Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
231/17.4T8VNF-C.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA DE BENS ONERADOS COM DIREITOS REAIS DE GARANTIA
PRETERIÇÃO DE FORMALIDADES NA CONDUÇÃO DA ALIENAÇÃO
FALTA DE COMUNICAÇÃO AOS CREDORES GARANTIDOS
NULIDADE DA VENDA EFETUADA PELO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - No tocante às consequências da venda de bens onerados com direitos reais de garantia em violação ao disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 164º do CIRE perfilam-se, na jurisprudência e na doutrina, três vias interpretativas:
i) - Como posição maioritária, a que sustenta que a ilicitude decorrente daquelas omissões, em si, não afeta a validade ou eficácia da venda efetuada, apenas constituindo (ou podendo constituir) causa de destituição e de responsabilidade civil do administrador da insolvência perante o credor garantido que não foi ouvido sobre a modalidade da venda e/ou que não foi informado sobre o valor base fixado ou o preço da alienação projetada.
ii) - Outra corrente jurisprudencial, no pressuposto da primeira, recusa a aplicação da norma contida nos “arts. 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE”, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar uma tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido.
iii) Uma outra posição minoritária tem defendido que a inobservância do n.º 2 do art. 164º do CIRE pode consubstanciar uma nulidade processual suscetível de acarretar a anulação da venda.

II - A verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada é suscetível de influir na decisão da causa (leia-se na venda ou no resultado da liquidação).

III - Relativamente à irregularidade consistente na falta de comunicação aos credores garantidos do valor base fixado ou do preço de alienação a entidade determinada, não demonstrando os credores garantidos, em termos plausíveis, que, se tivessem sido notificados atempadamente, teriam (ativamente) procurado interessados na aquisição do bem por valor superior ao preço efetivamente obtido ou teriam eles mesmo apresentado proposta de aquisição do imóvel por valor superior ao preço obtido na venda realizada, deve ter-se por inverificada a invocada nulidade processual.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

No apenso de liquidação dos autos de insolvência, pendentes no Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1 – do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, nos quais, por sentença de declaração de insolvência de 12 de janeiro de 2017, foram declarados insolventes D. M. e M. F. (Refª/Citius: 151159470), os credores H. J. e mulher A. C., intitulando-se credores com garantia hipotecária, apresentaram requerimento ao processo, datado de 09-07-2018 (Ref.ª/Citius: 29655691), pedindo que fossem notificados de todas as diligências de venda do imóvel apreendido.
*
Tal requerimento foi notificado o Senhor Administrador da Insolvência, tendo-lhe sido concedido o prazo de 10 dias para informar os Autos do estado em que se encontram as diligências inerentes à liquidação (Ref.ª/Citius: 159171807).
*
Em 26 de julho de 2018, veio o Senhor Administrador de Insolvência informar os autos do seguinte (Ref.ª/Citius: 7412313):

1. Prédio rústico- pinhal e mato, situado em ..., Lugar de ..., Concelho de ..., das freguesias ... (freguesia ... extinta), com área total de 11.457 m2, confrontando a Norte: F. M.; Sul: Caminho; Nascente: Estrada e Poente: J. R., descrito na Conservatória Registo Predial de ... sob o nº 59, inscrito na respetiva matriz sob o nº 790.
Foi adjudicado, pelo preço de € 80.000,00 a N. F., contribuinte ..., residente na Av. ..., ... (doc. l).
2. Quinhão hereditário D. M. na herança ilíquida aberta por óbito de M. M., na proporção de 1/4, constituído por
• prédio urbano - terreno para construção, situado em ..., Concelho de ... união das de ... e Fetos, com área de 500 m2, confrontando a Norte: S. D.; Sul: Caminho; Nascente: S. D. e Poente: 30sd J. R., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2878, inscrito na respectiva matriz sob o nº800.
• prédio rústico, situado em ..., Concelho de ..., união das freguesias ..., com área de 900 m2, confrontando a Norte: A. S.; Sul: Maria; Nascente: A. M. e Poente: caminho, descrito na Conservatória Registo Predial de ... sob o nº 60, inscrito na respetiva matriz sob o n.º 640.
• prédio urbano casa com logradouro, situado em ..., Concelho de ..., união das freguesias ..., com área coberta de 309 m2 e área total de 2.720 m2, confrontando a Norte: B. Z.; Sul:. J. L. e outros; Nascente: caminho e estrada, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2828, inscrito na respetiva matriz sob o nº 1041.
• prédio rústico — pinhal e eucaliptal, situado em ..., Concelho de .... União de freguesias de ..., com área de 6.000 m2, confrontando a Norte: A. S.; Sul: A. B.; Nascente: F. M. e Poente: F. R. e outro, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 303, inscrito na respetiva matriz sob o n.º 98.
Foi adjudicado, pelo preço de € 20,000100 a T. S.. contribuinte …, residente da R, de ..., . (doc. 2).
3. Prédio rústico- terreno, situado em … Concelho de ..., freguesia de ..., com área total de 1.400 m2, confrontando a Norte: caminho; Sul: … e outros; Nascente: … e Poente: …, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2319, inscrito na respetiva matriz sob n.º 2089.
Foi adjudicado, pelo preço de € 1.100,00 a T. S., contribuinte …, residente da R. da ..., (doc. 2)
(…)”.
*
Os recorrentes não foram, antes de 26 de julho de 2018, informados das vendas supramencionadas, nunca tendo sido ouvidos sobre a modalidade da alienação e informados do valor base fixado ou do preço da alienação projetada.
*
Em 06.08.2018, os ora recorrentes apresentaram novamente requerimento ao processo (Refª/Citius: 29856550), expondo que até àquela data nunca tinham sido notificados das diligências de venda levadas a cabo pelo Sr. Administrador de Insolvência e, além disso, que os valores conseguidos estavam muito abaixo dos valores do mercado, peticionando a nulidade das vendas efetuadas.
*
Também a Caixa ..., S.A. (requerimento apresentado em 09.08.2018, com a Refª/Citius: 29880889) e J. C. (requerimento apresentado em 09.08.2018, com a Refª/Citius: 29880943), pugnaram pela nulidade das vendas efetuadas.
*
Em 10.01.2019, foi proferido despacho pelo Tribunal “a quo” (Refª/Citius: 161461737) cujo teor se reproduz:

Apesar dos inúmeros requerimentos juntos aos autos, apenas agora foi aberta cls. para prolação de despacho.
Cumpre, portanto, decidir as várias questões suscitadas.
Requer o credor Caixa..., SA que o valor de venda seja fixado em montante superior àquele decidido pelo Sr. AI. Protesta, se necessário, juntar relatório de avaliação.
Ocorre, no entanto, que tentada a venda, proposta de valor que se aproximassem do valor requerido pela Caixa....
Entretanto, vieram os credores hipotecários H. C. e esposa solicitar a declaração de nulidade das vendas, com base na ausência da notificação das diligências de venda, defendendo que os valores atribuídos são inferiores aos de mercado.
Aproveitando o ensejo, requereu a Caixa... o mesmo, por desrespeito do art.º 164,2 CIRE, tendo ficado inibida de exercer os seus direitos, mormente aquele a que se refere o n.º 3 do mesmo normativo.
Juntou-se o credor J. C. alegando desconhecer os termos da venda, contestando os valores atribuídos às verbas. Conclui pedindo a declaração de nulidade das diligências tendentes à venda.
Respondeu o Sr. AI, a fls. 45 (juntando documentos comprovativos) dando conta que,
- Quanto ao credor Caixa... – elencando todo o diálogo que precedeu a fixação do preço, e a ausência de propostas deste credor, aquando da diligência de venda.
- Quanto ao credor J. C. – atenta a qualificação comum do seu crédito, não havia lugar a notificações específicas.

Dispõe o art.º 164 CIRE, sob a epigrafe “Modalidades da alienação” que

1 - O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
2 - O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.
3 - Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.
4 - A proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20 /prct. do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil.
5 - Se o bem tiver sido dado em garantia de dívida de terceiro ainda não exigível pela qual o insolvente não responda pessoalmente, a alienação pode ter lugar com essa oneração, excepto se tal prejudicar a satisfação de crédito, com garantia prevalecente, já exigível ou relativamente ao qual se verifique aquela responsabilidade pessoal.
6 - À venda de imóvel, ou de fracção de imóvel, em que tenha sido feita, ou esteja em curso de edificação, uma construção urbana, é aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 833.º do Código de Processo Civil, não só quando tenha lugar por negociação particular como quando assuma a forma de venda direta.
Verifica-se da documentação junta pelo Sr. AI a fls. 45 e ss. que os credores hipotecários foram devidamente notificados dos termos da venda. Não foi preterido qualquer direito, não tendo a Caixa... exercido o direito que lhe diz ter sido sonegado, uma vez que não chegou a apresentar qualquer proposta de aquisição, apesar disso. Não foi o credor comum notificado nos termos deste preceito, nem tinha que o ser.
Cabe ao AI determinar a modalidade de venda, e respeitar os comandos ínsitos no art.º 164, o que se verifica.
Assim, indefere-se as requeridas declarações de nulidade/anulabilidade das vendas efectuadas, por falta de respeito das formalidades previstas por lei.
Notifique.
*
Os ora recorrentes arguiram a falta de pronúncia no que respeita ao requerimento apresentado pelos mesmos em 11.01.2018 (Refª/Citius: 31189020), requerendo ao Tribunal prolação de despacho que analise a consequência da falta de notificação aos requerentes (como credores com garantia real) das diligências da venda.
*
Notificado do mencionado requerimento, em 27.01.2019 (Refª/Citius: 31349423) o Sr. Administrador de Insolvência pronunciou-se nos termos seguintes:

C. S., administrador de insolvência supra identificada, na sequência da notificação 161621374 de 17.01.2019 e sobre o bem que garante crédito ao credor H. J. e A. C. pela 2ª hipoteca do imóvel em causa, vem expor o seguinte:
1. O crédito garantido ao credor Caixa... pela 1ª hipoteca do imóvel em causa ascende a € 77.816,34.
2. O crédito garantido ao credor H. J. e A. C. pela 2ª hipoteca do imóvel em causa, ascende a €30.000,00.
3. Apesar de apenas o credor da Caixa..., porque titular do crédito garantido pela 1ª hipoteca, ter sido ouvido quanto à modalidade e preço de venda do imóvel apreendido, opção lógica dado que apenas seria possível acomodar a opinião de 1 credor garantido quanto à modalidade e preço da venda,
4. Nenhuma consequência houve para o credor H. J. e A. C. que, tal como o credor Caixa... e apesar de amplamente esclarecido quanto à adjudicação do imóvel em causa, pelo requerimento datado de 25-07-2018,
5. optou por não reclamar a aquisição do dito imóvel, por si ou por terceiro, por montante superior ao da adjudicação projetada.
6. E a comprovar tal desinteresse,
7. o credor H. J. e A. C. manteve a mesma opção de não reclamar a aquisição do imóvel em causa, por si ou por terceiro, por montante superior ao da adjudicação projetada,
8. na sequência do requerimento datado de 08.08.2018.
9. Assim, não foi pelo facto de não ter sido Inicialmente ouvido quanto à modalidade e ao preço de venda que não exerceu o direito de adquirir, por si ou por terceiro, o imóvel em causa, por preço superior a € 80.000,00, mas sim e apenas porque nunca o pretendeu fazer.
10. Na verdade, o credor H. J. e A. C., já conhecedor de toda a Informação que lhe permitiria apresentar uma oferta de montante superior a E 80.000,00,
11. nunca o fez,
12. preferido continuar a pugnar pelo adiamento do encerramento da liquidação,
13. lançando novas cortinas de fumo sobre esta venda.
(…)”
*
Em 30.01.2019, o Tribunal de 1ª Instância proferiu o seguinte despacho (Refª/Citius: 161801666):

Fls. 89 e ss. – Não se antevê da actividade do Sr. Ai qualquer desrespeito das normas a que está obrigado, na liquidação da massa insolvente. Mas mesmo que se possa discordar da opção por notificar apenas o primeiro dos credores hipotecários, o certo é que nenhum prejuízo adveio para qualquer dos credores, ou da massa. Assim, nada a adiantar ao já decidido.”
*
Inconformados com este despacho, dele interpuseram recurso os credores H. C. e mulher (Refª/Citius: 161801666) e formularam, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«A. Vem o presente recurso interposto do Despacho (REFª: 161801666) proferido pelo Juiz do Tribunal “a quo” que considerou pela inexistência de desrespeito das normas a que está obrigado os Senhor Administrador de Insolvência na liquidação da massa insolvente, pela ausência de prejuízo para qualquer dos credores ou da massa e, bem assim, pela confirmação do decidido em despacho anterior que indeferiu as requeridas nulidades/anulabilidades das vendas efetuadas,
B. Os Recorrentes não se conformam com o conteúdo do supramencionado despacho por entenderem que o mesmo é violador de formalidades essenciais previstas pelo artigo 164º, nºs 2 e 3 do CIRE,
C. A violação de tais formalidades essenciais por serem suscetíveis de influir no resultado da liquidação sempre importaria a nulidade das diligências de venda e, consequentemente, a impossibilidade de outorga das respetivas escrituras publicas, (cf. Artigos 819.º e 195.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 165.º do CIRE),
D. Os ora Recorrentes são, no âmbito do mencionado processo, credores do montante de €30.000,00 garantido por Hipoteca sobre o imóvel descrito na verba 1- denominado de Bouça ...”, sito em ..., Lugar de ..., inscrito na matriz predial rustica sob o artº 790 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 59/...- são, pois, Credores Com Garantia Real.
E. Em 09-07-2018, atenta a falta de conhecimento do estado da liquidação dos presentes autos, apresentaram os ora Recorrentes, Requerimento ao processo (com REFª: 29655691) pedindo que fossem notificados de todas as diligências de venda do imóvel apreendido- Requerimento que foi notificado o Senhor Administrador da Insolvência, tendo-lhe sido concedido o prazo de 10 dias para Informar os Autos do estado em que se encontram as diligências inerentes à liquidação,
F. Nesta senda, veio o Senhor Administrador de Insolência, em 26 de julho de 2018 informar os Autos de que o imóvel garantido por hipoteca, bem como, os demais imóveis, haviam sido adjudicados em 10 de Maio de 2018,
G. Os Recorrentes- credores hipotecários- não foram, antes de 26 de julho de 2018, informados de quaisquer adjudicações,
H. Nunca tendo sido ouvidos sobre a modalidade da alienação e informados do valor base fixado ou do preço da alienação projetada.
L. Não obstante, o Tribunal de 1ª Instância considerou no Despacho Recorrido pela inexistência de desrespeito das normas a que está obrigado os Senhor Administrador de Insolvência na liquidação da massa insolvente, pela ausência de prejuízo para qualquer dos credores ou da massa e, bem assim, pela confirmação do decidido em despacho anterior que indeferiu as requeridas nulidades/anulabilidades das vendas efetuadas.

M. O QUE NUNCA PODERIA TER SUCEDIDO,

N. Na verdade, quando os Recorrentes foram notificados do estado da liquidação- 25- 07-2018- já há muito tempo (em 10 de Maio de 2018) tinha sido realizada a adjudicação do prédio onerado com hipoteca dos credores, bem como, dos demais bens imóveis,
O. O imóvel onerado com hipoteca pelos Recorrentes foi adjudicado sem lhes ter sido dado qualquer conhecimento!
P. Verificou-se in casu a preterição das formalidades previstas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 164.º do CIRE e, consequentemente- o que, sempre deverá te por consequência a nulidade/anulabilidade das diligências de venda- nos termos do artigo 819.º e 195.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 165.º do CIRE.
Q. É dever do Administrador de insolvência informar sobre o valor base fixado ou do preço da venda projetada por entidade determinada, procedimento que, verdadeiramente, tutela o credor que goza de garantia real já que tal notificação lhe permite usar a faculdade que lhe é conferida nos termos do nº3 do art. 164.º do CIRE, ou seja, apresentar proposta de aquisição, se assim o entendesse.
R. A intervenção do credor hipotecário no processo de insolvência destina-se a permitir que aquele possa valer aquela causa de preferência, sendo que a justificação última da intervenção em execução pendente, seja ela singular ou coletiva, dos credores que são titulares de garantias reais sobre os bens apreendidos encontra-se na extinção destas garantias através da venda.
S. A notificação ao credor hipotecário, nos termos do n.º 2 do art. 164.º do CIRE, mesmo que se entenda não ser vinculativa, é fundamental para o exercício do seu direito de apresentar proposta nos termos do n.º 3 do mesmo preceito.
T. Assim, a falta dessa notificação, determina a preterição de formalidades essenciais suscetíveis de influir no resultado da liquidação e importará por isso a nulidade das diligências tendentes à venda, não podendo, pois, haver lugar, após a adjudicação já realizada, porque ilegal, à outorga da escritura pública de venda!
U. Pelo que, deve o despacho Recorrido - que considerou pela inexistência de qualquer desrespeito das normas de liquidação da massa insolvente a que está obrigado Sr Administrador de Insolvência e, consequentemente pela confirmação do já decidido quanto ao indeferimento das requeridas nulidade/anulabilidade das diligências de venda- deve ser revogado, impedindo-se, pois, a outorga das escrituras publicas nos termos daquelas adjudicações.
V. É esta a interpretação que mais se coaduna com o pensamento legislativo e que aliás foi acolhida pelo Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 18-02-2010, proferido no processo 632106.3TJVNF-L.P1, disponível em www.dgsi.pt.
W. E não se diga que o credor com garantia real sobre o bem a alienar está impossibilitado de arguir perante o juiz do processo a nulidade da alienação efectuada pelo administrado de insolvência com violação dos deveres de informação do valor base fixado e o preço da alienação projetadas a entidade determinada- pois tal interpretação sempre se terá por inconstitucional por violar o artigo 20º, nºs 1 e 5 da Constituição- ao não assegurar a tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido. VIDE neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo: 6426/12.0TBSTB-F.E1, Relator: MÁRIO COELHO, de 08-02-2018, votado por UNANIMIDADE e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo: 1182/14.0T2AVR-H.P1, Relator: FONSECA RAMOS, de 04-04- 2017, votado por MAIORIA- Disponíveis em www.dgsi.pt.
Z. Esta é também a orientação seguida pacificamente no âmbito dos Tribunais Administrativos que além do mais, entendem e reputam essencial o conhecimento do credor com garantia real da data da venda, de forma a proteger os seus interesses.
AA. Todo o exposto, o despacho recorrido, porque, violador do disposto nos artigos 164º., 165.º, 161.º, nºs 1, 2, 3, g) e n.º4 do CIRE, o n.º3 do art. 812. do Código de Processo Civil, arts. 195.º, n.º1, 197.º, 199.º todos do Código de Processo Civil ex vi do art. 17.º do CIRE e art. 9º do Código Civil,
BB. E bem assim, do artigo 812.º, nº3 do Código de Processo Civil, norma que é aplicável, também, ao processo de insolvência, tanto mais que este é um processo de execução universal – art. 1.º do CIRE,
CC. Deve ser revogado, substituindo-se por outro que declare a nulidade/anulabilidade das diligências de venda efetuadas pelo Sr. A.I.!

TERMOS EM QUE, revogando-se o despacho recorrido (REFª: 161801666) e substituindo-o por outro que declare a nulidade/anulabilidade das diligências de venda efetuadas,
FARÃO V. EXAS. INTEIRA JUSTIÇA!».
*
Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
*
O recurso não foi admitido pelo Tribunal “a quo” pelos fundamentos constantes do despacho datado de 22-02-2019 (Refª/Citius: 162188183).
*
Deste despacho foi interposta reclamação (contra o indeferimento do recurso) nos termos do disposto no art. 643º do Código de Processo Civil, a qual foi julgada procedente por despacho datado de 6 de maio de 2019, que admitiu o recurso, «a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo (art. 14º, n.º 5 do CIRE)».
*
Posteriormente, foi requisitado o processo principal ao Tribunal “a quo”, nos termos do art. 643º, n.º 6 do Código de Processo Civil.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II. Delimitação do objecto do recurso

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se ocorre nulidade da venda efectuada por administrador de insolvência com preterição de formalidades prescritas no art. 164º, n.ºs 2 e 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
III. Fundamentos

1. Fundamentação de facto

A) As incidências fáctico-processuais a considerar para a decisão da reclamação são as descritas no relatório antecedente (que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidas), a que acrescem os seguintes factos:

a. Os ora recorrentes, H. J. e mulher A. C., são, no âmbito do processo de insolvência, credores do montante de € 30.000,00, garantido por hipoteca sobre o imóvel descrito na verba 1, denominado de “Bouça ...”, sito em ..., Lugar de ..., inscrito na matriz predial rustica sob o artº 790 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 59/... (Refª/Citius: 5533706 e 154615861).
b. O registo da penhora a favor dos ora recorrentes data de 17/04/2014 (Refª/Citius: 5533706).
c. Em 30/01/2015, foi averbada a conversão da penhora em hipoteca sobre o imóvel referido em a).
d. Sobre o referido imóvel incide uma hipoteca voluntária a favor do credor CAIXA..., cujo registo foi efetivado em 22/04/2009 (Refª/Citius: 5533706).
e. O administrador da insolvência decidiu proceder à venda dos imóveis apreendidos na modalidade de propostas em carta fechada.
f. O valor mínimo de venda a anunciar para o imóvel descrito na verba 1 foi de € 77.816,34.
g. Estava agendado para o dia 16/08/2018 a formalização da escritura pública de compra e venda do referido imóvel, tendo o agendamento sido cancelado.
i. Não foi ainda outorgada a escritura pública da compra e venda referente ao imóvel descrito na verba n.º 1.
*
2. Fundamentação de direito

2.1 Das consequências da venda de bens onerados com direitos reais de garantia em desrespeito aos n.ºs 2 e 3 do art. 164º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [(doravante, abreviadamente, designado por CIRE), aprovado pelo Dec. Lei n.º 53/2004, de 18/03].

No caso em apreço, o tribunal recorrido não considerou verificada, por parte da actuação do administrador da insolvência (AI), qualquer desrespeito das normas a que estava obrigado na liquidação da massa insolvente; todavia, mesmo que assim não se entendesse – designadamente por se poder discordar da opção de notificar apenas o primeiro dos credores hipotecários –, concluiu a Mmª Julgadora da 1ª instância que nenhum prejuízo adveio para qualquer dos credores ou da massa insolvente, pelo que julgou inverificada a nulidade prevista no art. 195 n.º 1 do CPC.
Os recorrentes insurgem-se contra o decidido, sustentando, resumidamente, que, na qualidade de credores com garantia real sobre o imóvel descrito na verba 1, beneficiam dos direitos previstos no art. 164° do CIRE, designadamente sempre teriam de ser ouvidos sobre a modalidade da alienação e informados do valor base fixado ou do preço da alienação projetada para, caso o entendessem, apresentar proposta de aquisição, pelo que, tendo havido preterição de tais formalidades, as diligências de venda enfermam de nulidade/anulabilidade, nos termos dos arts. 819.º e 195.º, n.º 1, do CPC, “ex vi” do art. 165.º do CIRE.

Vejamos como decidir.

O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º, n.º 1, do CIRE).
É um processo universal porque será por ele abrangido praticamente todo o património do devedor.
É, ainda, um processo concursal, uma vez que todos os credores são chamados a intervir no processo, de modo a garantir a igualdade de todos aqueles que se encontrem nas mesmas condições, face às classes de créditos que invoquem, em conformidade com a previsão do art. 47º, n.º 4 do CIRE(1).
O processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código (art.º 17º do CIRE).
Como tem sido salientado, o CIRE é norteado pela desjudicialização do processo, ampla autonomia dos credores, reforço dos poderes do administrador, mormente, no que respeita à liquidação do activo do insolvente (2).

No ponto 10) do Preâmbulo do CIRE pode ler-se:

A afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo.
Por toda a parte se reconhece a indispensabilidade da intervenção do juiz no processo concursal, tendo fracassado os intentos de o desjudicializar por completo. Tal indispensabilidade é compatível, todavia, com a redução da intervenção do juiz ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais.
É assim que, por um lado, ao juiz cabe apenas declarar ou não a insolvência, sem que para tal tenha de se pronunciar quanto à recuperabilidade financeira da empresa (como actualmente sucede para efeitos do despacho de prosseguimento da acção).
A desnecessidade de proceder a tal apreciação permite obter ganhos do ponto de vista da celeridade do processo, justificando a previsão de que a declaração de insolvência deva ter lugar, no caso de apresentação à insolvência ou de não oposição do devedor a pedido formulado por terceiro, no próprio dia da distribuição ou nos três dias úteis subsequentes, ou no dia seguinte ao termo do prazo para a oposição, respectivamente.
Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa)”.
Tendo em conta a relevância que assume no processo de insolvência, detenhamo-nos brevemente sobre o papel do administrador da insolvência (3) (sobretudo na fase da liquidação do activo).
Entre outras funções que lhe são cometidas, incumbe ao administrador da insolvência promover a alienação dos bens que constituem a massa insolvente e com o respectivo produto pagar as dívidas do insolvente (art. 55.º, n.º 1, al. a), do CIRE).
O administrador da insolvência exerce a sua actividade sob a fiscalização da comissão de credores, da assembleia de credores e do juiz (arts. 55º, n.º 1, 79º, 80º e 58º do CIRE), sendo civilmente responsável pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem (art. 59º, n.º 1 do CIRE), podendo ser destituído, a todo o tempo, pelo juiz se fundadamente considerar existir justa causa, depois de ouvidos a comissão de credores, o devedor e o próprio administrador da insolvência (art. 56º, n.º 1 do CIRE).
Como se aduziu no Ac. da RG de 31-03-2016 (relator Joaquim Espinheira Baltar), in www.dgsi.pt., “os seus actos, apesar de serem fiscalizados pelo juiz, não se traduzem em actos judiciais, como se praticados pelo tribunal, no desenrolar do processo de insolvência. Na verdade, este órgão da insolvência é a expressão da desjudicialização do processo de insolvência, (…)” (4).

Relativamente às modalidades da alienação rege o disposto no art. 164.º do CIRE, o qual dispõe:

«1 - O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
2 - O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.
3 - Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.
4 - A proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20 /prct. do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil.
(…)».

Como ensinam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (5), decorre do n.º 1 deste artigo, por um lado, que a decisão quanto à escolha da modalidade de alienação dos bens integrantes da massa insolvente “é cometida, em exclusivo, ao administrador da insolvência, segundo o seu critério e tendo em conta o que entenda ser mais conveniente para os interesses dos credores”, advertindo para o “facto de a decisão não ser censurável, através de qualquer tipo de impugnação, perante outros órgãos ou perante o juiz”.
Acrescentam os citados autores que se é verdade impor o n.º 2 do mesmo artigo ao administrador o dever de ouvir (sempre) previamente os credores que tenham garantia real sobre os bens a alienar acerca do meio pelo qual devem ser vendidos, também não é menos verdade resultar da mesma norma que «a pronúncia dos credores notificados não é vinculativa, o que parece excluir relevância processual à eventual violação desse dever, apesar de esta poder comportar responsabilidade para o administrador e de constituir justa causa de destituição».
Donde resulta que, se a irregularidade se traduzir na falta de audição do credor garantido quanto à modalidade da venda, a mesma nunca é suscetível de influir na realização da venda e, consequentemente, nunca gera nulidade.
E, mais adiante, referem os citados autores que “mais importante que o de ouvir o credor com garantia real quanto à modalidade de alienação do bem sobre que incide o seu direito é, no entanto, o dever de o informar previamente sobre o valor base fixado ou, se for o caso, do preço da venda projectada a entidade determinada, que o n.º 2 consagra na sua parte final, em disposição que é inovatória.
Do que fundamentalmente se trata é de criar um procedimento peculiar de tutela do credor assistido de garantia para, em primeira mão, melhor lhe permitir cuidar da satisfação do seu crédito, embora isso se possa traduzir na possibilidade de aquisição do bem onerado, para si próprio ou terceiro”.
Prosseguem: “(…) Ainda assim, na eventualidade de, pura e simplesmente se prescindir de um valor base, essa situação não pode também deixar de ser previamente comunicada ao credor, por maioria de razão relativamente às hipóteses concretamente previstas, permitindo-lhe que ofereça o que entender, como forma de protecção do seu crédito, que é o escopo fundamental visado pela norma..

E considerando a possibilidade de o administrador proceder à venda sem prévia notificação do valor fixado ou projectado ao credor garante, concluem os citados Autores:

Com essa omissão ilícita, o administrador inviabilizou a oferta ao credor.

Cremos que em tal situação, tendo em conta o objectivo da lei, (…), o administrador responderá perante o credor pelo diferencial entre o valor obtido e o total do crédito garantido, sem prejuízo da faculdade de provar que o credor preterido, se devidamente notificado, apresentaria proposta que não permitiria o ressarcimento integral do seu crédito, caso em que então responderá somente até à concorrência da proposta presuntiva”.
Por conseguinte, antes de escolher a modalidade da alienação o administrador da insolvência deve sempre ouvir qualquer credor que tenha garantia real sobre o bem a alienar (6), devendo igualmente facultar-lhe informação quanto à alienação (sobre o valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada) (7). No prazo de uma semana ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido pode propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, sendo que, se o administrador da insolvência não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior (n.º 3 do art. 164º do CIRE).

Particularizando o caso submetido à nossa apreciação, resulta dos autos que:

i) Os recorrentes são, no âmbito do presente processo de insolvência, credores do montante de € 30.000,00, garantido por hipoteca sobre o imóvel descrito na verba 1, denominado de “Bouça ...”, sito em ..., Lugar de ..., inscrito na matriz predial rustica sob o artº 790 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 59/....
ii) Sobre o referido imóvel incide uma hipoteca voluntária (prioritária) a favor do credor Caixa....
iii) O administrador da insolvência decidiu proceder à venda dos imóveis apreendidos na modalidade de propostas em carta fechada.
iv) O valor mínimo de venda a anunciar para o imóvel descrito na verba 1 foi de € 77.816,34.
v) Em 26/07/2018, o administrador da Insolvência informou nos autos que o prédio descrito na verba 1 foi adjudicado, pelo preço de € 80.000,00, a N. F., contribuinte ..., residente na Av. ..., ..., em 10/05/2018.
vi) Antes de 26/07/2018, os recorrentes não foram informados, pelo administrador da Insolvência, das vendas realizadas, nunca tendo sido ouvidos sobre a modalidade da alienação e informados do valor base fixado ou do preço da alienação projetada.

À luz dos factos antecedentes, como é fácil de ver, o administrador da insolvência incumpriu, relativamente aos recorrentes, enquanto credores com garantia real sobre o imóvel a alienar descrito na verba n.º 1, os deveres de prévia audição (sobre a modalidade da alienação) e de informação (do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada) previstos no n.º 2 do art. 164º do CIRE,
A justificação apresentada pelo administrador da insolvência para a preterição de tais formalidades legais – de apenas se impor a audição do credor da Caixa... quanto à modalidade e preço de venda do imóvel apreendido, porque titular do crédito garantido pela 1ª hipoteca, posto que “apenas seria possível acomodar a opinião de um credor garantido quanto à modalidade e preço da venda” – não tem qualquer sustentação quer na letra, quer no espírito da norma em causa.
Como é sabido, o elemento gramatical é o primeiro e principal ponto de partida na interpretação da lei (art. 9º do Cód. Civil).
O intérprete deve presumir que o legislador soube consagrar na lei o seu pensamento e não pode retirar do elemento literal aquilo que lá não consta.
Se o intérprete não pode fazer uma interpretação contrária à letra da lei, também não pode retirar da lei os termos que lá constam.
Do texto legal em causa não resulta minimamente que tenha sido intenção do legislador consagrar a solução restritiva adoptada pelo administrador da insolvência.

Pelo contrário.

O preceito legal diz expressamente “credor com garantia real sobre o bem a alienar”, independentemente de qualquer outra circunstância (quer quanto à ordem da graduação, quer quanto ao montante do crédito garantido).
Se a intenção do legislador fosse restringir o âmbito de aplicação do citado normativo aos credores garantidos de grau superior, não aludiria genericamente a credores com garantia real.
O legislador não distinguiu no articulado da lei o campo de aplicação dos credores garantidos em função do respetivo grau, nem àqueles cujo produto da alienação apenas chegará para satisfazer os respetivos créditos, afastando a sua aplicação aos demais credores com garantia real, pelo que não cabe ao intérprete distinguir aquilo que o legislador não distinguiu.
Além de que não encontramos fundamento para restringir o âmbito de aplicação da norma, posto que as preocupações que o legislador pretendeu acautelar com o art. 164º, n.º 2 do CIRE têm relevância em relação a todos os credores com garantia real, independentemente da sua natureza, do seu grau ou prevalência (8).

Assim, fazendo a lei menção ao “credor com garantia real sobre o bem a alienar”, deve entender-se que (todo e) qualquer credor garantido (9) deve ser previamente ouvido relativamente à modalidade da alienação, do bem onerado, bem como deve ser-lhe fornecida informação quanto à alienação do bem (do valor base fixado ou do preço da alienação projectada).

O mesmo é dizer que, não fazendo a lei qualquer distinção entre os credores que beneficiem de garantia real sobre o bem a alienar, estava vedado ao administrador da insolvência fazer uma interpretação restritiva daquela norma, de modo a delimitar o seu âmbito ao credor garantido de grau superior.
Concluindo-se, pois, no caso em apreço que o administrador da insolvência não observou as formalidades legais na condução da alienação do imóvel descrito sob a verba n.º 1, na medida em que incumpriu, relativamente aos recorrentes, os deveres de audição quanto à modalidade venda e de informação quanto à alienação daquele bem, é altura de determinar as consequências decorrentes dessa ilicitude/irregularidade.
Na jurisprudência e na doutrina são conhecidas posições interpretativas divergentes sobre a matéria em apreço.
i) Uma delas, que se tem como maioritária, sustenta que a ilicitude decorrente daquelas omissões, em si, não afecta a validade ou eficácia da venda efectuada, havendo apenas uma responsabilidade do administrador da insolvência perante os credores recorrentes, no sentido de lhes garantir a diferença entre o valor porque foi alienado o bem e o valor do seu crédito garantido (10). A violação daquele normativo apenas constitui (ou pode constituir) causa de destituição e de responsabilidade civil perante o credor garantido que não foi ouvido sobre a modalidade da venda e/ou que não foi informado sobre o valor base fixado ou o preço da alienação projectada.
ii) Outra corrente jurisprudencial, no pressuposto da primeira, recusou a aplicação da norma contida nos “arts. 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE”, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar uma tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido (11).

Chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade dessa interpretação, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 616/2018, de 21/11/2108, processo n.º 251/2018 (relator Teles Pereira), disponível in www.dgsi.pt., decidiu:

- “julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma contida nos artigos 163.º e 164.º, n.ºs 2 e 3, do CIRE, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada”.
iii) Uma outra posição minoritária tem defendido que a inobservância do n.º 2 do art. 164º do CIRE pode consubstanciar uma nulidade processual que acarreta a anulação da venda.
Foi essa a posição sufragada no Ac. da RP de 18/02/2010 (relator José Manuel Carvalho Ferraz), disponível in www.dgsi.pt., no qual se concluiu que no processo de insolvência, “antes da venda, o credor com garantia real deve ser ouvido sobre a modalidade da venda e informado do valor base dos bens para venda.
Tendo-se procedido à venda judicial por propostas em carta fechada, não tendo havido prévia audição e notificação do valor base para venda dos bens, omite-se formalidade legal com relevância a decisão, pelo que se comete nulidade a determinar a anulação do acto da venda” (12).
Na senda da recente posição assumida pelo Tribunal Constitucional e tendo presente a via interpretativa que admite a verificação da nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres pressupostos no n.º 2 do art. 164.º do CIRE, correspondendo essa precisamente à delimitação do objeto do recurso – posto que os recorrentes propugnam pela verificação de nulidade processual, com a consequente anulação da venda –, vejamos se poderemos concluir nesse sentido.
Como é sabido, as nulidades processuais “são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa dos actos processuais” (13), na medida em que os actos processuais são actos instrumentais que se inserem na complexa unidade de um processo, de tal sorte que cada acto é, em certo sentido, condicionado pelo precedente e condicionante do subsequente, repercutindo-se mais ou menos acentuadamente no acto terminal do processo, pondo em risco a justiça da decisão (14).

Porém, como refere Alberto dos Reis (15), há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades“, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos.

As nulidades principais (tipificadas ou nominadas) estão previstas, taxativamente, nos arts. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e, por sua vez, as irregularidades (nulidades secundárias, atípicas ou inominadas) estão incluídas na previsão geral do art. 195º do CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º do mesmo diploma, a saber: - se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar, isto é, até ao termo desse acto; - se a parte não estiver presente ou representada, o prazo (de 10 dias – art. 149º, n.º 1 do CPC) para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte intervier em algum ato praticado no processo ou for notificada para qualquer termo dele, mas, neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
Atento o disposto no art. 195º e segs. do CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Tais irregularidades só determinam a nulidade do processado quando a lei assim o declare ou quando o vício cometido possa influir no exame ou na decisão da causa (ou seja, estando em causa atos de natureza executiva, quando se repercutam na realização da penhoram, venda ou pagamento) (16).
Por referência ao caso submetido à nossa apreciação não oferece dúvidas que quer a falta de audição prévia do credor garantido, quer a falta de comunicação do valor base fixado ou do preço projetado traduzem a omissão de um ato processual expressamente prescrito pela lei (art. 164º, n.º 2 do CIRE).

Acresce que, qualquer uma dessas omissões pode, em abstrato, influir no resultado do processo para o credor garantido, na medida em que a falta de audição prévia sobre a modalidade da venda impede o referido credor de sugerir uma modalidade alternativa que, na sua ótica, teria permitido alcançar um resultado mais vantajoso na alienação do bem, além de que a falta de comunicação do valor base fixado ou do preço projetado impedem o credor garantido de apresentar uma proposta de adjudicação do bem ou uma proposta de aquisição do mesmo, por si ou por terceiro, nos termos do art. 164º, n.º 3 do CIRE (17).
Todavia, a verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo, sim, de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada era suscetível de influir na decisão da causa (leia-se na venda ou no resultado da liquidação).
No caso sub júdice, a fim de estabelecerem a ligação (e a relevância) que a omissão das formalidades (impostas por lei) teve na decisão da causa, referem os recorrentes que, por força da atuação do administrador da insolvência – que não os ouviu previamente sobre a modalidade da alienação, nem os informou do valor base fixado ou do preço da alienação projetada, omissões estas comprovadas, como já vimos – ficaram impossibilitados, caso o entendessem, de propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, bem como de poderem exercer legitimamente o seu direito de preferência sobre o imóvel em causa.
Com o devido respeito por opinião contrária, não secundamos a explicitada argumentação.
Isto porque, sem embargo do reconhecimento da efectiva preterição das apontadas formalidades legais, certo é que, aquando da comunicação aos autos pelo administrador da insolvência do estado da liquidação, em 26 de julho de 2018, na qual informou o resultado das vendas dos bens, não havia sido ainda realizada a escritura pública referente à venda do imóvel sobre o qual os recorrentes gozam de garantia real.
Ou seja, se efetivamente os recorrentes, enquanto credores garantidos, tinham o propósito de propor a aquisição do aludido imóvel, por si ou por terceiro, por preço superior ao oferecido pelo proponente N. F. (€ 80.000,00), bastaria que na sequência dessa notificação – e, relembre-se que a lei fala “no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil” (n.º 3 do art. 164º do CIRE) –, tivessem exteriorizado essa declaração de vontade a fim de vincularem o administrador da insolvência a tomar posição expressa quanto a essa pretensão (18), com os efeitos estabelecidos no citado normativo, posto que, na hipótese de rejeitar essa proposta, ficaria aquele obrigado a colocar os credores na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso optasse por preferir a manutenção da proposta por preço inferior.
Embora o administrador da insolvência faça menção que a adjudicação do imóvel em causa teve lugar em 10 de maio de 2018, afigura-se-nos que o termo utlizado não se mostra rigoroso no seu sentido técnico-jurídico, pois a escritura de venda do imóvel ainda não foi formalizada e não consta dos autos ter sido já emitido o competente título de transmissão (19).
Tal reconduz-nos à questão de saber em que momento se efectiva ou conclui a venda em processo de insolvência, isto é, quando se considera realizada essa venda e produzidos os seus efeitos.
Ter-se-á a venda como concluída e efectiva logo que é aceite a proposta, será apenas quando se encontra efectuado o pagamento integral do preço e das obrigações fiscais inerentes à transmissão ou será apenas quando ocorre a adjudicação através da emissão do respectivo título?

Nesta sede, e recorrendo às regras vigentes para a venda executiva, referem Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo (20), que «sendo a venda constituída por um conjunto encadeado de actos, um verdadeiro acto complexo de formação sucessiva (composto por actos preparatórios, como a avaliação dos bens penhorados, a publicitação da venda, o acesso aos bens penhorados por parte dos interessados na venda, entre outros; actos de transmissão propriamente ditos, como a abertura de propostas, a deliberação sobre as propostas apresentadas e aceitação da proposta vencedora; e, finalmente, actos […] de conclusão do procedimento em que a venda se traduz, como, por exemplo, o cumprimento de obrigações tributárias a que a transmissão dá lugar, emissão do título de transmissão e cancelamento dos registos dos direitos que caducam com a venda executiva), parece-nos defensável a solução de que a mesma só ocorre definitivamente quando se dá a emissão do título de transmissão» (21).

Donde se conclui que, à data em que os credores reclamantes tiveram conhecimento do preço proposto pelo proponente N. F. com vista à aquisição do imóvel sobre o qual aqueles tinham uma garantia real, inexistia qualquer entrave para os recorrentes, caso o entendessem, apresentarem proposta de aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da aludida alienação, bem como para poderem exercer o seu direito de preferência sobre o imóvel em causa (nos termos do n.º 3 do art. 164º do CIRE).
Mas mesmo que se concluísse (como defendido pelos recorrentes) que, na referida data, o aludido imóvel onerado com hipoteca já havia sido efetivamente adjudicado ao proponente N. F. ou – ponderando outra via – que não lhes era exigível, ao arguirem a nulidade, a apresentação de proposta de aquisição do bem, por si ou por terceiro, superior à proposta efetivamente aceite pelo administrador da insolvência, ainda assim julgamos que, no caso em apreço, inexistiria fundamento para concluir pela verificação da apontada nulidade processual.
Em 1º lugar (22), a falta de audição dos credores garantidos quanto à modalidade da venda não seria suscetível de influir na realização da venda, dados os amplos poderes que nesse domínio estão atribuídos ao administrador da insolvência, a quem, compete, em exclusivo, essa escolha, nos termos já anteriormente explicitados.
Em 2º lugar, relativamente à irregularidade consistente na falta de comunicação aos credores garantidos do valor base fixado ou do preço de alienação a entidade determinada, entendemos que aqueles não lograram demonstrar, em termos plausíveis, que, se tivessem sido notificados atempadamente, teriam (ativamente) procurado interessados na aquisição do bem por valor superior ao preço efetivamente obtido ou teriam eles mesmo apresentado proposta de aquisição do imóvel por valor superior ao preço obtido na venda realizada pelo administrador da insolvência.
Em 3º lugar, porque existindo pluralidade de credores com garantia real sobre o imóvel onerado com hipoteca, para a procedência da nulidade seria indispensável que os credores reclamantes lograssem demonstrar, em termos plausíveis, que, se o administrador da insolvência tivesse observado as formalidades previstas no n.º 2 do art. 164º do CIRE, os credores teriam atuado de tal forma que recuperariam pelo menos uma parte do seu crédito.

Termos em que se conclui que a violação, por parte do administrador da insolvência, dos aludidos deveres procedimentais de audição e de informação previstos no n.º 2 do art. 164º do CIRE não consubstancia nulidade processual, nem afecta a validade e a eficácia da alienação, além de que os recorrentes, credores garantidos, não viram preterida a faculdade enunciada no n.º 3 do citado normativo.
*
Por último, defendem os recorrentes que o preço pelo qual o prédio onerado com hipoteca foi adjudicado é manifestamente inferior ao seu valor real/mercado, o que por si contraria frontalmente os termos do n.º 3 do art. 812.º do CPC, norma que é também aplicável ao processo de insolvência, pelo que também com este fundamento a venda não deixaria de ser nula.
Em primeiro lugar, não se evidencia minimamente dos autos que o imóvel onerado com hipoteca tenha sido alienado por um preço manifestamente inferior ao seu valor real/mercado,
Em segundo lugar, a ter-se verificada essa hipótese, por violação do disposto no art. 812º, n.º 3, al. b) do CPC, e a comprovar-se que os recorrentes sofreram prejuízos com a conduta do administrador da insolvência, como já anteriormente se explicitou recorrendo ao ensinamento de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, poderá o administrador vir a ser civilmente responsabilizado pelas consequências da sua actuação ilícita (art. 59º do CIRE), incorrendo na obrigação de indemnizar os danos resultantes para os credores, mas tal atuação não determina a nulidade da venda.
Dá-se, assim, por inverificada a arguida nulidade, improcedendo este fundamento da apelação.
*
A decisão recorrida merece, assim, confirmação, improcedendo as conclusões dos apelantes.
*
As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade dos recorrentes, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I - No tocante às consequências da venda de bens onerados com direitos reais de garantia em violação ao disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 164º do CIRE perfilam-se, na jurisprudência e na doutrina, três vias interpretativas:
i) - Como posição maioritária, a que sustenta que a ilicitude decorrente daquelas omissões, em si, não afecta a validade ou eficácia da venda efectuada, apenas constituindo (ou podendo constituir) causa de destituição e de responsabilidade civil do administrador da insolvência perante o credor garantido que não foi ouvido sobre a modalidade da venda e/ou que não foi informado sobre o valor base fixado ou o preço da alienação projectada.
ii) - Outra corrente jurisprudencial, no pressuposto da primeira, recusa a aplicação da norma contida nos “arts. 163.º e 164.º, n.º 3, do CIRE”, na interpretação segundo a qual o credor com garantia real sobre o bem a alienar não tem a faculdade de arguir, perante o juiz do processo, a nulidade da alienação efetuada pelo administrador com violação dos deveres de informação do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, ao não assegurar uma tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido.
iii) Uma outra posição minoritária tem defendido que a inobservância do n.º 2 do art. 164º do CIRE pode consubstanciar uma nulidade processual suscetível de acarretar a anulação da venda.
II - A verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada é suscetível de influir na decisão da causa (leia-se na venda ou no resultado da liquidação).
III - Relativamente à irregularidade consistente na falta de comunicação aos credores garantidos do valor base fixado ou do preço de alienação a entidade determinada, não demonstrando os credores garantidos, em termos plausíveis, que, se tivessem sido notificados atempadamente, teriam (ativamente) procurado interessados na aquisição do bem por valor superior ao preço efetivamente obtido ou teriam eles mesmo apresentado proposta de aquisição do imóvel por valor superior ao preço obtido na venda realizada, deve ter-se por inverificada a invocada nulidade processual.
*
IV. DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo dos apelantes (art. 527º do CPC).
*
Guimarães, 13 de junho de 2019

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)


1. Cfr., neste sentido, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2017, 2ª ed, Almedina, p. 41, e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2016, 6ª edição, p. 14.
2. Cfr., Ac. do STJ de 4/04/2017 (relator Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt.
3. Que é o primeiro dos órgãos da insolvência que surge mencionado no Capítulo II do Título III do CIRE (arts. 52º e ss..
4. Cfr., no mesmo sentido, Ac. da RP de 25/10/2016 (relator Fernando Samões), in www.dgsi.pt.
5. Cfr., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão, 3ª ed., Quid Iuris, Lisboa, 2015, pp. 616/619.
6. Segundo o art. 47º, n.º 4, al. a) do CIRE: «Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são: a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes». Os créditos garantidos são apenas aqueles que beneficiam de uma garantia real sobre o seu cumprimento quanto a determinados bens, considerando-se como tal também os privilégios creditórios especiais (cfr. art. 47.º, n.º 4, al. a) do CIRE). Abrangem assim, além destes, a consignação de rendimentos (art. 656º e ss. do CC), o penhor (art. 666º e ss. do CC), a hipoteca (art. 686º e ss. do CC) e o direito de retenção (art. 754º e ss. do CC).
7. Cfr., Alexandre de Soveral Martins, obra citada, p. 334.
8. Cfr., em sentido similar, David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa, in “A proteção dos credores garantidos e o regime do artigo 164º, n.º 2, do CIRE”, in Revista de Direito da Insolvência, 2018º, n.º 2, pp. 9/38, que defendem que o normativo em apreço se aplica a todos os credores com garantia real sobre a coisa a alienar, incluindo, portanto, os credores hipotecário, mas também os titulares de outras garantias reiais, sendo que, quando existam vários credores garantidos, mas de grau diferente, deverão todos eles ser auscultados e notificados.
9. Ressalve-se, no entanto, que os únicos credores com garantia real que têm de ser ouvidos, nos termos e para os fins do n.º 2 do art. 164º do CIRE, são aqueles cujos créditos tenham sido reclamados e/ou reconhecidos nos autos de insolvência. cfr., neste sentido, Pedro Ortins de Bettencout, Da liquidação em processo de insolvência: uma perspetiva prática, in Revista julgar, n.º 31, janeiro-abril/2017, p. 102.
10. Cfr. Acs. da RG de 28-07-2008 (relatora Rosa Tching), de 31-03-2016 (relator Joaquim Espinheira Baltar) e de 17/12/2018 (relatora Ana Cristina Duarte), Acs. da RP de 09.06.2015 (relator Vieira e Cunha), de 25.10.2016 (relator Fernando Samões), de 23/01/2017 (relator Cura Mariano) e de 30/01/2017 (relator Manuel Fernandes), Ac. da RE de 08.09.2016 (relator Silva Rato) e Ac. da RC de 16.01.2018 (relator Arlindo Oliveira), todos publicados in www.dgsi.pt.; na doutrina, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pp. 616/619 e Pedro Ortins de Bettencout, Estudo citado, p. 102
11. Cfr. Ac. do STJ de 4/04/2017 (relator Fonseca Ramos) e Ac. da RE de 8/02/2018 (relator Mário Branco Coelho), disponíveis in www.dgsi.pt.
12. Esta posição foi subscrita, na doutrina, por Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, Almedina, p. 465; no mesmo sentido, David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa, estudo citado, pp. 9/38,
13. Cfr. Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1993, p. 176.
14. Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, p. 103.
15. Cfr. Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, 1945, p. 357.
16. Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, 2017, p. 401.
17. Cfr., David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa, estudo citado, pp. 9/38. 18. Essa proposta, nos termos do n.º 4 do art. 164º do CIRE, só seria eficaz se fosse acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20 /prct. do montante da proposta, sendo aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil.
19. Conforme informação prestada nos autos pelo administrador da insolvência, em 10/05/2018 o proponente do imóvel havia apenas liquidado o valor de 17.000,00, pago com cheque caução emitido em 27/03/2018.
20. Cfr. A acção Executiva anotada e comentada, Almedina, 2015, p. 539.
21. Cfr., no mesmo sentido, quanto à venda executiva, Ac. da RG de 15.03.2016 (relator Jorge Seabra), in www.dgsi.pt.
22. Seguiremos na exposição a argumentação aduzida por David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa, in estudo citado, pp. 9/38.