Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6148/19.0T8VNF.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: SERVIDÃO PREDIAL
AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO
DECISÃO SEGUNDO A EQUIDADE
EXTINÇÃO POR NÃO USO
USUCAPIO LIBERTATIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - De acordo com a noção constante do art. 1543º, do CC, servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.
II - O encargo recai sobre um prédio e aproveita exclusivamente a outro prédio no sentido de que só são admitidas servidões em relação a prédios, não reconhecendo a lei, atualmente, servidões pessoais. Embora a utilidade ou o benefício reverta a favor de um determinado sujeito, ele só pode fazer-se valer dessa utilidade por intermediação do prédio, em razão da titularidade desse outro direito de gozo sobre o prédio dominante.
III - Relativamente à forma de aquisição, face ao disposto nos arts. 1293º, al. a) e 1548º, nº 1, ambos do CC, as servidões prediais não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião.
Consideram-se não aparentes, as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (art. 1548º, nº 2, do CC).
IV - Na tarefa de aferição da existência de sinais visíveis e aparentes da servidão há que levar em conta o concreto tipo de utilidade que integra o conteúdo dessa servidão.
V - As descritas caraterísticas da parcela, onde existe um trilho com marcas de rodado, que nunca foi cultivado, tendo parte do piso em alcatrão e parte em terra batida, parcela que é ladeada por paredes em granito e pedra constituem sinais visíveis e permanentes da existência de um caminho perfeitamente demarcado. Sendo por esse caminho que se processa, desde há mais de 50 anos, o acesso dos autores e antecessores ao seu prédio, o que ocorre de forma pública e pacífica, considera-se que se trata de sinais visíveis e permanentes, e não de atos clandestinos, ocultos ou de posse equívoca, sinais esses que são reveladores de uma servidão aparente, nada impedindo a sua constituição por usucapião posto que, no caso, se verificam os demais requisitos da aquisição por usucapião referidos nos arts. 1251º, 1252º, 1254º, 1287º e 1296º, do CC.
VI - Tratando-se, no caso, de servidão constituída por usucapião, a servidão terá o conteúdo definido pela posse que conduziu à aquisição do direito correspondente.
VII - O “julgamento segundo a equidade confere ao tribunal a possibilidade de dar uma resolução ao litígio fundada em critérios de justiça, ao invés de recorrer às normas legais aplicáveis” e só pode ter lugar quando se verifique alguma das situações enunciadas no art. 4º, do CC.
VIII – No art. 20º, da CRP não se estabelece que o tribunal pode decidir segundo a equidade, sendo que a menção a “processo equitativo” que é feita no nº 4 não pode ser interpretada como disposição legal que permita que o tribunal julgue segundo a equidade para efeitos de integrar a previsão do art. 4º, al. a), do CC, sendo antes uma imposição de que exista um processo justo, no qual as partes se encontrem numa posição paritária ou de igualdade, por forma a poderem fazer valer os seus direitos sem constrangimentos, devendo as suas pretensões ser apreciadas de forma objetiva e por uma entidade imparcial e equidistante.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA e BB intentaram contra HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE CC e DD, representada pelos herdeiros EE, FF e GG, a presente ação declarativa sob a forma de processo comum pedindo que:

a) seja reconhecido que os autores são os proprietários de forma plena e exclusiva do prédio urbano, identificado nos artigos 1.º e 2.º da petição inicial;
b) sejam os Réus condenados a reconhecer esse direito dos Autores;
c) seja declarado que o prédio urbano dos autores sito na Rua ..., da freguesia ... e inscrito na matriz urbana sob o n.º ...98, beneficia para sua serventia de passagem, e apresenta-se, por isso, como prédio dominante de um direito de passagem, a pé e de carro, constituído por usucapião, com as características, forma, dimensão e extensão assinaladas nos artigos 19.º e 20.º da petição inicial;
d) seja reconhecida aos autores a titularidade de um direito de servidão de passagem sobre o caminho melhor identificado nos artigos ...8.º, 19.º, 20.º, 21.º e 22.º da petição inicial, adquirido através do instituto da usucapião;
e) sejam os réus condenados a reconhecer o direito atrás referido e, consequentemente,
f) sejam os réus condenados a absterem-se de praticar quaisquer atos que limitem ou impeçam o exercício do direito real de gozo referido na alínea anterior.

Como fundamento dos seus pedidos alegam, em síntese, que são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano, sito no Lugar ..., na freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o nº ...98, por o terem adquirido por escritura de compra e venda outorgada em 2.12.1980 e por usucapião, sendo os réus, por seu turno, donos e legítimos possuidores de um prédio misto, sito no mesmo Lugar ..., na dita freguesia ..., composto de uma parte urbana constituída de casa de habitação, inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...92 e de uma parte rústica, constituída de quintal e inscrito na matriz respetiva sob o nº ...33.
No prédio dos réus existe um caminho em terra batida, que é o único acesso ao prédio dos autores, de e para a via pública, pelo qual os autores e antecessores sempre acederam, há mais de 50 anos de forma pública, pacífica, ininterrupta e de boa fé, na presença de todos e com a convicção plena e segura de que exerciam um direito próprio, existindo sinais visíveis e indeléveis, traduzidos na permanência, no tempo, de um trilho, em chão duro, por nunca ter sido cultivado, bem como na existência de abertura entre ambos, nunca existindo qualquer portão.
Sucede que, há cerca de um ano, os réus, contra a vontade dos autores, utilizam esse caminho para aparcar carros, tendo sempre um carro ou mais do que um a impedir a entrada de acesso ao prédio dos autores, que estão esbulhados da posse e direito que vinham mantendo, já que não podem passar com um veículo para a seu prédio.
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Os réus contestaram, impugnando parcialmente os factos alegados pelos autores e invocando a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré “herança” e alegando que, a existir qualquer direito de servidão, sempre o mesmo estaria extinto, quer por não uso, quer por usucapio libertatis.
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Os autores requereram a intervenção principal de HH, II, JJ, KK, LL, CC, MM, NN, GG, OO e PP, como associados dos réus.
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Por despacho de 19.3.2020 (ref. Citius ...25) foi admitida a requerida intervenção principal, não tendo os intervenientes, após citação, apresentado contestação.
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Em 24.8.2021 foi proferido despacho (ref. Citius ...14) que fixou à causa o valor de € 8 001,00, dispensou a realização da audiência prévia, absolveu da instância as heranças abertas por óbito de CC e de DD e, dada a simplicidade da causa, dispensou a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas de prova.
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Realizou-se a audiência final e, após, foi proferida sentença que julgou improcedente a ação e, em consequência, absolveu os réus do pedido.
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Os autores não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1) A sentença recorrida deve ser revogada e proferida outra que julgue a acção totalmente procedente, porque o Tribunal a quo fez uma incorrecta e errada apreciação da prova produzida , dando como não provada matéria que deveria ser dada como provada, bem como, também , não interpretou correctamente a matéria de direito aplicável ao caso concreto, fazendo uma errada aplicação do direito.
Se o Tribunal a quo tivesse apreciado e julgado corrtamente a matéria de facto e de direito teria, necessáriamente que decidir a ação totamente procedente o que se pugna neste recurso
2) O Tribunal a quo deu ( mal) como não provado o facto ( com relevância e interesse para o objecto e decisão deste recurso) o artigos 22º : artigo 22º da Petição Inicial :“ O prédio dos AA. tem como único acesso ( de e para a via pública) esse caminho”.
3) Os Recorrentes entendem que o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos elencados, entendendo que a análise da prova existente nos autos ( a prova documental), a prova por inspecção ao local e a prova produzida em sede de audiência e julgamento e as declaraçoes de parte, impunham uma decisão diversa quanto àqueles factos dados como não provados , devendo, por isso, ser reapreciados.
4) Quanto ao facto 22º da Petição Inicial dado como não provado , o Tribunal a quo julgou como não provados, o Tribunal a quo julgou mal, pois apreciou de uma forma errada a prova produzida .
5) Porque a prova testemunhal apresentada pelos Autores cujo os depoimentos de QQ e CC ( se encontram gravados em ficheiro 20220518141107_5739469_2870593.wma e 20220518143812_5739469_2870593.wma respectivamente) e mais concretamente das passagem supra transcritas ( 00:05:36 a 00:05:45 e 00:02:38 a 00:02:57) e ainda as declarações de parte de BB cujo o depoimento (gravado no ficheiro áudio 20220518161110_5739469_2870593.wma ( 00:01:49 a 00:02:19 e ainda 00:04:31 a 00:05:19) ,
6) Depoimentos de testemunhas indicadas pelos Autores de QQ e CC e as declarações de BB, foram precisas, directas, claros e conhecedoras de como era feito o acesso ao prédio dos Autores e com conhecimento do caso em concreto, e que por isso deveria, face aos depoimentos supra transcritos, ser dado como facto provado.
7) Pelo que e da análise da prova testemunhal supra transcrita e como parece claro e cristalino, o Tribunal a quo nunca poderia ter julgado como não provado tal facto, como erradamente fez, antes impunha-se ao tribunal a quo julgasse como provado o artigo 22º da petição inicial “O prédio dos AA. tem como único acesso ( de e para a via pública) esse caminho:” - o que deverá ser feito por via deste recurso.
8) Quanto ao facto 23º da Petição Inicial na parte em que diz ..., o Tribunal a quo julgou como não provado , mais uma vez, muito mal andou o Tribunal a quo.
9) Desde logo, porque o tribunal não tomou em consideração o depoimento das testemunhas QQ, gravado no ficheiro áudio 20220518141107_5739469_2870593.wma que nas passagens transcritas ao minuto 00:02:55 a 00:03:03e 00:05:02 a 00:6:44.
10) Também a testemunha CC indicada pelo Autores, no depoimento (gravado no ficheiro áudio 20220518143812_5739469_2870593.wma conforme resulta das passagens supra transcritas aos minutos 00:03:24 a 00:03:30, ao minuto 00:03:24 a 00:03:26 e 00:04:07 a 00:04:33 e 00:05:58 a 00:06:20.
11) Ainda a testemunhas RR indicada pelos Autores, no depoimento gravado no ficheiro áudio 20220518144832_5739469_2870593.wma, conforme resulta da passagens supra transcritas ao minuto 00:02:48 a 00:03:26.
12) Conforme se constata dos depoimentos das supra transcritos das indicadas testemunhas, QQ, CC e RR fizeram depoimentos, claros, objectivos e credíveis, conhecedores do local, de como era feito a passagem para o prédio dos Autores, quer a pé quer de veículo automóvel. Foram depoimentos claros, ojectivos e reveladores de terem conhecimento direto dos fatos, reportando ao Tribunal a quo a forma ou modo como era o acesso ao prédio dos recorrentes de e para a via pública.
13) Pelo que, se conclui que tal facto( do Artigo 23º da Petição Inicial dado como não provado ) deve ser dado como provado, face à prova produzida supra e como é evidente e atenta a transcrição dos depoimentos das testemunhas, devendo tal facto fazer parte integrante do factos provados o que deverá ser feita por via deste recurso.
14) Quanto ao facto 24º da Petição Inicial – na parte em que diz “ e o seu único acesso de e para a via pública é através dessse caminho.”, o Tribunal a quo julgou tal facto como não provado nessa parte, e mais uma vez o tribunal a quo julgou mal, pois apreciou de forma errada a prova produzida.
15) Desde logo, pelos depoimentos das testemunhas: QQ, depoimento gravado no ficheiro áudio 20220518141107_5739469_2870593.wma ao minuto 00:06:41 a 00:06:44 ; de CC , gravado no ficheiro áudio 20220518143812_5739469_2870593.wma ao minuto 00:03:59 a 00:04:13, de RR gravado no ficheiro áudio 20220518144832_3739469_2870593.wma ao minuto 00:04:03 a 00:04:28, e de SS gravado no ficheiro áudio 20220518150354_5739469_2870593.wma ao minuto 00:03:12 a 00:03:25 ao minuto 00:03:55 a 00:04:14 e ainda ao minuto 00:06:56 a 00:07:22, nas passagens supra transcritas, e que foram depoimentos claros, objectivos, credíveis todos revelando um profundo conhecimento dos factos em discussão, e sabiam como se fazia o acesso ao prédio dos Autores conforme exaustivamente se alegou neste recurso ( Cfr. Resulta das supra transcrições referidas nestas alegações e que por economia porcessual se dão como integralmente por reproduzidas para todos os efeitos legais ) , conhecedores e sabiam como era o acesso ao prédio dos Autores .
16) Por tudo isto, a parte do artigo 24º da Petição Inicial deve ser dada como provada e fazer parte intregante dos factos provados e que deverá ser feita por via deste recurso.
17) Quanto ao facto 27º da petição inicial dos factos não provados “ Sendo certo que, os donos do onerado prédio, respeitavam e reconheciam que sobre aquele prédio, existia caminho de passagem, em proveito próprio dos AA.” , e mais uma vez o Tribunal a quo, fez uma interpretação errada da prova, nomeadamente da prova testemunhal produzida em audiência e ainda das declarações de parte da Autora .
18) Pelo depoimento da testemunha QQ, depoimento gravado em ficheiro áudio 20220518141107_5739469_2870593.wma ao minuto 00:08:42 a 00:09:20, e na passagem supra transcrita, em que o seu depoimento foi claro, obejectivo e mereceu credibilidade ao tribunal, e por isso dado que o Mº Juiz a quo na apreciação da prova testemunhal referiu que a testemunha tinha uma percepção directa, da passagem de pessoas e veículos para o prédio dos Autores.
19) Do Depoimento supra transcrito resulta claro e inequívoco que ficou mais do que provado o artigo 27º da Petição Inicial, e que por isso deverá constar dos factos provados ou seja ser provado que “ Sendo certo que os donos do onerado proédio, respeitavam e reconheciam que, sobre o prédio, existia caminho de passagem, em proveito próprio do prédio dos AA.” - o que deverá ser por via deste recurso.
20) Quanto ao facto 28º da Petição inicial , na parte em que que diz “ com a convicção plena e segura, de que exerciam um direito próprio “.
21) O Tribunal a quo deu como não provado o artigo 28º da petição Inicial, mas fez uma avaliação errada, não valorizando o depoimento das declarações de parte de BB . Mas fê-lo mal .
As declarações de parte de BB, gravadas em ficheiro áudio 20220518161110_5739469_2870593.wma ao minuto 00:02:44 a 00:03:44 e na passagem supra transcrita, são claras e evidentes quanto ao modo e acesso ao seu prédio e que esse acesso não existisse , nem teria comprado . Depoimento claro , objectivo e lúcido e credível e perfeitamente esclarecedor.
22) Tal facto dado como não provado- artigo 28º da Petição inicial – deve ser dado como provado . Está mais do que provado pela transcrição supra das declarações de BB que e é fácil de concluir que se esse acesso não existisse , nem teria comprado o prédio.
23) Quanto ao facto 39º da Petição Inicial - “ Os RR. pretendem com isso impedir o acesso dos AA. à passagem de veículos, tornando-a inutilizavel, de e para o prédio dos AA.”
24) Tal facto 39º da Petição Inicial dado como não provado, mais uma vez o Mº Juiz a quo , esteve muito mal , fazendo uma interpretação errada da prova, mais propriamente da prova testemunhal e que por isso não poderia acontecer, dado os depoimentos das testemunhas que foram directas quanto ao impedimento por parte dos RR., descrevendo ao Tribunal a actuação dos RR. , dado que foi presenciado pelas testemunhas , como se revelam nos seus depoimentos.
25) Depoimentos esses das testemunhas: QQ gravado no ficheiro áudio 20220518141107_5739469_2870593.wma ao minuto 00:09:39 a 00:13:02 e RR gravado no ficheiro áudio 20220518144832_5739469_2870593.wma ao minuto 00:04:41 a 00:05:05 , cuja as supra passagens supra transcritas, são claras quanto à atitude dos RR. de impedirem a passagem de veículos e que também foi constado aquando da inspecção ao local pelo Mº Juiz a quo, que também faz referência na sentença.
26) Pelo que, ficou provado o artigo 39º da Petição inicial face ao depoimento das testemunhas e da inspeção ao local e que por isso tal facto deveria ser dado como provado – o que se pugna neste recurso.
27) Quanto ao facto 41º da Petição inicial - “Para além do comportamento supra descrito, os RR permanecem em vigilância e ameaças, ainda, com uso da força física, sobre os AA. ou sobre quem em nome destes, pretenda passar, ali, a fim de visitar as pessoas que vivem no prédio dos AA., cuja passagem, sempre e só pode ser feita através desse caminho”.
28) Tal facto deve ser dado como provado, e constar dos factos provados , uma vez mais o Tribunal a quo esteve mal, fazendo uma interpretação errada a prova, nomeadamente a prova testemunhal como consta dos depoimentos das testemunhas QQ gravado em ficheiro áudio 20220518141107_5739469_2870593.wma ao minuto 00:09:38 e de RR depoimento gravado no ficheiro áudio 20220518144832_5739469_2870593.wma ao minuto 00:04:41 a 00:05:15, e ainda as declarações de parte de BB gravado no ficheiro áudio 20220518161110_5739469_2870593.wma ao minuto 00:03:57 a 00:03:58.
29) Dado que as transcrições supra dos seus depoimentos das testemunhas são claros, objectivos, directos, descrevendo a forma de actuação dos Réus de impedirem a passagem para o prédio dos Autores, nunca tal facto deveria ser dado como não provado e sim como facto provado – o que se pugna neste recurso.
30) Na prova por inspeção ao local, permitiu que o Tribuanal a quo de uma forma mais concreta, direta e mais promenorizada fazer uma observação das caracteristicas da parcela de terreno aqui em causa e que ficou provado que se estende pelo comprimento de 20 metros até chegar à parcela de terreno que as partes reconhecem ser dos Autores e que daí para diante existe uma faixa de terreno que se estende de Norte para Sul e que desemboca no logradouro de uma casa de 2 andares , conforme ata de audiência de julgamento junto aos autos.
31) Pelo exposto e reforça-se quer a prova produzida pelo depoimentos das testemunhas , das declarações de parte e das suas transcrições supra , da prova documental existente nos autos, da inspecção ao local, tais factos dados como não provados – artigos 22º, 23º, 24º, 25º, 27º, 28º, 39º e 41º da Petição inicial devem os mesmos ser considerados como provados e constar os mesmos dos factos provados , porque dúvidas não existem quanto à prova dos mesmos ou seja ficaram mais do que provados.
32) Nos presentes autos a questão de direito que se coloca é a do direito dos Autores ver reconhecido em benefício do seu prédio, se encontra constituída uma servidão de passagem, por usucapião.
33) Os Autores invocam a constituição de uma servidão de passagem por via da ususcapião.
34) Estabelece o artigo 1547º , nº 1 do Código Civil que “ As servidões prediais podem ser constitutídas por..., usucapião...”
35) Ora, para ser adquirida por usucapião é necessário que se verifique a posse de ano e dia , conforme para a aquisição do direito de propriedade.
36) Mas para constituição de servidões prediais por usucapião temos também de ter em consideração o artigo 1548º do Código Civil no seu nº 2 “ Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelem por sinais visíveis e permanentes “ .
37) Pelo que, para que uma servidão seja aparente e possa ser adquirir por usucapião tem necessáriamente existir sinais visíveis reveladores da servidão e que seja inequívocos, visíveis e permanentes.
38) Tais requisitos de servidão de passagem por usucapião estão preenchidos , no caso dos presente autos . Dúvidas não existem de que os Autores tinham acesso ao seu prédio pelo prédio dos Réus .
39) Pelo que, o argumento dado pelo Mº Juiz a quo de que a existência de um qualquer portão ou uma abertura num qualquer muro de vedação é que poderia ser um sinal revelador da relação de serventia.
40) Na lei não fala em portão ou abertura, mas sim de sinais visíveis e permanentes quer no prédio serviente quer no prédio dominante.
41) Os sinais permanentes a que se refere o artigo 1548º, nº 2 do Código Civil têm de ocorrer continuamente, sem hiatos” , Acordão da Relação do Porto, de 20-3-1990 no BMJ, 395º-761.
42) Acordão da Relação do Porto , 30-04-1992: no BMJ , nº 416º-715 “ IUma passagem que se revele num prédio ao longo de 48 metros por 3 de largura , apresenta sinais visíveis e permanentes, permitindo a constituição duma servidão por usucapião. II- Quem suceder na posse do anterior possuidor só pode juntar à sua posse a do antepossuidor no caso de terem a mesma natureza.”
43) Acordão do Trib. Da Relação do Porto 393/16.8T8AVR.P1 em que refere que : IV – Para que uma servidão de passagem possa ser adqurida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente, etc. Porém, o requisito da permanência não exige a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras. Indispensável é apenas a permanência de sinais.”
44) Acordão da Relação de Coimbra nº 3884/182T8PBL.C1, em que refere que :
IV – As servidões aparentes postulam a existência de sinais visíveis e permanentes.
V- A visibilidade dos sinais respeita à sua sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpertáveis como tais, pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles e a permanência consiste na manutenção dos sinais como a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções …, por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estavel e duradoura e, ao mesmo tempo de afastar a hipótese de se tratar de situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituidos por outros.”
45) Também o Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra nº 30/15.8T8SAT.C1, em que refere em:” II- Para que uma servidão predial, designadamente de passagem, possa ser adquirida por usucapião, não basta a existência de uma situação possessória que reúna os requisitos necessários a essa forma de aquisição de direitos reais, é também necessário que durante o tempo da posse existam no prédio em causa sinais exteriores que permitam aos interessados, designadamente aos titulares do prédio serviente, constatar que o seu prédio está realmente afectado por um encargo em proveito de outro prédio, não se registando uma situação de simples cortesia.
III- Uma servidão de passagem pode ser revelada por sinais exteriores que não tem que ser necessariamente o traçado do caminho por onde se passa, podendo integrar esses sinais outros elementos, como a existência de um portão ou de uma “entrada” que sinalize, com evidência, uma passagem do prédio dominante para o prédio serviente.
IV- Para esse efeito, tal portão ou entrada terão que se situar na linha divisória que separa o prédio serviente do dominante, destinando-se a assegurar uma comunicação entre os dois prédios.”
46) Também o Acordão do Supremo Tribunal de Justiça nº 797/17.9T8OLH.E1.S1, em que refere:” I- Pratica actos de posse, susceptíveis de conduzir à aquisição do direito de passagem, quem utiliza uma faixa de terreno, delimitada no solo através de sinais visíveis e permanentes, desde há mais de vinte anos, continuada, pública e pacificamente, na convicção de exercer um direito próprio e de não lesar direito de outrém.”
47) No caso dos autos, tudo quanto ficou exaustivamente exposto, quer pela prova testemunhal, quer pela prova documental junto aos autos, da inspecção ao local , dúvida não existe de que estamos perante um direito de servidão de passagem por usucapião .
48) Face à prova produzida os factos dados como não provados: artigo 22º , 23º 24º 25º 27º, 28º, 39º e 41º todos da petição inicial , estão incorretamente julgados, devendo tais factos ser considerados como provados, e ser incluidos nos factos provados.
49) Endendemos que, em face à prova produzida, a acção deve ser julgada provada e procedente.
50) A douta sentença recorrida viola ou interpreta de forma errada o principio da livre apreciação da prova , nos termos do nº 1 do artigo 605º do CPC, e viola ainda o nº 2 do artigo 1548º do Código Civil.”

Terminam pedindo a revogação da sentença recorrida e que seja proferido acórdão que julgue a ação totalmente procedente.
*
Os réus contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:
(…)
*
O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
Ao abrigo do disposto no art. 665º, nº 3, do CPC, foi concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a extinção da servidão, quer por não uso quer por usucapio libertatis, matéria que não foi objeto de apreciação no tribunal a quo por ter ficado prejudicada.
*
Os recorridos pronunciaram-se considerando que, caso se entenda que existe uma servidão de passagem, a mesma deve ser declarada extinta por não uso e por usucapio libertatis visto que, desde 1998, são os réus que usam o imóvel e os autores não o usam há mais de 20 anos.
*
Os recorrentes pronunciaram-se considerando que, à luz dos factos provados, não se pode concluir que ocorreu a extinção da servidão de passagem pelo que pugnam pela respetiva improcedência.

OBJETO DO RECURSO

(…)
Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I – saber se a matéria de facto deve ser alterada;
II – saber se a ação deve ser julgada procedente, na totalidade, designadamente por se encontrarem preenchidos os pressupostos legais relativos à existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião;
III – concluindo-se pela existência de servidão de passagem, constituída por usucapião, saber se essa servidão se encontra extinta por não uso ou por aquisição, por usucapião, da liberdade do prédio (matéria invocada na contestação, mas que não foi apreciada na sentença recorrida por ter ficado prejudicada pela decisão de inexistência de servidão de passagem).

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

1- Os Autores têm inscrita em seu nome no registo predial a aquisição da propriedade do prédio urbano, sito no Lugar ..., na freguesia ... (...), Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...98 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...37.
2- Por escritura pública outorgada em 2 de Dezembro de 1980, na Secretaria Notarial ..., na qual foram primeiros outorgantes TT e UU e foi segundo outorgante VV, na qualidade de procurador de AA, pelos primeiros foi dito vender ao constituinte do segundo, que declarou aceitar para o seu representado, pelo preço de quinhentos mil escudos, o prédio urbano referido em 1.
3- Desde há mais de 20, 30, 50 e mais anos, que os Autores, por si e antecessores, estão em poder do prédio referido em 1, ininterruptamente e com exclusão de outrem.
4- Com a convicção de não prejudicar ou lesar o direito ou interesse de outrem.
5- Por si e antecessores, nesse prédio, cuidam da sua conservação, nele fazendo obras e pagando as contribuições e impostos a ele inerentes.
6- Os Autores e antecessores sempre praticaram estes actos com a convicção de que aquele prédio lhes pertencia.
7- E sempre assim agiram aos olhos de toda a gente.
8- Sem a oposição de ninguém e aceitação de todos, nomeadamente dos Réus.
9- E sem qualquer interrupção de tempo, ou seja, de forma temporalmente contínua.
10- E sem intromissão de outrém no gozo pleno desse prédio.
11- Os Autores e antecessores sempre agiram em relação ao prédio identificado em 1 com a intenção deliberada e a convicção absoluta de que eram os donos, proprietários, desse prédio.
12- Encontra-se inscrito em nome de “DD _ Cabeça de Casal da Herança de”, na matriz predial urbana da freguesia ... (...), sob o art.º ...92, um prédio urbano sito no lugar ..., composto por casa de habitação de ... e andar, com nove divisões.
13- Encontra-se inscrito em nome de “DD _ Cabeça de Casal da Herança de”, na matriz predial rústica da freguesia ... (...), sob o art.º ...33, um prédio rústico, sito no lugar ..., composto por quintal e ramada, com a área de 0,051000ha, a confrontar do Norte com Dr. WW, do Sul com caminho, do Nascente com Dr. WW e do Poente com AA.
14- A Norte do prédio referido em 1 existe uma parcela de terreno com cerca de 2,40m de largura no seu lado Norte, com cerca de 8,20m de largura no seu lado Sul e com cerca de 20m de largura nos seus lados Poente e Nascente.
15- A parcela de terreno referida em 14 confronta a Norte e Nascente com caminho público, denominado Rua ....
16- E tem uma parte do seu piso, situada a Norte e com uma extensão de 1,60m, em alcatrão, e a restante parte, situada a Sul, em terra batida.
17- A parcela de terreno referida em 14 tem, em parte, uma ramada, com esteios e bancas de pedra, com videiras.
18- E que é, em parte, sustentada por paredes em granito, que atingem a altura máxima de cerca de dois metros, na confrontação com a dita Rua ....
19- Na parte oposta à dita Rua ..., a parcela referida em 14 é marginada por outra parede, em pedra.
20- Há mais de cinquenta anos e até há cerca de cinco anos atrás, os Autores e seus antecessores passavam pela parcela de terreno referida em 14 para aceder ao prédio referido em 1.
21- Por escrito particular em que foi primeiro outorgante XX e foram segundos outorgantes YY e ZZ, por estes foi declarado o seguinte:
“que são legítimos possuidores de um prédio urbano, composto de casas de habitação torres e terras de uma outra só térrea e junto terreno de quintal, todo o prédio sito no lugar ..., da freguesia ..., desta comarca, descrito na conservatória sob o número quarenta e quatro mil e oitenta e um e inscrito na matriz urbana no artigo quarenta; que deste prédio prometem vender ao primeiro contractante, aquela casa torre e térrea e um pedaço de terreno contíguo de quintal, pedaço delimitado ao sul pela face posterior da casa térrea e por um socalco, ficando todo o terreno abrangido por esta promessa de venda em nível superior ao do restante terreno do mesmo prédio, representando a parede daquele socalco o suporte da terra respectiva. Que a presente promessa abrange ainda o direito á serventia de transito pelo caminho particular, já existente e que dá acesso do caminho público ao referido prédio e que os promitentes vendedores e comprador ficam a possuir em comum e partes iguais, utilizando-o este para serventia de passagem para a parte do prédio aqui transacionado e aqueles para a parte restante que ficam a possuir. Mais convencionam que da ramada sobrejacente a este caminho particular, os segundos contractantes prometem vender ao primeiro a metade contígua á parte do prédio que este adquire no sentido do comprimento daquela, mas apenas desde a cancela até à parede divisória da casa torre e térrea e da contígua só térrea”.
22- O prédio referido em 1 confronta a Norte com a parcela de terreno referida em 14 e a Nascente com o caminho público denominado Rua ..., situando-se a uma cota pelo menos 2m superior a este.
23- Os Autores os seus antecessores passavam nos termos referidos 20 na presença de todos.
24- Na parcela referida em 14 existe um trilho com marcas de rodados no piso de terra batida, que nunca foi cultivado.
25- Na parte em que o prédio referido em 1 e a parcela referida em 14 confinam entre si, os terrenos encontram-se à mesma cota, sem qualquer obstáculo que impeça a passagem.
26- Nunca existindo qualquer portão.
27- Nunca os falecidos CC e DD e antecessores exerceram qualquer oposição.
28- Nunca criaram qualquer entrave à utilização da parcela de terreno referida em 14 para entrar e sair do prédio dos Autores,
29- Há cerca de cinco anos que os Réus, contra a vontade dos Autores, utilizam a parcela de terreno referida em 14 para aparcar carros.
30- Tendo sempre um carro ou mais do que um, a impedir o acesso de carro ao prédio referido em 1, pela parcela de terreno referida em 14.
31- Só os retirando quando os Autores lhes pedem, discutindo com os mesmos, dizendo que aquela parcela de terreno lhes pertence e que os Autores não têm que por ali passar.
32- Em consequência da descrita actuação dos Réus, os Autores vêem-se assim impedidos de aceder com um veículo para o prédio referido em 1.
33- Existe um acesso pedonal à via pública, hoje Rua ..., de e para o prédio referido em 1, por umas escadas.
34- Que se iniciam na dita Rua ..., seguem encostadas a um muro de pedra, de suporte da parcela de terreno referida em 12, e vão desembocar no prédio referido em 1.
35- As referidas escadas têm 12 degraus.
36- E existem há várias décadas.
37- Os arrendatários do prédio referido em 1 por aí acediam a tal prédio.
38- Os Autores vivem há vários de anos num outro prédio urbano, composto de edifício e logradouro, que confronta com a dita Rua .... 39- Prédio esse que também confronta com o prédio referido em 1.
40- Os Réus e seus irmãos, quando crianças, costumavam brincar na parcela de terreno referida em 14, várias vezes ao dia e com amigos, inclusive “jogando a bola”, fazendo desse terreno um improvisado campo de futebol.
41- Anos atrás, um então morador do prédio referido em 1 pediu ao Réu FF se o autorizavam a passar pela parcela de terreno referida em 14, com um veículo, para transporte de mobília para a referida habitação.
42- O que foi concedido.
*
Na 1ª instância foram considerados não provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:
 
Artigo 18.º da Petição Inicial – “O prédio dos RR. supra identificado, na sua parte rústica, confronta do sul, em toda a sua extensão com um caminho”.
Artigo 19.º da Petição Inicial – “Caminho esse que tem um muro com cerca de 2,50 metros de altura”.
Artigo 20.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “com cerca de 3(três) a 4 (quatro) metros de largura, e se prolonga por cerca de 80 (oitenta) metros até atingir o prédio dos AA.”.
Artigo 21.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “Esse caminho tem o seu início no caminho público (…) prolongando-se ao longo desse prédio, na sua confrontação sul, até ao limite do prédio dos AA.”.
Artigo 22.º da Petição Inicial – “O prédio dos AA. tem como único acesso (de e para a via pública) esse caminho”.
Artigo 23.º da Petição Inicial – Na parte em que se “sempre (…) por esse caminho, por ser o único acesso que estes têm para o mesmo”.
Artigo 24.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “e o seu único acesso de e para a via publica é através desse caminho”
Artigo 25.º da Petição Inicial – “Constituindo-se assim a única ligação do prédio à via pública”.
Artigo 27.º da Petição Inicial – “Sendo certo que, os donos do onerado prédio, respeitavam e reconheciam que, sobre aquele prédio, existia caminho de passagem, em proveito próprio do prédio dos AA”.
Artigo 28.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “com a convicção plena e segura, de que exerciam um direito próprio”.
Artigo 39.º da Petição Inicial – “Os RR. pretendem com isso impedir o acesso dos AA. à passagem de veículos, tornando-a inutilizável, de e para o prédio dos AA.”.
Artigo 41.º da Petição Inicial – “Para além do comportamento supra descrito, os RR permanecem em vigilância e ameaças, ainda, com uso da força física, sobre os AA. ou sobre quem, em nome destes, pretenda passar, ali, a fim de visitar as pessoas que vivem no prédio dos AA., cuja a passagem, sempre e só pode ser feita através desse caminho”.
Artigo 7.º da Contestação – Na parte em que se diz “o acesso à via pública, hoje Rua ..., de e para o referido prédio dos Autores, sempre foi feito”.
Artigo 10.º da Contestação – Na parte em que se diz “tal passagem é a passagem peatonal, antes referida, através das referidas escadas, com cerca de 13 lanços e não o terreno referido nos artigos ...8.º a 21.º da P.I.”.
Artigo 28.º da Contestação – Na parte em que se diz “desde há décadas era”.
Artigo 29.º da Contestação – “E nem sequer tinham veículos, ou carros, ou outro tipo de viaturas”.
Artigo 30.º da Contestação – Na parte em que se diz “há dezenas”.
Artigo 31.º da Contestação – Na parte em que se diz “E através desse prédio dos Autores, eles também podem aceder ao dito prédio referido no art.º 1.º da P.I., de e para a via pública referida, a dita Rua ...”.
Artigo 40.º da Contestação – Na parte em que se diz “no referido prédio dos Autores, descrito no artigo 1.º da P.I., desde há anos que não vive ninguém”.
Artigo 44.º da Contestação – “Desde há mais de 15, 20 e 30 anos que, sobre o terreno referido nos artigos ...6.º e 17.º da Petição Inicial, como parte integrante do seu prédio, vêm os Réus co-herdeiros e seus antecessores actuando por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade”.
Artigo 45.º da Contestação – “Por pática reiterada, repetida, de actos materiais correspondentes ao exercício desse direito, sem suporem, ao iniciarem tal prática, e ignorando que com tal prática lesassem o direito de outrem”.
Artigo 46.º da Contestação – “E assim actuando pacificamente, sem violência ou constrangimento contra ninguém”.
Artigo 47.º da Contestação – “E exercendo tal poder de facto de modo a poder ser conhecido pelos interessados”.
Artigo 48.º da Contestação – “E, nesse poder de facto e com essas características, nomeadamente, eram e são os ditos co-herdeiros e os de cujus falecidos que limpavam e cuidavam do dito terreno”.
Artigo 50.º da Contestação – “Das quais cuidavam, podando-as e colhendo as respectivas uvas”.
Artigo 51.º da Contestação – “Bem como, no início do referido caminho, existia, no confronto com a dita Rua ..., um murete em pedra com cerca de 30 cm de altura – e foram os ditos de cujos que, anos atrás, o retiraram, a fim de permitir que alguns filhos, que eram muitos, quando vinham à casa paterna, aí pudessem penetrar com veículos automóveis e estacionar”.
Artigo 53.º da Contestação – “E também os Réus e demais co-herdeiros e seus antecessores progenitores, quando, esporadicamente, algum terceiro pretendia usar esse terreno para trânsito ou estacionamento de veículos, logo intimavam tais utentes a retirar-se desse terreno”.
Artigo 54.º da Contestação – “Bem como, anos atrás, a Junta da Freguesia, para melhor segurança e fluidez do trânsito automóvel, na dita Rua ..., quis que parte do dito terreno e parede, confinante com tal Rua, fossem inutilizados e a referida parede encurtada. Ao que os ditos antepossuidores dos Réus acederam e o terreno e parede foram encurtados cerca de dois metros.
Artigo 55.º da Contestação – Na parte em que se diz “aos falecidos pais dos Réus (…) o acto singular e isolado de (…) aí fazer a paragem (…) para esse acto”.
Artigo 56.º da Contestação – “Como, anos atrás, os então terceiros moradores desse prédio também pediram aos falecidos pais dos Réus se estes autorizavam que aí entrassem e parassem veículos automóveis, em determinado dia, por virtude de uma “festa”, com convidados, que nessa habitação iria decorrer. O que, para esse acto, foi concedido”.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I – Alteração da matéria de facto

Dispõe o artigo 662º, n.º 1, do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A norma em questão alude a meios de prova que imponham decisão diversa da impugnada e não a meios de prova que permitam, admitam ou apenas consintam decisão diversa da impugnada.

Por seu turno, o art.º 640.º do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.6.2019, Relatora Vera Sottomayor, (in www.dgsi.pt):
Importa referir que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no n.º 5 do artigo 607º do CPC (…), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial, ou aqueles só possam ser provados por documento, ou estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.
Sobre a reapreciação da prova impõe-se assim toda a cautela para não desvirtuar, designadamente o princípio referente à liberdade do julgador na apreciação da prova, bem como o princípio de imediação que não podem ser esquecidos no convencimento da veracidade ou probabilidade dos factos. Não está em causa proceder-se a novo julgamento, mas apenas examinar a decisão da primeira instância e respetivos fundamentos, analisar as provas gravadas, se for o caso, e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, a fim de averiguar se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação.
Em suma, a alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação tem de ser realizada ponderadamente, em casos excecionais, pontuais e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente. Tal sucede quando a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir.

No mesmo sentido, considerou o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 2.11.2017, Relatora Eugénia Cunha (in www.dgsi.pt), em termos com os quais concordamos integralmente, que “o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.”

Tendo por base estes critérios, analisemos então se a matéria de facto deve ser alterada nos termos pretendidos pelos recorrentes.

Em primeiro lugar importa salientar que, tal como deve suceder na decisão proferida na 1ª instância, também na reapreciação da prova que é feita em sede de recurso é formulado um juízo global que abarca todos os elementos em presença, sendo a prova produzida analisada, de forma direta e indireta, no seu conjunto.
Como tal, não é suficiente para efeitos de prova de um facto a mera invocação e transcrição de segmentos de um depoimento feita de forma descontextualizada. Também o próprio depoimento não pode ser valorado de per se, devendo sempre ser articulado e concatenado com o conjunto da prova produzida.
Por conseguinte, para efeitos de apreciação da impugnação da matéria de facto, a par da consulta dos elementos documentais juntos ao processo, procedeu-se à audição integral de todos os depoimentos prestados na audiência final.

Os recorrentes pretendem que os factos 22º, 23º, 24º e 25º da petição inicial, que foram dados como não provados, sejam considerados provados.

Tais factos têm a seguinte redação:

Artigo 22.º da Petição Inicial – “O prédio dos AA. tem como único acesso (de e para a via pública) esse caminho”.
Artigo 23.º da Petição Inicial – Na parte em que se “sempre (…) por esse caminho, por ser o único acesso que estes têm para o mesmo”.
Artigo 24.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “e o seu único acesso de e para a via publica é através desse caminho”
Artigo 25.º da Petição Inicial – “Constituindo-se assim a única ligação do prédio à via pública”.

Os factos em análise referem-se à circunstância de o único acesso para o prédio dos autores ser o caminho, o qual constitui a única ligação entre esse prédio e a via pública.
Por se tratar da mesma matéria factual, os aludidos pontos da matéria não provada serão tratados conjuntamente.

A sentença recorrida, considerou não provados os factos ora impugnados, referindo que “a prova produzida no sentido acima exposto, contraria o alegado nos artigos 22.º, 23.º, 25.º, 26.º e 42.º da Petição Inicial, quanto à inexistência de outro acesso ao prédio referido no ponto 1 dos Factos Provados, pois que, tal como referido pelas testemunhas e constatado no local, existe um acesso pedonal pelas escadas referidas nos pontos 31 a 33 dos Factos Provados.”

E, analisada toda a prova produzida, verifica-se que este entendimento é o correto.

Com efeito, todas as testemunhas que depuseram sobre a matéria confirmaram que existe acesso ao prédio dos autores através de umas escadas. Do mesmo modo, e conforme consta do auto de inspeção ao local e se encontra documentado fotograficamente, “Imediatamente a Sul da parcela em litígio existem umas escadas que, partindo da via Pública a Nascente, sobem na direção Nascente/Poente, até atingirem, no seu topo, o terreno dos Autores; Essas escadas têm, no seu limite Nascente, uma largura de 1,67 metros e prolongam-se por 12 degraus, terminando, a Poente, com uma largura de 70 cm.

Não está em causa na matéria dada como não provada e objeto de impugnação se esse acesso pelas escadas é fácil ou difícil ou se é adequado e suficiente para as necessidades atuais de deslocação com veículos. O que está dado como não provado é que o caminho é o único acesso de e para a via pública e verifica-se que o caminho não é o único acesso pois além dele existe acesso pelas escadas cuja existência foi confirmada pelas testemunhas, está documentada fotograficamente e atestada pela inspeção realizada ao local.

Acresce ainda que tais escadas, as suas caraterísticas e utilização foram dadas como provadas nos factos 33 a 37, que não foram impugnados, estando provado que:

33- Existe um acesso pedonal à via pública, hoje Rua ..., de e para o prédio referido em 1, por umas escadas.
34- Que se iniciam na dita Rua ..., seguem encostadas a um muro de pedra, de suporte da parcela de terreno referida em 12, e vão desembocar no prédio referido em 1.
35- As referidas escadas têm 12 degraus.
36- E existem há várias décadas.
37- Os arrendatários do prédio referido em 1 por aí acediam a tal prédio.

Esta matéria factual provada não foi impugnada pelos recorrentes e é contraditória com os factos 22º, 23º, 24º e 25º da petição inicial que os recorrentes querem que se considerem como provados, mas sem que para tal exista sustentação probatória bastante.

Assim, e pelo que se explanou, conclui-se que os elementos probatórios que existem nos autos não impõem a alteração da referida matéria de facto, antes impondo que se mantenham como não provados os factos 22º, 23º, 24º e 25º da petição inicial.
*
Os recorrentes pretendem que o facto 27º da petição inicial, que foi dado como não provado, seja considerado provado.

Tal facto tem a seguinte redação:

Artigo 27.º da Petição Inicial – “Sendo certo que, os donos do onerado prédio, respeitavam e reconheciam que, sobre aquele prédio, existia caminho de passagem, em proveito próprio do prédio dos AA”.

Para que determinada matéria seja considerada provada ou não provada é necessário que contenha factos.
Dispunha o artigo 646º, nº 4, do anterior CPC, que se têm por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito.
Pese embora esta norma não tenha transitado expressamente para o atual Código de Processo Civil, o comando ínsito na mesma mantém-se incólume e em plena vigência face à correta interpretação das regras processuais vigentes.
Com efeito, nos termos do art. 607º, nº 4, do CPC vigente, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados.
De tal norma decorre naturalmente que da sentença, na parte relativa ao acervo factual, só podem constar factos, e não juízos conclusivos, conceitos normativos e matéria de direito. Como referido no Acórdão da Relação de Évora, de 28.6.2018 (in www.dgsi.pt), na seleção dos factos em sede de decisão da matéria de facto deve atender-se à distinção entre factos, direito e conclusão, acolher apenas o facto simples e afastar de tal decisão os conceitos de direito e as conclusões que mais não são que a lógica ilação de premissas, atendendo a todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Por isso, se a matéria factual selecionada na sentença não respeitar estes limites tem de ser expurgada de todos os elementos que integrem matéria de direito, juízos de valor ou conclusivos e afirmações que se insiram na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação e suscetíveis de conduzir, só por si, ao desfecho da ação.
Neste mesmo sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 28.9.2017, (in www.dgsi.pt) segundo o qual “muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.

Ora, no caso em apreço, está em causa o pedido de reconhecimento de uma servidão de passagem sobre o caminho localizado no prédio que atualmente pertence aos réus.
Como tal não podem constar da matéria de facto juízos valorativos que só por si determinem o desfecho da ação.
Daí que o art. 27º, com a redação transcrita, integra matéria conclusiva e de direito que tem de ser eliminada dos factos. Trata-se de uma conclusão a que se tem de chegar em sede de subsunção jurídica, aplicando o direito aos factos provados, não podendo ser incluída em sede de apuramento do acervo factual.
Saliente-se ainda que o que de relevante é alegado de forma jurídico-conclusiva no citado art. 27º da p.i. encontra-se já dado como provado nos factos 27 e 28 onde consta que:

27- Nunca os falecidos CC e DD e antecessores exerceram qualquer oposição.
28- Nunca criaram qualquer entrave à utilização da parcela de terreno referida em 14 para entrar e sair do prédio dos Autores.

Nestes termos, determina-se a eliminação do art. 27º da p.i. do elenco dos factos não provados, em virtude de o mesmo conter matéria conclusiva e de direito.
*
Os recorrentes pretendem que o facto 28º da petição inicial, que foi dado como não provado, seja considerado provado.

Tal facto tem a seguinte redação:

Artigo 28.º da Petição Inicial – Na parte em que se diz “com a convicção plena e segura, de que exerciam um direito próprio”.

Nos autos está provado que os autores e os seus antecessores utilizavam o caminho em litígio, nos moldes descritos nos factos 20, 23, 27 e 28, ou seja, utilizavam a parcela de terreno para aceder ao seu prédio, por aí passando na presença de todos e sem qualquer oposição ou entrave por parte dos anteriores proprietários do prédio onde se situa o caminho e seus antecessores. Esta matéria não foi objeto de impugnação.
Subiste a questão de saber se a utilização do caminho feita nestes termos se fundamenta, ou não, na convicção de a mesma decorrer de um direito próprio, ou seja, de os autores e seus antecessores terem o direito de passar por esse caminho, nos moldes descritos, para entrarem e saírem do seu prédio.
Da audição integral dos depoimentos prestados a que se procedeu ficámos convictos de que efetivamente os autores e seus antecessores consideravam que tinham o direito de passar no caminho para aceder ao seu prédio, e que tal possibilidade de passagem não decorria nem de um mero ato de tolerância nem dependia do consentimento dos proprietários do prédio onde o caminho se encontra implantado.
Neste sentido depôs a autora BB, a qual esclareceu que apenas comprou o prédio porque existia o caminho de servidão e que se o mesmo não existisse, quando a compra lhe foi proposta, não a teria aceite. Esclareceu que os seus avós e os seus pais moraram no local e sempre foi pelo aludido caminho que passaram. Referiu que os pais dos réus, anteriores proprietários, sempre disseram que a passagem era livre para entrarem e saírem.
Esta declarada convicção de existência de um verdadeiro direito de passagem no caminho, que foi referida pela autora, foi corroborada pelo depoimento da testemunha QQ, a qual tem 67 anos de idade e nasceu no local, onde vive desde então. A testemunha referiu que o acesso ao prédio que atualmente é dos autores sempre foi feito pelo caminho, sendo por ali que passavam os caseiros. Referiu que o anterior proprietário do prédio que hoje é dos réus autorizava a passagem de carros de bois para irem buscar lenha, mas avisava sempre que tinham de deixar livre a servidão, que era o acesso para o prédio que hoje é dos autores.
Também a testemunha CC confirmou esta realidade. A referida testemunha conhece o local desde os seus 17 anos, altura em que começou a namorar com a sua esposa. Declarou que o acesso ao prédio era feito por aquele caminho sendo por aí que toda a gente entrava, inclusive ele próprio, nunca tendo sido impedido por quem quer fosse. Reiterou que no passado nunca houve impedimento à passagem e acesso, os quais só surgiram recentemente.
De forma alinhada com estes depoimentos, a testemunha RR referiu que conhece o local pois foi o seu pai que, há mais de 35 anos, construiu a casa dos autores e ele próprio também ajudou na obra. Fez ainda restauros na casa dos autores, trabalhos que executou há cerca de 10 anos.
Pese embora a casa dos autores não esteja edificada do prédio descrito no facto nº 1, situa-se no mesmo local, pelo que a testemunha tem conhecimento da zona há pelo menos 35 anos.
A testemunha confirmou que o acesso ao prédio dos autores foi sempre feito pelo caminho em litígio e nunca ocorreram quaisquer problemas. O impedimento só ocorreu recentemente.
Deste conjunto de depoimentos testemunhais resulta sustentada de forma suficiente e credível a veracidade da versão declarada pela autora de que tinha a plena convicção de que possuía o direito de passar no caminho para aceder ao prédio e que essa possibilidade de passagem não decorria de mera tolerância ou de prévia autorização dos proprietários do prédio onde se localiza o caminho.
Os demais depoimentos testemunhais prestados não colidem nem afastam de forma minimamente segura e sustentada a existência desta convicção, a qual, naturalmente, é de natureza subjetiva e do foro interno, acrescendo que as demais testemunhas não se referiram à convicção com que os autores e seus antecessores atuavam quando passavam no caminho.
Assim sendo, entende-se que os elementos probatórios constantes dos autos impõem que se altere a decisão proferida quanto ao facto 28.º da petição inicial, eliminando-o dos factos não provados, e que se adite à matéria de facto provada o facto nº 23-A, relativo à convicção dos autores e seus antecessores quanto à passagem pela parcela de terreno, com a seguinte redação:

23-A – E faziam-no com a convicção plena e segura de que exerciam um direito próprio.
*
Os recorrentes pretendem que os factos 39º e 41º da p.i., que foram dados como não provados, sejam considerados provados.

Tais factos têm a seguinte redação:

Artigo 39.º da Petição Inicial – “Os RR. pretendem com isso impedir o acesso dos AA. à passagem de veículos, tornando-a inutilizável, de e para o prédio dos AA.”.
Artigo 41.º da Petição Inicial – “Para além do comportamento supra descrito, os RR permanecem em vigilância e ameaças, ainda, com uso da força física, sobre os AA. ou sobre quem, em nome destes, pretenda passar, ali, a fim de visitar as pessoas que vivem no prédio dos AA., cuja a passagem, sempre e só pode ser feita através desse caminho”.

Sobre esta matéria, consta da fundamentação da sentença que “[n]enhum meio de prova permitiu a demonstração da restante matéria de facto não provada, que não foi referida pelas testemunhas ou pela Autora e nem resulta dos documentos juntos aos autos ou da inspecção ao local.

Da audição integral dos depoimentos prestados na audiência final que se efetuou resulta efetivamente que a matéria dos arts. 39º e 41º da p.i. não foi confirmada por nenhuma das pessoas inquiridas.
O que as testemunhas confirmaram foi o que se encontra dado como provado nos factos 29 a 32, mais concretamente que:
29- Há cerca de cinco anos que os Réus, contra a vontade dos Autores, utilizam a parcela de terreno referida em 14 para aparcar carros.
30- Tendo sempre um carro ou mais do que um, a impedir o acesso de carro ao prédio referido em 1, pela parcela de terreno referida em 14.
31- Só os retirando quando os Autores lhes pedem, discutindo com os mesmos, dizendo que aquela parcela de terreno lhes pertence e que os Autores não têm que por ali passar.
32- Em consequência da descrita actuação dos Réus, os Autores vêem-se assim impedidos de aceder com um veículo para o prédio referido em 1.

Ou seja, provou-se a matéria objetiva de impossibilidade de acesso de carro decorrente da atuação dos réus.
Porém, as testemunhas não confirmaram, nem sequer remotamente, qual é a intenção ou finalidade que anima os réus quanto a essa sua atuação. Por conseguinte, os depoimentos prestados não permitem sustentar a veracidade do facto 39º da p.i.

As testemunhas ainda menos confirmaram a matéria do art. 41º da p.i.

Também não existe nos autos qualquer documento de onde resulte a veracidade de tais factos, a qual igualmente não decorre do auto de inspeção ao local.
Por conseguinte, concluímos que não existem nos autos elementos probatórios que imponham que os factos impugnados devam ser dados como provados, razão pela qual os factos 39º e 41º da p.i., devem ser considerados não provados.
*
Assim, e na procedência parcial da impugnação deduzida, a matéria de facto a considerar é a que supra se transcreveu, com a eliminação dos factos 27º e 28º da petição inicial do elenco dos factos não provados e com o aditamento do facto 23-A aos factos provados.
*

II – Procedência da totalidade da ação e verificação dos pressupostos legais relativos à existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião

A sentença recorrida começou por analisar os pedidos formulados nas als. a) e b) da p.i. referentes ao reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano sito no Lugar ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...98 e à consequente condenação dos réus no reconhecimento desse direito.
Concluiu, em termos com os quais concordamos, que os autores adquiriram por usucapião o imóvel e que nada obsta à procedência de declaração desse direito, mas que “não há que condenar os Réus no reconhecimento do direito de propriedade dos Autores, não sendo correcta a formulação, em termos condenatórios, da pretensão constante da alínea b) do petitório. (...) Trata-se, tão só, de declarar judicialmente a existência da propriedade (...) declaração que vincula os Autores e os Réus, porque dotada da eficácia do caso julgado.”

Portanto, a sentença, na sua fundamentação, considera que o pedido da al. a) deve proceder e, quanto ao da al. b), considera que não há que condenar os réus no reconhecimento do direito de propriedade, não por uma questão de procedência ou improcedência do ponto de vista do mérito, mas antes porque esse pedido está incorretamente formulado, estando abrangido pela declaração de reconhecimento da propriedade constante da al. a).

Apesar desta fundamentação, no dispositivo, a sentença julgou a ação improcedente, na sua totalidade, e absolveu os réus do pedido.

Os recorrentes não abordaram esta questão nas suas alegações e limitaram-se a pedir que a ação fosse julgada procedente na totalidade.
Os recorridos também não abordam esta matéria nas contra-alegações.

Pedindo os recorrentes, em sede de recurso, que a ação seja julgada procedente na totalidade entende-se que também pedem que o seja quanto às als. a) e b) da p.i., pelo que deve este Tribunal da Relação pronunciar-se sobre a procedência desses pedidos.

Acompanhando, nesta parte, o expendido sobre a matéria na sentença recorrida, nos termos que já referimos supra e com os quais concordamos, conclui-se que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos autores formulado na al. a) deve proceder e que o pedido formulado na al. b) se encontra indevidamente formulado, não havendo que proferir decisão de condenação no reconhecimento do direito cuja existência já foi declarada na al. a).
Entendemos que não se justificam maiores considerações sobre esta temática porquanto, como explanado, o cerne da discórdia entre as partes não é o direito de propriedade dos autores sobre o prédio identificado no facto provado nº 1, o qual não é sequer contestado pelos réus, mas antes a existência de uma servidão de passagem para esse prédio. Assim, diremos apenas, brevemente, que, perante a factualidade provada nos nºs 2 a 11 e o disposto nos arts. 1251º e ss, 1287º, 1288º, 1289º e 1294º, todos do CC, resulta de forma incontroversa que os autores adquiriram por usucapião o imóvel identificado no facto provado nº 1.

Assim sendo, o dispositivo da sentença não se pode manter, na parte em que julga a ação totalmente improcedente, devendo antes ser declarado procedente o pedido formulado na al. a) da p.i. relativo à declaração de que os autores são os proprietários do imóvel identificado no facto provado 1.
*
Passemos agora ao que constitui o cerne da ação e é fonte de profundo dissídio entre as partes e que consiste em saber se se encontra constituída, por usucapião, a servidão de passagem sobre o caminho localizado no prédio dos réus.

A sentença julgou improcedente a pretensão dos autores sobre tal matéria por não existirem sinais visíveis e permanentes reveladores da existência da servidão de passagem.

Os recorrentes discordam desta decisão e entendem que, de acordo com os factos provados, a servidão de passagem se revela por sinais visíveis e permanentes, pelo que adquiriram tal direito, por usucapião.

Os recorridos, de forma alinhada com a decisão do tribunal a quo, defendem que, face à matéria factual provada, não existem sinais visíveis e permanentes, o que impede a aquisição da servidão por usucapião.

Vejamos, então, se estão ou não reunidos os pressupostos legais para a constituição da servidão de passagem por usucapião.

De acordo com a noção constante do art. 1543º, do CC, servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.

Nesta noção são identificáveis quatro ideias-chave: i) a servidão predial é um encargo; ii) o encargo recai sobre um prédio; iii) aproveita exclusivamente a outro prédio, iv) os prédios devem pertencer a donos diferentes” (Maria Elisabete Ferreira, in Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, pág. 698).

A servidão predial é um encargo na medida em que representa uma limitação ao direito de propriedade sobre o prédio onerado, implicando uma restrição ao gozo efetivo do dono do prédio serviente, impedindo-o de praticar atos que possam prejudicar o exercício da servidão.
O encargo recai sobre um prédio e aproveita exclusivamente a outro prédio no sentido de que só são admitidas servidões em relação a prédios, não reconhecendo a lei, atualmente, servidões pessoais. Embora a utilidade ou o benefício reverta a favor de um determinado sujeito, ele só pode fazer-se valer dessa utilidade por intermediação do prédio, em razão da titularidade desse outro direito de gozo sobre o prédio dominante.
Finalmente, os prédios devem pertencer a donos diferentes pois o direito de propriedade plena é incompatível com a coexistência, sobre o mesmo objeto, de outros direitos reais. Isto significa que o proprietário pleno goza de todas as faculdades que o seu direito à coisa comporta (cf. Maria Elisabete Ferreira, in Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, págs. 698 e 699).

No que concerne ao conteúdo da servidão, dispõe o art. 1544º, do CC, que podem ser objeto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor.
Assim, o direito real de servidão tem um conteúdo atípico, sendo um tipo legal aberto no sentido de que pode integrar qualquer espécie de utilidades, não legalmente pré-determinadas, sejam elas presentes, futuras ou até eventuais, desde que as mesmas possam ser gozadas por intermédio do prédio dominante.
No conceito de utilidades incluem-se quaisquer vantagens que possam advir do gozo do prédio serviente entendidas estas como aptidão para a satisfação de uma necessidade humana (cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) pág. 406).

Não obstante a ampla liberdade de conformação do conteúdo das servidões, as mesmas podem classificar-se como: a) servidões positivas, quando importem a permissão para a prática de atos no prédio serviente; b) servidões negativas, quando impliquem a abstenção de determinados atos por parte do titular do prédio serviente; c) servidões desvinculativas, quando se traduzam na libertação do prédio dominante de uma restrição legal (cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) pág. 410 e Maria Elisabete Ferreira, in Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, pág. 701).
No art. 1545º, nº 1, do CC, estabelece-se o princípio da inseparabilidade das servidões o qual postula que, salvas as exceções previstas na lei, as servidões não podem ser separadas dos prédios a que pertencem, ativa ou passivamente.
Assim, as servidões não podem ser separadas do prédio dominante porque o gozo das utilidades da servidão só pode ocorrer por intermédio deste e não podem também ser separadas do prédio serviente porque, face ao princípio da inerência dos direitos reais, o direito real está ligado à coisa sobre a qual se constituiu, não podendo ser dela separado (cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) pág. 411).
Deste princípio decorre ainda que o direito de servidão não é suscetível de ser onerado separadamente do direito real de gozo de que é acessório, o que implica designadamente que a servidão não pode ser objeto de hipoteca ou de outro direito real de garantia (cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) pág. 412 e Maria Elisabete Ferreira, in Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, pág. 702).

No que respeita ao modo de constituição, dispõe o art. 1547º, do CC, que as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família. As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos.

As servidões podem ser voluntárias ou legais.
São voluntárias no sentido em que se constituem por ato ou negócio jurídico, sem que um preceito normativo as imponha. São legais num duplo sentido: a) no sentido em que a norma constitutiva do direito de servidão é de natureza legal (e não negocial); b) no sentido em que podem ser constituídas coativamente, por meio de decisão judicial ou administrativa, caso não o sejam voluntariamente (cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) pág. 413).

Relativamente à forma de aquisição, face ao disposto nos arts. 1293º, al. a) e 1548º, nº 1, ambos do CC, as servidões prediais não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião.
Consideram-se não aparentes, as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (art. 1548º, nº 2, do CC).

As servidões não aparentes distinguem-se das servidões aparentes pelo modo de exercício: no caso das servidões aparentes, ele é realizado por meio de atos que produzem consequências – sinais – no prédio serviente ou dominante que permitem o conhecimento da existência da servidão pelos interessados. Já no caso das servidões não aparentes, a atuação do seu titular sobre o prédio dominante ou serviente não é percetível para terceiros interessados” (cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) pág. 415).

A razão pela qual apenas as servidões aparentes podem constituir-se por usucapião é a circunstância de um dos requisitos para a aquisição de um direito real de gozo por usucapião ser o exercício de uma posse pública à luz do art. 1297º do CC, além de que as servidões não aparentes podem ser confundidas com atos de mera tolerância do titular de um prédio para com o titular de outro prédio (cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) págs. 415 e 416). Na verdade, se não existirem sinais visíveis e permanentes reveladores do exercício da servidão o proprietário do prédio onerado com tal encargo não terá sequer a possibilidade de se opor, por desconhecer a prática dos atos de posse, o que levou o legislador a afastar a possibilidade de aquisição por usucapião de servidões não aparentes.
Neste mesmo sentido, considerou o acórdão do STJ, de 4.2.2021, Relator Ferreira Lopes (in www.dgsi.pt) que “[a] visibilidade destina-se a garantir a não clandestinidade e a permanência da obra ou de sinais torna seguro que não se trata de acto praticado a título precário, mas dum encargo preciso, estável e duradouro, próprio de uma servidão (...).
A exigência de que os sinais sejam visíveis e permanentes justifica-se ainda por não poder ser imposta a constituição de ónus desta natureza ao dono do prédio serviente quando ele não poderia ter tido conhecimento das obras e sinais inerentes ao exercício da servidão e reagir contra os actos praticados.”

No mesmo alinhamento de ideias, referem Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Vol. III, 2 ª ed., pág. 629) que “admitir a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénita dos actos reveladores do seu exercício, teria o grave inconveniente de dificultar em vez de estimular as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações jurídicas de carácter irremovível situações de facto assentes sobre actos de mera condescendência ou obsequidade”.
E, prosseguem os mesmos autores, (in Código Civil Anotado, Vol. III,  2 ª ed., pág. 630) dizendo que, para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião “torna-se imprescindível a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício (como, por exemplo, um caminho ou uma porta ou portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente)” (sublinhado nosso).

Como referido no acórdão da Relação do Porto, de 10.7.2013, Relator Alberto Ruço, (citado no acórdão desta Relação de Guimarães, de 14.2.2019, Relatora Purificação Carvalho, in www.dgsi.pt)a visibilidade dos sinais respeita à sua materialidade, no sentido de serem percepcionáveis e interpretáveis como tais, pela generalidade das pessoas que se confrontem com eles e a permanência consiste na manutenção dos sinais, com a aludida visibilidade, ao longo do tempo, sem interrupções (pelo menos nos casos em que a ausência temporária dos sinais torne equívoco o seu significado), por forma a gerar e manter a ideia de que se trata de uma situação estável e duradoura e, ao mesmo tempo, afastar a hipótese de se tratar de uma situação precária, podendo tais sinais, no entanto, ser alterados ao longo do tempo ou substituídos por outros.”

Quanto ao que se deva entender por sinais visíveis e permanentes, refira-se ainda o expendido no acórdão da Relação de Coimbra, de 16.10.2012, Relator Henrique Antunes (in www.dgsi.pt), segundo o qual “[p]or sinais entende-se tudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente indícios que revelem a existência de obras destinadas a facilitar e a tornar possível a servidão.
Na servidão de passagem poderão ser, por exemplo, a existência de um trilho de terra batida ou empedrada, de sulcos de rodados de tracção animal deixados pelo decorrer dos tempos, em pedras existentes no caminho, tranqueiros, cancelas, pontes, etc... A servidão de passagem tornar-se-á aparente desde que se faça um caminho, uma ponte ou se abra uma porta.
Esses sinais hão-de ser visíveis, permanentes e inequívocos, pois só deste modo poderão indicar a existência de servidão aparente. (...)
Além de visíveis ou aparentes, os sinais devem ser permanentes, revelando uma situação estável, que foram postos com intenção de assegurar a serventia de um prédio para o outro, com carácter de permanência.”.

Estando em causa uma servidão aparente, ou seja, uma servidão que se revele por sinais visíveis e permanentes, a mesma pode ser adquirida por usucapião desde que se verifiquem os requisitos legais de tal instituto o qual se encontra previsto nos arts. 1287º e ss, do CC.

Lê-se no artigo 1287º, do CC, que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.

A usucapião constitui assim uma forma de aquisição originária do direito real por aquele que tem uma posse com determinadas caraterísticas, mantida durante determinado lapso temporal.
E constitui um modo de aquisição originária porque o direito surge, ou melhor, constitui-se ex novo na ordem jurídica.
A usucapião é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, os direitos que nela tenham a sua origem não sofrem em nada com os vícios de que possam eventualmente padecer os anteriores proprietários sobre a mesma coisa (Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II; pág. 684).
A “aquisição por usucapião é uma constituição originária, que tem como sua fonte e génese a posse, geradora do direito, com título, sem título, contra um título de terceiro ou mesmo com um título afectado de nulidade substantiva” (Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião. Constituição Originária De Direitos Através da Posse, Almedina, Coimbra, 2008, págs. 12-13).
Porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido - a posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse causal, ou seja, a posse conforme com um direito que inquestionavelmente se tem e de que representa simples exteriorização; é a posse formal, correspondente a um direito que comprovadamente se não tem ou que poderá não se ter, mas cujos poderes se exercem como sendo um titular, posse vista com abstracção do direito possuído, algo com existência por si, susceptível de conduzir, pela via da usucapião, à aquisição do direito, caso não se seja, já, senhor dele (Galvão Telles, O Direito, 121.º - 652) (Acórdão do STJ, de 9.2.2017, Relator Silva Gonçalves, in www.dgsi.pt).
Subjacente a esta orientação está a prevalência de interesses ligados à estabilidade e segurança jurídica que conduzem à consideração de que não faz sentido que, perante um longo período de tempo, se eternizem situações de incerteza pelo que se permite a realização das expectativas criadas à luz de uma prolongada configuração factual. Em suma, o sistema jurídico admite que certas situações de facto adquiram tutela jurídica e possam dar lugar ao reconhecimento de direitos em homenagem a interesses de natureza social e económica que acolhe como relevantes” (Luís Filipe Pires de Sousa, Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 1.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2011, pág. 62).

Como decorre do disposto no art. 1251º, do CC, posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, podendo ser exercida pessoalmente ou por intermédio de outrem, mas presumindo-se, em caso de dúvida, a posse naquele que exerce o poder de facto (art. 1252.º, n.º 2, do CC).

Segundo o nosso direito substantivo, para que a aquisição originária de imóveis se verifique é necessário que se demonstre a prática efetiva de atos materiais correspondentes ao conteúdo do direito de que o adquirente se arroga, levados a cabo de forma continuada, pública e pacífica durante mais de 20 anos (arts. 1251º, 1261º, 1262º e 1263º do CC).
A circunstância de a posse ser ou não titulada e ser de boa ou má fé não se repercute na aquisição de imóveis por usucapião desde que a posse tenha sido exercida durante mais de 20 anos (arts. 1258º e ss e 1294º e ss do CC).
A posse capaz de conduzir à aquisição originária do direito correspondente deverá, assim, ser integrada por dois elementos, a saber: o corpus, elemento material que consiste no domínio de facto sobre a coisa, consubstanciado no exercício de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício; e o animus, traduzido na intenção e convicção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto (Henrique Mesquita, in Direitos Reais, 1966, págs. 66 e 67).
O possuidor tem, pois, de provar a existência destes dois elementos. Porém, a prova do corpus faz presumir a existência do animus (art. 1252º, nº 2 do CC).
Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), coincidindo a aquisição do direito de propriedade com o momento do início dessa mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC).

Assentes nestas premissas e aplicando-as ao caso dos autos, verifica-se que se provou que:
- A Norte do prédio referido em 1 (que é o prédio dos autores) existe uma parcela de terreno com cerca de 2,40m de largura no seu lado Norte, com cerca de 8,20m de largura no seu lado Sul e com cerca de 20m de largura nos seus lados Poente e Nascente, a qual confronta a Norte e Nascente com caminho público, denominado Rua ... e tem uma parte do seu piso, situada a Norte e com uma extensão de 1,60m, em alcatrão, e a restante parte, situada a Sul, em terra batida (factos 14 a 16).
- A aludida parcela de terreno tem, em parte, uma ramada, com esteios e bancas de pedra, com videiras e é, em parte, sustentada por paredes em granito, que atingem a altura máxima de cerca de dois metros, na confrontação com a dita Rua ... e, na parte oposta à dita Rua ..., é marginada por outra parede, em pedra (factos 17 a 19).
- Há mais de cinquenta anos e até há cerca de cinco anos atrás, os Autores e seus antecessores passavam pela referida parcela de terreno para aceder ao seu prédio, na presença de todos e faziam-no com a convicção plena e segura de que exerciam um direito próprio (factos 20, 23 e 23-A).
- Nunca os falecidos CC e DD (que eram os anteriores proprietários do imóvel que hoje pertence aos réus e onde se localiza a parcela em questão) e antecessores exerceram qualquer oposição e nunca criaram qualquer entrave à utilização da parcela de terreno para entrar e sair do prédio dos Autores (factos 27 e 28).
Esta factualidade permite concluir que se verificam os requisitos de corpus e animus possessório necessários à constituição, por usucapião, de servidão de passagem a favor do prédio dos autores visto que os mesmos, por si e seus antecessores, exerceram esse direito de forma pública, pacífica e continuada, durante mais de 50 anos, com a convicção de exercerem um direito próprio (arts. 1251º, 1252º, 1254º, 1287º e 1296º, do CC).
Essa passagem enquadra-se no conceito e conteúdo de servidão visto que constitui um encargo imposto ao prédio dos réus em proveito do prédio dos autores constituindo uma utilidade que é gozada através do prédio dos primeiros, onde se localiza a parcela em questão e descrita nos factos 14 a 16, cabendo na noção e conteúdo de servidão fornecida nos arts. 1543º e 1544º do CC.

Aqui chegados, importa saber se essa servidão de passagem é ou não aparente pois só se o for é que poderá ser constituída por usucapião.
Na tarefa de aferição da existência de sinais visíveis e aparentes da servidão há que levar em conta o concreto tipo de utilidade que integra o conteúdo dessa servidão.
No caso, trata-se de uma servidão de passagem pelo que constituirão sinais visíveis e permanentes da mesma aqueles que existam fisicamente no local, possam ser observados por qualquer pessoa, ao longo do tempo, e que permitam concluir que é por aquele local que se processa o acesso ao prédio dos autores.

Face à factualidade que se provou, considera-se que, no caso, se está perante uma servidão predial aparente pois revela-se por sinais visíveis e permanentes uma vez que a passagem era feita de forma pública sendo que no local por onde a mesma sempre se processou existe um trilho com marcas de rodados no piso de terra batida, que nunca foi cultivado e, na parte em que o prédio dos autores e a parcela confinam entre si, os terrenos encontram-se à mesma cota, sem qualquer obstáculo que impeça a passagem, nunca existindo qualquer portão (factos 24 a 26).
Essa parcela tem uma parte do seu piso, situada a Norte e com uma extensão de 1,60m, em alcatrão, e a restante parte, situada a Sul, em terra batida (facto 16).
A aludida parcela de terreno referida tem, em parte, uma ramada, com esteios e bancas de pedra, com videiras e é, em parte, sustentada por paredes em granito, que atingem a altura máxima de cerca de dois metros, na confrontação com a dita Rua ... e, na parte oposta à dita Rua ..., é marginada por outra parede, em pedra (factos 17 a 19).
Considera-se que estas descritas caraterísticas da parcela, onde existe um trilho com marcas de rodado, que nunca foi cultivado, tendo parte do piso em alcatrão e parte em terra batida, parcela que é ladeada por paredes em granito e pedra, tudo conforme melhor ilustram as fotografias juntas com o auto de inspeção ao local, constituem sinais visíveis e permanentes da existência de um caminho perfeitamente demarcado. Sendo por esse caminho que se processa, desde há mais de 50 anos, o acesso dos autores e antecessores ao seu prédio, o que ocorre de forma pública e pacífica, considera-se que se trata de sinais visíveis e permanentes, e não de atos clandestinos, ocultos ou de posse equívoca, sinais esses que são reveladores de uma servidão aparente, nada impedindo a sua constituição por usucapião posto que, como já anteriormente referido, se verificam os demais requisitos da aquisição por usucapião referidos nos arts. 1251º, 1252º, 1254º, 1287º e 1296º, do CC.

Assim sendo, divergimos do entendimento da sentença e dos recorridos de que não existem sinais visíveis e permanentes e de que se trata de servidão não aparente, insuscetível de ser adquirida por usucapião.
Diversamente, consideramos que se encontra constituída, por usucapião, uma servidão de passagem pela parcela de terreno referida no facto provado 14 para acesso ao prédio de que os autores são proprietários e que se encontra descrito no facto provado nº 1.
Tratando-se, no caso, de servidão constituída por usucapião, a servidão terá o conteúdo definido pela posse que conduziu à aquisição do direito correspondente. Significa isto que a servidão consiste no direito de passagem pela parcela de terreno referida no facto 14 para acesso ao prédio descrito no facto 1, quer a pé, quer com recurso a veículo automóvel.

Os recorridos argumentam que independentemente de saber “se os A.A. têm direito à servidão de passagem que invocam, e adquirida por usucapião, e mantida no presente – e sem prescindir de que não têm – sempre a procedência dos pedidos afetaria a equidade” uma vez que “o prédio dos A.A. tem acesso peatonal, de e para a Rua ..., através de “escadas” e “com poucos trabalhos e dispêndio, podem os A.A. quer abrir entrada no muro deles, confinante, a nascente com a Rua ..., quer fazendo caminho no terreno, intra-muros, que lhes pertence, abrindo um acesso a veículos. Diminuindo a altura da terra confinante à Rua ..., e rampeando, junto à referida escadaria, até atingir o logradouro em terra, à volta da edificação, do prédio “.
Consideram que “neste contexto, a procedência dos pedidos – e sem conceder que não estão baseados na Lei – seria sempre uma decisão que afetaria a equidade, o fomento de boas relações de vizinhança, e não seria uma decisão judicial “justa” (artº. 20º da C.R.).”

Esta argumentação dos recorridos relativa à equidade não pode colher no caso concreto.
Com efeito, lê-se no art. 4º do CC, sob a epígrafe “valor da equidade” que:

Os tribunais só podem resolver segundo a equidade:
a) Quando haja disposição legal que o permita;
b) Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível;
c) Quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória.

O “julgamento segundo a equidade confere ao tribunal a possibilidade de dar uma resolução ao litígio fundada em critérios de justiça, ao invés de recorrer às normas legais aplicáveis” (Teresa Teixeira Motta in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, pág. 32). Porém, o julgamento nestes moldes só pode ter lugar quando se verifique alguma das situações enunciadas no citado art. 4º, do CC.

No caso em apreço, estão liminarmente afastadas as hipóteses das als. b) e c) pois não existe qualquer acordo das partes ou qualquer convenção das mesmas no sentido de a causa poder ser julgada com recurso à equidade.

Resta a hipótese da al. a), ou seja, a existência de norma legal que permita a decisão com base na equidade.

Os presentes autos versam sobre a existência e manutenção de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, e, quanto a tal matéria, não existe norma legal que permita que o tribunal resolva a questão com recurso à equidade.
Aliás, os próprios recorridos não indicam em que norma se encontra prevista a possibilidade de a decisão ser tomada nesses termos. Invocam o art. 20º, da CRP, mas desta norma, como resulta da sua leitura, não decorre que se possa decidir com recurso à equidade.

Com efeito, dispõe o citado art. 20º, da CRP, que:
 
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

Em lado algum desta norma se estabelece que o tribunal pode decidir segundo a equidade, sendo que a menção a “processo equitativo” que é feita no nº 4 não pode ser interpretada como disposição legal que permita que o tribunal julgue segundo a equidade para efeitos de integrar a previsão do art. 4º, al. a), do CC, sendo antes uma imposição de que exista um processo justo, no qual as partes se encontrem numa posição paritária ou de igualdade, por forma a poderem fazer valer os seus direitos sem constrangimentos, devendo as suas pretensões ser apreciadas de forma objetiva e por uma entidade imparcial e equidistante.
Recorrendo às palavras do acórdão da Relação de Lisboa, de 16.2.2001, Relator Rijo Ferreira (in www.dgsi.pt) “[o] conceito de processo equitativo é um princípio fundamental de qualquer sociedade democrática, profundamente imbricado com o Estado de Direito (rule of law), não havendo fundamento para qualquer interpretação restritiva e que visa, acima de tudo, defendendo os interesses das partes e os próprios da administração da justiça, que os litigantes possam apresentar o seu caso ao tribunal de uma forma efectiva; tem como significado básico que as partes na causa têm o direito de apresentar todas as observações que entendam relevantes para a apreciação do pleito as quais devem ser adequadamente analisadas pelo tribunal, que tem o dever de efectuar um exame criterioso e diligente das pretensões, argumentos e provas apresentados pelas partes e que a justeza (fairness) da administração da justiça, além de substantiva, se mostre aparente (justice must not only be done, it must also be seen to be done)”.
Portanto, sendo este o alcance e significado da exigência de que o processo seja equitativo, do art. 20º, nº 4, da CRP, não se retira que seja lícito ao tribunal decidir segundo a equidade.
Por conseguinte, não se encontra preenchida a previsão da al. a) do art. 4º do CC, por inexistir norma legal que permita que o caso seja decidido segundo a equidade.

Deste modo, por não se encontrar preenchida nenhuma das situações em que é possível ao tribunal decidir de acordo com a equidade e que se encontram mencionadas nas als. a) a c) do art. 4º, do CC, o tribunal só pode decidir de acordo com a lei, pelo que improcede a argumentação expendida pelos recorridos sobre esta temática.
*
Tendo-se concluído pela existência de servidão de passagem, importa analisar se a mesma se encontra extinta pelo não uso ou por aquisição, por usucapião, da liberdade do prédio, conforme defenderam os réus na contestação, matéria que não foi apreciada pelo tribunal a quo por o seu conhecimento ter ficado prejudicado pela solução sufragada na decisão recorrida, a qual ora se reverteu.

Dispõe o art. 1569º, do CC, sobre a epígrafe “casos de extinção” que:

1. As servidões extinguem-se:
a) Pela reunião dos dois prédios, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa;
b) Pelo não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo;
c) Pela aquisição, por usucapião, da liberdade do prédio;
d) Pela renúncia;
e) Pelo decurso do prazo, se tiverem sido constituídas temporariamente.
2. As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
3. O disposto no número anterior é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição; tendo havido indemnização, será esta restituída, no todo ou em parte, conforme as circunstâncias.
4. As servidões referidas nos artigos 1557.º e 1558.º também podem ser remidas judicialmente, mostrando o proprietário do prédio serviente que pretende fazer da água um aproveitamento justificado; no que respeita à restituição da indemnização, é aplicável o disposto anteriormente, não podendo, todavia, a remição ser exigida antes de decorridos dez anos sobre a constituição da servidão.
5. A renúncia a que se refere a alínea d) do n.º 1 não requer aceitação do proprietário do prédio serviente.

Os réus invocam que a servidão de passagem dos autores se extinguiu com fundamento no disposto nas als. b) e c) do nº 1 do art. 1569º, do CC, ou seja, pelo não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo, ou pela aquisição, por usucapião, da liberdade do prédio.

A al. b) prevê o não uso dos direitos reais durante um certo como forma de extinção, sendo figura semelhante à prescrição extintiva existente no direito das obrigações. A justificação desta forma de extinção está no facto de a servidão constituir um encargo para o prédio serviente que só se justifica se o prédio dominante fizer efetivamente uso da servidão. Se isso não acontece, a servidão extingue-se. (...) O que interessa, para a aplicação desta al., é a situação objetiva de a servidão não ser usada, para os fins e no modo previstos no título constitutivo, por nenhum dos seus beneficiários e seja qual for o motivo desse não uso” (Isabel Menéres Campos in Comentário ao Código Civil Direito das Coisas, pág. 740).

No caso sub judice, percorrendo o acervo factual provado, conclui-se que não se encontra nenhum facto de onde se possa extrair a conclusão de que a servidão de passagem deixou de ser usada pelos autores para acederem ao prédio de que são proprietários e em benefício do qual a servidão se encontra constituída. Muito pelo contrário, resulta que usam a parcela desde há mais de 50 anos para aceder ao seu prédio e que continuam a usar tal acesso, o qual só desde há 5 anos tem sido dificultado pelos réus, os quais, contra a vontade dos autores, usam a parcela para aparcar carros, o que impede que os autores acedam de carro ao seu prédio (factos 20 e 29 a 31).
Deste modo, não se verifica a extinção da servidão, por não uso, com fundamento no art. 1569º, nº 1, al. b), do CC.

Quanto à al. c) a mesma prevê “a aquisição por usucapião, da liberdade do prédio, expressão que é a tradução da fórmula latina usucapio libertatis. Há a utilização analógica da figura da usucapião, pois o que se obtém não é a constituição mas a extinção de um direito (...). Exige-se que decorra o prazo previsto na lei para a usucapião e ainda que o proprietário do prédio serviente exerça atos de posse, opondo-se ao exercício da servidão, por exemplo, colocando barreiras físicas à passagem” (Isabel Menéres Campos in Comentário ao Código Civil Direito das Coisas, pág. 740).
A “usucapio libertatis consiste na extinção do direito de servidão resultante do exercício, por parte do titular do prédio serviente, de uma posse incompatível com a subsistência do direito de servidão, mantida por certo lapso de tempo.
O exercício de uma posse incompatível com o direito de servidão traduz-se num comportamento que impeça o titular da servidão de atuar sobre o prédio serviente. P. ex., a construção de um muro que impeça o titular da servidão de aceder ao caminho que possibilita a passagem pelo prédio serviente”. Para que o direito de servidão “se extinga por usucapio libertatis, é necessária a verificação dos seguintes pressupostos: (a) oposição ao exercício do direito real menor por parte do titular de um direito real de gozo maior sobre a coisa (no caso da servidão, sobre o prédio serviente); (b) abstenção do titular do direito real menor face à oposição realizada; (c) posse pública e pacífica; (d) decurso do prazo; (e) invocação da usucapio libertatis” (Rui Pinto e Cláudia Trindade in Código Civil anotado, Ana Prata (Coord), págs. 450 e 452).

Percorrendo a matéria factual provada, com interesse para a apreciação da verificação da usucapio libertatis apenas se provou que:

29- Há cerca de cinco anos que os Réus, contra a vontade dos Autores, utilizam a parcela de terreno referida em 14 para aparcar carros.
30- Tendo sempre um carro ou mais do que um, a impedir o acesso de carro ao prédio referido em 1, pela parcela de terreno referida em 14.
31- Só os retirando quando os Autores lhes pedem, discutindo com os mesmos, dizendo que aquela parcela de terreno lhes pertence e que os Autores não têm que por ali passar.
32- Em consequência da descrita actuação dos Réus, os Autores vêem-se assim impedidos de aceder com um veículo para o prédio referido em 1.

Desta matéria resulta que a oposição dos réus à passagem dos autores pela parcela de terreno onde se situa o caminho começou unicamente há 5 anos, altura em que os réus como que inverteram o título de posse, começando a afirmar que a parcela de terreno lhes pertence e que os autores não têm que por ali passar. Não se trata de uma posse sem oposição, porque os autores não aceitam que o acesso esteja vedado e pedem aos réus que retirem os carros, ao que os mesmos acabam por aceder.
Esta posse dos réus, por inversão do título, iniciada há 5 anos, não permite a extinção da servidão por usucapio libertatis na medida em que, tratando-se de posse não titulada (art. 1259º, a contrario, do CC) e que, por isso, se presume de má fé (art. 1260º, nº 2, 2ª parte, do CC), a mesma só poderia conduzir à extinção da servidão decorridos que fossem 20 anos (art. 1296º, do CC), lapso temporal que não decorreu.
Nestes termos, improcede a pretensão dos réus no sentido de a servidão de passagem ser declarada extinta, por usucapio libertatis, ao abrigo do disposto no art. 1569º, nº 1, al. c, do CC.
*
Daquilo que se acaba de expor, resulta que deve ser declarada a existência da servidão de passagem, nos moldes acima analisados.
Essa servidão de passagem, como explicitado supra, é uma servidão predial, um encargo que onera o prédio serviente e beneficia o dominante, o que significa que apenas pode ser declarada a existência da servidão a favor do prédio dominante. Como decorre do que supra já se explanou, as servidões prediais apenas podem ser declaradas relativamente a prédios, e já não relativamente às pessoas que são proprietárias desses prédios, pois a servidão tem natureza real e não pessoal.
Por isso não pode ser declarado que os autores são os titulares do direito de servidão, pois os autores só podem exercer esse direito de passagem enquanto forem proprietários do prédio dominante, deixando de ter tal direito se transmitirem o prédio pois a servidão, enquanto direito real, acompanha o prédio se este vier a ser transmitido, passando a poder ser usada por quem seja o proprietário do prédio dominante, o beneficiado pela existência da servidão.
Por conseguinte, só pode ser declarada a existência de servidão a favor do prédio, pedido que é formulado na al. c), já não podendo ser declarada existência desse direito na titularidade dos autores, pedido que é formulado na al. d), porque os autores só têm o direito de usar servidão na sua qualidade de proprietários do prédio dominante e enquanto a mantiverem, não sendo eles próprios os titulares da servidão, a qual é um encargo predial.

Tendo os réus praticado atos impeditivos do uso da servidão de passagem pelos autores, na qualidade de proprietários do prédio que beneficia da aludida servidão, justifica-se que os réus sejam condenados a reconhecer a servidão e a se absterem de praticar quaisquer atos que limitem ou impeçam o exercício desse direito de servidão, designadamente os atos de aparcamento de carros referidos nos factos 29 e 30 e que impedem o uso da servidão para acesso ao prédio dos autores.
 
Procede o recurso nesta medida, devendo a ação ser julgada procedente, com as precisões atrás explanadas quanto aos pedidos formulados.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso procedido apenas parcialmente quanto à impugnação da matéria de facto e procedido, no essencial, quanto à reapreciação jurídica, considera-se que as custas devem ser suportadas pelos recorrentes, na proporção de 1/6, e pelos recorridos, na proporção de 5/6, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:

A) alteram a matéria de facto nos termos referenciados supra;

B) revogam a sentença recorrida, e:

1) declaram que os autores são proprietários, de forma plena e exclusiva, do prédio urbano, sito no Lugar ..., na freguesia ... (...), Concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...98 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...37;
2) declaram que o prédio descrito em 1) beneficia de servidão de passagem, a pé e de carro, pela parcela de terreno referida no facto 14, com as características, forma, dimensão e extensão assinaladas nos factos 15 a 19, servidão essa constituída por usucapião;
3) condenam os réus a reconhecer a servidão atrás referida e a absterem-se de praticar quaisquer atos que limitem ou impeçam o respetivo exercício, designadamente os atos de aparcamento de carros referidos nos factos 29 e 30.

Custas pelos recorrentes, na proporção de 1/6, e pelos recorridos, na proporção de 5/6.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - De acordo com a noção constante do art. 1543º, do CC, servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.
II - O encargo recai sobre um prédio e aproveita exclusivamente a outro prédio no sentido de que só são admitidas servidões em relação a prédios, não reconhecendo a lei, atualmente, servidões pessoais. Embora a utilidade ou o benefício reverta a favor de um determinado sujeito, ele só pode fazer-se valer dessa utilidade por intermediação do prédio, em razão da titularidade desse outro direito de gozo sobre o prédio dominante.
III - Relativamente à forma de aquisição, face ao disposto nos arts. 1293º, al. a) e 1548º, nº 1, ambos do CC, as servidões prediais não aparentes não podem ser adquiridas por usucapião.
Consideram-se não aparentes, as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (art. 1548º, nº 2, do CC).
IV - Na tarefa de aferição da existência de sinais visíveis e aparentes da servidão há que levar em conta o concreto tipo de utilidade que integra o conteúdo dessa servidão.
V - As descritas caraterísticas da parcela, onde existe um trilho com marcas de rodado, que nunca foi cultivado, tendo parte do piso em alcatrão e parte em terra batida, parcela que é ladeada por paredes em granito e pedra constituem sinais visíveis e permanentes da existência de um caminho perfeitamente demarcado. Sendo por esse caminho que se processa, desde há mais de 50 anos, o acesso dos autores e antecessores ao seu prédio, o que ocorre de forma pública e pacífica, considera-se que se trata de sinais visíveis e permanentes, e não de atos clandestinos, ocultos ou de posse equívoca, sinais esses que são reveladores de uma servidão aparente, nada impedindo a sua constituição por usucapião posto que, no caso, se verificam os demais requisitos da aquisição por usucapião referidos nos arts. 1251º, 1252º, 1254º, 1287º e 1296º, do CC.
VI - Tratando-se, no caso, de servidão constituída por usucapião, a servidão terá o conteúdo definido pela posse que conduziu à aquisição do direito correspondente.
VII - O “julgamento segundo a equidade confere ao tribunal a possibilidade de dar uma resolução ao litígio fundada em critérios de justiça, ao invés de recorrer às normas legais aplicáveis” e só pode ter lugar quando se verifique alguma das situações enunciadas no art. 4º, do CC.
VIII – No art. 20º, da CRP não se estabelece que o tribunal pode decidir segundo a equidade, sendo que a menção a “processo equitativo” que é feita no nº 4 não pode ser interpretada como disposição legal que permita que o tribunal julgue segundo a equidade para efeitos de integrar a previsão do art. 4º, al. a), do CC, sendo antes uma imposição de que exista um processo justo, no qual as partes se encontrem numa posição paritária ou de igualdade, por forma a poderem fazer valer os seus direitos sem constrangimentos, devendo as suas pretensões ser apreciadas de forma objetiva e por uma entidade imparcial e equidistante.
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Guimarães, 2 de março de 2023

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas