Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
42/16.4T8FAF-A.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: INCIDENTE
DEVER DE SIGILO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: A procedência do incidente a que se referem os artigos 417.º n.º 4 CPC e 135.º n.º 3 CPP, pressupõe, para além do mais, que a entidade interpelada se recusou a prestar a informação que lhe foi pedida.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
Nos autos de inventário, subsequente a divórcio, que se encontram na Secção Cível da Instância Local de Fafe, da Comarca de Braga, são interessados Augusto L e Lucinda P.
A Senhora Notária, no seguimento de um requerimento apresentado pela interessada e cabeça-de-casal Lucinda Pereira, veio a ordenar a notificação do Banco de Portugal para informar "(…) estes autos de inventário se existiam, à data de 10/09/2013, em alguma Instituição Bancária Portuguesa, quaisquer contas em nome do ex-casal Augusto L (…) e Lucinda P (…), bem como para informarem da data da abertura dessas contas bancárias e dos seus movimentos desde um ano antes do divórcio até um ano após o divórcio".
O Banco de Portugal respondeu dizendo, em suma, que:
"(…) para os efeitos pretendidos por V. Exa, o Banco de Portugal solicita que lhe seja enviado documento comprovativo de que os interessados, titulares dos dados em causa, enquanto pessoas com poderes para consentir no acesso às informações acima mencionadas, transmitiram a V. Exa. autorização referindo-se expressamente ao Banco de Portugal e à informação que em seu próprio nome consta na Base de Dados de Contas.
Solicita-se a V. Exa. a devida consideração por estes constrangimentos decorrentes exclusivamente de restrições que lhe são impostas por lei e cuja inobservância pode envolver responsabilização própria (civil e criminal) desta Instituição e dos seus colaboradores.
Informa-se ainda que a consulta à Base de Dados de Contas e obtenção do mapa de contas referentes ao titular pode ser realizada online, através da internet, no sítio institucional do Banco de Portugal, no Portal do Cliente Bancário.
Não obstante o supra referido, o Banco de Portugal disponibiliza-se para proceder à divulgação do pedido de informação por todo o sistema bancário nacional, desde que V. Exa nos habilite, para o efeito, com ofício que expressamente veicule tal solicitação."
Remetido o processo a juízo, a Meritíssima Juiz proferiu o seguinte despacho:
"Vieram os autos de partilha de bens por divórcio, remetidos do Cartório Notarial de Sara Maria Ribeiro Machado, a fim de que seja apreciada a legitimidade da escusa com fundamento em sigilo profissional invocada pelo Banco de Portugal.
Cumpre apreciar.
Efectivamente, não existe nos autos autorização do interessado reclamante para acesso aos elementos bancários solicitados, existindo apenas autorização da cabeça-de-casal para tal efeito.
(…)
Ora, não havendo consentimento dos titulares das contas, e verificando-se que as informações pretendidas se encontram abrangidas pelo segredo bancário, a recusa da sua prestação afigura-se-nos legítima.
Assim sendo, a quebra do sigilo bancário só poderá concretizar-se mediante o recurso ao respectivo incidente de quebra de sigilo, regulado no artigo 135.º, do Código de Processo Penal, nos termos do qual só o Tribunal superior pode pronunciar-se sobre a existência ou não de fundamento, à luz do interesse preponderante, de quebra de sigilo.
Face ao exposto, suscita-se a intervenção do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães nos termos e para os efeitos previstos no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal ex vi do artigo 417.º, n.º 3, alínea c) e 4, do Código de Processo Civil."
Tem, assim, que se concluir que, nos termos dos artigos 417.º n.º 4 do Código de Processo Civil e 135.º n.º 3 do Código de Processo Penal, foi suscitado o incidente de dispensa do dever de sigilo.
II
O n.º 1 do artigo 417.º do Código de Processo Civil estabelece o princípio de que "todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os aptos que forem determinados."
Porém, na alínea c) do seu n.º 3 admite-se que a recusa em colaborar é "legítima se a obediência importar a violação do sigilo profissional (…), sem prejuízo do disposto no nº 4". E neste n.º 4 diz-se que "deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado."
O n.º 4 deste artigo 417.º remete-nos, assim, para o artigo 135.º do Código de Processo Penal, onde se dispõe nos seus n.os 2 e 3 que:
"2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento."
Perante este quadro, quando for invocado o direito de escusa, o juiz terá que, desde logo, decidir se essa escusa é, ou não, legítima. E, concluindo que ela é legítima pode, então, nos termos do n.º 3 deste artigo 135.º, suscitar junto do tribunal que, em termos hierárquicos, lhe é imediatamente superior, a quebra do segredo, nomeadamente quando entender que esta se mostra imprescindível para "a descoberta da verdade".
No caso dos autos verifica-se que, na sequência da notificação que lhe foi feita, o Banco de Portugal (ainda) nada recusou.
Na verdade, examinada com a devida atenção a resposta dada, vemos que nela o BdP somente solicitou que lhe fosse "enviado documento comprovativo de que os interessados, titulares dos dados em causa (…) transmitiram a (…) autorização" para aquilo que estava a ser pedido. Para além disso, o BdP limita-se a dar dois esclarecimentos; um no sentido de que "a consulta à Base de Dados de Contas e obtenção do mapa de contas referentes ao titular pode ser realizada online" e o outro dando nota de que se disponibiliza para "para proceder à divulgação do pedido de informação por todo o sistema bancário nacional, desde que V. Exa nos habilite, para o efeito, com ofício que expressamente veicule tal solicitação."
A procedência deste incidente pressupõe, para além do mais, que o acesso à informação pretendida foi recusado, pois só nesse caso é que se coloca a questão de saber se, havendo essa recusa, esta é, ou não, legítima.
Portanto, o tribunal da Relação, quando perante si é suscitado o presente incidente, para o decidir tem que, antes do mais, indagar se na situação que lhe é exposta há alguma recusa.
Salvo melhor juízo, a conclusão a que a Meritíssima Juiz chegou, de que "a recusa da (…) [informação pedida] (…) [é] (…) legítima", assenta num equívoco, pois, como se viu, o BdP nada recusou. E a Senhora Notária, já antes, também se havia equivocado, visto que perante a resposta do BdP e aquilo que se encontra no processo, impunha-se que tivesse, sim, informado esta instituição de que a interessada Lucinda P dava a autorização em causa mas que o interessado Augusto L a não dava . Então, muito provavelmente, o BdP teria, efectivamente, recusado prestar a informação requerida. Mas, a verdade é que não o chegou a fazer.
Não tendo havido, realmente, uma recusa, a questão da legitimidade ou ilegitimidade desta, como é evidente, nem se coloca, o mesmo é dizer que este incidente não pode atingir o objectivo que lhe subjaz.
III
Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o presente incidente.

Sem custas.
10 de Março de 2016
(António Beça Pereira)
(António Santos)
(Maria Amália Santos)