e no gabinete nunca ter sido discutido qualquer assunto sobre orçamentação, tal não significa que a testemunha não tenha conhecimento dos factos, pois que, para além do mais, a relação dela com a Autora nem sequer é de índole estritamente profissional, mas de amizade, e, por isso, de grande proximidade, motivo pelo qual, aliás, o processo ficou sempre com eles, conforme esclareceu, pelo que foi tendo conhecimento para além (ou fora) do gabinete onde trabalha, relatando ainda a forma como encontrava a Autora incomodada por a Ré não executar nenhum dos trabalhos e estar sempre a adiar qualquer inicio dos mesmos, alegando falta de disponibilidade de tempo (mas também falta de disponibilidade financeira), acabando por apresentar à Autora um novo orçamento de uma outra empresa, o que surpreendeu a Autora.
E, quanto às declarações prestadas pela testemunha M. G., limita-se a Recorrente a transcrever as suas declarações na parte em que referiu não ter conhecimento direto dos termos do contrato de empreitada e do que aí foi acordado por não terem sido diretamente com ela as contratações.
Porém, tal afirmação, que aliás sustenta o carater desinteressado e objetivo do seu depoimento, e a credibilidade que o mesmo merece, é absolutamente redutora do depoimento da testemunha e dos conhecimentos que a mesma demonstrou, de forma pessoal e direta.
De facto, a testemunha é a legal representante do gabinete R. G. Unipessoal, Lda., para o qual transitou o projeto de arquitetura da moradia da Autora, que se iniciou no gabinete de arquitetura L. P., do qual fez também parte a testemunha, tendo a mesma conhecimento dos dois projetos elaborados, corroborando o depoimento da testemunha M. R. ao afirmar, de forma fundamentada e em sintonia com o teor dos documentos de fls. 7 verso a 9 e 29, que o custo da construção do segundo projeto não seria mais elevado que o custo da construção do primeiro projeto.
E quanto às declarações da testemunha A. F., legal representante da sociedade que elaborou o orçamento junto a fls. 10 verso a 13, mesmo na pequena parte transcrita pela Recorrente, confirma afinal que foi o legal representante da Ré que o contactou (a testemunha referiu não conhecer sequer a Autora) e que lhe pediu para elaborar o orçamento dizendo-lhe que não conseguia fazer a obra porque não tinha calendário; mais afirmou que o legal representante da Ré lhe perguntou se ele estava interessado em fazer a obra deixando no escritório o caderno de encargos, para que pudesse apresentar a proposta o que foi feito, passando aquele depois por lá para a levantar.
E, se considerarmos ainda, como devemos, a prova documental junta aos autos, designadamente os documentos juntos a fls. 7 verso a 9 (contrato de empreitada mencionado no ponto 2 dos factos provados) e a fls. 29 (proposta mencionada no ponto 20), teremos de concluir também, conforme consta da decisão recorrida, que “em ambos, a ré apresenta a quantia de € 140.000,00 (acrescido de IVA) como o valor total da obra a realizar, donde manifestamente se extrai (…) que a necessidade de elaboração de um novo projeto diferente do primeiramente orçamentado pela ré, não implicou um acréscimo no custo da obra em €10.000,00” e que “não foi qualquer acréscimo no custo da construção que esteve na base da não execução da obra pela Ré”.
Assim, analisados os depoimentos prestados pelas testemunhas na sua globalidade, conjugados entre si e com a prova documental constante dos autos, e considerando as regras da experiência e da lógica, entendemos não existir qualquer erro de julgamento, devendo manter-se inalterada a matéria de facto fixada em 1ª Instância.
***
3.4. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado pelo Tribunal a quo, importa agora apreciar se deverá manter-se a decisão jurídica da causa que, julgando totalmente procedente a ação e totalmente improcedente a reconvenção, condenou a Ré a restituir à Autora a quantia de €10.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal contados desde 01/06/2018 e absolveu a Autora do pedido reconvencional.
Importa começar por esclarecer que não está em causa no presente recurso a sentença proferida pelo tribunal a quo na parte em que julgou totalmente improcedente a reconvenção, mas apenas na parte em que julgou totalmente procedente a ação.
Sustenta a Recorrente, nessa conformidade, que deve ser julgada totalmente improcedente a ação, alegando a distinção entre mora e incumprimento definitivo, mas reconhecendo que se tem entendido que se o empreiteiro declarar expressamente que não vai realizar a obra se está perante uma situação de incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro, cabendo ao dono da obra resolver o contrato e exigir uma indemnização.
Foi este exatamente o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo que considerou verificar-se o incumprimento definitivo imputável à Ré ao transmitir à Autora que não podia executar os trabalhos acordados e assistir à Autora, em face do disposto no artigo 801º n.º 2 do Código Civil, o direito à resolução do contrato e a exigir da Ré a restituição da quantia de €10.000,00, acrescida de juros.
Entende a Recorrente que a Autora não procedeu, como se lhe impunha, à declaração de resolução do contrato, pelo que não pode ser julgada procedente a ação e condenada a Ré à restituição da referida quantia.
Vejamos então se lhe assiste razão.
Não vem questionado no presente recurso o enquadramento jurídico efetuado pelo tribunal a quo que entendeu, e bem, ter sido celebrado entre as partes um contrato de empreitada pelo qual a Ré se obrigou a construir para a Autora, a pedido desta, uma moradia.
In casu, decorre da matéria de facto provada que a Ré é uma empresa que se dedica à atividade de construção e remodelação de edifícios, construção de muros e vedações e arruamentos, exploração e canalização de águas, limpeza de matas e valetas, atividades que constam do seu objeto social e que Autora e Ré celebraram um acordo escrito denominado “Contrato de empreitada”, mediante o qual a Ré, pelo preço global de €140.000,00, se comprometeu a edificar para a Autora uma moradia para residência desta (pontos 1 e 2 dos factos provados).
A Ré obrigou-se, por isso, a realizar uma obra (construção de uma moradia), obrigando-se a Autora ao pagamento do respetivo preço.
Ora, o contrato de empreitada, regulado nos artigos 1207º a 1230º do Código Civil, traduz-se no contrato pelo qual uma das partes (o empreiteiro) se obriga em relação à outra (o dono da obra) a realizar certa obra, mediante um preço, sendo o objeto de qualquer contrato de empreitada uma obra material, como ocorre no caso concreto em que está em causa a construção de uma vivenda.
Tal como as partes denominaram no acordo que reduziram a escrito, as mesmas celebraram efetivamente um contrato de empreitada.
A questão que aqui se discute é a do incumprimento desse contrato, imputável à Ré.
Conforme resulta do disposto no artigo 406° do Código Civil os contratos devem ser pontualmente cumpridos, sendo que o devedor só cumpre a obrigação, quando realiza a prestação a que está vinculado (artigo 762º do mesmo diploma), devendo ainda o construtor nos termos do disposto no artigo 1208º, também do Código Civil, executar a obra em conformidade com o que foi convencionado e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato, cumprindo as especificações jurídicas e técnicas da obra e respeitando as regras da arte respetiva.
Aos contratos de empreitada aplicam-se não só as normas dos artigos 1207º e seguintes do Código Civil, mas ainda as regras gerais relativas ao cumprimento/incumprimento das obrigações; a questão do incumprimento do contrato de empreitada e da possibilidade da sua resolução pode ser solucionada quer à luz do regime próprio da resolução do contrato de empreitada (cfr. artigo 1222º, n.º 1 do Código Civil) quer pelo regime normal da resolução dos negócios jurídicos (artigos 801º e 808º do Código Civil), o qual não é afastado por aquele.
Assim, pressupondo a existência de defeitos da obra objeto do contrato, dispõe o artigo 1222º n.º 1 que se eles não forem eliminados ou não for construída de novo a obra, o dono pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina.
No caso que nos ocupa tal normativo não tem aplicação uma vez que não se trata da existência de defeitos na obra, mas de uma obra que nem sequer chegou a ser iniciada pois a Ré nunca chegou a dar início aos trabalhos contratados (ponto 5 dos factos provados).
Importa, então, considerar o regime geral previsto para o incumprimento dos contratos (artigos 801º e seguintes do Código Civil).
E, aqui, há uma primeira distinção capital a estabelecer, consoante a prestação se atrasa ou se torna definitivamente impossível.
Na primeira hipótese, na mora, chegado o vencimento o devedor não cumpre mas a prestação poderá ainda ser realizada com interesse para o credor, podendo vir a executá-la mais tarde (a prestação continua a ser materialmente possível e o credor continua a ter interesse nela); já na segunda hipótese, a prestação impossibilita-se de vez, tornando-se, em definitivo, irrealizável, seja quando a prestação, sendo inicialmente realizável, se impossibilita subsequentemente, em termos definitivos, ficando o devedor impedido de cumprir a prestação, seja nos casos em que a prestação, em consequência do retardamento, deixa de ter utilidade para o credor.
De acordo com o disposto no artigo 801, n.ºs 1 e 2 do Código Civil tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor e tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor pode resolver o contrato.
Pode assim afirmar-se que o incumprimento definitivo abrange os casos de impossibilidade da prestação, quer quando esta se torna absolutamente inviável, quando a probabilidade da sua realização se torna extremamente improvável (por não depender exclusivamente da vontade do devedor) ou mesmo quando o devedor manifesta perante o credor o propósito de não cumprir.
In casu não restam quaisquer dúvidas que a Ré não cumpriu a sua obrigação pois nunca chegou a dar inicio aos trabalhos apesar de diversas vezes tal ter sido solicitado pela Autora; e, tendo informando a Autora que não podia executar os trabalhos de construção da moradia por razões de incapacidade técnica e programação de outras obras, sugerindo até à Autora que contratasse outra empresa, apresentando-lhe um orçamento de outra empresa para tal efeito, julgamos também inequívoco que a atuação da Ré configura efetivamente um incumprimento definitivo da sua obrigação.
O incumprimento definitivo, na falta de cláusula resolutiva ou prazo essencial, traduz-se na perda do interesse objetivo do credor, em consequência da mora do devedor, na recusa deste em cumprir a obrigação, ou no decurso do prazo admonitório, situações que permitem à contraparte o direito de resolver o contrato (cfr. artigo 808º do Código Civil; v. Acórdão da Relação do Porto de 18/12/2018, Processo n.º 4070/17.4T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt).

No caso concreto a própria Recorrente reconhece que se o empreiteiro declarar expressamente que não vai realizar a obra se está perante uma situação de incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro, cabendo ao dono da obra o direito de resolver o contrato e exigir uma indemnização; é exatamente essa a situação que decorre dos autos: a Ré enquanto empreiteira não deu início aos trabalhos e informou a Autora que não podia executar os trabalhos de construção da moradia por razões de incapacidade técnica e programação de outras obras.
Assim, e tal como consta da sentença recorrida não se suscitam dúvidas que, tendo a Ré incumprido definitivamente o contrato de empreitada, assistia à Autora o direito à resolução do contrato e à restituição do prestado, da quantia de €10.000,00 que antecipadamente entregara à Ré como parte do pagamento da obra.
O que a Recorrente questiona é que a Autora tenha procedido à resolução do contrato; aliás, sustenta que a declaração de resolução nunca foi efetuada pela Autora.
Prevê o artigo 432º do Código Civil que é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção, sendo a resolução, na falta de disposição especial, equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (artigo 433º do Código Civil) e podendo a resolução do contrato ser feita mediante declaração à outra parte (artigo 436º), não estando sujeita a forma especial.
A resolução, por oposição à nulidade (e à anulabilidade), resulta não de um vicio da formação do contrato mas de um facto posterior à sua celebração, normalmente um facto que vem iludir a legítima expectativa duma parte contratante seja um facto da contraparte como por exemplo o inadimplemento de uma obrigação (v. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição, Coimbra Editora, p. 619) seja um facto natural ou social, embora nos seus efeitos seja a resolução equiparada à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico.
No que toca à revogação a lei em alguns casos autoriza-a, mas tem apenas a consequência de extinguir os efeitos do negócio para o futuro (ex nunc) não operando retroativamente; e também por acordo das partes se pode verificar a revogação dos contratos, eventualmente com eficácia retroativa inter partes. É o chamado contrato extintivo ou abolitivo ou contrarius sensus pelo qual as partes por mútuo consentimento extinguem a relação contratual existente entre elas; segundo Mota Pinto (ob. cit. p. 620 a 621) a eliminação de efeitos jurídicos terá uma eficácia ex tunc ou ex nunc conforme a vontade das partes, mas se o efeito extintivo é querido com eficácia retroativa o contrato extintivo implica mais uma resolução do que uma revogação.
No caso concreto a Autora invocou um acordo com a Ré para revogar o contrato, mas invocou também que tal decorreu da Ré a ter informado que não podia executar os trabalhos de construção da moradia.
A própria Ré alega que a Autora pôs fim ao contrato, ainda que em vez de lhe chamar resolução qualifique a atuação da Autora como denuncia/desistência, sendo com base na sua cessação que a Ré invoca prejuízos que sustentam o pedido reconvencional que formulou.
Resulta, por isso, de forma inequívoca da posição plasmada nos autos pelas partes que ambas basearam as pretensões que deduziram na cessação do contrato de empreitada.
Conforme já referimos, as figuras da resolução, revogação e denúncia surgem precisamente por referência aos modos de extinção da relação contratual ao gerarem a cessão do vínculo contratual.
Ainda que não tenha ficado demonstrado o acordo para revogação do contrato que a Autora invocara, a verdade é que é inequívoca a sua cessação e a declaração, pelo menos por parte da Autora, nesse sentido uma vez que a Ré reconhece na sua contestação que a Autora pôs fim ao contrato; é a Ré que afirma que a Autora denunciou o contrato, o que sempre consubstancia uma declaração unilateral para cessação do vínculo obrigacional.
Ora, estando em causa na denúncia um modo de cessação unilateral do vínculo obrigacional nos contratos com duração indeterminada ou de forma a impedir a prorrogação de contratos sujeitos a termo por períodos sucessivos, não necessitando a mesma de ser justificada, é fácil concluir que apesar da Ré denominar a declaração da Autora como denuncia, a atuação desta não pode ser qualificada como tal.
Assim, alegando a Ré que a Autora pôs termo ao contrato de empreitada de forma unilateral, em face da matéria de facto apurada, e em face do incumprimento definitivo da Ré, essa atuação da Autora terá de ser qualificada como resolução do contrato, também ela uma forma de extinção unilateral, ainda que motivada, quando uma das partes não cumpre o contrato.
Não merece, por isso, censura a sentença recorrida que, julgando demonstrado nos autos o incumprimento definitivo da Ré, considerou assistir à Autora direito à resolução do contrato e à restituição da quantia de €10.000,00 e condenou a Ré nessa restituição, improcedendo integralmente o recurso.
As custas deste recurso são da responsabilidade da Recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil) em face do seu integral decaimento.
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SUMÁRIO (artigo 663º nº. 7 do Código do Processo Civil):

I - O tribunal, em regra, não só não pode conhecer senão das questões que lhe tenham sido colocadas pelas partes, como também não pode decidir ultrapassando os limites do pedido que foi formulado, sob pena da decisão ficar afectada de nulidade.
II - A nulidade da decisão quando o Tribunal condene em objecto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio do dispositivo, que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor.
III - Contudo é lícito ao tribunal, “através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter”.
IV - Incumpre definitivamente o contrato de empreitada a Ré, empreiteira, que não tendo chegado a dar início aos trabalhos, apesar de diversas vezes tal ter sido solicitado pela Autora, a informa que não pode executar os trabalhos de construção da moradia por razões de incapacidade técnica e programação de outras obras, sugerindo à Autora que contrate outra empresa, apresentando-lhe até para esse efeito um orçamento de outra empresa.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 13 de janeiro de 2022
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Afonso Cabral de Andrade (2º Adjunto)