Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
51/17.6T8MGD.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: REGIME DO MAIOR ACOMPANHADO
CONSELHO DE FAMÍLIA
VOGAL
IMPEDIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A transferência bancária de quantias depositadas em contas à ordem da recorrente (maior beneficiária de medida de acompanhamento) e que lhe pertenciam, efetuada pela requerente do acompanhamento, aqui recorrida, para conta por si titulada e em seu benefício, traduz um conflito de interesses que impede a sua nomeação para vogal do Conselho de Família da recorrente e, por maioria de razão, para o cargo de Protutora (devidamente adaptado ao regime do maior acompanhado).
II- Tendo sido instaurado pelo Ministério Público inquérito contra a aqui recorrida, sob queixa ou denúncia apresentada pela aqui recorrente ou em que esta figurava como ofendida, e ainda que tal inquérito tenha sido arquivado, existe impedimento legal à nomeação para as referidas funções, não só da recorrida, como do respetivo cônjuge e filhos, até 5 anos após tal arquivamento – art.º 1933º n.º1 al. g) e h), ex vi art.º 1953º, ambos do Código Civil.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Em 16.3.2017, I. C. veio requerer a interdição, por anomalia psíquica, de O. C., sua tia, nascida a -.03.1934, natural da freguesia de ..., concelho de Mogadouro, e residente no Lar de ..., sito no Largo ..., ..., Miranda do Douro, alegando, em suma, que a mesma padece de demência acentuada, encontrando-se impedida de gerir a sua pessoa e bens.
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Foram afixados editais e publicado o anúncio a que alude artigo 892.º do Código de Processo Civil.
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Foi realizada a citação na pessoa da própria requerida.
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A requerida apresentou contestação, tendo alegado, em suma, que, o actual estado de saúde mental da requerida só pode ser avaliado por um médico perito, bem como, que devem ser nomeados como tutor, o seu irmão, M. C., protutor, a sua sobrinha, H. C., e vogal, a sua cunhada, M. G.. Excepcionou a incompetência territorial do Tribunal do Mogadouro para a presente acção, em razão da requerida residir na área do Tribunal de Miranda do Douro.
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Conheceu-se da invocada excepção, declarando-se o Tribunal de Mogadouro (Juízo de Competência Genérica) incompetente, em razão do território, e remeteu-se os autos ao Juízo de Competência Genérica de Miranda do Douro.
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Em 30-10-2018 efectuou-se o interrogatório da requerida, nos termos previstos no artigo 896.º do Código de Processo Civil.
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Em 15.3.2019, na sequência da entrada em vigor do regime jurídico do maior acompanhado (Lei n.º 49/2018, de 14/08) e da sua aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes, em ordem a adequar a tramitação processual ao novo regime, foi determinada a notificação do Ministério Público e da requerente para, em 10 dias, virem indicar os actos concretos para os quais entendam que a requerida necessita de ser representada. O que fizeram.
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O perito médico apresentou relatório do exame médico-psiquiátrico (junto a fls. 129 e ss., 156 e ss. dos autos) realizado à requerida, tendo concluído que esta sofre de síndrome demencial, sendo que o prognóstico é o seu agravamento progressivo e não tem tratamento. Conclui que a requerida está incapacitada de reger a sua pessoa e os seus bens. Situa o inicio da sua incapacidade a partir de Maio de 2016,

Procedeu-se à inquirição das testemunhas.
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Em virtude de para tal lhe ter sido aberta vista no processo, o Ministério Público emitiu parecer, junto a fls. 132 e ss., 173 e 256.
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Proferiu-se sentença em que decidiu:
«Em face do exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 138.º, 145.º, 147.º do Código Civil, e 900.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, julgo procedente, por provada, a presente ação e consequentemente:

1. Decreto a necessidade de acompanhamento de O. C., nascida a -.03.1934, natural da freguesia de ..., concelho de Mogadouro, e residente no Lar de ... (Centro Social e Paroquial...), sito no Largo ..., ..., Miranda do Douro, com as seguintes medidas de acompanhamento:
1.1. Submeto a Acompanhada ao regime de representação geral, cometendo ao Acompanhante a prática de todos os atos necessários a prover à pessoa daquela, incluído ao nível da satisfação das suas necessidades básicas diárias e definição do seu quotidiano e aceitação de tratamentos que medicamente sejam propostos;
1.2. Submeto a Acompanhada ao regime de administração total de bens, cometendo ao Acompanhante a gestão do património daquela, incluído a gestão dos rendimentos mensais.
2. Inibo a Acompanhada do exercício dos direitos pessoais de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, e de testar, bem como da celebração em geral de negócios da vida corrente.
3. Fixo o começo da conveniência das medidas de acompanhamento em 01.05.2016, cfr. artigo 900.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
4. Para exercer o cargo de Acompanhante nomeio M. C., residente na Avenida do …, Mogadouro, a quem incumbirá a prática dos atos de representação geral referidos supra e a administração total de bens da Acompanhada referida supra.
5. Nomear para o cargo de vogais da Acompanhada, I. C., residente na Rua …, Mogadouro (pro-tutor) e A. P., Representante Legal do Centro Social e Paroquial..., e com domicílio profissional no Largo ..., ..., (vogal), ficando ambos a constituir parte integrante do Conselho de Família, cfr. artigo 1951.º do Código Civil
6. Determino a revisão das medidas de acompanhamento de cinco em cinco anos.
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Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil fixo o valor de presente causa em €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo) – cfr. artigos 303.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e 11.º do Regulamento das Custas Processuais.
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Sem custas, cfr. artigo 4.º, n.º 1, alínea l) do Regulamento das Custas Processuais.
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Registe e notifique (não olvidando os vogais do Conselho de Família referidos supra).
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Dispenso a publicitação de anúncios em sitio oficial, por desnecessária, cfr. artigo 893.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
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Após trânsito, comunique à Conservatória de Registo Civil, cfr. artigo 1920.º-B do Código Civil ex vi artigo 153.º, n.º 2 do mesmo Código, e artigos 1.º, n.º 1, alínea h) e 78.º, ambos do Código de Registo Civil. ».
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Inconformada, a requerida interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso vem interposto da, aliás, douta sentença proferida nos presentes autos que decretou a necessidade de acompanhamento pela Recorrente, submetendo a mesma ao regime da representação geral e administração total de bens, designando de Acompanhante M. C. e nomeando para o cargo de vogais I. C. e A. P.;
2. A Recorrente entende, no entanto, que a vogal designada I. C. não reúne idoneidade para o cargo;
3. Da prova produzida, dos factos provados – ponto 23 - deveria constar que apesar dos autos terem sido arquivados “resulta provado que a I. C. movimentou dinheiro da Beneficiária, sem a sua autorização, para o aplicar numa aplicação financeira”;
4. Do ponto 24. deveria constar “Em data não concretamente apurada mas entre Março de 2016 e Maio de 2016, a Beneficiária foi entregue em casa do seu irmão M. C. pela I. C. por esta não ter acesso ao dinheiro da Beneficiária.“ ;
5. Dos factos dados como não provados, Da alínea a)apenas deveria constar que no período em que I. C. ficou encarregue de tomar conta da Beneficiária, esta passou fome por ter sido mal alimentada;
6. No entanto deveria ter sido dado como provado pelo Tribunal a quo que a roupa dela foi deitada ao lixo pela I. C.;
7. Quanto à alínea b) também deveria ter sido dado como provado que a I. C. foi negligente nos cuidados prestados à Beneficiária;
8. Desta forma deverá ser designado novo vogal em substituição da I. C..
Nestes termos, e nos melhores de Direito, sempre com mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso nos termos pugnados assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA! »
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A requerente, I. C., e o Ministério Público, contra-alegaram.
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Admitido o recurso, os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, onde foi recebido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).

As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que assim se sintetizam:
– Reapreciação da prova no tocante aos pontos da decisão da matéria de facto objecto de impugnação.
– Decidir se a requerente e aqui recorrida, I. C., não apresenta idoneidade para integrar o conselho de família como Protutora.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A) Factos julgados provados na sentença recorrida:

«1. O. C. nasceu a -.03.1934, na freguesia de ..., concelho de Mogadouro.
2. A partir de Maio de 2016 passou a residir no Lar de ... (Centro Social e Paroquial ...), sito no Largo ..., ..., Miranda do Douro.
3. É solteira.
4. Não tem filhos.
5. A beneficiária sofre de síndrome demencial.
6. O prognostico é o seu agravamento progressivo e não tem tratamento.
7. Pode-se datar o inicio da sua incapacidade a partir de Maio de 2016.
8. Não consegue orientar-se no espaço ou no tempo.
9. Desconhece o valor facial e aquisitivo o dinheiro, bem como ignora o valor económico das coisas.
10. Não sabe fazer cálculos aritméticos.
11. Encontra-se dependente de terceira pessoa para a realização das tarefas normais do dia-a-dia.
12. A beneficiária não é capaz de gerir autonomamente a sua pessoa e bens.
13. A beneficiária é dependente de terceiros em todas as atividades da vida diária.
14. Não foi entregue nos balcões RENTEV Testamento Vital e Procuração para cuidados de saúde relativamente à beneficiária.
15. A beneficiária constituiu seu bastante procurador, o seu irmão, M. C., ao qual conferiu os poderes descritos na procuração datada de 16.07.2015.
16. A beneficiária recebe uma pensão de velhice do regime geral com início de atribuição em 04.04.1995 com o valor mensal atual de €439,60.
17. M. C. é irmão da beneficiária.
18. I. C. é sobrinha da beneficiária.
19. M. C. passa algum tempo em território francês, por ser ex emigrante.
20. Em Fevereiro de 2016, I. C. ficou responsável por olhar e cuidar da beneficiária na sua residência em ....
21. As contas da beneficiária são as seguintes:
- Conta Depósito à Ordem com o NIB .............................. da Caixa ....
- Conta Caixa Aforro Poupe Mais com o NIB .................................... da Caixa ....
22. É na Conta de Depósito à Ordem que a beneficiária recebe a sua pensão, os subsídios do IFAP, I.P. e efetua os seus pagamentos.
23. Em 13.05.2016, foi apresentada queixa-crime contra I. C. junto dos serviços do Ministério Público do Juízo de Competência Genérica de Mogadouro que aí corre termos com o número de processo n.º 564/16.7T9BGC, e que foi proferido despacho de arquivamento.
24. Em data não concretamente apurada mas entre Março de 2016 e Maio de 2016, por isso, a Beneficiária foi para casa do seu irmão M. C..
25. Em Maio de 2016 a Beneficiária passou a residir no Lar de ....
26. O irmão M. C. tem providenciado pelo pagamento do Lar, roupas, medicamentos, etc..

B) Factos julgados não provados na sentença recorrida:

a) No período em que I. C. ficou encarregada de tomar conta da Beneficiária, esta passou fome por ter sido mal alimentada e a sua roupa desapareceu.
b) I. C. foi negligente nos cuidados prestados à Beneficiária.»

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) Da impugnação da decisão da matéria de facto

A recorrente impugna o decidido no tocante aos factos dados como provados sob os nºs 23 e 24 e quanto aos não provados das alíneas a) e b), concretamente:

23 .Em 13.05.2016, foi apresentada queixa-crime contra I. C. junto dos serviços do Ministério Público do Juízo de Competência Genérica de Mogadouro que aí corre termos com o número de processo n.º 564/16.7T9BGC, e que foi proferido despacho de arquivamento.
24.Em data não concretamente apurada mas entre Março de 2016 e Maio de 2016, por isso, a Beneficiária foi para casa do seu irmão M. C..
a)No período em que I. C. ficou encarregue de tomar conta da Beneficiária, esta passou fome por ter sido mal alimentada e a sua roupa desapareceu.
b)I. C. foi negligente nos cuidados prestados à Beneficiária.

Pugna no sentido da alteração da matéria de facto provada pela seguinte forma:

– Do ponto 23 deverá também constar, que, “I. C. movimentou dinheiro da Beneficiária, sem a sua autorização, para o aplicar numa aplicação financeira”.
– Do ponto 24. deverá constar: “Em data não concretamente apurada mas entre Março de 2016 e Maio de 2016, a Beneficiária foi entregue em casa do seu irmão M. C. pela I. C. por esta não ter acesso ao dinheiro da Beneficiária”.

Quanto aos Factos Não Provados:

– Da matéria da al. a) deveria retirar-se e julgar-se provado que a roupa da recorrente foi deitada ao lixo pela I. C..
– Quanto à alínea b) também deveria ter sido dado como provado que a I. C. foi negligente nos cuidados prestados à Beneficiária.

Para tanto convoca os seguintes meios de prova:

– Certidão do teor do processo de inquérito referido, bem como das declarações da própria I. C..
– Depoimentos das testemunhas M. C. - 06:38 a 17:30; M. G. – 02:32 a 06:59 e 16:03 a 19:45, H. C. – 15:00 a 19:00 e A. P. – 04:47 a 15:40.
Ouvimos os depoimentos e declarações e analisamos os documentos juntos aos autos, concretamente o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público no processo 564/16.7T9BGG em 27.4.2020 (fls. 213 a 218) e documentação bancária junta com a contestação.
Relativamente aos factos alegados na contestação sob os nºs 22º a 24ª
22º Apesar disso, no dia 16/03/2016, sem qualquer autorização da Ré, a Autora transferiu para a conta bancária com o número ........................ da Caixa ..., cuja titularidade lhe pertence, o montante global de € 47.000,00 (quarenta e sete mil euros) provenientes dessas contas bancárias, conforme DOC. 5 e DOC. 6 que se juntam e reproduzem para todos os legais efeitos.
23º A Autora aplicou o referido montante num instrumento financeiro da Caixa ..., conforme DOC. 7 e DOC. 8 que se junta e reproduz para todos os legais efeitos.
24º Nesta sequência, em 13/05/2016, a Ré e o seu irmão M. C. apresentaram uma queixa-crime junto dos serviços do Ministèrio Público do Juízo de Competência Genérica de Mogadouro que ai corre termos com o número de processo 564/16.7T9BGC e no qual a Autora foi constituida Arguida.
Na sentença apenas se refere, sob o nº23: Em 13.05.2016, foi apresentada queixa-crime contra I. C. junto dos serviços do Ministério Público do Juízo de Competência Genérica de Mogadouro que aí corre termos com o número de processo n.º 564/16.7T9BGC, e que foi proferido despacho de arquivamento.
Ora, efectivamente, como resulta da leitura do despacho de arquivamento e da análise dos meios probatórios nele enunciados, aliados aos documentos bancários, é inequívoco que a requerente transferiu dinheiro de conta titulada pela requerida e que não lhe pertencia, para uma conta por si titulada (aplicação a prazo).
Este facto foi alegado e, em nosso entender, é relevante, quer para efeitos da escolha do ou dos acompanhantes quer do protutor (cargo previsto na tutela onde ainda existe tutor).

Como tal o nº 23 dos factos provados, desdobra-se e passa a ter a seguinte redacção:

23.A. A Autora, I. C., transferiu, em 16.3.2016, das contas à ordem e poupança aforro, tituladas pela beneficiária O. C., respectivamente, as quantias de €20.000 e €27.000, para a conta bancária com o número ........................ da Caixa ..., cuja titularidade lhe pertence, o montante global de € 47.000,00 (quarenta e sete mil euros) provenientes dessas contas bancárias.
23ºB. A Autora aplicou o referido montante global de €47.000,00 (quarenta e sete mil euros), proveniente dessas contas bancárias. num instrumento financeiro da Caixa ...
23.C. Nesta sequência, em 13/05/2016, a requerida e o seu irmão M. C. apresentaram uma queixa-crime junto dos serviços do Ministério Público do Juízo de Competência Genérica de Mogadouro, que deu origem ao inquérito que ai correu termos com o número 564/16.7T9BGC, tendo sido proferido despacho de arquivamento em 27.4.2020.
No tocante à matéria que se pretende aditar ao facto nº 24 (a Beneficiária foi entregue em casa do seu irmão M. C. pela I. C. por esta não ter acesso ao dinheiro da Beneficiária), os meios de prova indicados pela recorrente não permitem concluir, com o necessário grau de certeza, no sentido pretendido. Depreende-se que nessa altura surge um desentendimento familiar, motivado pela descoberta da transferência efectuada pela I. C. para a sua conta e consequente queixa-crime apresentada pelo irmão da beneficiária (aqui nomeado acompanhante de maior) e que tinha procuração para gerir os bens desta, mas não mais do que isso.
Relativamente aos factos não provados das alíneas a) e b), os meios de prova indicados pela recorrente são insuficientes para que se julgue provado que “ a roupa da recorrente foi deitada ao lixo pela I. C.”, muito menos que a ter ocorrido manifeste a relevância que lhe pretendem dar. Com efeito, apesar da testemunha H. C. ter referido que a própria I. C. lhe disse que tinha atirado com muita coisa para o caixote do lixo, não se retira daí que o tenha feito em detrimento da recorrida. O mesmo sucede com o referido pela testemunha A. P.. Esta testemunha apenas ouviu a recorrente queixar-se e a tirar as coisas do lixo. Contudo, neste contexto, de prestar auxílio à recorrente, já idosa e com problemas de demência, é compreensível que a recorrida tenha tido apenas a intenção de efectuar uma limpeza, eliminando o que já não tinha serventia. Perante a dúvida o facto mantém-se como não provado.
No que toca à matéria da al. b) a mesma é conclusiva e de direito, pelo que nem sequer pode por nós ser considerada.

Pelo exposto, na procedência parcial da impugnação da apelante, vamos fixar a matéria provada pela seguinte forma:

«1. O. C. nasceu a -.03.1934, na freguesia de ..., concelho de Mogadouro.
2. A partir de Maio de 2016 passou a residir no Lar de ... (Centro Social e Paroquial ...), sito no Largo ..., ..., Miranda do Douro.
3. É solteira.
4. Não tem filhos.
5. A beneficiária sofre de síndrome demencial.
6. O prognostico é o seu agravamento progressivo e não tem tratamento.
7. Pode-se datar o inicio da sua incapacidade a partir de Maio de 2016.
8. Não consegue orientar-se no espaço ou no tempo.
9. Desconhece o valor facial e aquisitivo o dinheiro, bem como ignora o valor económico das coisas.
10. Não sabe fazer cálculos aritméticos.
11. Encontra-se dependente de terceira pessoa para a realização das tarefas normais do dia-a-dia.
12. A beneficiária não é capaz de gerir autonomamente a sua pessoa e bens.
13. A beneficiária é dependente de terceiros em todas as atividades da vida diária.
14. Não foi entregue nos balcões RENTEV Testamento Vital e Procuração para cuidados de saúde relativamente à beneficiária.
15. A beneficiária constituiu seu bastante procurador, o seu irmão, M. C., ao qual conferiu os poderes descritos na procuração datada de 16.07.2015.
16. A beneficiária recebe uma pensão de velhice do regime geral com início de atribuição em 04.04.1995 com o valor mensal atual de €439,60.
17. M. C. é irmão da beneficiária.
18. I. C. é sobrinha da beneficiária.
19. M. C. passa algum tempo em território francês, por ser ex emigrante.
20. Em Fevereiro de 2016, I. C. ficou responsável por olhar e cuidar da beneficiária na sua residência em ....
21. As contas da beneficiária são as seguintes:
- Conta Depósito à Ordem com o NIB .............................. da Caixa ....
- Conta Caixa Aforro Poupe Mais com o NIB .................................... da Caixa ....
22. É na Conta de Depósito à Ordem que a beneficiária recebe a sua pensão, os subsídios do IFAP, I.P. e efetua os seus pagamentos.
23.A. I. C., transferiu, em 16.3.2016, das contas à ordem e poupança aforro, tituladas pela beneficiária O. C., as quantias de €20.000 e €27.000, para a conta bancária com o número ........................ da Caixa ..., cuja titularidade lhe pertence.
23ºB. I. C. aplicou o referido montante global de €47.000,00 (quarenta e sete mil euros), proveniente dessas contas bancárias da beneficiária. num instrumento financeiro da Caixa ..., por si titulado.
23.C. Nesta sequência, em 13/05/2016, a beneficiária e o seu irmão M. C., seu procurador e com poderes para tanto, apresentaram uma queixa-crime junto dos serviços do Ministério Público do Juízo de Competência Genérica de Mogadouro, que que deu origem ao inquérito que ai correu termos com o número de processo 564/16.7T9BGC, tendo sido proferido despacho de arquivamento em 27.4.2020.
24. Em data não concretamente apurada mas entre Março de 2016 e Maio de 2016, por isso, a Beneficiária foi para casa do seu irmão M. C..
25. Em Maio de 2016 a Beneficiária passou a residir no Lar de ....
26. O irmão M. C. tem providenciado pelo pagamento do Lar, roupas, medicamentos, etc.

B) Da idoneidade da “Protutora”

Relativamente aos maiores acompanhados (artºs. 138º a 156º) estabelece o Código Civil:
Artigo 143.º
Acompanhante
1 - O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
2 - Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:
a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;
b) Ao unido de facto;
c) A qualquer dos pais;
d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;
e) Aos filhos maiores;
f) A qualquer dos avós;
g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;
h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;
i) A outra pessoa idónea.
3 - Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores.

Por seu turno o art.º 145.º, que regula o âmbito e conteúdo do acompanhamento, refere nos seus nºs 4 e 5
(…)
4 - A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
5 - À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes.

Assim, o Código Civil, no caso do maior acompanhado, não exige a constituição de Conselho de Família, que pode ser dispensado. Nem prevê a figura do Protutor, mas apenas a possibilidade de serem nomeados vários acompanhantes com diferentes funções.
Por seu turno o Código de Processo Civil, ao regular o processo especial de acompanhamento de maior, prevê que na decisão (art.º 900º) o juiz proceda à designação de um acompanhante substituto, de vários acompanhantes e, sendo o caso, do Conselho de Família.

No caso em apreço não se dispensou a constituição do Conselho de Família, designando-se como seus vogais a requerente da presente acção (I. C.), a quem cometeu as funções de “pro-tutor”, e o Padre A. P., representante legal do Centro Social e Paroquial ..., onde a requerida se encontra a residir.
O Conselho de Família é composto por dois vogais, sendo presidido pelo Ministério Público, conforme estabelecido no artigo 1951.º, do CC.
Compete ao Conselho de Família vigiar a actividade do tutor ou do curador (artigo 1954.º, do CC). Tem, ainda, de se pronunciar a respeito da designação de tutor (artigo 143.º, n.º 2, do CC) e sempre que conveniente por estarem em causa os interesses da pessoa incapacitada.
O art.º 1952º do CC rege quanto ao critério de escolha dos vogais do conselho de família no que tange aos menores. Pelo que terá de ser devidamente adaptado aos maiores, tendo em conta o disposto no art.º 143º do CC, isto é, a especificidade da situação dos maiores em relação aos menores – tal como sucede quanto à escolha do acompanhante, como refere o nº 4 do art.º 145º.

Relativamente à figura do protutor, não a encontramos referida no regime de maiores, mas apenas a propósito da tutela de menores, cabendo-lhe, nesse âmbito (art.º 1956.º do CC), além de fiscalizar a acção do tutor:

a) Cooperar com o tutor no exercício das funções tutelares, podendo encarregar-se da administração de certos bens do menor nas condições estabelecidas pelo conselho de família e com o acordo do tutor;
b) Substituir o tutor nas suas faltas e impedimentos, passando, nesse caso, a servir de protutor o outro vogal do conselho de família;
c) Representar o menor em juízo ou fora dele, quando os seus interesses estejam em oposição com os do tutor e o tribunal não haja nomeado curador especial.

Ora, no caso em apreço, em nosso entender, face aos factos provados sob o nº 23 (A, B, e C) a requerente e aqui recorrida, não tem idoneidade para o exercício das funções que lhe foram cometidas como vogal do Conselho de Família e Protutora.
Efectivamente, ainda que o Ministério Público haja arquivado o inquérito por dúvidas quanto à existência de crime, certo é que os factos foram praticados e obviamente relevam para a escolha de quem há-de gerir ou controlar a gestão dos dinheiros da falecida ou pronunciar-se sobre tal gestão.
Não vislumbramos qualquer justificação, para que alguém proceda à transferência de dinheiro que não lhe pertence, para uma conta exclusivamente sua, isto é, em seu benefício.
Muito menos qualquer boa intenção de fazer render o dinheiro da requerida, senhora de mais de 80 anos, com parcos rendimentos (nessa altura a sua pensão de reforma era de cerca de €330, conforme extractos juntos com a contestação) e cuja esperança de vida não se compadece com aguardar o vencimento de aplicações financeiras a prazo, pois, em qualquer momento, pode necessitar desse dinheiro, como veio a precisar, já que montante pago ao Lar onde se encontra é superior ao que recebe da pensão de reforma, conforme documentos juntos aos autos.
Quem assim procedeu poderia até estar a tentar rentabilizar o dinheiro da requerida, mas não em benefício desta. E se não foi em benefício pessoal, foi em benefício dos herdeiros da requerida e não desta.
Estes factos traduzem assim um conflito de interesses que, em nosso entender, impedem I. C., a sobrinha da beneficiária e requerente nos presentes autos, de ser nomeada como vogal do Conselho de Família e, por maioria de razão, para o cargo de Protutora (devidamente adaptado ao regime do maior acompanhado).
Aliás, tal impedimento resulta expressamente da Lei – art.º 1933º nº 1 al. g) e h) do CC ex vi art.º 1953º do CC.
Efectivamente I. C. teve pendente processo de inquérito instaurado pelo Ministério Público sob queixa ou denúncia apresentada pela acompanhada e em que esta figurava como ofendida, processo que só deixou de estar pendente há cerca de um ano.
Ora o art.º 1953º do CC estabelece que “é aplicável aos vogais do conselho de família o disposto nos artigos 1933.º e 1934.º

Por seu turno o art.º 1933º estabelece que não podem ser tutores:

g) Os que tenham demanda pendente com o menor ou com seus pais, ou a tenham tido há menos de cinco anos;
h) Aqueles cujos pais, filhos ou cônjuges tenham, ou hajam tido há menos de cinco anos, demanda com o menor ou seus pais;

Devidamente adaptado ao regime do maior acompanhado, não poderia a I. C. ser designada como vogal do Conselho de Família pois teve demanda pendente com a beneficiária há menos de cinco anos.
Assim como não poderão ser nomeados para esse cargo, nos próximos anos, o marido ou os filhos de I. C..
Pelo exposto, entendemos, que, nesta parte, a sentença deve ser revogada, substituindo-se a requerente I. C. por outra pessoa, que não poderá ser seu ascendente, cônjuge, ou descendente.
Contudo, os autos não contêm as informações indispensáveis com vista à escolha de pessoa a designar para o cargo, desconhecendo nós outros parentes ou, na sua falta, terceiros, que para tanto tenham condições e idoneidade.
Consequentemente, competirá à 1ª instância, tal como sucede no caso de exoneração ou remoção de tutor ou de vogal do conselho de família, colher tais informações e designar quem deverá ser nomeado para essas funções.

V - DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida na parte em que nomeou I. C. como vogal de Conselho de Família e “Pro-tutora” da Acompanhada.
Defere-se à 1ª instância a nomeação de novo vogal em substituição da designada na sentença recorrida.
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Isento de custas nos termos do art.º 4º nº 2 al. h) do RCP
Guimarães, 15-04-2021

Eva Almeida
António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte