Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
80/13.9GCPRG.G1
Relator: MANUELA PAUPÉRIO
Descritores: COACÇÃO
DISPAROS COM ARMA DE FOGO
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: Não comete o crime de coação do artº 154º, nº 1, do Código Penal, o arguido que ao efectuar três disparos, com arma de fogo, pretendeu fazer ver ao ofendido que era detentor de uma arma de fogo em funcionamento, e que estava disposto a usá-la, se necessário fosse.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I)- Relatório:

Nestes autos de processo comum com o número acima identificado que correu termos pelo J1 da Secção criminal da Instância Central de Vila Real do Tribunal da Comarca de Vila Real foi o arguido Carlos M. julgado e condenado pela autoria de um crime de coação previsto e punido pelo artigo 154º número 1 do Código Penal, na pena de 125 dias de multa, à taxa diária de 10,00€ ou seja na multa de 1 250,00€ tendo-lhe sido ainda aplicada a pena acessória de interdição de detenção de arma pelo período de 3 anos, tendo igualmente sido declarado o perdimento a favor do Estado da arma e das munições apreendidas ao arguido.

Inconformado com a decisão proferida dela veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de folhas 331 a 338 dos autos que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos e que concluiu pela forma seguinte: (transcrição)
1º. O tribunal veio a condenou o Arguido pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de coação p. p. pelo art.º 154.º n.º 1 do Código penal, na pena de multa de cento e vinte e cinco (125) dias,

2º. O tipo objetivo da coação consiste em constranger outra pessoa a adotar um comportamento: praticar uma ação, omitir determinada ação ou suportar uma ação, sendo os meios de coação a violência ou a ameaça com um mal importante.

3º. E a violência compreende, indubitavelmente, a intervenção da força física sobre o sujeito passivo, exigindo-se a verificação do resultado para a sua consumação, ou seja, exige-se que a pessoa, objeto da ação de coação tenha efetivamente sido constrangida a praticar a ação, a omitida ação ou a tolerar a ação de acordo com a vontade do coator e contra a sua vontade.
ORA,
4º. Perante este quadro legal, jurisprudencial e doutrinário, é indubitável que perante os factos dados como provado e não provados, não vislumbramos verificação dos pressupostos necessários para a verificação do tipo de crime em causa.

5º. Não estando verificado nem o tipo, nem a ação e muito menos o elemento volitivo.

6º. As palavras proferidas a cerca de 23,5m do local em que o ofendido se encontrava, a quem vai ao volante do seu veículo, em pleno andamento, sem qualquer obstáculo que o impeça de prosseguir caminho, ainda que proferidas enquanto se procede a três disparos, possam consubstanciar um crime de ameaça, quando, prosseguiu o seu caminho sem que qualquer comportamento do arguido o tivesse impedido!!!

7º. Situação em tudo idêntica à vertida e tratada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito do Processo: 823/08.2GBGMR.G1, datado de 07/01/2013.

8º. Atendendo à fundamentação expandida, ainda que se aceitasse a subsunção dos factos ao crime de ameaça, ante a matéria de facto dada como provada, à semelhança do que sucede no d. Ac., sempre estaríamos perante a prática do crime na forma tentada, o que no tipo de crime em causa, face ao que resulta do disposto no art.º 24.º n.º 1 do CP não é punível.

A este recurso respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido nos termos que constam de folhas 364 a 378 dos autos concluindo que a decisão proferida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto e punido pelo artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, pelo que entende ficarem prejudicadas as questões colocadas pelo arguido.

Neste Tribunal da Relação a Digna Procuradora Geral Adjunta embora aderindo ao parecer do Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluiu pela improcedência do recurso.

Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código de Processo Penal nada veio a ser acrescentado no processo.

Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II) Fundamentação:
A decisão recorrida tem o seguinte teor: (transcrição)
1. No dia 22 de Julho de 2013, pelas 19h00, o arguido quando se encontrava no terraço da sua habitação, sito no Lugar dos …, Santa Marta de Penaguião, apercebeu-se que o ofendido se encontrava a circular na via pública, ao volante do seu veículo, junto à referida habitação, na estrada antiga que liga Santa Marta de Penaguião – Peso da Régua, em virtude de a nova variante que dá acesso à sua habitação se encontrar em obras.

2. O arguido verificou ainda que o ofendido estava com dificuldades em passar por estarem vários veículos estacionados nas imediações da sua residência.

3. Nesse momento, o arguido dirigindo-se ao ofendido perguntou-lhe em voz alta e com ar de gozo “Não passa?”, ao que ofendido respondeu dizendo: “Eu estou a ver se consigo passar. Como a estrada está fechada lá em baixo vocês – referindo-se ao arguido e as restantes pessoas que o acompanhavam
– fazem de conta que isto é tudo de vocês”.
4. Nisto, o arguido irritado, aproximou-se a passo apressado da varanda, debruçou-se, a fim de se fazer ouvir perante o ofendido e, disse-lhe gesticulando, algo que não lhe foi perceptível.
5. No dia 30 de Julho de 2013, pelas 20h40, o arguido que se encontrava, uma vez mais, no terraço da sua habitação, acima identificada, munido de uma arma de fogo, vislumbrou a uma distância de sensivelmente 23,5 m, JOAQUIM V., sozinho, ao volante do seu veículo, com caixa aberta, a circular no sentido L. – S. Miguel de Lobrigos.
6. Este verificou, igualmente que o vidro do condutor se encontra aberto e de seguida, em voz alta dirigiu-se para o ofendido e disse-lhe : “oh filho da puta, pára agora aqui…”
7. Ao ouvir tais palavras, o ofendido virou-se para a habitação do arguido, altura em que viu o arguido empunhando uma arma de fogo, cujas características não foi possível apurar, e, de imediato, efectuou três disparos, na altura em que o veículo onde o ofendido circulava estava em andamento.
8. Nenhum dos projécteis disparados atingiu o ofendido ou o veículo.
9. No dia 11.02.2014, no decurso de cumprimento de mandados de busca foi encontrado e apreendido na residência sita na Rua dos E., pertença do arguido, em concreto na gaveta da cómoda do quarto do arguido, uma pistola semi-automática, de calibre 6,35mm BROWNING (.25 ACP ou .25 AUTO na designação anglo-americana), de marca PIETRO BERETTA, de modelo 950B, com o n.º de série A31077V, de origem italiana, munida de carregador e municiada com uma munição do mesmo calibre introduzida na câmara, em boas condições de funcionamento.
10. O arguido é detentor de arma no domicílio n.º 26397/2013.01, emitida pela Direcção Nacional da PSP em 16.05.2013 e válida até 12.05.2023, sendo possuidor de uma arma de fogo de classe B1, marca Pietro Berreta, calibre 6,35 mm, com o n.º A31077V, registada e manifestada sob o livrete de manifesto de arma n.º J27216.
11. Em consequência das palavras proferidas pelo arguido no ponto 6. o assistente sentiu-se ofendido na sua honra e consideração.
12. O arguido ao efectuar três disparos, com arma de fogo, pretendeu fazer ver ao ofendido que era detentor de uma arma de fogo em funcionamento, e que estava disposto a usá-la, se necessário fosse.
13. O arguido conhecia as características, perigosidade e forma de manusear a arma de que se muniu.
14. O arguido actuou conforme descrito, após uma troca de palavras com a vítima, ocorrida dias antes.
15. O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era e é punida por lei.
16. O arguido não tem antecedentes criminais.
17.O arguido está arrependido.
18. O ofendido perdoou o arguido.
9. O arguido nasceu e cresceu numa família equilibrada e estruturada afetiva e socioeconomicamente, tendo mais dois irmão, um deles com deficiência.
20. Os pais eram comerciantes e transmitiram-lhe adequados valores de int5egração social.
21. O arguido completou o 11.º ano e ingressou na…, de onde saiu dois anos depois, tendo ingressado na … de Santa Marta de Penaguião, onde trabalha até hoje como leitor cobrador, a que acresce o trabalho agrícola em campos próprios e a ajuda aos pais na mercearia e café de que são proprietários.
22. Casou aos 21 anos de idade e tem um filho, estando a esposa reformada por invalidez, devido a problemas pulmonares.
23. À data dos factos, o arguido vivia com a esposa, o filho, a nora e o neto, de três anos, numa moradia pertença do seu filho, com boas condições de habitabilidade.
24. O arguido aufere € 800,00 por mês, recebendo a esposa € 225,00 mensais de reforma, a que acresce o salário da nora, de cerca de € 850,00, tendo o filho ficado, entretanto, desempregado.
25. O arguido é tido no seu meio social como pessoa séria, honesta, trabalhadora, sendo respeitado por todos.



Factos não provados:
Qe o arguido tivesse empunhando a arma de fogo na direção do ofendido e que os três disparos efetuados tenham sido, igualmente, na direção do ofendido.
Que o arguido ao efetuar três disparos, com arma de fogo, representou como possível que algum ou todos os disparos que efetuou o pudesse atingir em órgãos vitais e causar-lhe a morte, e, ao assim proceder, conformou-se com ela, e só não atingiu o ofendido e/ou provocou a sua morte por razões estranhas à sua vontade.
Que o arguido desconhecesse o ofendido.
O tribunal não se pronuncia nesta sede sobre o segmento “ao assim agir, por motivo fútil, o arguido demonstrou ser insensível ao valor da vida humana”, uma vez que contém juízo conclusivo.»

A matéria assente encontra-se fundamentada pela forma seguinte: (transcrição)


Provas a que o tribunal atendeu para decidir a matéria de facto pela forma que antecede e razões determinantes da convicção formada:

a) Declarações do arguido que contou o que se passou entre ele, o ofendido e as pessoas que estavam em sua casa numa noite de festejos e petiscadas, designadamente as dificuldades que aquele teve para ali passar de carro por causa dos veículos dos convidados que ali estavam estacionados, referindo-se a uma troca de palavras e ameaças por parte daquele – não tendo o tribunal acreditado na parte da ameaças com pistola -, e admitiu que uns dias depois deu dois trios quando o ofendido por ali passava, mas que não o fez na direção do ofendido e que nunca o pretendeu matar, estando de bem com ele neste momento, e encontrando-se profundamente arrependido do que fez; para convencer de que nunca o quais matar, disse ter sido agente da PSP, tendo tido treino de tiro, pelo que, se quisesse, tinha-lhe acertado facilmente; ora, em relação à intenção com que o arguido deu os tiros (segundo o próprio, para o ofendido não mais o incomodar), o tribunal ficou com dúvidas que tivesse sido para o matar, que tivesse sequer apontado para ele, pois, para além das provas adiante referidas que para isso contribuíram, deve ter-se presente que nenhum dos três tiros (e não dois, como disse o arguido) acertou, sequer, na carrinha do ofendido, que era uma carinha de carga, de caixa aberta, com vários metros de comprimento, que estava a cerca de 23 metros do arguido e que seguia a uma velocidade normal senão mesmo devagar, tendo o arguido experiência de tiro como ex-agente da PSP
b) Declarações do assistente, que descreveu o que se passou na ocasião em que decorria s sardinhada em casa do arguido, designadamente a sua dificuldade em passar ali com o carro e as conversas ali havidas por causa disso, bem como o que sucedeu quando o arguido efetuou os disparos; de relevante disse que não sabe em que direção estes disparos foram efetuados, não podendo dar a certeza que tenha sido efetuados na sua direção; é certo que depois de ter pedido para sair da sala, para falar com a sua advogada, o assistente apresentou diferentes declarações, escudando-se em pressões de advogados dizer o que havia acabado de dizer no julgamento – nitidamente dando a entender que o acordo cível e criminal obtido entre as partes no início da audiência teria como contrapartida o que o assistente tinha acabado de declarar; todavia, e independentemente disso, é sempre complicado valorar (como espontâneo) um depoimento de um assistente depois de o mesmo ser interrompido para conferenciar com o seu advogado, sendo certo que mesmo dizendo que os disparos foram na sua direção, quer no inquérito, quer no julgamento, poderá, perfeitamente, o assistente estar a fugir à verdade, mais não seja para criar problemas ao arguido - e relembre-se que o tribunal, perante as concretas circunstâncias do facto, já tinha sérias dúvidas sobre a intenção de matar do arguido e sobre a pontaria em direção ao ofendido;
c) Depoimento da testemunha Hélder F., agente da .., que efetuou a busca a casa do arguido e que esteve no local em que ocorreram os factos, tendo medido a distância que vai do local onde forma feitos os disparos até ao local onde circulava a carrinha do ofendido; participou ainda na reconstituição do facto segundo a versão do ofendido, a qual demonstra a verosimilhança da sua versão, que, de resto, é igual à que o arguido apresentou em julgamento, diferindo as versões apenas (a do assistente apenas numa segunda fase, diga-se), em relação ao local para onde o arguido apontou a arma;
d) Depoimentos das testemunhas António J. e José F., pintores de automóveis, sendo o primeiro amigo e o segundo irmão do arguido, que contaram o que se passou na altura em que ofendido teve dificuldade em passar com a sua viatura junto à porta do arguido, e descreveram o local, designadamente a diferença de nível existente entre o terraço da casa do arguido (de onde foram disparados os tiros) e o local onde estaria o ofendido quando os tiros terão sido efetuados, o que rondará, mais ou menos os 5 a 7 metros de altura; quanto a estes depoimentos, o tribunal não acreditou que no dia em que ocorreu a discussão entre ofendido e arguido aquele tenha passado no local munido de uma arma e que com ela tenha proferido qualquer ameaça ao arguido, pois seria dificilmente compreensível que os agentes a autoridade que estiveram no local por causa disso (adiante referidos) nada tivessem feito em relação à alegada detenção de arma, caso a situação tivesse realmente ocorrido – limitaram-se a ir falar com o ofendido e a dar o assunto como encerrado, escudando-se da necessidade de queixa para poderem atuar pela alegada ameaça, queixa essa que nunca foi apresentada, o que, igualmente, não deixa de ser curioso, especialmente se tivermos em conta que o arguido foi acusado de tentativa de homicídio;
e) Depoimento da testemunha Carlos E., agricultor, amigo do arguido, que estava no local quando este efetuou os disparos, tendo dito que ouviu o primeiro e viu o segundo, descrevendo a situação de tal modo que nunca o arguido poderia estar a apontar para o ofendido – acentuado declive entre o terraço onde o arguido se situava e a estrada em que o ofendido seguia, sem que o arguido tivesse baixado o braço o necessário para que os projéteis pudessem seguir trajeto em direção ao veículo onde este seguia;
f) Depoimentos das testemunhas António G. e do seu camarada de patrulha, que no dia em que ocorreu a discussão entre arguido e ofendido se dirigiram ao local, por causa de uma chamada telefónica a denunciar uma ameaça (do ofendido) com arma de fogo, que contaram ao tribunal o que lhes foi dito no local e o que fizeram em seguida, ficando o tribunal convencido de que nada lhes foi dito sobre arma na posse do ofendido, ou que, se o foi, não o levaram a sério, uma vez que se limitaram a ir falar com aquele, e sumaria e informalmente o inquirir, nada mais fazendo, o que não compatível com a eventual denúncia de detenção e arma proibida (crime público), uma vez que o ofendido não tem licença de uso e porte de arma da classe B ou B1 (ele traria consigo uma pistola, segundo as “testemunhas”); enfim, os agentes conhecem arguidos e ofendido e residem todos em locais próximos, e certamente se convenceram de que nada de sério se teria passado, apesar do que lhes disseram, e por isso nada mais fizeram – ao contrário da PJ, como se vê de fls. 72 os autos;
g) Depoimento da testemunha José F., motorista de pesados, amigo de arguido e ofendido, que, no dia em que os factos ocorreram seguia no seu veículo atrás do ofendido, quando sentiu disparos, pensando inicialmente que eram para si, pelo que parou, tendo o arguido dito que não era nada com ele, pelo que a seguir falou com o ofendido e ajudou-o a participar a situação; esclareceu que foram três disparos, disse que o arguido estava no terraço de sua casa de pistola em punho, e que o seu braço estava a apontar na direção do local em que a testemunha e o ofendido seguiam ao volante das suas viaturas; todavia, quando lhe foi pedido para exemplificar a exata posição do braço e mão do arguido aquando dos disparos, mostrou, pela sua postura, que o braço e a mão que empunhava a pistola estavam a em posição perpendicular em relação ao corpo, o que, conjugado com o declive existente entre o locai de onde foram efetuados os disparos e o local onde se encontrava a testemunha e o ofendido, levaria a concluir, necessariamente, que a trajetória dos projeteis teria de ser traçada muito acima dos veículos em que ambos seguiam – na verdade, para alvejar a testemunha ou ofendido o arguido teria que dirigir o braço e a mão bem mais para baixo, formando um ângulo bem menor entre a linha do corpo e a linha do braço, para que o projétil pudesse ter um trajetória que respeitasse o declive já mencionado e, assim, poder atingir o ofendido (ou a testemunha, na versão desta, e segundo a sua inicial impressão);
h) Relatório de exame pericial, a fls. 79 a 81, em relação à arma apreendida ao arguido;
i) Informação da PSP, a fls. 9, que demonstra a licença de que o arguido é titular, bem como a propriedade da arma que lhe foi apreendida;
j) auto de apreensão, a fls. 62 a 63, em relação à arma apreendida ao arguido;
k) Registo fotográfico a fls. 64, relativo a essa mesma arma;
l) Auto de reconstituição, a fls. 87 a 90 que, em conjugação com a prova testemunhal acima referida, demonstra com segurança que o arguido
nunca poderia ter alvejado o ofendido com a forma como empunhou a arma, uma vez que o declive demonstrado pelas fotografias constantes do autos, exigiria um significativo abaixamento do braço e da mão para que os projéteis pudessem acompanhar a orografia do terreno e manter um percurso descendente e paralelo, quase rasante a essa linha descendente que ligava os dois pontos – o terraço do arguido e a estrada por onde seguia o ofendido; além disso, não pode esquecer-se que o arguido foi agente da PSP, tendo tido treino de tiro, e efetuou três disparos, a cerca de 20 metros, e que nenhum dos projéteis disparados atingiu a carrinha em que seguia o ofendido ou a viatura em que seguia a testemunha referida em g), o que é sintomático de que não foi alvejada a viatura ou o ofendido quando o arguido efetuou os disparos;
m) CRC, a fls. 109;
n) Relatório social de fls. 223.»

Importa conhecer:

O âmbito do recurso é limitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal Código de Processo Penal.
No caso sub judice vem o recorrente colocar em causa a sua condenação pelo crime de coação, crime cujos elementos típicos entende não se encontrarem preenchidos pelos factos apurados na sentença sob recurso, quando muito, refere, consentiriam a sua classificação como ameaça, porém, perante a matéria assente estaríamos perante um crime tentado, não punível portanto.
Vejamos então se razão assiste ao recorrente.
O que resultou provado foi que, no dia 30 de julho de 2013 (após uma anterior altercação ocorrida entre o arguido e o ofendido no dia 24 desse mesmo mês), pelas 20:40 horas, noite portanto ou, pelo menos, anoitecendo, já que em 2013, em julho, esteve um tempo muito quente e seco, com temperaturas elevadas, dias de pleno verão, onde, por vezes, a noite caiu por volta das 21:00 horas, Informação meteorológica obtida em Https://www.ipma.pt/resources.www/docs/im.publicacoes/edicoes.online o arguido, à varanda da sua residência, vendo o ofendido passar conduzindo uma carinha de caixa aberta, diz-lhe: “ ó filho da puta, para agora aqui”. Ouvindo isto o ofendido olha para a habitação e vê o arguido empunhando uma arma ao mesmo que efetuava três disparos. O ofendido prosseguiu o seu andamento sem que ele ou a sua viatura fossem atingidos por algum disparo.
O arguido vinha acusado do cometimento de um crime de homicídio na forma tentada agravado (pela circunstância de ter sido usada uma arma). No entanto, o tribunal deu como não provado que o arguido ao atuar pela forma como atuou tivesse tido intenção de atentar contra a vida do ofendido ou de o atingir no corpo, afastando, de igual modo, que tivesse previsto esse resultado como consequência necessária da sua conduta ou, sequer, como sua eventual consequência, razão pela qual o absolveu do cometimento desse crime.
Sempre se dirá que se vê como muito difícil esta conclusão quando não se encontra igualmente provado que o arguido levantou a arma e disparou para o ar, porque se assim fosse sempre se poderia concluir que o arguido não quis atentar contra a vida ou contra a integridade física do ofendido, pretendo antes, por exemplo amedrontá-lo, fazer-lhe uma ameaça de morte.
Porém, não nos deteremos muito nesta questão porque o recurso foi interposto apenas pelo arguido, sendo proibida a reformatio in pejus.
Para se poder saber então qual o crime cometido, mais, para se apurar se o comportamento é criminoso, importa apurar a intenção com que o arguido atuou e, a este propósito, a decisão recorrida afirma no 12º dos factos provados que: «O arguido ao efetuar três disparos, com arma de fogo, pretendeu fazer ver ao ofendido que era detentor de uma arma de fogo em funcionamento, e que estava disposto a usá-la, se necessário fosse.»
Ora este facto respeitante a uma realidade subjetiva tem de resultar evidenciado dos factos assentes. Se foi isto que o tribunal deu como provado evidentemente que não existe o cometimento de qualquer crime por parte do arguido.
Esta factualidade foi integrada pelo tribunal no crime de coação, previsto e punido pelo artigo 154º nº 1 do Código Penal. Mas sem razão. Preceituo este normativo legal que:
«1 — Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa
(…) »
Na explicitação do bem jurídico que se encontra tutelado pela incriminação diz-se que é «(…) a liberdade pessoal; a liberdade de decisão e de realização da vontade. Qualquer conduta através da qual se exerce um constrangimento físico ou psíquico sobre uma pessoa ou se lhe subtrai a possibilidade de agir ou realizar a sua vontade pode ser vista como uma agressão (potencial) ao bem jurídico da liberdade pessoal». Ver anotação ao artigo 154º in Código Penal: Parte Geral e Especial” de M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio.
Ainda in Comentário do Código Penal de Paulo Pinto Albuquerque: « o bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade de decisão e de ação de outra pessoa”

Assim sendo não se retira da matéria assente factos que nos revelem em que medida a liberdade do ofendido ficou condicionada ou em que medida ele foi compelido suportar fosse o que fosse, pois o ofendia continuou no seu caminho, fazendo o que tinha decidido fazer sem que a ação perpetrada pelo arguido – os disparos com a arma – o tivesse impedido ou compelido, constrangido portanto, a fazer o que não queria.

Constranger significa obrigar, «suportar ou omitir por meios coativos aquilo que, por seu livre alvedrio a vítima não teria decidido fazer, suportar ou omitir» In: «Código Penal: Parte Geral e Especial” de M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio».
Ora nenhum dos factos apurados nos dão nota de ter o arguido, com o seu comportamento, compelido o ofendido a qualquer coisa que não quisesse ter feito antes. Mesmo a construção artificiosa feita pelo tribunal recorrido esbarra perante a constatação de que o ofendido não foi obrigado a suportar a “atividade de pistoleiro (seja isso o que for) do arguido, pois não emerge dos factos apurados que o ofendido tenha sido obrigado a abrandar, muito menos a deter a marcha da sua viatura ou, sequer, a alterar o percurso inicialmente por si delineado.
É outra coisa, diversa do que se encontra apurado, o cometimento do crime de coação. Ac da RP de 23/2/2011, processo 465/09.5GCSTS.P1, in www.dgsi.pt
Comete o crime de coacção do art. 154º, nº 1, do Código Penal aquele que, agindo com dolo, efectua disparos com arma de fogo a cerca de 20 metros do manobrador de uma máquina que procedia à escavação de terras, a fim de o impedir de continuar os trabalhos, conseguindo.

Ac da RP de 13-07-2011, processo 416/10.4TAOAZ.P1, in www.dgsi.pt
I – O critério distintivo tradicional entre os crimes de Ameaça [art. 153.º, do CP] e de Coacção [art. 154.º, do CP] é a temporalidade da intimidação.
II – Sem prejuízo deste critério (formalista) funcionar como coadjuvante, a distinção deve, contudo, assentar em razões teleológicas ligadas à especificidade dos bens jurídicos tutelados por cada uma das normas.
III – Assim, integrará um crime de Ameaça a conduta que afectar a liberdade de formação da vontade ou a segurança e tranquilidade da pessoa visada; e haverá crime de Coacção se ocorrer um constrangimento da liberdade de agir ou de acção.
IV – A expressão “(…) vou fodê-lo, dou-lhe dois tiros nos olhos” proferida pelo arguido em tom sério e grave, de punhos cerrados, quando atravessou a rua para se dirigir ao ofendido consubstancia fortes propósitos intimidatórios e, como tal, a respectiva conduta constitui um crime de Ameaça

Ac da RP de 9/01/2013, processo 1516/08.6PBGMR.P1, in www.dgsi.pt
I – O critério distintivo entre o crime de ameaça e o crime de coação deve contar, para além do parâmetro formalista da temporalidade da intimidação [cominação de um mal futuro na ameaça; e ação intimidadora iminente ou atual na coação], com o enfoque de um critério teleológico segundo o qual constituirá crime de ameaça a ação que afete a liberdade de formação da vontade ou a segurança e a tranquilidade da pessoa visada, e integrará um crime de coação a conduta do agente em resultado da qual vier a ocorrer um constrangimento da liberdade de agir ou de ação da vítima.


Na tentativa de salvar uma decisão pouco avisada, dizemo-lo com o devido e merecido respeito, o Ministério Público na resposta que apresentou, alega padecer a decisão proferida de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Estaremos perante insuficiência para a decisão da matéria de facto quando a decisão de direito proferida não encontre na matéria de facto provada uma base sólida e consistente que a suporte: traduz-se, pois, numa insuficiência dos factos provados para a conclusão jurídica exposta no texto da decisão recorrida Ver neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-04-2004, in Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XII, tomo II, pp. 166-167.
Ora não é isso que se passa no caso em apreço que mais não é que um errado enquadramento jurídico efetuado pelo tribunal. Para haver crime de coação era necessário a existência de outros factos, diversos daqueles que foram apurados. O arguido vinha acusado pela autoria de um crime de homicídio na forma tentada. Ao não dar como provado que o arguido quis atingir o ofendido, ao ter afastado, sem rebuço, qualquer intenção de atingir a integridade física do ofendido, nem que fosse a título de dolo eventual, não resta senão a absolvição do arguido, pois qualquer outro crime implicaria a alteração dos factos constantes da acusação – a qual, em nosso entendimento, sequer seria não substancial -.
Da absolvição decorre necessariamente a não condenação do arguido na interdição de detenção de arma a qual apena pode ser aplicada nos termos seguintes:
« 1 - Pode incorrer na interdição temporária de detenção, uso e porte de arma ou armas quem for condenado pela prática de crime previsto na presente lei ou pela prática, a título doloso ou negligente, de crime em cuja preparação ou execução tenha sido relevante a utilização ou disponibilidade sobre a arma. (…) »
Resultando igualmente provada que a arma apreendida ao arguido se encontrava devidamente registada e manifestada determina-se igualmente a sua restituição.

3 – Decisão:
Acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido Carlos M., absolvendo-o do crime pelo qual foi condenado e da interdição de detenção de arma, determinando-se a entrega da arma que lhe foi apreendida.

Sem tributação.
(elaborado pela relatora e revisto por ambas as subscritoras)