Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3496/18.0T8VCT.G1
Relator: RAQUEL BATISTA TAVARES
Descritores: SANEADOR-SENTENÇA
AUDIÊNCIA PRÉVIA
NÃO CONVOCAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O regime regra previsto no artigo 591º do Código de Processo Civil é o da convocação da audiência prévia.

II- Sempre que o juiz pretenda, após a fase dos articulados, conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve convocar a audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito, assegurando dessa forma o respeito pelo próprio princípio do contraditório (cfr. artigo 3º n.º 3 do Código de Processo Civil) e evitando uma decisão-surpresa.

III- A preterição pelo juiz de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório, gera para além de nulidade processual, a nulidade do próprio saneador-sentença.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

S. S. instaurou a presente acção de processo comum contra M. C. pedindo que, na sua procedência, se condene o Réu a pagar a quantia referente ao valor integral pago pelo prédio melhor descrito no artigo 18º da petição inicial de €90.980,00 ou, em alternativa, caso não proceda, que pague o montante correspondente ao valor que recebeu pelos serviços prestados.
Alegou para tanto e em síntese que celebrou com o Réu um contrato de mediação imobiliária, na sequência do qual o Réu lhe angariou uma fracção que a Autora acabou por adquirir.
Que só passados anos após a aquisição teve conhecimento de que a referida fracção, à data da sua aquisição estava onerada com uma hipoteca e uma penhora, factos que lhe foram dolosamente ocultados e omitidos pelo Réu. Só quando consultou um advogado é que teve noção das implicações da existência de tais ónus previamente à sua aquisição.
Mais alega que actualmente é iminente o risco de perder o apartamento a qualquer momento, tudo se devendo ao facto de o Réu ter enganado dolosamente a Autora considerando que estão preenchidos os pressupostos necessários para que se verifique responsabilidade do Réu, nomeadamente que houve uma atuação ilícita, pela expressa e dolosa omissão do dever de informação, de forma evidentemente culposa; que provocou um dano, correspondente à totalidade dos valores pagos ao agente imobiliário para celebrar aquele negócio, que se cifram no montante de noventa mil novecentos e oitenta euros, melhores descritos nos artigos 24. e 25. da petição inicial; havendo um nexo causal entre os factos descritos e os danos causados.
O Réu veio contestar invocando as excepções da prescrição e da ilegitimidade passiva, e por fim impugnando a versão dos factos alegados pela Autora.
A Autora exerceu o seu contraditório relativamente às excepções invocadas.
Foi proferido despacho dispensando a realização da audiência prévia nos termos do disposto no artigo 593º n.º 1 do Código de Processo Civil, por se mostrarem discutidas as excepções entre as partes, e despacho saneador que julgou improcedente a excepção da ilegitimidade passiva e que, considerando que o estado do processo o permitia, que as questões a apreciar revestem carácter iminentemente jurídico e que os autos contem os necessários elementos de facto, sem necessidade de produção de prova, decidiu passar de imediato à apreciação do mérito da acção nos termos do artigo 595º n.º 1 alínea b).

Veio a ser proferido saneador-sentença com a prolação de decisão nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“1. Pelo exposto, o Tribunal decide julgar improcedente a presente acção, absolvendo-se o Réu dos pedidos formulados.
2. Custas da acção a cargo da Autora.
3. Registe e notifique.”

Inconformada, apelou a Autora concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“CONCLUSÕES

- Com o presente recurso visam, os Recorrentes, questionar a apreciação da prova feita do que resultará ser posta em crise a douta decisão respeitante à Autora, ora Recorrente;
- A presente ação sendo de valor superior a metade da alçada da Relação, deveria ter a Meritíssima Juíza, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, convocado audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito, o que manifestamente não foi feito, dado ter sido adiada pelos motivos supra expostos;
- Ao não ter sido feito, constitui nulidade, impugnável agora, pela A. ora recorrente, por meio do presente recurso, implicando assim a revogação da decisão que dispensou a convocação da audiência prévia e a consequente anulação do saneador-sentença proferido, com os devidos e legais efeitos;
- Além do mais, toda a matéria de facto assenta num mero documento, que, como exaustivamente vimos, não deve exclusivamente apenas e por si merecer o entendimento colhido pelo Tribunal a quo, devendo sim ser dada como oportunidade de se realizar em sede de julgamento a prova de tudo o que foi alegado conforme o que demais acima já expusemos;
- É entendimento do A. apelante recorrente, que a sentença viola o preceituado nos artigos 607.º e da alínea d) do artigo 615.° ambos do Código de Processo Civil (CPC) e os artigos art. 3.º, n.º 3; art.º 6.º n.º 1, 456.º; 572.º; 574.º, 595.º e 607.º do CPC e ainda dos artigos 562.º e 563.º e ss. do Código Civil (CC) violando-os e outros que doutamente saberão suprir, devido ao erro de julgamento (errar in judicando), por distorção da realidade factual (error facti) na aplicação do direito (error juris) já que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa e por falta de pronúncia quanto a elementos de prova e a sua adequação ao caso que nem sequer tiveram oportunidade de se discutir em sede de audiência prévia e muito menos de julgamento.
- Houve assim igualmente manifesto erro de julgamento na matéria de facto por incorreta interpretação da lei e indevida aplicação dela aos factos provados.
- Face ao exposto deve a douta sentença ser substituída por outra que possibilite discutir em condições de garantir a prossecução do direito do contraditório dando como procedentes a totalidade dos pedidos da Recorrentes ad quem.
- O recurso de apelação está em tempo. Assim se fazendo JUSTIÇA!”

O Réu contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:

1 – Saber se a decisão recorrida é nula por não ter sido convocada a audiência prévia com o fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito;
2 – Saber se os autos contêm matéria de facto controvertida o que impossibilita o conhecimento imediato do mérito da causa;
3 – Saber se houve erro na aplicação do direito.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:

1.1. A Autora contratou com o Réu no mês de Maio de 2010 no sentido deste encontrar um apartamento de tipologia T2, novo, ou recente, localizado no centro urbano de Arcos de Valdevez, com vista à sua aquisição, nomeadamente mediante a celebração de um contrato de compra e venda.
1.2. Após o contacto inicial, o R. diligenciou na angariação do apartamento pretendido pela A., levando a cabo todos os esforços com vista a vender o imóvel à A. satisfazendo assim as pretensões desta, culminando na realização da escritura pública respectiva.
1.3. O R. encontrou um apartamento com as exactas condições que eram requeridas desde início e assim satisfez as pretensões da A.
1.4. Em meados de Junho de 2010, o R. contactou a A., para dar conhecimento de que tinha à sua disposição um apartamento com as caraterísticas que pretendia e que portanto seria útil inspecionar o referido prédio.
1.5. Marcada e efectuada a vistoria ao apartamento, rapidamente a A. ficou satisfeita, já que estava inteiramente de acordo com as suas pretensões.
1.6. Marcou-se então data para celebração de escritura pública de compra e venda do prédio descrito como fração autónoma designada pelas letras “AK”, no bloco cinco – Rua …, n.º …, segundo andar direito, para habitação, com garagem no rés do chão, identificada no solo com a mesma letra, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito em Quinta …, lugar de …, Rua …, na freguesia de ..., concelho de Arcos de Valdevez, descrito na Conservatório da Registo Predial de … sob o número …/200205 (… barra dois zero zero dois zero cinco) da freguesia de ..., inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo …, com o valor patrimonial de €88.760,00 euros, tal como consta de título de registo de propriedade - cfr. doc. n.º 1 e doc. n.º 2 juntos com a p.i..
1.7. Tendo tal acto de escritura pública ocorrido no Cartório Notarial de …, sito na rua …, com a Notária Dra. M. M., no dia 17 de Junho de 2010, cfr. doc. n.º 3 junto com a p.i.;
1.8. Foi nesse mesmo ato declarado o pagamento, na íntegra, do valor de € 88.760,00 (oitenta e oito mil setecentos e sessenta euros).
1.9. Tal já havia sido pago por transferência bancária em dois movimentos: o primeiro respeitante ao preço de € 62.000,00 (sessenta e dois mil euros), feito da conta da mãe da Autora, a senhora M. T., para a conta bancária de M. C., cfr. doc. n.º 4 junto com a p.i.; um segundo, igualmente por transferência bancária, por indicação expressa do R., no valor de € 28980,00 (vinte e oito mil novecentos e oitenta euros), da conta do pai da Autora, o senhor M. L., para a conta da então mulher do R., a senhora H. C., por indicação expressa do R., cfr. doc. n.º 5 junto com a p.i., o que perfaz a quantia de € 90980,00 (noventa mil novecentos e oitenta euros); em contrapartida entregue o apartamento à A..
1.10. Consta da respectiva escritura que os primeiros outorgantes, na qualidade de sócios e gerentes e em representação da sociedade “J. G., SA”, declararam que, pela presente escritura, em nome da sociedade sua repsentada vendem a S. S., pelo preço já recebido de noventa mil euros o bem imóvel supra descrito.
1.11. Mais tendo declarado que: “… sobre a referida fracção autónoma, se encontram inscritas naquela Conservatória hipoteca voluntária a favor do “Banco ... – Banco …, SA”, conforme apresentação dois, de cinco de Dezembro de dois mil e três e uma Penhora, em que é exequente a sociedade “X – Tectos e Divisórias do …, Lda.”
1.12. Mais declararam nessa escritura os referidos primeiros outorgantes “Que o pagamento do encargo da hipoteca acima mencionada, bem como o pagamento da quantia exequenda da referida penhora é da inteira responsabilidade da sociedade vendedora.”
1.13. Na referida escritura a ora Autora, na qualidade de Segunda Outorgante, declarou:
“Que aceita a presente venda nos termos exarados e destina a fracção autónoma ora adquirida a sua habitação própria permanente.”
1.14. Pela Sra. Notária na referida escritura foi declarado: “Que este acto é inoponível ao em relação ao exequente acima referido, nos termos do artigo 819º do Código Civil.”
1.15. Mais tendo declarado que: “Esta escritura foi lida aos outorgantes e feita a explicação do seu conteúdo, em voz alta.”
1.16. Passados uns anos, a A. é citada no processo executivo n.º578/13.9TBAVV
1.17. Consequentemente, está neste momento a A. notificada para se pronunciar acerca da modalidade de venda do apartamento, já que se frustraram as primeiras tentativas pelos métodos anteriormente utilizados, cfr. doc. n.º 7 junto com a p.i..
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

2.1. Só quando a A. foi citada no processo executivo n.º578/13.9TBAVV e nesse momento teve, pela primeira vez, noção acerca de existência de uma hipoteca, bem como de uma penhora, que recaíam sobre o referido prédio que tinha comprado.
2.2. Só decorrido um ano desta primeira citação, a A., após ter consultado advogado que lhe explicou e esclareceu sobre o que se estava a passar (nomeadamente que havia sido celebrada uma escritura pública de compra e venda do referido prédio; porém, tinha sido feito com o ónus de uma hipoteca, bem como de uma penhora que havia sido anteriormente registada pelo vendedor do apartamento a favor do banco..., S.A.; bem como de penhora a favor de X, Lda., e que, apesar de constar que aqueles ónus eram por conta do vendedor, nunca se havia feito o respetivo distrate dos mesmos), só neste momento é que entendeu que havia sido enganada;
2.3. A A., acompanhada pelo R. no acto da escritura, que mais uma vez disse que estava tudo bem, limitou-se a assinar a escritura, confiando cegamente que tudo estaria conforme todas as exigências legais exigíveis, nomeadamente que estava livre de qualquer ónus ou encargos, por que o R. assim lhe tinha dito.
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3.2. Da nulidade da decisão recorrida por não ter sido convocada a audiência prévia com o fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito

A primeira questão colocada pela Recorrente é a da nulidade da decisão recorrida por não ter sido convocada a audiência prévia com o fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito.

O tribunal a quo proferiu efectivamente o seguinte despacho:

“Discutidas as excepções entre as partes, decide-se dispensar a audiência prévia – cf. artigo 593º, nº1 CPC”.

De seguida, conheceu da exceção de ilegitimidade passiva suscitada pelo Réu, que julgou improcedente, e conheceu do mérito da acção nos termos do artigo 595º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil.
Sustenta a Recorrente que sendo a presente ação de valor superior a metade da alçada da Relação o tribunal a quo não o poderia fazer, devendo ter convocado a audiência prévia a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito, o que constitui nulidade, impugnável por meio do presente recurso, implicando a revogação da decisão que dispensou a convocação da audiência prévia e a consequente anulação do saneador-sentença proferido.
A primeira questão que importa analisar traduz-se então em saber se o tribunal a quo podia ter dispensado a realização da audiência prévia e conhecer do mérito da causa em sede de saneador-sentença.

Dispõe o n.º 1 do artigo 591º do Código de Processo Civil que concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo 590º, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:

a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594º;
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595º;
e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547º;
f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas.

O n.º 2 deste preceito dispõe ainda que o despacho que marque a audiência prévia deve indicar o seu objecto e finalidade (não constituindo contudo caso julgado sobre a possibilidade de apreciação mediata do mérito da causa.

Por sua vez, prevê o n.º 1 do artigo 592º as situações em que a audiência prévia não se realiza:

a) Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º;
b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.

Prevê ainda o n.º 1 do artigo 593º a possibilidade de o juiz poder dispensar a realização da audiência prévia nas ações que hajam de prosseguir quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591º.
Da conjugação do disposto nestes preceitos resulta, em nosso entender, que nos casos em que o juiz pretenda conhecer imediatamente do mérito da causa deverá determinar a realização da audiência prévia, devendo aliás indicar ser essa a finalidade da mesma no despacho que a marcar, não estando prevista nessa hipótese a possibilidade da sua dispensa.
Por isso, se o juiz tenciona conhecer no despacho saneador do mérito da ação, deve convocar a audiência prévia a fim de facultar às partes a discussão de facto e de direito, assegurando dessa forma o respeito pelo próprio princípio do contraditório (cfr. artigo 3º n.º 3 do Código de Processo Civil), evitando uma decisão-surpresa.
E ainda que se conceda admitir a possibilidade do juiz, fazendo uso do mecanismo de gestão processual (cfr. artigos 6º e 547º do Código de Processo Civil) designadamente quando entender que se mostra inútil a sua realização por as questões se encontrarem já suficientemente debatidas, a dispensar, mesmo assim deverá previamente consultar as partes para esse fim de modo a garantir “não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também a derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa” (v. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código Processo Civil, 2013, vol. I, 494).
Entendemos, por isso, que a realização da audiência prévia, tal como consagrada pelo nosso legislador, nas acções declarativas comuns de valor superior a metade da alçada da Relação é a regra, sendo-o seguramente quando juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.

Aliás, da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII consta exactamente que “Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. (…) A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados”.

Deverá entender-se ser “de toda a conveniência que o juiz não decida, no todo ou em parte, aspectos materiais do litigio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham oportunidade de produzir alegações orais acerca do mérito da causa (…) está em jogo o respeito pelo principio do contraditório, garantindo às partes pronuncia sobre questões que o juiz decidirá na fase intermédia do processo, de modo a evitar decisões-surpresa” (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, anotação ao artigo 591, página 687).

Conforme afirma Miguel Teixeira de Sousa (Jurisprudência 250, https://blogippc.blogspot.pt, comentário ao acórdão da Relação do Porto de 12/11/2015, processo n.º 4507/13.1TBMTS-A.P1) “a audiência prévia não podia ser dispensada, simplesmente porque a sua realização é obrigatória sempre que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador (art. 591.º, n.º 1, al. b), e 593.º, n.º 1 a contrario, CPC); dado que, na única audiência prévia que foi realizada no processo, não chegou a efectuar-se nenhuma discussão de facto e de direito, porque nela as partes pediram a suspensão da instância com vista a obterem uma conciliação, o juiz não podia conhecer do mérito no despacho saneador sem antes convocar as partes para uma segunda audiência prévia”.

Julgamos ser esta posição (necessidade de convocação de audiência prévia quando se pretenda conhecer de imediato do mérito da causa) a que vem sendo assumida pela generalidade da doutrina (v. ainda Rui Pinto, Código de Processo Civil, Volume II, 2018, página 111; Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. I, 2ª edição, página 473; Jorge Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 13ª edição, página 278; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3ª edição, páginas 641 e 650; Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, 230 a 232).
E é também a orientação da jurisprudência dos nossos tribunais (v. entre outros os acórdãos desta Relação de Guimarães 01/03/2018, relatora Desembargadora Eugénia Marinho da Cunha e de 17/01/2019, relator Desembargador José Cravo; do Tribunal da Relação do Porto de 24/09/2015, no processo 128/14.0T8PVZ.P1, 27/09/2017, relator Desembargador Aristides Rodrigues de Almeida e de 12/09/2019, relatora Desembargadora Judite Pires; do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/05/2015 no processo 1386/13.2TBALQ.L1-7, 19/10/2017, no processo 155421-14.5YIPRT.L1-8, de 08/02/2018, no processo 3054/17.7T8LSB-A.L1-6, de 30/05/2019, no processo 4952/17.3T8LSB.L1-8, e de 11/07/2019, no processo 5774/17.7T8FNC-A.L1-6; do Tribunal da Relação de Évora de 30/06/2016, no processo 309/15.9T8PTG-A.E1 e do Supremo Tribunal de Justiça de 23/06/2016, no processo 1937/15.8T8BCL.S1 e de 17/03/2016, no processo 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Ora, no caso dos autos, o tribunal a quo, sem antes consultar as partes, consignou apenas que “Discutidas as excepções entre as partes, decide-se dispensar a audiência prévia – cf. artigo 593º n.º 1 CPC”.

Acresce referir que em 10/01/2019 o tribunal proferira já despacho a convocar a audiência prévia “com os fins enumerados nas alíneas a), b), c), d), e), f) e g), do nº 1, do artigo 591º do Código de Processo Civil”; no entanto, no dia designado para a sua realização a mesma veio a ser dada sem efeito em face da questão suscitada quanto ao mandato do mandatário do réu, sendo que após constituição de novo mandatário pelo Réu (em 19/09/2019) foi de imediato dispensada a audiência prévia não obstante da ata da audiência prévia constar que seria designada data para a mesma “após a concretização do desenvolvimento processual que resultar da notificação ao Ilustre mandatário do réu”.

De todo modo, e conforme já referimos, nos casos em que o juiz pretenda conhecer imediatamente do mérito da causa não pode dispensar a realização da audiência prévia; mas, ainda que se considerasse que o poderia fazer por força do mecanismo de gestão processual, mesmo assim não o poderia fazer sem previamente ouvir as partes para esse fim de modo a garantir o contraditório sobre a gestão do processo, bem como permitindo às partes uma derradeira oportunidade para discutirem o mérito da causa, possibilitando-lhes alegarem por escrito o que iriam alegar oralmente na audiência se esta tivesse lugar, o que não ocorreu no caso concreto.
Não resta, por isso, senão concluir que o tribunal a quo ao não convocar novamente a audiência prévia quando tencionava conhecer imediatamente do mérito cometeu uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa e se converte numa nulidade processual (artigo 195º do Código de Processo Civil); nos casos em que a realização da audiência prévia é obrigatória “decorre da sua dispensa uma nulidade” (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, anotação ao artigo 591, página 685).
Tem sido, contudo, objecto de controvérsia, se essa nulidade deve ser arguida nos termos gerais ou se gera a nulidade do próprio saneador-sentença.
Se é certo que a verificação de alguma nulidade processual deve ser objecto de arguição, entendemos que tal solução, ajustada à generalidade das nulidades processuais, “revela-se, contudo, inadequada quando nos confrontamos com situações em que é o próprio juiz que, ao proferir a decisão (in casu, o despacho saneador), omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório. Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/06/2016, no processo 1937/15.8T8BCL.S1, relator Conselheiro Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt).
É também esta a posição de Teixeira de Sousa (comentário ao Acórdão da Relação do Porto de 12/11/2015) que considera que “o que é nulo não é apenas o processo, mas o saneador-sentença que se pronunciou sobre uma questão de que, sem a audição prévia das partes, não podia conhecer (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC); a nulidade do processo só se verifica atendendo ao conteúdo do despacho saneador (ou seja, é o conteúdo deste despacho que revela a nulidade processual) e o despacho não seria nulo se tivesse outro conteúdo, isto é, se não tivesse conhecido do mérito da causa (o que mostra que a nulidade não tem apenas a ver com a omissão de um acto, mas também com o conteúdo do despacho)”.
A prolação de uma decisão-surpresa é um vício que afecta essa mesma decisão e respeita ao seu conteúdo e nestes casos a interposição de recurso é o mecanismo apropriado para a sua impugnação (e não a arguição de nulidade no prazo de 10 dias; neste sentido, v. também Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, página 25 onde afirma que sempre que o juiz omita uma formalidade imposta por lei o meio de reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso, referindo a omissão do respeito pelo principio do contraditório).

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, sendo de anular a decisão recorrida, ficando prejudicado, para já, o conhecimento das restantes questões suscitadas pela Recorrente.
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SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil)

I - O regime regra previsto no artigo 591º do Código de Processo Civil é o da convocação da audiência prévia.
II - Sempre que o juiz pretenda, após a fase dos articulados, conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve convocar a audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito, assegurando dessa forma o respeito pelo próprio princípio do contraditório (cfr. artigo 3º n.º 3 do Código de Processo Civil) e evitando uma decisão-surpresa.
III - A preterição pelo juiz de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório, gera para além de nulidade processual, a nulidade do próprio saneador-sentença.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a presente apelação procedente e, consequentemente, em anular o saneador-sentença devendo no tribunal a quo ser designada data para realização da audiência prévia.
Custas pelo Recorrido.
Guimarães, 13 de fevereiro de 2020
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Margarida Sousa (2ª Adjunta)