Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4464/15.0T8VCT-B.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA
DEPOIMENTO DE PARTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I) À sociedade comercial anónima pode ser exigida a prestação de depoimento de parte.
II) Respeitando os factos sobre que a parte contrária requereu que aquele incidisse a aspectos relativos ao nascimento, vida e morte de contrato ajuizado em que aquela é um dos sujeitos e de cuja dinâmica necessariamente tem, através dos seus órgãos ou outros representantes, conhecimento, deve a sua prestação ser deferida, cabendo-lhe indicar representante para o efeito e muni-lo de poderes bastantes para depor.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Os executados B. e marido C. deduziram embargos à execução que, no Tribunal de Viana do Castelo, com base numa livrança, lhes moveu a exequente D., S.A.
Peticionaram a procedência da excepção de ineptidão da petição inicial, da excepção de preenchimento abusivo, a “absolvição” do pedido exequendo e a condenação da exequente como litigante de má-fé.

Além do mais, no articulado respectivo, alegaram:

“9. A livrança dada à execução tem a ver com o contrato de crédito que os executados celebraram com a exequente em Outubro de 2007 para aquisição de um veículo automóvel, Renault Megane, matrícula …-…-XV.
10. Para aquisição de tal veículo os executados celebraram com a exequente um contrato de crédito, tendo a exequente financiado ao executado C. a quantia de 15.331,99€, a pagar em 72 prestações mensais de 282,57 €.
11. Para garantia da quantia financiada e encargos até ao montante total de 20.557,03 €, a exequente ficou uma livrança de caução, em branco, subscrita pelo executado C. e avalizada pela executada B..
12. O veículo de matrícula ..-..-XV ficou com reserva de propriedade a favor da exequente até pagamento da quantia de 20.236,00 €.
13. Os executados procederam ao pagamento de várias prestações (pelo menos mais de 50), tendo pago à exequente a quantia de 16.158,03 €, sendo que a quantia de 15.992,31 € foi paga através de débitos das contas dos executados na C.G.D. nº … e da conta da executada B. na CGD nº ….
14. Nos anos de 2011 e 2012 o executado C. solicitou à exequente, por várias vezes, a alteração da data do pagamento das prestações, por dificuldades económicas que lhe surgiram.
15. A partir de 2012, o executado C. perdeu o emprego e deixou de ter qualquer possibilidade de proceder ao pagamento das prestações, facto para que sensibilizou a exequente, requerendo a renegociação do contrato, mas sem êxito.
16. A exequente entregou a cobrança do crédito à firma E., Lda.
17. Após vários telefonemas, alguns deles menos amistosos, o executado C. acordou na resolução do contrato de crédito com a exequente, entregando o veículo para pagamento das prestações e quantia em dívida.
18. Quantia em dívida que se cifrava no montante de 4.399,00 €.
19. No dia 13/12/2012 o executado C. entregou à E., Lda., representante da exequente, o veículo automóvel de matrícula …-…-XV.
20. Com a entrega do veículo à exequente operou-se a resolução do contrato de crédito.
21. Na data da entrega do veículo, este tinha valor comercial e venal superior a 10.000,00 € e a quantia em dívida cifrava-se em 4.399,00 €.
22. Com a entrega do veículo à exequente e à E. foi resolvido e considerado resolvido o contrato de crédito e considerada paga a quantia em dívida à exequente, ficando saldadas e arrumadas as contas entre os executados e a exequente.
23. Com a entrega do veículo automóvel efectuada em 13/12/2012 e a resolução do contrato de crédito, foi considerado pago e liquidado o financiamento, tendo sido dada como paga a dívida à exequente.
[…]
28. O preenchimento da livrança dada à execução foi e é abusivo e ilícito, porquanto a dívida relativa ao contrato de crédito aí referida com o nº … foi considerada paga e liquidada e o respectivo contrato de crédito foi considerado resolvido pelas partes em 13/12/2012.
29. A quantia inscrita na livrança exequenda não corresponde à quantia que estava em dívida na data de entrega do veículo, nem em data posterior.
30. Não se percebe a que se refere a quantia de 8.504,18 inscrita na livrança, nem como a exequente chegou a tal valor, que não comunicou aos executados, não lhe tendo dado qualquer conhecimento.
31. A exequente não comunicou aos executados o montante da dívida, o seu vencimento, nem que iria proceder ao preenchimento da livrança.
32. A livrança exequenda foi preenchida abusivamente pela exequente, que a preencheu sem ter dado conhecimento aos executados.
33. O montante da dívida nela inscrito não corresponde à realidade nem à verdade, não correspondendo a nenhuma quantia em dívida pelos executados à exequente.
34. Aquando da celebração do contrato de crédito entre a exequente e os executados C. e B., foi entregue à exequente a livrança de caução em branco, ficando a exequente autorizada, em caso de incumprimento, a proceder à cobrança do montante em dívida, dando o acordo a que a exequente preenchesse a livrança, no que se refere à data de vencimento, local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelos executados e em dívida na data do vencimento.
35. O montante total do financiamento e encargos pelos quais os executados se responsabilizaram foi fixado no máximo de 20.557,03 €.
36. A exequente recebeu dos executados até 2012, em prestações mensais através de débito directo, cobrança bancária ou pagamento de serviços, a quantia de 16.158,03 €.
37. Em fins de 2012, a dívida dos executados para com a exequente cifrava-se no montante de 4.399,00 €.
38. Para pagamento da quantia em dívida, nesta se incluindo as prestações até final do crédito, foi acordada a resolução do contrato com a entrega do veículo automóvel de matrícula ..-..-XV à exequente.
39. No dia 13/12/2012 os executados entregaram à exequente, através da E., o veículo de matrícula ..-..-XV, para pagamento da quantia em dívida.
40. Na data da entrega (13-12-2012) o veículo automóvel de matrícula ..-..-XV valia, pelo menos, 10.000,00 €.
41. A exequente vendeu depois o veículo automóvel de matrícula ..-..-XV a terceiros, nomeadamente à firma …. por valor nunca inferior a 10.000,00 €, tendo recebido o respectivo preço.
42. Veículo que foi depois novamente vendido a outras pessoas e finalmente a …, por preço nunca inferior a 8.000,00 €.
43. Em fins de 2012, o contrato de crédito celebrado entre exequente e executados foi resolvido e dado sem efeito, ficando também sem efeito a livrança caução em branco que havia sido subscrita e avalizada como garantia de pagamento do crédito contraído.
44. Em fins de 2012 a dívida dos executados para com a exequente foi considerada paga e extinta, deixando de existir crédito da exequente sobre os executados e deixando a exequente de poder preencher a livrança caução.
45. A livrança exequenda foi preenchida em 13/5/2014, nela tendo a exequente aposto a importância de 8.504,18 € e a data de vencimento 03/06/2014, não correspondendo aquela importância a qualquer montante em dívida pelos executados à exequente.
46. A exequente preencheu a livrança de caução abusivamente e violando o pacto ou acordo de preenchimento.
47. À data em que a exequente preencheu a livrança (13/5/2014), a exequente não tinha nenhum crédito sobre os executados, porquanto a dívida tinha sido paga e o contrato de crédito foi considerado resolvido.
48. O montante inscrito na livrança não corresponde a nenhuma dívida dos executados e o montante aí inscrito excede em muito o limite da responsabilidade assumida pelos executados.
49. Ao preencher a livrança exequenda, a exequente não respeitou o acordado quanto ao preenchimento da livrança pois que o montante aí inscrito excede em muito o limite das responsabilidades assumidas.
50. Com as prestações que lhe foram pagas pelos executados e com a entrega do veículo automóvel, no valor mínimo de 10.000,00 €, a exequente recebeu dos executados quantia superior a 20.557,03 €, montante este que corresponde ao limite máximo da responsabilidade assumida pelos executados.
51. Os executados não devem à exequente a quantia de 8.504,18 €, ignorando os executados a que respeita tal quantia e como a exequente chegou a tal valor, que aliás não especifica nem concretiza.”
Como meio de prova, entre outros, requereram o depoimento pessoal dos legais representantes da D. à matéria dos nºs 9 a 23 e 28 a 51 da petição.

Na contestação, rematada com o pedido de que sejam julgados improcedentes os embargos, a embargada, relativamente ao alegado nos itens acima transcritos, impugnou, os nºs 13 a 15, 17, 18, 20 a 23, 28 a 33 e 36 a 51.

Na sequência do saneamento dos autos, quanto ao requerido depoimento de parte, apesar de nada lhe ter oposto a embargada, foi proferido o seguinte despacho (19-09-2016):

“Uma vez que o depoimento de parte a prestar pelos legais representantes da exequente não respeita a factos que sejam do conhecimento pessoal dos mesmos, por se não vislumbrar qualquer intervenção directa dos mesmos dos factos em sujeito, vai a correspondente pretensão indeferida - cfr. artºs 452º, 453º, nºs 1 e 2 e 454º, nº 1, todos do Cód. Proc. Civil.”

Os executados não se conformaram e interpuseram recurso para esta Relação, alegando e concluindo:

“1- Os embargantes requereram o depoimento pessoal dos legais representantes da embargada à matéria dos artigos 9 a 23 e 28 a 51 da petição inicial, que têm a ver com a embargada, pois que respeitam à negociação e vicissitudes do contrato, constituindo factos de que a embargada tem ou deveria ter conhecimento.
2- Os factos indicados pelos embargantes têm, assim, a ver com os termos do contrato celebrado com a embargada, com negociações e contactos com a embargada, com o preenchimento da livrança por parte da embargada, ou seja, respeitam a factos da própria embargada, que lhe são imputados ou de que deveria ter conhecimento.
3- Não obstante a embargada ser uma sociedade anónima, deveria, como deve, ser admitido o depoimento pessoal dos seus legais representantes ou administradores ou deveria a embargada indicar de entre os seus administradores, qual ou quais aqueles que tiveram intervenção no processo, quer directamente, quer através do conhecimento que lhes foi dado pelos seus funcionários.
4- No douto despacho recorrido foi indeferida a pretensão dos embargantes por aí se ter entendido não se vislumbrar qualquer intervenção directa dos legais representantes da embargada nos factos em questão.
5- Ao indeferir o depoimento dos legais representantes da embargada, a Mma. Juiz a quo partiu do pressuposto de que os mesmos não teriam intervenção directa nos factos em questão, partindo, assim, o douto despacho recorrido de um pressuposto ou vislumbre inverificado e de uma suposição que seria necessário comprovar (quod erat demonstrandum).
6- Não era, nem é, possível saber de antemão se os administradores da embargada tiveram intervenção directa ou não nos factos ou se tinham ou não conhecimento pessoal dos factos, o que apenas poderia ser apurado após a audição dos legais representantes ou após a tomada de posição da própria embargada, o que não sucedeu.
7- De resto, a embargada nem sequer se opôs a tal pretensão dos embargantes, o que podia ter feito no seu articulado, alegando que os seus administradores não tiveram intervenção ou não tiveram qualquer participação ou conhecimento dos factos em questão.
8- No entendimento dos embargantes, o douto despacho recorrido viola por errada interpretação e aplicação o disposto nos arts. 452º, 453, 454º, 455 e 456 do Cód. Proc. Civil.
NESTES TERMOS e nos mais de direito que V. Exas. melhor e doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso interposto, revogando-se o douto despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, deferindo a pretensão dos embargantes, admita o depoimento pessoal dos legais representantes da embargada à matéria indicada.
ASSIM, SE FARÁ JUSTIÇA.”

Não houve contra-alegações.

Foi admitido o recurso como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos. Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar e decidir se, sendo a autora uma sociedade anónima, é de considerar que dos factos sobre que foi pedido o seu depoimento não tem conhecimento pessoal por neles não ter tido intervenção directa.

III. FACTOS PROVADOS

Relevam os atrás relatados, emergentes dos autos.

IV. DIREITO

É, na sua maior parte, controvertida, a matéria de facto vertida nos itens 9 a 23 e 28 a 51, que, em suma, respeita a alegados pagamentos feitos pelos embargados, a solicitações destes, a pretexto de dificuldades económicas, dirigidas à embargada, para modificação das condições de pagamento e renegociação do contrato, à quantia realmente em dívida, a contactos recíprocos maxime sobre a entrega do veículo, respectivo valor e produto da sua posterior venda, subsequente resolução do contrato, à extinção da dívida e “arrumação” das contas relativas ao financiamento originário, ao preenchimento da livrança, circunstâncias respectivas (por contraponto com as acordadas no contrato de financiamento) e à correcção do valor nela aposto.

Só o não é a dos nºs 9 a 12, 16, 19, 34 e 35, relativa ao contrato inicial, à “entrega” da cobrança a sociedade terceira, ao recebimento por esta do veículo e ao montante total do financiamento e encargos.

Integrando tais pontos matéria excepcional aduzida como fundamento dos embargos, cabe aos embargantes, nos termos dos artºs 341º e 342º, nº 2, do Código Civil, prová-la.

Passo primeiro da parte onerada com o cumprimento de tal ónus é indicar e requerer a produção dos meios de prova que reputar adequados.

Como repetidamente temos afirmado, as limitações neste domínio devem considerar-se restritas ao mínimo admissível e alicerçar-se em fortes e precisas razões materiais justificadas em vista do objectivo de realização da justiça mediante processo equitativo.

A tal propósito refere-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 530/2008:

“Conforme tem sido afirmado em diversas ocasiões pelo Tribunal Constitucional, o direito à tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras (acórdão n.º 86/1988, reiterado em jurisprudência posterior e, por último, no acórdão n.º 157/2008).”

O critério de decisão sobre a indicação e produção de meios de prova é, pois, essencialmente o da própria parte, só podendo cercear-se a sua iniciativa em casos absolutamente limitados, designadamente os fundados na impertinência, desnecessidade ou irrelevância do meio oferecido ou requerido (por si mesmo ou pela matéria de facto que com ele se visa demonstrar) ou na sua natureza meramente dilatória.

Posto que os meios requeridos se conformem com as regras de direito probatório material e de direito adjectivo e, portanto, interpretadas e aplicadas estas naquele espírito, não haja colisão com elas nem com os demais princípios fundamentais do processo, elas devem franquear-se como caminho para a descoberta da verdade material e realização da justiça, fim último da acção judicial.

Como é sabido, o depoimento ora em causa é meio de obter a confissão de factos desfavoráveis à parte depoente e que favoreçam a parte contrária – artº 352º, do CC.

É-o também para a parte prestar informações ou esclarecimentos – artº 357º, nº 2, CC.

Aliás, o reconhecimento de factos desfavoráveis que não possa valer como confissão, vale também como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente – artº 361º, CC.

Para a confissão ser eficaz é necessário que seja feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto se refira - artº 353º, CC.

Daí que podendo a prestação do depoimento, de informações ou de esclarecimentos ser requerida pela parte (artºs 453º, nº 3, e 552º, nº 2, CPC), ela pode também ser oficiosamente ordenada pelo juiz, desde que incida sobre factos que interessem à decisão da causa.

Coerentemente, o depoimento pode ser exigido de pessoas que tenham capacidade judiciária, mas pode também ser requerido de pessoas colectivas ou sociedades, posto que só valha como confissão nos termos em que os seus representantes possam obrigar-se e estes possam obrigar os seus representados – artº 453º, nºs 1 e 3.

O depoimento só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento – artº 454º, nº 1.

O contributo das partes para a descoberta da verdade, com o novo e actual CPC, foi, ainda, levado mais longe, privilegiando-se o dever de cooperação delas em boa-fé, ao prever, no artº 466º, nº 1, CPC, como autónomo e especial meio, a prova por declarações de parte, que cada uma pode requerer, desde que incidente sobre factos em que a declarante tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo. (1)

Ora, apreciando o requerimento feito pelos embargantes no sentido de que a embargada – sociedade anónima – preste depoimento sobre a matéria de facto alegada que apontou, o tribunal a quo entendeu que ele “não respeita a factos que sejam do conhecimento pessoal” dos seus legais representantes, justificando tal perspectiva “por se não vislumbrar qualquer intervenção directa dos mesmos” nos ditos factos.

Os apelantes contestam esse entendimento e consequente decisão argumentando que aqueles referem-se à apelada e os seus representantes têm obrigação de os conhecer, quer tenham sido eles próprios quer os seus funcionários a praticá-los, e que, não obstante se tratar de sociedade anónima, o depoimento deve ser prestado pelos seus administradores, ou por outros representantes legais, indicando ela qual ou quais deles tiveram intervenção no processo, quer directa quer indirectamente, neste caso através do que lhes foi dado a conhecer pelos seus funcionários.

Afigura-se-nos que os apelantes têm razão e que, portanto, o despacho recorrido não pode manter-se.

Com efeito, o ente societário, tendo personalidade jurídica e judiciária, é composto por órgãos e estes são corporizados por pessoas que lhe dão rosto, nomeadamente os administradores. Mas pode também agir e exprimir-se por outros representantes por si constituídos nos termos gerais, nomeadamente de entre aqueles que asseguram e desenvolvem a sua actividade e, junto dos clientes, propõem e concluem os negócios ou tratam das vicissitudes destes até à sua extinção – cfr., v.g., os artºs 160º a 163º e 258º, do CC, 12º e 25º, do CPC, e 64º, 390º, 405º, 408º e 409º, do Código das Sociedades Comerciais.

A sociedade financeira, quiçá a anónima, como as grandes sociedades prestadoras de serviços em massa à generalidade dos consumidores, não pode esconder-se, para evitar a prestação de depoimento de parte, de informações ou de esclarecimentos, na imensidão da sua estrutura complexa e difusa, muito menos pretextar o desconhecimento concreto dos negócios que com ela se concluem, modificam ou extinguem. À acutilância com que propõe e vende os seus serviços deve justamente corresponder proporcional capacidade e eficácia para sobre eles e sua dinâmica se pronunciar em tribunal por ocasião dos respectivos litígios.

Partiu o tribunal recorrido do pressuposto, porventura tendo em mente a forma societária da autora, a sua dimensão e ramo de actividade, que se não vislumbra qualquer intervenção directa dos seus representantes nos factos sobre que foi pedido o seu depoimento, daí concluindo que os mesmos não são do seu conhecimento pessoal.

Ora, tal pressuposto não está demonstrado, nem sequer foi sugerido pela própria apelada que nenhuma oposição deduziu, nem parece poder sequer presumir-se. Mal estaria a sociedade, se os negócios com ela concluídos, modificados ou extintos não fossem do conhecimento das pessoas que integram os seus órgãos administrativos ou, pelo menos, daquelas que, mesmo não fazendo parte deles, a representam e decidem sobre a sua aceitação e termos.

Ordenada que seja a uma tal sociedade a prestação de depoimento, de informações, de esclarecimentos ou de declarações de parte, caberá naturalmente à mesma indicar quem dos factos a ela respeitantes tomou e possui efectivo conhecimento para sobre eles se pronunciar e habilitá-la com os necessários poderes representativos para depôr em juízo. (2)

Se assim não proceder, sujeitar-se-á às consequências e, entre estas, a de a sua falta de diligente e fiel cooperação para a descoberta da verdade, ser, para efeitos probatórios, livremente apreciada pelo tribunal – artº 7º, 8º e 417º, CPC.

Em suma: podendo a autora sociedade anónima prestar depoimento de parte, respeitando os factos indicados a aspectos relativos ao nascimento, vida e morte do contrato em que é sujeito e de cuja dinâmica necessariamente tem, através dos seus órgãos ou outros representantes, conhecimento, deve a prestação daquele ser deferida, cabendo à mesma indicar representante e muni-lo de poderes bastantes para depôr.

Procede, pois, a apelação.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a decisão recorrida que, em 1ª instância, deve ser substituída por outra que, deferindo ao requerido, admita o depoimento, ordene a sua prestação à matéria respectiva e a notificação da parte para, nos termos expostos, indicar e fazer comparecer representante apto a prestá-lo e devidamente habilitado para tal, com as legais advertências.

*
Custas da apelação pela parte vencida a final e na proporção em que o for – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).

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Notifique.

Guimarães, 15 de Dezembro de 2016
José Fernando Cardoso Amaral
Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Higina Orvalho Castelo

Sumário:

I) À sociedade comercial anónima pode ser exigida a prestação de depoimento de parte.
II) Respeitando os factos sobre que a parte contrária requereu que aquele incidisse a aspectos relativos ao nascimento, vida e morte de contrato ajuizado em que aquela é um dos sujeitos e de cuja dinâmica necessariamente tem, através dos seus órgãos ou outros representantes, conhecimento, deve a sua prestação ser deferida, cabendo-lhe indicar representante para o efeito e muni-lo de poderes bastantes para depor.

(1) Sobre esta matéria e evolução do respectivo regime, cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães, de 02-05-2016, proferido no processo 2745/15.1T8VNF-A.G1, relatado pelo Desembargado A. Figueiredo de Almeida).
(2) Cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 14-06-2012, processo nº 294/08.3TBFAR-B.E1, relatado pela Desembargadora Maria Alexandra Moura Santos, e Acórdão da Relação de Lisboa, de 17-06-1999, processo 0010002, relatado pelo Desembargador Marcolino de Jesus.