Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
704/20.1GAVNF.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE INJÚRIA
CONVOLAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Encontrando-se o arguido acusado da prática de um crime de violência doméstica, a absolvição pela prática desse ilícito criminal não impede a sua condenação pelo cometimento de crime de injúria desde que se verifiquem determinados pressupostos processuais e, obviamente, sobejem provados da factualidade imputada os factos que permitem, entre o mais, o preenchimento da respetiva tipicidade objetiva e subjetiva.
II – Tendo a acusação sido introduzida em juízo por quem dispunha de legitimidade para o efeito, ou seja, o Ministério Público, atenta a natureza pública do crime de violência doméstica, é de considerar que a ofendida que adira a essa acusação manifesta, pelo meio processual próprio, a sua vontade de perseguição criminal e punição do autor dos factos descritos no libelo acusatório, logo, por todos os factos, incluindo, dessarte, face ao caráter unificador de vários tipos de comportamentos intrínseco à tipicidade objetiva do crime de violência doméstica, factualidade suscetível de integrar autonomamente o crime de injúria.
III – A pessoa ofendida não tinha de apresentar queixa face à subsunção jurídica dos factos denunciados operada pelo titular do inquérito e, logicamente, não podia deduzir acusação particular pelo que nada mais lhe seria exigível processualmente. Nesses casos, inexiste qualquer ilegalidade na convolação do crime de violência doméstica imputado na acusação para o crime de injúria e subsequente condenação do arguido por este crime, ainda que não deduzida nos autos acusação particular.
IV – Não obstante, no caso vertente, para além da circunstância de a factualidade dada por provada não permitir de modo insuprível, o preenchimento do elemento subjetivo do crime de injúria, acresce que a assistente não deduziu acusação em nome próprio pelos factos acusados pelo Ministério Público, ainda que fosse por mera adesão à acusação – cf. art. 284º, nºs 1 e 2, al. a), do CPP.
V – Só se tivesse atuado do predito modo se podia considerar assegurada a finalidade legislativa subjacente à imposição de dedução de acusação particular quando esteja em causa a imputação de crime de natureza particular, como é o caso do crime de injúria. Em conformidade, tendo o arguido sido absolvido pela prática de um crime de violência doméstica, mostra-se legalmente inviável a sua condenação pela prática de um crime de injúria.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 704/20.1GAVNF, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga –Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz 3, foi proferida sentença no dia 02.11.2021, depositada no mesmo dia, onde se decidiu (referências 175880058 e 174888369):

“Em face de todo o exposto, o Tribunal decide julgar improcedente a acusação pública e, consequentemente, decide:
“a) Absolver o arguido M. C. da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo n.º 152/1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal.
b) Absolver o arguido do arbitramento de reparação à vitima, peticionado na acusação.
c) Julgar improcedente o PIC deduzido contra o arguido.
d) Condenar a demandante nas custas cíveis devidas.”

▪ Inconformado parcialmente com a sobredita sentença, dela veio a assistente M. G. interpor o presente recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência 12304074):

A. Vem o presente recurso da sentença que absolveu o arguido da prática de um crime de violência doméstica do arbitramento de reparação à vitima e julgou improcedente o PIC, porque não se mostram preenchidos todos os elementos objectivos do tipo legal desse crime, e por não o poder condenar por injúria, face à ausência de acusação particular.
B. Ora, atenta a matéria de facto dada como provada, concretamente no ponto 5, o recorrido teria de ser condenado pelo crime de injúria e no pagamento de uma indemnização.
C. É certo que não ficou provado o n.º de vezes que o arguido apelidou a recorrente de “vaca, puta e porca”, embora tais factos tenham sucedido “em data não concretamente apurada mas situada entre o ano de 2018 e o dia 19.11.2020”, porém, nesse caso, conforme refere o Ac. RP de 13/01/21 (proc. 799/18.8GBPNF.P1), disponível em www.dgsi.pt “deverá o arguido ser condenado apenas pela prática de um desses crimes”.
D. De facto, tal como decorre do acórdão acima referido, a que aderimos na integra “. É certo que os crimes de injúria e difamação têm natureza particular (ver artigo 188.º n.º 1, do Código Penal) e não foi deduzida acusação particular pela assistente. Nem o poderia ter sido face à acusação pública pela prática de crime de violência doméstica (que a assistente acompanhou).”
E. Acrescenta o referido acórdão que : “Impedir neste caso a condenação pela prática de crimes de injúria e difamação por ausência de acusação particular quando essa ausência se ficou a dever à dedução de uma acusação pública pela prática de crime de violência doméstica que englobava tais crimes numa relação de concurso aparente, acusação que a assistente acompanhou, frustraria as legitimas expetativas da assistente e representaria uma inaceitável injustiça e uma inaceitável (embora não propositada) “deslealdade processual”. – nesse sentido, Ac. RP de 30/01/13, proc. n.º 1743/11.9TAGDM.P1, e de 27/04/16, proc. n.º 780/13.3GALSD.P1, Ac. RL de 17/06/15, proc. 48/13.5PFPDL.L1-3, e o acórdão da Relação de Guimarães de 25/09/17, proc. n.º 505/15.9GAPTL.G1, todos em www.dgsi.pt.
F. Afirma-se ainda nesse acórdão: “Podemos dizer que a ratio da exigência, nos crimes de natureza particular, de uma iniciativa do/a assistente como a dedução de acusação particular é satisfeita num caso como o que está em apreço pela circunstância de o/a assistente acompanhar a acusação pública pelo crime de violência doméstica onde se integram, numa relação de concurso aparente, crimes particulares de injúria e difamação.
G. Logo devia o arguido ter sido condenado pelo crime de injúria e consequente indemnização. (…) A alteração de qualificação jurídico-criminal da conduta do arguido não influi na responsabilidade civil dela decorrente. Mantém-se a ilicitude dessa conduta (decorrente da prática de crimes), os danos não patrimoniais dela decorrentes e os demais pressupostos dessa responsabilidade.”
H. Dado que o acórdão acima transcrito é suficientemente esclarecedor, deveria o arguido ter sido condenado pelo crime de injúria, bem como a pagar uma indemnização à aqui recorrente.

TERMOS EM QUE, deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as consequências legais, designadamente revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que condene o arguido pelo crime de injúria e consequentemente a pagar à recorrente uma indemnização, tudo com as consequências legais, assim se fazendo a devida JUSTIÇA.

▪ Na primeira instância, o Digno Magistrado do Ministério Público, notificado do despacho de admissão do recurso formulado pelo assistente, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou douta resposta, na qual, citando pertinente jurisprudência, pugna pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida (referência 12418003).

Para tanto, alega, em síntese, que:
- Em caso de absolvição pela prática de crime de violência doméstica só será de condenar o arguido neste crime (o referido “minus” em relação ao crime de violência doméstica), quando estão verificados os restantes requisitos de legitimidade e procedibilidade do crime de injúria – designadamente a tempestividade da apresentação de queixa, constituição de assistente e adesão à acusação pública deduzida pelo M.P.
- No caso vertente, relativamente à factualidade susceptível de integrar a prática do crime de injúria, apenas ficou provado que: “5. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o ano de 2018 e o dia 19.11.2020, o arguido, no interior da residência comum e na sequência de discussões com a ofendida, apelidou-a de vaca, puta e porca.” - matéria de facto não impugnada pela Recorrente. Apesar de se ter apurado que o arguido apelidou a Assistente com expressões susceptíveis de integrarem a prática do crime de injúria, não foi possível determinar a data em que as mesmas ocorreram, ou a quantos episódios se reportam. Em consequência, também não é possível afirmar-se, com a certeza exigida pelo nosso ordenamento jurídico-penal, que a queixa apresentada pela assistente foi tempestiva.
- Não se apurando concretamente a data da prática dos factos integradores do crime de injúria, e havendo a possibilidade de os mesmos terem ocorrido mais de 6 meses antes da apresentação da queixa criminal, não poderá o arguido ser condenado pela prática do aludido crime, em obediência estrita do princípio in dúbio pro reo.

Igualmente deduziu douta resposta o arguido M. C., defendendo a improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida (referência 12393648).

Em defesa da sua tese, apresentou as seguintes conclusões:

A) Toda a tese da recorrente se apoia no decidido no Ac. RP de 13.01.2021, proferido no processo 799/18.8GBPNF.P1, omitindo porém que a situação de facto dos autos é diversa da ali apreciada.
B) Aliás, a recorrente transcreve esse acórdão, na parte em que diz: “Impedir neste caso a condenação pela prática de crimes de injúria e difamação por ausência de acusação particular quando essa ausência se ficou a dever à dedução de uma acusação pública pela prática de crime de violência doméstica que englobava tais crimes numa relação de concurso aparente, acusação que a assistente acompanhou, frustraria as legítimas expectativas da assistente e representaria uma inaceitável injustiça e uma inaceitável (embora não propositada) “deslealdade processual”.

C) Ora, no caso dos autos, a recorrente não deduziu acusação (art. 284 CPP), nem acompanhou a acusação do Ministério Público (art. 284º, nº1 e 2, alínea a) CPP), pelo que o texto invocado pela recorrente afasta a sua tese.

D) Um dos pilares essenciais do processo penal, sem o qual nenhum processo chega a julgamento, é a existência de uma acusação:
a. No caso dos crimes públicos e semipúblicos, esse poder cabe ao Ministério Público, por ser o defensor do interesse do Estado – art. 48º e 49º do CPP
b. No caso dos crimes particulares, o assistente é o titular desse direito de acusar – art. 50º do CPP.

E) Ora, a ser certa a tese da recorrente, deparar-nos-íamos com uma situação em que, nem o Ministério Público, nem a assistente, teriam deduzido acusação pelo crime de injuria.

F) Resulta da conjugação do disposto nos artigos 188º, 115º e 117º do CP, que o crime de injuria tem natureza particular, e que o direito de queixa se extingue no prazo de seis meses.

G) Ora, o que se deu como provado na sentença é que:
5. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o ano de 2018 e o dia 19.11.2020, o arguido, no interior da residência comum e na sequência de discussões com a ofendida, apelidou-a de vaca, puta e porca.

H) Ora, como resulta dos autos, a queixa foi apresentada no dia 29 de Setembro de 2020. Logo, só podia dizer respeito a factos ocorridos nos seis meses anteriores.

I) Deste modo, o exercício tempestivo do direito de queixa e acusação particular, são elementos obrigatórios para o procedimento judicial, que neste caso não ocorreu, pois que a própria sentença coloca as expressões alegadamente injuriosas num período temporal que vai muito para além do prazo de 6 meses fixado para o exercício do direito de queixa.

J) Sem conceder, importa salientar que a tese que a recorrente defende neste autos é contrariada pela que defendeu para tentar afastar o pedido de divórcio deduzido pelo recorrido.
K) Na verdade, no artigo 14 da contestação da acção de divórcio junta aos presentes autos, a recorrente alegou (sublinhado nosso):
“(…) a ré foi sempre perdoando o autor; daí que o casal tenha continuado, até hoje, a viver na mesma casa”.

L) Ora, tendo a recorrente perdoado os actos do recorrido, ocorre um caso evidente de renuncia ao direito de queixa – arts. 116 e 117 do Código Penal.

M) Deste modo, ainda que existisse crime, teria havido perdão prévio à queixa e acusação, pelo que não pode agora haver uma condenação.

N) Para além do referido, importa notar que, para existir o crime de injúria, é necessária a verificação dos elementos constitutivos do tipo criminal:
a. Um objetivo, no qual se compreende a ofensa à honra e à consideração; b. Um subjetivo, constituído pela intenção de ofender através da conduta.

O) Ora, nada disso resulta como provado da sentença.

P) Aliás, a recorrente nem sequer veio pedir a alteração da decisão sobre a matéria de facto, como era seu direito.

Q) Assim, pretender que o arguido seja condenado sem estarem provados os elementos constitutivos do tipo de crime de injuria, seria uma ofensa inequívoca ao princípio da legalidade, bem como traduziria uma violação do princípio in dúbio pro reu.

R) Deste modo, a tese da recorrente não tem qualquer fundamento, nem a sentença merece qualquer reparo.

▪ Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral da República emitiu douto parecer em que, citando pertinente jurisprudência, pronuncia-se pela improcedência do recurso, alegando, em resumo, que (referência 7914539):

- Não tendo a assistente acompanhado a acusação deduzida pelo Ministério Público pelo crime de violência doméstica, parece-nos que, tendo o arguido sido absolvido da prática deste crime, o tribunal ficou impedido de conhecer do eventual crime de injúria;
- Por outro lado, parece-nos que com a matéria de facto dada como provada nos autos nunca o arguido poderia ter sido condenado pela prática do crime de injúria porque não se encontra, desde logo, provado o elemento subjetivo do tipo legal de crime.

Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, foi apresentada resposta pela assistente/recorrente, na qual mantém a posição já assumida na sua motivação de recurso (referência 205217).

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*

II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÃO A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) (1).
Assim sendo, no caso vertente, a questão que importa dilucidar é a de saber se uma vez absolvido o arguido pela prática do crime de violência doméstica que lhe havia sido imputado na acusação pública, deve o mesmo ser condenado, atendendo à factualidade dada por provada na sentença recorrida, pela prática de um crime de injúria, de natureza particular, sem necessidade do cumprimento do disposto no art. 358º, nºs 1 e 3, do CPP.(2)
*
III – APRECIAÇÃO:

III.1 – Enquadramento factual decorrente da sentença recorrida:

Na parte que ora importa para apreciação do recurso, foi a seguinte a matéria de facto dada por provada na sentença recorrida:
«5. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o ano de 2018 e o dia 19.11.2020, o arguido, no interior da residência comum e na sequência de discussões com a ofendida, apelidou-a de vaca, puta e porca.»

Por outro lado, como relevante para o caso que nos ocupa, foi dada por não provada a seguinte factualidade:

«Ao actuar da forma e nas situações descritas, o arguido sabia que estava a maltratar física e psicologicamente, de forma reiterada, a sua mulher e mãe da sua filha e a violar os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem, querendo agir da forma por que o fez.
O arguido sabia que ao comportar-se da forma descrita relativamente à ofendida, sua mulher, a submetia a sofrimento psíquico e a humilhação e tratamento degradantes e atentatórios da sua honra, dignidade e autoestima.
Tinha, também, conhecimento que ao proferir as expressões mencionadas criava na ofendida sentimentos de insegurança, medo e inquietação, o que quis.
Agiu de forma livre, voluntária e consciente, mais sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.»

III.2 - Da peticionada condenação do arguido por convolação do crime de violência doméstica, pelo qual foi absolvido, em crime de injúria:

Por via do seu douto recurso, defende a assistente/demandante civil que, tendo o arguido sido absolvido da prática do crime de violência doméstica de que se encontrava acusado e tendo-se provado que a injuriou, deveria ter sido condenado pela prática do crime de injúria (mesmo não tendo ela acompanhado a acusação pública deduzida pelo Ministério Público), e, consequentemente, no pagamento de indemnização à demandante civil.
Salvo o devido respeito pela opinião da recorrente, julgamos que o recurso está inelutavelmente condenado ao insucesso.

Prescreve o art. 181º, nº1 do C.P.: “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra do sujeito passivo do crime, aqui se incluindo a reputação, o bom nome e a dignidade.
O crime de injúria é um crime de dano quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e de mera atividade quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação delituosa.

São elementos típicos do crime:
Objetivos: a imputação de factos, ainda que sob a forma de suspeita, ou o dirigir palavras a outras pessoas, ofensivos da sua honra ou consideração;
Subjetivo: o dolo, bastando o dolo genérico em qualquer das suas formas, não sendo necessário dolo específico, ou animus injuriandi.

Quanto à eventual verificação do sobredito elemento objeto do crime, consideramos, face à matéria de facto dada por provada no ponto 5 do item II.2.1 da sentença, que as expressões dirigidas pelo arguido à assistente/recorrente, apelidando-a de “vaca”, “puta” e “porca”, seriam eventualmente suscetíveis de conter um potencial ofensivo da honra e consideração devidos àquela. Só não o afirmamos perentoriamente porque tal apreciação, devendo ser operada à luz dos padrões médios de valoração social, não olvida possíveis desvios resultantes de convivências sociais e familiares distintas da normalidade, por vezes disfuncionais, em que os impropérios recíprocos são usuais e tolerados. Note-se que no caso concreto, como vertido pelo Exmo. Julgador na motivação da decisão de facto, «O tribunal não denotou qualquer fragilidade emocional ou psicológica da queixosa. Muito pelo contrário, infere-se das suas declarações que existia uma situação de grande hostilidade e conflitualidade entre os dois, com troca de insultos constantes.»
De todo o modo, ainda que resultasse da factualidade provada o preenchimento do elemento objetivo, nunca poderia o arguido ser condenado pela prática de um crime de injúria, como pretende a assistente, porquanto não está provado o necessário elemento subjetivo do crime, ou seja, de que ao atuar da forma descrita o arguido sabia que estava a ofender a honra e consideração devidas à assistente e quis fazê-lo (cfr. factualidade não provada constante do item II.2.2 da sentença recorrida).
Com efeito, não tendo a recorrente impugnado a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do art. 412º, nº3, do CPP, aquela mostra-se definitivamente estabilizada, encontrando-se este Tribunal ad quem impedido de a alterar (cf. art. 431º, al. b), a contrario, do mesmo Código), tanto mais que não se descortina, pelo texto da decisão recorrida, qualquer dos vícios do art. 410º, nº2 do mesmo diploma legal.
Destarte, terá de improceder o douto recurso.
Mas, ainda que assim não fosse, como é, outro fundamento se vislumbra para a improcedência do recurso.
Como resulta do por nós já expendido no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 08/11/2021, com idêntico relator, proferido no Processo nº 60/20.8PBGMR.G1 [cremos que não publicado], aí tratando de convolação operada em sede de decisão instrutória, partilhamos o entendimento jurisprudencial contido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/01/2021, Processo nº 799/18.8GBPNF.P1, em que, em larga medida, a assistente funda o seu recurso.

Para além de outros arestos igualmente invocados no predito acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/01/2021 (3), aduzimos que tal entendimento corresponde ainda ao vertido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.02.2021, relatado pelo Desembargador João Novais, disponível em www.dgsi.pt, onde se considerou que «A degradação do crime de violência doméstica em crime de injúria agora operada não implica a ilegitimidade do Ministério Público e/ou do Assistente para a promoção do processo e não exige, supervenientemente, a apresentação de queixa, nem a dedução de acusação particular, pelo ofendido/assistente. De outro modo, seria apresentada ao assistente uma exigência de satisfação de uma condição de procedibilidade com a qual não poderia anteriormente contar, porque então inexistente. Só assim não será quando o ofendido/assistente emita declaração no sentido de não pretender o prosseguimento do procedimento criminal.»

Outros arestos de tribunais superiores, entre eles os que ora se citam, exprimem o mesmo entendimento:

- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/09/2017, proferido no Processo nº 573/16.6PBCVT.G1, disponível em www.dgsi.pt:
«I - Neste processo, o arguido vinha acusado do cometimento do crime de violência doméstica, mediante plúrimas «agressões, ameaças, insultos e perseguições» à sua ex-companheira, unificadas pelo desígnio de atingir a dignidade pessoal desta, mas, de entre todas as assinaladas condutas àquele assacadas, apenas se provaram as atinentes aos insultos que o mesmo dirigiu à ofendida, com o propósito conseguido de a atingir na sua honra e consideração. II - O crime de violência doméstica pode unificar, através do elemento da reiteração - embora este seja hoje um requisito, não imprescindível -, uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma. III - Só casuisticamente, comparando a acusação e a sentença, se poderá aferir da eventual relevância dos desvios operados nesta em relação à narrativa desenvolvida naquela para poder concluir, por um lado, se todos os factos arrolados na sentença se encontravam já sinalizados na acusação e, por outro, se o desvio detectado colide com o exercício dos direitos da defesa. IV - Na sequência, nada impede, mesmo sem observância dos regimes previstos pelos arts. 358º e 359º do CPP, a condenação do arguido pelos factos e qualificação jurídica já contidos - como um “minus” (injúria) - nos factos e incriminação por que o arguido vinha acusado (violência doméstica). V - Nos termos dos arts. 48º e 50º do CPP, o Ministério Público carece de legitimidade para prosseguir a acção penal se o ofendido não deduzir acusação particular em procedimento dela dependente - como é o caso do crime de injúrias (cf. arts. 181º e 188º do CP) -, para além de se queixar e se constituir assistente -, pelo que, na falta de tal pressuposto processual, deve o arguido ser absolvido da instância (cf. arts. 4º do CPP e 576º a 578º do CPC).VI - Porém, deve registar-se que a ratio da exigência de dedução de acusação particular reconduz-se à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido a efectivação da punição por crime particular de que tenha sido vítima. Ora, no caso em apreço, se a ofendida apenas aderiu à acusação pública deduzida contra o arguido pelo crime (público) de violência doméstica, a par de ter-se queixado e constituído assistente, o certo é que não poderia deduzir acusação particular por tal crime - pelo menos, por factos que importassem uma alteração substancial dos acusados pelo Ministério Público - pelo que não teve, sequer, a oportunidade de cumprir esse requisito de que a lei faz depender o procedimento criminal relativamente ao crime de injúrias, de natureza particular, tendo adoptado, então, a única atitude de que dispunha processualmente face à natureza do crime por cuja autoria o arguido fora acusado (cf. art. 284º do CPP).VII - Por outro lado, para além de o Ministério Público ter promovido a acção penal nos exactos termos em que a lei lhe impunha, sendo indiscutível que, em conformidade com os elementos disponibilizados pelo processo, não poderia haver lugar à notificação da assistente para deduzir acusação particular, a lei prevê que a «acusação do assistente pode limitar-se a mera adesão à acusação do Ministério Público» (cf. citado art. 284º), diferentemente do que se passa com a acusação pública, pelo que a assistente, ao aderir à acusação pública, manifestou a sua vontade de que o arguido fosse perseguido também pelos factos naturalísticos que vieram a ser tidos por provados na sentença. VIII - Portanto, mostrando-se nestes autos inteiramente preenchido o desiderato prosseguido pelo legislador com o instituto da acusação particular, o processo e a intervenção que nele tiveram os diversos sujeitos processuais não sofre de qualquer ilegalidade, não devendo a falta de uma formal e autónoma acusação da assistente constituir motivo, previsto em qualquer disposição legal, para a inutilização da sua adesão à acusação proferida pelo Órgão que, em conformidade com os dados do processo, detinha exclusiva legitimidade para o efeito, tal como, até então, se apresentava estruturada, fáctica e juridicamente, a pretensão punitiva do Estado - o MP acusou por factos relativamente aos quais tinha legitimidade e os pressupostos processuais relativos a tal acusação estabilizaram-se, nesse preciso momento -, sendo que a questão de não se terem demonstrado todos os fundamentos fácticos de tal pretensão apenas pode relevar para o respectivo mérito, não para o do preenchimento do pressuposto processual em análise.»

- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/09/2017, proferido no Processo nº 505/15.9GAPTL.G1, disponível em www.dgsi.pt:

«I) As condutas previstas e punidas no artº 152º do CP, são de várias espécies: maus tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus tratos psíquicos, isto é, humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradas em si crime de ameaça. II) Atualmente para a verificação do crime de violência doméstica e de maus tratos não se exige a reiteração de condutas, sendo suficiente a ocorrência de um único ato ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da ação e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido, mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana. III) No caso dos autos, os factos considerados provados não são suficientemente desvaliosos por forma a fazerem incorrer seu autor na perpetração do tipo legal de crime de violência doméstica, integrando antes a perpetração de um crime de menor densidade axiológica, como é o crime de injúria. IV) Não tendo resultado provado, em julgamento, factos suscetíveis de integrar a perpetração de um crime de violência doméstica, o certo é que a ofendida, no tempo próprio, apresentou queixa, constituiu-se assistente e o M.P. deduziu acusação pela prática de um crime de violência doméstica, acusação esta que a assistente declarou acompanhar, pelo que a esta nada mais lhe era processualmente exigível. V) O crime de injúria constituiu um minus relativamente ao imputado crime de violência doméstica cuja factualidade não se demonstrou em julgamento, pelo que não existe nenhum elemento de surpresa que justifique a atribuição ao arguido de uma maior amplitude de defesa caso se provem, como foi o caso, apenas factos já constantes da acusação suscetíveis de integrar um crime de injúria. E, nessa medida, não há lugar ao cumprimento do disposto no artigo 358º, nº 3 do C.P.Penal.»

Contudo, salvo o devido respeito, entendemos que a fundamentação invocada pela recorrente não colhe porque desadequada ao caso ajuizado.
A jurisprudência acima citada estriba-se na circunstância comum de se tratar da fase de julgamento e de a acusação ter sido introduzida em juízo por quem dispunha de legitimidade para o efeito, no caso, o Ministério Público, dado que o crime de violência doméstica cuja prática é imputada naqueles casos aos arguidos assume natureza pública. Dessa premissa se parte então para a consideração de que o ofendido, ao aderir à acusação pública deduzida, manifesta, pelo meio processual próprio, a sua vontade de perseguição criminal e punição do autor dos factos descritos no libelo acusatório, todos eles, incluindo, pois, face à tipicidade objetiva própria do crime de violência doméstica (unificadora de várias condutas), factualidade suscetível de integrar autonomamente o crime de injúria, enquadramento jurídico que veio a prevalecer na sentença após redução dos factos provados. Assim, conclui-se, como a pessoa ofendida não tinha de apresentar queixa face à subsunção jurídica dos factos denunciados operada pelo titular do inquérito, e, logicamente, não podia deduzir acusação particular, nada mais lhe era exigível processualmente nos autos, pelo que a circunstância de não se terem demonstrado todos os fundamentos fácticos da pretensão punitiva retratada na acuação somente pode relevar para o respectivo mérito, não para o do preenchimento do pressuposto processual em análise. Inexiste, assim, qualquer ilegalidade na convolação do crime de violência doméstica imputado na acusação para o crime de injúria e subsequente condenação do arguido por este crime, ainda que não deduzida nos autos, pelos motivos expostos, acusação particular.
Sucede que, in casu, verifica-se distinto enquadramento processual-jurídico, que invalida decisivamente a aplicabilidade daquela orientação jurisprudencial.
No caso sub judice, para além da decisiva circunstância acima apontada (ponto III.2) de que a factualidade dada por provada não permite o preenchimento integral da tipicidade do crime de injúria, temos ainda que a assistente não deduziu acusação em nome próprio pelos factos acusados pelo Ministério Público, ainda que fosse por mera adesão à acusação – cf. art. 284º, nºs 1 e 2, al. a), do CPP –, dessarte manifestando em juízo, pelo meio processual próprio, a sua vontade de prossecução criminal e punição do arguido pela globalidade dos factos descritos no libelo acusatório, neles se incluindo, pois, face à tipicidade própria do crime de violência doméstica (unificadora de várias condutas), a factualidade suscetível de integrar autonomamente o crime de injúria. Só se tivesse atuado do predito modo, se podia considerar assegurada a finalidade legislativa subjacente à imposição de dedução de acusação particular quando esteja em causa a imputação de crime de natureza particular, como é o caso do crime de injúria (cf. arts. 50º, nº1, 181º, nº1 e 188º, nº1, todos do CPP, e arts. 113º, nº1 e 117º, ambos do CP).
Por conseguinte, também por esta razão soçobra o recurso interposto pela assistente.
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IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso deduzido pela assistente/demandante civil M. G. e, em conformidade, manter a sentença recorrida.
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Taxa de justiça a cargo da assistente/recorrente, fixando-se a mesma em 3 UC (art. 515º, nº1, al. b) do CPP, arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, todos do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).
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Guimarães, 21de março de 2022,

Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]

Pedro Freitas Pinto (Adjunto)
[assinatura eletrónica]

Fernando Chaves
(Juiz Desembargador Presidente da Secção Criminal)
[assinatura eletrónica]

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)



1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2. Faz-se notar que perante o objeto do recurso deduzido pela assistente, o processo deixou de assumir natureza urgente em virtude de já não estar em causa a eventual prática de um crime de violência, única circunstância que estribava essa urgência, porquanto a sentença recorrida transitou em julgado na parte em que absolveu o arguido pela prática desse tipo de crime.
3. Referimo-nos aos Acórdãos da RP de 30/01/13, proc. n.º 1743/11.9TAGDM.P1, e de 27/04/16, proc. n.º 780/13.3GALSD.P1, e ao Acórdão da RL de 17/06/15, proc. 48/13.5PFPDL.L1-3, todos em www.dgsi.pt.