Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4169/09.0TJVNF.G1
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DECORRENTE DO REGISTO
DEFINIÇÃO DA DELIMITAÇÃO FISICA DO PRÉDIO
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. Um caminho que, em dado momento passado, foi propriedade privada de particulares pode passar a qualificar-se como público por uma das seguintes vias:
a) Por ato ou negócio que implique a aquisição do direito de propriedade por entidade pública (contrato, testamento, expropriação); ou
b) Pelo uso direto e imediato do público desde tempos imemoriais.
II. A invocação da aquisição do direito de propriedade sobre determinada coisa por usucapião pode ser feita de forma tácita através da alegação de factos que integram os seus requisitos, em contestação tendente a contrariar e impossibilitar os factos constitutivos do direito de propriedade do autor sobre a mesma coisa.
III. A aquisição por usucapião pode incidir sobre faixa de terreno que antes era parte de prédio vizinho mas sobre a qual se prolongou a construção em terreno próprio; se, tendo havido prolongamento da construção por terreno alheio, não se tiverem verificado os demais pressupostos da aquisição por acessão, pode a aquisição vir a dar-se por usucapião quando os requisitos desta estiverem preenchidos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães*:

I. Relatório
AAe BB, casados entre si, autores nos autos de ação popular à margem referenciada, em que são réus CCe outros, não se conformando com a sentença proferida em 24/03/2016 que julgou a ação totalmente improcedente, dela interpõem o presente recurso.

Resumo do litígio:
Os Autores são donos de um prédio rústico, em Famalicão; os Réus são donos de um prédio urbano (Edifício) vizinho. Entre eles, a poente do terreno dos Autores, há uma faixa de terreno que ter feito parte do seu prédio e que terá sido cedida ao domínio público. Os Autores alegam que os Réus colocaram indevidamente cancela no início dessa faixa (caminho), impedindo o uso pelos Autores e terceiros. Os Réus, por seu turno, afirmam que a dita faixa é parte integrante do seu prédio.
Na sua petição, os Autores formularam os seguintes pedidos:
a) Condenação dos Réus a reconhecer que os autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio identificado;
b) Condenação dos Réus a reconhecerem que a faixa de terreno referida faz parte integrante do domínio público e que os Autores têm o direito de nela passar, em toda a sua extensão e sem embaraço, ou, caso assim não se entenda, faz parte integrante do prédio dos Autores;
c) Condenação dos Réus a absterem-se da prática de quaisquer atos lesivos desses direitos, nomeadamente deixando de dificultar ou impedir o acesso de e para o prédio dos Autores, através da faixa de terreno referida, repondo-a no mesmo estado em que se encontrava antes de a ocuparem, ou seja, demolindo o muro referido para que a passagem e entrada no prédio dos Autores se processe sem entraves;
d) Condenação dos Réus a pagar aos Autores uma indemnização de € 5.000 acrescida dos juros que sobre esse montante caírem à taxa legal desde a data da citação até ao integral pagamento;
e) Cancelamento de quaisquer registos efetuados em contrário do peticionado.
Os Réus contestaram pugnando pela improcedência total da ação.
Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente.

Da sentença, recorrem os Autores, concluindo nas suas alegações de recurso:
«A. Quer relativamente ao pedido principal quer relativamente ao pedido subsidiário, cumprindo o disposto no art. 640º CPC importa desde já consignar que a resposta à matéria de facto constante da al. Q) da matéria de facto dada como provada deveria ter sido não provada, na parte onde refere “Até há cerca de 29 anos” bem como toda a conjugação de verbos, no passado (estiveram, fazia); da al. W da matéria de facto dada como provada deveria ter sido não provada a parte onde refere “desde a construção do prédio há mais de 28 anos”; da al. S) da matéria de facto dada como provada deveria ter sido não provada a parte onde refere réus, devendo aí ficar provado “autores”; das al. X), Y), Z) e AB) da matéria de facto dada como provada deveria ter sido não provada; dos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 13, 14 e 15 da matéria de facto dada como não provada deveria ter sido provada.
B. A título principal, pediram os autores, entre outras coisas, a condenação dos réus a reconhecerem que a faixa de terreno referida nos artigos 13º, 14º, 15º e 16º da pi faz parte integrante do domínio público, como se alegou nos anteriores artigos 20º, 21º, 22º e 23º e que os mesmos têm o direito de nela passar, em toda a sua extensão e sem embaraço.
C. O Tribunal “a quo” julgou esse pedido improcedente por entender que não estavam preenchidos os dois requisitos a que alude o assento de 19/04/89, ou seja: a sua utilização por um número significativo de pessoas ocorre desde tempos imemoriais e que o seu uso se destine à satisfação de fins de utilidade pública ou coletiva relevantes.
(…)
E. Face ao acima expendido, não podem restar dúvidas de que o caminho em causa tem de ser considerado como público, bastando para tanto atentar nos seguintes factos:
_ Matéria de facto dada como provada - ac) Nos anos 90 a faixa de terreno em causa foi incluída, pela Junta de freguesia, na toponímia da freguesia como sendo Travessa D. Afonso Henriques e foi-lhe atribuído um código postal (artigos 53º e 54º da base instrutória);
_ Documentos juntos pelos autores, nomeadamente os de fls. 364, 701 a 709, certidões prediais e matriciais juntos com a pi, que comprovam o registo a favor dos autores, bem como dos documentos juntos com o requerimento com a refª 13555472, ou seja:
Doc. 6 – Quando o José de Sousa Pereira da Costa decide ceder o terreno para acesso à Câmara Municipal e à Junta de Freguesia (Quesitos 11 e 12) a firma Construtora FA, Ldª apresenta na Câmara duas plantas. Contudo, numa o prédio dos Réus com acesso e na outra o terreno sem acesso, tal como era na altura;
Doc. 7 – Escritura de Constituição de Propriedade Horizontal da Ré por onde se vê que o prédio confrontava a Nascente com o arruamento (acesso) em causa e, por isso, esse arruamento não pertencia ao prédio;
Doc. 8 – Processo de Licenciamento nº 254/82 da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, onde constam as plantas do prédio dos Réus e do Autor, tal como estavam dispostos na altura da construção do prédio dos Réus e onde se vê que o referido prédio (dos Réus) não tem acesso à E.N. 14.
_ Depoimento das testemunhas: (…).
F. Resulta assim que o caminho em causa foi construído ou legitimamente apropriado, há cerca de 30 anos, por pessoa coletiva de direito público, foi por ela afetado ao uso público, servindo o interesse coletivo que lhe é inerente.
(…)
I. De qualquer forma, os recorrentes fizeram prova de que são os legítimos proprietários do prédio descrito na alínea a) da matéria de facto, assim como da faixa de terreno, melhor descrita na al. q) da matéria de facto dada como provada, que dele faz parte integrante.
J. Desde logo porque, como resulta da matéria de facto dada como provada assim como dos documentos juntos, o prédio em causa está registado a favor dos autores, pelo que os mesmos se presumem seus proprietários e consequentemente ficam dispensados de provar quaisquer outros factos – art.º 1268º CC e art.º 7º CRP.
K. Acresce que ficou provada a matéria de facto constante das al. a), l, m, n. q, que aqui se dá por integralmente reproduzida e que comprovam a manutenção dos atos de posse por parte dos autores, bem como a proveniência/origem da faixa de terreno em causa.
L. Sucede que, lendo a matéria de facto dada como provada nas alíneas Q) e W), percebe-se que o tribunal recorrido parte do pressuposto errado de que essa faixa de terreno (referida na al. q) da matéria de facto dada como provada), já não é parte integrante do prédio descrito na al. a), uma vez que desde a construção do prédio, propriedade dos réus, essa faixa passou a constituir o logradouro e o arruamento de acesso único e privado a esse mesmo prédio.
M. Sucede que, os autores provaram ser proprietários quer do prédio descrito na al. a) da matéria de facto dada como provada, como da faixa de terreno descrita na al. q) que dele faz parte integrante, visto que:
I. Beneficiam da presunção de registo estabelecida no art.º 1268º CC e art.º 7º CRP;
II. Resulta da matéria de facto dada como provada, acima transcrita;
III. Resulta de todos os documentos juntos pelos autores, nomeadamente das certidões prediais e matriciais juntos com a pi, que comprovam o registo a favor dos autores, bem como dos documentos juntos com o requerimento com a refª 13555472, ou seja: (…).
IV. Depoimento das testemunhas: (…).
I. (1) Por outro lado, estando em causa uma faixa de terreno (bem imóvel), que o tribunal admite ter sido parte integrante do prédio descrito na al. a) da matéria de facto dada como provada, e para cuja transmissão/aquisição a lei estabelece determinadas formalidades, sob pena de nulidade, o tribunal, para fazer improceder a ação, teria de indicar o fundamento legal que justificasse a desintegração daquela faixa de terreno do prédio dos autores e consequentemente a sua integração no prédio dos réus.
(…)
M. No caso, os réus não alegaram qualquer meio de aquisição, que, de alguma forma, justificasse a falta de restituição da faixa de terreno aos autores, tendo-se limitado a alegar que a faixa de terreno em causa nunca foi parte integrante do prédio dos autores (o que, como resulta da sentença recorrida, não corresponde à verdade) sendo antes propriedade dos réus. No entanto, os réus não esclarecem como adquiriram tal faixa de terreno.
N. Os réus nem sequer alegaram factos tendentes a demonstrar a aquisição dessa faixa por usucapião, e esta implica sempre a existência de 2 elementos - posse e decurso de certo período de tempo - tendo a posse de ser, sempre, pública e pacífica (boa ou má fé, titulada ou não, registada ou não) (…).
O. Note-se que os réus, nem sequer alegaram que ocupavam aquela faixa, na convicção de ser sua (…).
P. E mesmo que tivessem alegado, a verdade é que a referida defesa só poderia ser atendida pelo tribunal e assim levar à improcedência da ação se os réus, além de alegarem os factos demonstradores da forma de aquisição da faixa em causa, tivessem deduzido reconvenção, pedindo a condenação dos autores a reconhecer esse invocado direito de propriedade (…).
Q. Acresce que, não cabe ao tribunal substituir-se às partes na alegação dos factos (…).»

Os Recorridos contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
A. A prova foi mal apreciada, em consequência do que a matéria de facto foi mal fixada, devendo ser alterada?
B. A faixa de terreno entre os dois prédios pertence ao domínio público ou é caminho público?
C. Na negativa, tal faixa de terreno integra o prédio dos Autores?
D. Com a apropriação ilícita e culposa que dela fizeram, os Réus causaram aos Autores danos indemnizáveis?

II. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos (que, pelos motivos expostos em III.A., se mantêm):
a) Os AA. são donos de um prédio rústico denominado “Campo”, sito na freguesia de Calendário, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na CRP sob o n.º 005XX-Calendário e inscrito na respetiva matriz sob o artigo 89Xº, por o terem adquirido por compra a José.
b) Os RR. são donos do prédio urbano constituído no regime de propriedade horizontal, com 35 frações, sito na freguesia de Calendário, deste concelho, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 22XX, e inscrito na respetiva matriz urbana sob o art.º 22XXº, composto por cave, de rés-do-chão e quatro andares, denominado Edifício.
c) A 1ª ré é proprietária da fração “A”, o 2º réu da fração “B”, os 3ºs das frações “C” e “AC”, a 4ª das frações “D”, “Z”, “AH” e “AM”, os 5ºs das frações “E”, ”Q” e “R”, os 6ºs das frações “F” e “T”, os 7ºs da fração “G”, os 8ºs das frações “H” e “AG”, os 9ºs das frações “I” e “U”, os 10ºs das frações “J”, “AA” e “AD”, os 11ºs das frações “L” e “AE”, os 12ºs das frações “V” e “N”, os 13ºs das frações “AB” e “O”, os 14ºs das frações “AL” e “P”, o 15º da fração “S”, os 16ºs da fração “X, os 17ºs das frações “AF” e “M”, os 18ºs da fração “AI” e os 19ºs da fração “AJ”.
d) O acesso ao prédio dos RR. é efetuado pela faixa de terreno em causa nestes autos.
e) O prédio referido em a) e o prédio descrito na CRP de VN de Famalicão sob o nº 1005/180996, cuja aquisição se encontra registada a favor de Maria e Maria, esta casada com Machado, são contíguos.
f) A Ré DD, anteriormente denominada “XX”, tinha como gerente José, situação que se verificava à data em que foi adquirido o terreno e nele construído o prédio urbano referido em b).
g) A R. EE adquiriu o prédio urbano descrito em b) a 2 de dezembro de 1986 por compra a Manuel no qual edificou um prédio composto por cave, rés-do-chão e quatro andares, procedendo, em seguida, à venda das frações que o compunham.
h) O prédio referido em a) pertencia a Agostinho, que em 25/09/81 o vendeu a José, através de escritura pública celebrada no 1º Cartório Notarial de Braga, do Livro de Notas para escrituras diversas n.º 2XX.
i) Os AA., por si, antepossuidores e anteproprietários estão na posse pública, contínua, pacifica, e de boa-fé do prédio descrito em a).
j) Usando-o, arroteando e cultivando o respetivo quintal, em tudo fazendo obras e melhoramentos, usufruindo de todas as utilidades do prédio, bem como dos seus frutos e rendimentos, zelando pela sua conservação e pagando as contribuições devidas.
k) O que fazem há mais de 20 anos, agindo como seus donos e na convicção de terem essa qualidade e de não lesarem direito alheio, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
l) Os prédios referidos em a) e b) são contíguos.
m) Por escritura pública outorgada em 30/3/1982 António e Sousa declararam comprar a José que declarou vender 2/3 do prédio referido em b).
n) Por escritura pública outorgada em 25/6/1982 António, José e Sousa declararam vender a Pereira que declarou comprar o prédio referido em b).
o) Por escritura pública outorgada em 23/2/1983 Pereira declarou vender a Manuel que declarou comprar o prédio referido em b).
p) Aquando da venda do prédio referido em b), a “Construtora” comprometeu-se a entregar aos AA., a José e a Joaquim 3 apartamentos com garagem.
q) Até há cerca de 29 anos os antepossuidores do prédio referido em a) estiveram na posse pública, contínua, pacifica, e de boa-fé de uma faixa de terreno com 7,5 metros de largura e 80 metros de comprimento, que tem o seu início a norte, na estrada nacional n.º 14 e prolonga-se no sentido norte/sul até ao caminho público situado a sul, nos exatos termos descritos em i), j) e k), faixa essa que até então fazia parte do prédio referido em a).
r) Essa faixa foi alcatroada pela Construtora.
s) O prédio referido em a) tem no seu limite poente um muro cuja face do muro está voltada para o prédio dos RR.
t) Os Autores, juntamente com Maria e Maria, referidas em e), decidiram edificar um prédio, tendo para o efeito apresentado junto da Câmara municipal o respetivo projeto de construção.
u) A Câmara Municipal negou a concessão da respetiva licença de construção.
v) Alegando para tanto que a mesma só poderá ser concedida quando se esclarecer a natureza da faixa de terreno em questão.
w) A faixa ou parcela de terreno destina-se, desde a construção do prédio, há mais de 28 anos, a logradouro e a arruamento de acesso único e privado, pelo lado nascente, do prédio referido em b) à via pública, a ser feito a norte, com saída para a Estrada Nacional n.º 14.
x) A sul existe um muro de sustentação de terras e vedação.
y) O que é do conhecimento dos AA.
z) Em Julho de 2009, foi deferido pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão o pedido efetuado pelo Condomínio do prédio dos RR de colocação de uma barreira ou portão na entrada de acesso ao arruamento do mesmo que se faz pela Estrada Nacional n.º 14 e que corresponde à faixa ou parcela de terreno em causa nos autos.
aa) Foi colocada, com autorização dos AA. no prédio deles (a poente) uma rede de vedação/divisão desse prédio.
ab) Na data da escritura referida em h), o prédio consistia num terreno inscrito no art.º 780º rústico, e com a área declarada de 2 HA.
ac) Nos anos 90 a faixa de terreno em causa foi incluída, pela Junta de freguesia, na toponímia da freguesia como sendo Travessa D. e foi-lhe atribuído um código postal.

Factos não provados:
1) O prédio identificado em a) confronta a norte e poente com a estrada, a sul com caminho público e a nascente com Maria e Maria.
2) Os prédios referidos em a) e b) têm a configuração constante do desenho junto sob o documento n.º 39 junto com a petição inicial.
3) Quando a “Construtora” se preparava para escriturar as frações que o compõem, a Câmara Municipal e o Presidente da Junta sugeriram que o prédio em causa para além do acesso à via pública existente a sul, dispusesse ainda de uma acesso direto à Estrada Nacional n.º 14, e que ligasse esta estrada ao caminho situado a sul.
4) Como àquela data o referido José Costa era proprietário do prédio descrito em a), para beneficiar e valorizar o prédio dos réus (e concretamente as frações que ele e os irmãos iriam ser proprietários), obrigou-se verbalmente perante a Câmara Municipal e o Presidente da Junta de freguesia a integrar no domínio público uma faixa de terreno, que integrava o dito prédio, com 7,5 metros de largura e 80 metros de comprimento, que tem o seu início a norte, na estrada nacional n.º 14 e prolonga-se no sentido norte/sul até ao caminho público situado a sul.
5) Aquando da cedência daquela faixa de terreno para o domínio público, aquele José exigiu que a referida construtora, atento o acentuado declive que passaria a existir entre a faixa de terreno e o restante terreno pertença do prédio descrito em a), edificasse um muro de sustentação de terras, desde a extrema sul dessa faixa até à extrema norte do prédio do réu.
6) Ficando então acordado que o muro de sustentação passaria a ser propriedade do José.
7) A partir daí ambos os prédios de A. e RR passaram a confrontar com o caminho público, sendo o dos AA. pelo lado poente e o dos RR. pelo lado nascente.
8) Desde sempre e sobretudo depois da respetiva cedência ao domínio público, que todas as pessoas, de forma livre e indiscriminada, fazem passagem pelo referido terreno ou caminho, a pé ou de carro, visto que o mesmo se encontra afetado ao trânsito de pessoas, coisas e animais, sem discriminação ou embaraço, encontrando-se o mesmo no uso direto e imediato do público.
9) Os réus prolongaram o muro de sustentação de terras já existente, referido em s), até à estrada nacional n.º 14, com intenção de fazer crer que a faixa de terreno é parte integrante do prédio deles.
10) A faixa ou parcela de terreno tem a área de 1035 m2.
11) Resultante da soma dos 495 m2, área total, atual, do prédio dos AA. e os 540 m2 correspondentes à área total da faixa de terreno, alegadamente, cedida a poente.
12) O prédio dos AA. teve a área de 1035 m2.
13) Aquando a reforma das matrizes o prédio ficou a constar como omisso na matriz.
14) Só em 5/3/1990, é que o José se apercebeu da omissão e para poder celebrar a escritura de venda ao A. apresentou no primeiro serviço de finanças a declaração para a sua inscrição, dando assim origem ao art.º 8XXº rústico.
15) Nessa participação, declarou apenas a área de 495 m2, uma vez que era (aproximadamente) essa que o prédio dispunha na altura, face à cedência que tinha efetuado aos RR.
16) Os RR. sempre aceitaram que a referida faixa pertencia ao domínio público.

III. Apreciação do mérito do recurso
O direito de ação popular, de origem constitucional (art. 52 da CRP), está regulado na Lei83/95, de 31 de agosto, alterada peloDL 214-G/2015, de 2 de outubro. Analisado o diploma, facilmente se conclui que a ação popular não constitui uma forma de processo especial (v. art. 12 da LAP), mas antes uma fonte de legitimidade. Através das suas normas, e para proteção de determinados interesses, difusos (art. 1.º, n.º 2, da LAP), alarga-se a legitimidade processual a sujeitos que, pelas regras gerais dos arts. 30 e ss. do CPC, não a teriam (art. 2.º da LAP).
Lembramos que os Autores pedem a título principal que determinada faixa de terreno seja considerada pública e, subsidiariamente, que se entenda que a mesma faz parte do seu terreno.
As grandes questões objeto de recurso, acima identificadas e a que responderemos em seguida, são:
A. A prova foi mal apreciada, em consequência do que a matéria de facto foi mal fixada, devendo ser alterada?
B. A faixa de terreno entre os dois prédios pertence ao domínio público?
C. Na negativa, tal faixa de terreno integra o prédio dos Autores?
D. Com a apropriação ilícita e culposa que dela fizeram, os Réus causaram aos Autores danos indemnizáveis?

A. Da reapreciação da prova e da seleção da matéria de facto
Os Autores pugnam pela alteração da matéria de facto provada e não provada, de modo a retirar o limite temporal que foi consignado para o uso da faixa em causa nos autos, por pessoas alheias ao prédio dos Réus (uso que em seu entender se mantém até ao presente, e não terminou há cerca de 29 anos atrás, como provado); e de modo a que resulte que a faixa de terreno em causa nos autos integrou, a dada altura, o domínio público, aí se mantendo.

O recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, caso em que deverá observar as regras contidas no art. 640 do CPC. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: i) os pontos da matéria de facto de que discorda; ii) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, incluindo, quando se trate de meios probatórios gravados, a indicação das exatas passagens da gravação em que se funda o recurso; iii) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Estas normas foram cumpridas pelos Autores, recorrentes nos autos.
Como temos tido oportunidade de dizer e justificar noutros arestos (v.g., acórdãos de 17/11/2016, proc. 117/13.1TBMLG.G1, de 03/11/2016, proc. 101/14.8T8GMR.G1, e de 16/02/2017, proc. 1205/15.5T8GMR-A.G1), sem prejuízo do seccionamento do objeto da reapreciação por via do disposto no art. 640 do CPC, os tribunais da Relação devem proceder à efetiva reapreciação da prova produzida (nomeadamente dos meios de prova indicados no recurso, mas também de outros disponíveis e que entendam relevantes) da mesma forma – em consonância com os mesmos parâmetros legais – que o faz o juiz de 1.ª instância.
Tanto significa que os desembargadores apreciam livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão (art. 607, n.º 5, do CPC).
Na sua livre apreciação, os desembargadores não estão condicionados pela apreciação e fundamentação do tribunal a quo. Ou seja, o objeto da apreciação em 2.ª instância é a prova produzida (tal como em 1.ª instância) e não a apreciação que a 1.ª instância fez dessa prova.
No sentido acabado de expressar, v. os Acórdãos do STJ de 11/02/2016, proc. 907/13.5TBPTG.E1.S1, de 10/12/2015, proc. 2367/12.9TTLSB.L1.S1, ou, ainda à luz do anterior Código, o Ac. STJ de 14/02/2012, proc. 6283/09.3TBBRG.G1.S1.

Vejamos os depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores no que respeita à matéria de facto ainda em discussão (titularidade da faixa de terreno entre os prédios das partes):
- Silva foi dono do terreno que hoje é dos Autores, tendo-o vendido em 1980 ou 1981 a um irmão do Autor marido. Aquando da venda, diz, a Junta exigiu-lhe que desse 50 m2 ao domínio público e deu junto ao caminho confinante com o prédio que hoje é dos Réus, tendo esse caminho, assim, ficado mais largo; diz, porém, que tal caminho nunca esteve aberto ao público (minuto 38/39);
- Costa, irmão do Autor marido, tem a convicção de que o caminho era público porque foi dada parte para alargá-lo, parte essa que saiu do terreno que é hoje dos Autores, nada dizendo de mais consistente para sustentar a sua convicção;
- Rocha, amiga dos Autores, o que sabe e narra por alto («já passaram muitos anos») acerca do caminho foi-lhe contado sobretudo por um dos irmãos do Autor marido, que era dono do prédio onde foi construído o prédio dos Réus – o dito irmão do Autor sempre disse à testemunha que a rua era pública, que já tinha arranjado tudo com a Câmara – nada de mais relevante ou consistente;
- Araújo foi arrendatário do horto dos Autores e, nessa altura, ainda não havia a cancela e pensava que a faixa era caminho público; os seus clientes que iam ao horto também entravam por ela e deixava ali os carros, parecia-lhe uma rua como as outras;
- Machado (depoimento em duas faixas – 4.616 KB e 6.116 KB) conhece os factos por ser casado com Maria, uma das comproprietárias do prédio art. 1005 referenciado nos factos, que confina com o dos Autores a poente; explica (especialmente na 2.ª faixa do seu depoimento) que por volta de 1996, ele, as donas do art. 1005 e os Autores pretenderam construir (ou dar a construir a terceiro) um edifício nos seus dois terrenos e foi feito o projeto no pressuposto de a faixa de terreno em causa nos autos ser rua pública; nessa altura falou sobre isso também com o então presidente da Junta, Sr. Mário Sá Oliveira, que também lhe confirmou que a rua (faixa de terreno em causa nos autos) tinha nascido de entrega à Junta de terrenos que faziam parte do atual prédio dos Autores e que era um caminho público; por volta desse ano a Junta atribuiu nome à rua – Travessa D. – tendo afixado placa que aí permaneceu muito tempo.
O mais que resulta dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores, em abono da sua tese, é que a faixa de terreno em causa no processo começou por estar integrada no prédio dos Autores (facto que, aliás, foi dado como provado) e que o então dono desse prédio abdicou dela, verbalmente, a favor da Junta mas, na prática, para que o prédio dos Réus (do qual ele – então dono do prédio dos Autores – e os seus dois irmãos iriam receber três apartamentos) pudesse ter ligação à EN 14. Isto passa-se na década de 1980. Desde então, a dita faixa (que logo foi alcatroada pela construtora do prédio dos Réus) sempre foi usada apenas para acesso ao prédio dos Réus. Fora isso, apenas foi dada nota do uso fortuito para estacionamento por parte de clientes que se dirigiam ao horto do lado.
É possível, considerando os depoimentos acima referidos e não tendo motivos para duvidar que as testemunhas estavam convictas da veracidade do que afirmavam, que os factos não provados 3 e 4 se tenham efetivamente passado.
Vamos relembrá-los:
«3) Quando a “Construtora” se preparava para escriturar as frações que o compõem, a Câmara Municipal e o Presidente da Junta sugeriram que o prédio em causa para além do acesso à via publica existente a sul, dispusesse ainda de um acesso direto à Estrada Nacional n.º 14, e que ligasse esta estrada ao caminho situado a sul.
4) Como àquela data o referido José Costa era proprietário do prédio descrito em a), para beneficiar e valorizar o prédio dos réus (e concretamente as frações que ele e os irmãos iriam ser proprietários), obrigou-se verbalmente perante a Câmara Municipal e o Presidente da Junta a integrar no domínio público uma faixa de terreno, que integrava o dito prédio, com 7,5 metros de largura e 80 metros de comprimento, que tem o seu início a norte, na estrada nacional n.º 14 e prolonga-se no sentido norte/sul até ao caminho público situado a sul.»
Não obstante, é também razoável entender-se que a prova não foi suficientemente consistente para poder considerá-los assentes. De todo o modo, estes factos, em conjunto com todos os demais assentes, não seriam suscetíveis de alterar a apreciação jurídica e a decisão.
Mesmo que o então dono do prédio dos Autores tenha tido intenção de integrar a faixa no domínio público, o certo é que isso não chegou a suceder, e a dita foi sempre exclusivamente possuída pelos donos do prédio dos Réus (ainda que ocasional e fortuitamente usada para estacionamento por pessoas que se dirigiam ao horto do lado).

Lembramos que a configuração da faixa de terreno em causa nos autos indicia fortemente a sua pertença ao prédio dos Réus. Releva, para tanto, além do mais, a inspeção ao local, em 26/05/2015, consignada em auto:
«- No prédio dos RR. não existe acesso a sul, existindo apenas o acesso a norte, com uma cancela automática no início da faixa e a confrontar diretamente com a estrada nacional:
- A parte sul, que se encontra murada, confronta com um caminho público, o qual se encontra, face à vegetação, intransitável quer para pessoas quer veículos, pelo menos na parte que confronta com o prédio dos réus e na parte visível a partir do mesmo;
- A divisão entre os prédios dos autores e dos réus é feita por um muro em tijolo que começa com uma altura de cerca de 1,20 metros, na confrontação sul-nascente e que vai diminuindo gradualmente de altura até à estrada nacional;
- Do lado dos prédios dos AA., e contígua ao muro de separação dos prédios, está implantada uma vedação em rede que se eleva em relação muro em pelo menos 1 metro em toda a sua extensão;
- A face do muro está voltada para o prédio dos réus;
- O prédio dos AA. encontra-se a um nível inferior ao dos réus, em cerca de 1 m/1,5 metros, na sua confrontação a sul/nascente, subindo gradualmente no sentido norte até ficarem, na parte que confronta com a estrada nacional, ao mesmo nível;
- A partir do meio da parcela, sensivelmente na esquina norte do edifício de apartamentos, junto ao muro que separa os prédios, inicia-se um passeio com a largura de cerca de 80 cm, que termina na cancela;
- Na esquina sul/ nascente do prédio dos réus está implantado um poste de eletricidade, encontrando-se a iluminação do mesmo voltada para o caminho público já referido;
- Não existe nem saneamento nem iluminação pública na parcela;
- No prédio dos autores, na confrontação a sul, com o caminho público, existe um portão para acesso ao mesmo.»

Em reforço e no mais, da análise de todos os elementos probatórios dos autos, concordamos com a convicção criada pelo tribunal a quo e aderimos à sua fundamentação, nos seguintes trechos, para o que ora releva:
«Para além do que já resultava assente no despacho que selecionou a matéria, estava igualmente assente, por força dos documentos juntos (certidões de escrituras e matriciais – fls. 477 e 478 - e processos camarários apensos aos autos iniciados pelos AA. e pelos vizinhos com quem pretendem construir um prédio de habitação no local), o vertido nas alíneas (…) ab).
(…)
Foram as testemunhas Silva, Costa, irmão do A. marido e Marques, com o qual o A. tem um projeto para construir um prédio naquele local – projeto documentado nos processo camarários juntos aos autos -, relevantes para se considerar demonstrado o vertido nas alíneas q) e r) dos factos provados, isto é, que a faixa aqui em causa fazia originalmente parte do prédio agora dos AA. e que, na altura da construção do prédio dos RR. foi alcatroada pela empresa construtora. Assim, essas testemunhas demonstraram, quanto a tal facto segurança e conhecimento direto, esclarecendo que, até à construção do prédio, o terreno onde o mesmo foi implantado não tinha (até face ao desnível em relação à estrada), acesso por norte, mas apenas pelo caminho público então utilizado a sul. Ficou assim evidente para o tribunal que, como parte do negócio que envolveu a entrega do terreno à empresa construtora, o José Costa (irmão do A. e da testemunha) decidiu ceder-lhe (à construtora) parte do seu terreno (agora dos AA.), de forma a poder aceder-se ao edifício – e respetivas garagens - pelo norte, ou seja, pela EN 14, pois que tal não seria possível, para veículos ligeiros e muito menos pesados pelo sobredito caminho público existente a sul.
Esta é, com efeito, a única explicação lógica, já que face ao que estava em causa – sabemos pela testemunha Costa que cada um dos irmãos, titulares de 1/3 do terreno onde depois foi implantado o prédio dos RR. recebeu, pelo menos, um apartamento com garagem (alínea p) dos factos provados) – racional seria que o José Costa quisesse assegurar para o prédio acessos adequados. De que valeria ter um apartamento num prédio com garagem se não houvesse forma de alcançar tal apartamento?
Apenas assim se percebe, igualmente, a construção de um muro de vedação entre os dois prédios e a realização, pela empresa que construiu o prédio da pavimentação daquele terreno.
A partir daí, e como resultou, quer dos depoimentos das testemunhas Oliveira e Maria - moradores nas proximidades desde antes da construção do prédio dos RR., e que nenhum interesse demonstraram no desfecho da causa - quer da inspeção ao local (auto de fls. 734), vem a parcela em causa, com a exata configuração que a partir da construção do prédio ficou definida (nomeadamente em termos de muros), sendo usada apenas para acesso e aparcamento dos moradores daquele prédio (assim se fixando o ínsito na alínea w) dos factos provados), suscitando-se aos moradores do prédio a necessidade de vedar o acesso quando estranhos ao mesmo (nomeadamente clientes do horto explorado pela testemunha Fernando Araújo passaram a ali estacionar os carros).
Da inspeção ao local, que se encontra documentada no auto de fls. 734 e bem assim das fotografias de fls. 221 e 222 que o retratam fielmente, retirou ainda o tribunal as conclusões vertidas nos factos dados como provados e não provados relativamente à configuração do local (alíneas l), s), x) dos factos provados). Dali resultou igualmente, face à facilidade de acesso e visualização, o necessário conhecimento dos AA. quanto àquela configuração (alínea y) dos factos provados). (…)
Dos documentos de fls. 217-218 (emitidos pela Câmara Municipal no seguimento de pedido feito pelos RR.) resulta provado o constante da alínea z) dos factos assentes, sendo que na inspeção ao local e por compulso das fotografias já referidas, se constatou a existência da cancela em causa no local.
(…)
No que concerne aos factos não provados, e além do já supra referido, importa referir que à declaração do antigo presidente da junta de fls. 362 não foi atribuída qualquer relevância, já que, a acrescer ao desfasamento temporal face à ocorrência da alegada cedência (a declaração é de Fevereiro de 2004 e reporta-se a uma alegada cedência nos anos 80), temos que a mesma não reveste qualquer formalidade, não cabendo a um antigo presidente da junta declarar algo que não se encontra documentado oficialmente, nomeadamente em reuniões da junta ou assembleia de freguesia. Para mais, a testemunha Ferreira que lhe sucedeu como presidente da junta afirmou não ter qualquer conhecimento desse suposto acordo.
Por outro lado, se foram juntos documentos que referem ser a morada indicada para convocatórias de reunião de condomínio a “Travessa D.” (cfr. fls. 364), o certo é que estão juntos igualmente documentos (nomeadamente faturas e atas de condomínio), mais recentes – mas ainda anteriores à instauração da ação - que indicam como morada a Avenida D. (cfr. fls. 701 a 709). De resto, a própria Câmara Municipal, em 2006, indicou como situação do prédio a Avenida D. (cfr. fls. 697), e até os AA. indicaram como morada de alguns RR. na petição inicial a Av. D., pelo que não podemos considerar os documentos juntos pelos AA. como determinantes ou prevalentes.
A este propósito – da “cedência à junta” da parcela – não se teve igualmente por credíveis os depoimentos das testemunhas Machado, Costa e Rocha, arrolados pelos AA. e que sobre tal matéria se arrogaram conhecedores.
Com efeito, as testemunhas Joaquim Costa e Rosa Barbosa não tinham conhecimento direto do alegado “acordo” com a Junta para a cedência da parcela. O Joaquim confirmou que o que sabia lhe advinha do que tinha dito o irmão, esclarecendo que tal “cedência” tinha sucedido por o irmão – José – ter ficado “chateado” quando viu a empresa construtora a fazer o acesso a partir da EN 14 ocupando parte do seu prédio. Já a Rosa, amiga de longa data do A. e dos irmãos e que referiu acompanhar o José Costa em várias reuniões que aquele levou a cabo na altura da construção do prédio, no meio de um depoimento muito confuso (“o Zé dizia”, “o Zé tratava de tudo”, “o Zé queria”), não conseguiu sequer afirmar com segurança que tinha ido com o referido José Costa (o “Zé”) falar com o presidente da Junta, muito menos esclareceu o tribunal sobre o efetivo teor da conversa.
No que tange à testemunha Machado, é certo que a mesma afirmou ter tido da parte do presidente da junta à altura a confirmação daquele “ato de cedência” – embora apenas oralmente feito – o que, no entender do tribunal, não foi credível. Não podemos esquecer que resultou evidente da restante prova (nomeadamente dos processo camarários) e até do depoimento do mesmo o interesse da testemunha no desfecho da causa, pois que apenas com a declaração da natureza pública da parcela (ou quando muito do direito de propriedade dos AA. sobre a mesma) poderá o projeto da testemunha e do A. ser aprovado pela Câmara Municipal, já que, a não ser assim, carece o terreno onde será implantado de área suficiente para a volumetria pretendida.
Para além disso, o depoimento mostrou-se, quando se insistiu em pormenores sobre o conhecimento direto, confuso, pois que tanto dizia ter assistido a conversa, como ter conversado com o presidente da junta na altura, como, confrontado com as razões para essa confirmação (já que nenhum interesse se afiguraria existir da testemunha nas relações do Costa com a Junta nos anos 80) referiu que havia apenas conversado com o ex presidente da junta em momento posterior (quando se começaram a colocar entraves à aprovação do projeto na Câmara Municipal, ou seja, já depois do ano 2000).»

Mantemos, pois, o elenco factual selecionado em 1.ª instância.

B. Da pretensa natureza pública da faixa de terreno em causa nos autos
Nos termos gizados nesta ação, a integração da faixa de terreno dos autos no domínio público, pretendida pelos Autores, teria sido efetuada por iniciativa particular de anterior dono do prédio dos Autores, mais concretamente por doação, no início da década de 1980.
A doação é, como se sabe, um contrato, ou seja, um negócio jurídico bilateral, que carece na sua composição de, pelo menos, duas declarações negociais; além da declaração do doador no sentido da disposição gratuita e definitiva do bem em benefício da contraparte, é necessária a declaração do donatário, ainda que tácita ou por comportamento concludente (v. art. 945 do CC).
Além de, perante o nosso ordenamento jurídico, ser indubitavelmente assim, faz sentido que a doação seja um contrato, e não mero negócio unilateral, pois a transferência de propriedade implica transferência de despesas e responsabilidades (como resulta, exemplificativamente, dos arts. 492, 493 e 1344 e ss. do CC).
Uma tal doação teria, à data, de revestir a forma de escritura pública, pois dizia, então, o n.º 1 do art. 947 do CC que «a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública». Este artigo era aplicável à transmissão de imóvel para entidade pública, por via do disposto no art. 1304 do CC.

Como vimos, além de não haver qualquer escritura pública, também não há nos autos qualquer documento oficial que ateste ou integre uma transmissão de propriedade da faixa de terreno em causa nos autos, do prédio dos Autores para o domínio público. Como dito em III.A., o único documento a respeito é uma declaração do antigo presidente da junta de freguesia de Calendário, a fls. 362, emitida em fevereiro 2004, sobre uma alegada cedência nos anos 80.

A pretensa transmissão de propriedade teria sido efetuada por declaração verbal do transmitente e não teria tido qualquer aceitação, que sempre teria de ser emitida pelo competente órgão autárquico, não o tendo sido. Não houve, pois, contrato de doação. Juridicamente, poderá quando muito ter existido um contrato de doação ferido de nulidade, invalidade absoluta que o inibe de produzir qualquer efeito (arts. 220 e 289 do CC).

Não tendo havido transmissão por contrato particular, nem se colocando a hipótese de uma apropriação por iniciativa pública, por que outra forma poderia tal faixa ser caminho público?
Lembramos o Assento do STJ de 19/04/1989 que considerou «públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público». Obteve vencimento no assento a posição que prescindia do domínio público – prescindia que o caminho fosse criado e mantido pelo Estado ou por autarquia, prescindia da titularidade de pessoa coletiva pública – para que o caminho fosse qualificado como público. Ou seja, à luz do Assento, para que o caminho seja púbico não tem que pertencer a entidade pública, sendo suficiente o seu uso direto e imediato pelo público.
Requisito é que os atos materiais de utilização pública remontem a tempos imemoriais.
No caso em apreço, não se provou utilização pelo público em geral e, a havê-la, tão-pouco seria desde tempos imemoriais, pois é pacífico que a faixa pertencia ao terreno dos Autores até à década de 1980.
Sobre a noção de tempos imemoriais, Rui Pinto Duarte, após referir vários contributos da doutrina e da jurisprudência, lembra que «ao tempo em que se formou o conceito de posse imemorial o oral predominava sobre o escrito e o testemunho sobre o documento», a «alteração de paradigmas civilizacionais tem de ser tida em conta na interpretação da palavra “imemorial”, no contexto em causa»(2).
Na jurisprudência do Supremo, o conceito de uso público imemorial tem-se considerado preenchido com um uso de há mais de 50 ou 60 anos. Por todos, v. Ac. STJ de 18/09/2014, proc. 44/1999.E2.S1 – no caso discutia-se apenas se preenchia o conceito de uso imemorial uma utilização que perdurava há mais de 60 anos, tendo a resposta sido positiva; exemplifica-se com vários outros arestos em que o STJ considerou preenchido esse requisito com um uso de há mais de 50 ou 60 anos.

No presente caso, como vimos, não se provou a titularidade do caminho por entidade pública nem o uso público do caminho, uso que, se tivesse existido, teria menos de 30 anos aquando da propositura da ação.

C. Do direito de propriedade dos Autores sobre a faixa de terreno em causa
Aqui chegados, importa apreciar se a faixa de terreno em causa nos autos faz parte do prédio dos Autores, como alegam e pedem a título subsidiário.

Subsidiariamente, os Autores peticionam que se declare a parcela em causa integrante do seu prédio e que se condenem os Réus a assim a reconhecerem, abstendo-se de dificultar ou impedir o acesso de, e para, o prédio dos Autores e demolindo o muro que separa este prédio da parcela em causa. Nesta parte, a ação configura-se como de reivindicação (art. 1311 do CC). A sua procedência pressupõe a alegação e prova do direito de propriedade e dos factos que integram a ocupação abusiva da contraparte.
Os Réus, por seu turno, contrapõem que a dita parcela faz parte integrante do seu prédio.
Ambas as partes têm os seus imóveis registados na competente Conservatória pelo que a presunção do art. 7.º do CRPredial – «o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define»
– não nos ajuda. Tanto mais que esta presunção não abrange áreas nem confrontações, como é unanimemente reconhecido: «A presunção da titularidade do direito de propriedade constante do art. 7.º do CRgP não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio. Por esta razão, a descrição predial de um prédio – assim como as descrições matricial ou notarial – pese embora constituam elementos enunciativos importantes de identificação, não servem, exclusivamente, para a exata determinação física ou da real situação do prédio, enquanto unidade fundiária contínua»(3).

Sabemos – facto provado q) – que até há cerca de 29 anos os antepossuidores do prédio dos Autores estiveram na posse pública, contínua, pacífica, e de boa-fé de uma faixa de terreno com 7,5 metros de largura e 80 metros de comprimento, que tem o seu início a norte, na estrada nacional n.º 14 e prolonga-se no sentido norte/sul até ao caminho público situado a sul, nos exatos termos descritos em i), j) e k), faixa essa que até então fazia parte do prédio que hoje é dos Autores». Ou seja, está provado que a faixa de terreno em causa nos autos era parte integrante do prédio dos Autores até há 29 anos atrás.

Não obstante ter dado como provado que, até há 29 anos atrás, a parcela em causa nos autos era parte integrante do terreno dos Autores (facto da al. q) que não foi posto em crise), o tribunal a quo entendeu (na fundamentação de direito, com reflexo na decisão) que a parcela em causa (à data da propositura da ação) não pertencia aos Autores por estes não terem justificado a sua aquisição originária por usucapião sobre a mesma.
Pode entender-se haver nesta conjugação de dados uma contradição. Como se sabe o direito de propriedade não prescreve (art. 298, n.º 3, do CC), até porque a não utilização da coisa é também uma liberdade que integra o direito do proprietário. Por outro lado, uma eventual renúncia ao direito de propriedade sobre a mesma parcela, mesmo para quem a entende possível, teria de ser realizada por escritura pública e teria por consequência a integração da parcela no património do Estado(4).
Sendo assim, como é que no caso em apreço a parcela de terreno onde foi construído o caminho de acesso ao prédio dos Réus, e que há 29 anos era parte integrante do prédio dos Autores, deixou de pertencer ao prédio dos Autores? Como é que se pode concluir por essa não propriedade dos Autores, quando os Réus tão-pouco deduziram reconvenção, ou sequer invocaram de forma expressa a sua aquisição por usucapião quanto à dita parcela?
Estas as questões a que respondemos nos próximos parágrafos.

Provado ficou que, na dita parcela, em 1987, foi construído pelo então dono do prédio dos Réus (ou construtora por si encarregada de o fazer) um acesso alcatroado que é pelos Réus, desde então, utilizado, em exclusividade para acesso ao seu prédio. A construção desse acesso implicou aterros, feitura de um muro de contenção do lado do prédio dos Autores, revestimento a alcatrão e outros acabamentos (como explicado unanimemente por todas as testemunhas que a isso se referiram).
Avançamos, desde já, as nossas conclusões no sentido de a parcela ter sido autonomizada do prédio dos Autores, por via de ocupação de boa-fé, e ulteriormente adquirida por usucapião pelos Réus, o que extinguiu o direito de propriedade que os Autores, subsidiariamente, querem fazer valer sobre ela. Passamos a justificar.

A usucapião não conduz automaticamente à aquisição do direito que esteja em causa; carece de ser invocada. «Resulta isso do art. 1287 (“[…]faculta ao possuidor […] a aquisição […]”), do art. 1288 (“Invocada a usucapião […]”) e da remissão que o art. 1292 faz para os arts. 303 e 305 – que se referem à necessidade de invocação da prescrição. O fundamento da regra em causa está no pensamento de que as aquisições devem ser voluntárias»(5).
Para que se reconheça adquirido originariamente por usucapião determinado direito é necessária a invocação do titular.
Tal invocação, porém, pode ser tácita ou implícita(6). O que releva na invocação não é o uso do termo, nem a expressa formulação do conceito, mas a alegação do complexo fáctico subjacente. Os factos alegados têm de se reconduzir aos requisitos que a lei prevê para tal forma aquisitiva. Tais requisitos encontram-se descritos, no que à aquisição de imóveis respeita, nos arts. 1293 a 1297 do CC e reconduzem-se à posse, necessariamente pública e pacífica, e ao decurso de certo prazo. Outras características da posse pública e pacífica (boa ou má-fé, título ou não título e registo ou não registo) repercutem-se na duração do prazo.

No caso dos autos, os Réus, ao dizerem-se donos da faixa de terreno por a entenderam parte integrante do seu prédio e ao alegarem que desde há mais de 20 anos ela faz parte do seu prédio e a usam em exclusividade na convicção dessa pertença (o que tudo provaram), estão a invocar a sua aquisição por usucapião.

Além de poder ser invocada de modo implícito, a usucapião pode se invocada judicial ou extrajudicialmente e, no primeiro caso, por via de ação (incluindo, reconvenção) ou por via de exceção.
Neste sentido o Ac. STJ de 24/10/2006, proc. 06A3284:
«2) Demonstrada a propriedade e a detenção por outrem a entrega só pode ser obstada com base em qualquer relação obrigacional ou real que legitime a recusa de restituição.
3) Tal relação pode ser invocada por via de exceção - com aceitação dos fundamentos essenciais, ou abstraindo da sua verdade, alegados pelo demandante, mas invocando factos novos que impedem, modificam ou extinguem o direito invocado.
4) Mas também pode ser feito por impugnação motivada, alegando factos opostos, para, por exemplo, tentar convencer de aquisição por usucapião, sem formulação do pedido cruzado, mas apenas para ilidir a presunção do artigo 7º do Código do Registo Predial.»
Leia-se, ainda, o Ac. STJ de 21/03/2013, proc. 2173/07.2TBGRD.C1.S1:
«II - Sendo admissível a reconvenção, nas ações de simples apreciação negativa, desde que o pedido do réu emerja do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa, a oposição contestatória da usucapião constitutiva de um direito de servidão basta-se com a defesa por exceção, cuja invocação pode ser implícita ou tácita, desde que sejam alegados os correspondentes factos, por forma, claramente, evidenciadora de que aquele pretende exercer esse direito, não necessitando de assumir a modalidade da contestação-reconvenção.
III - Os factos impeditivos do direito dos autores que consubstanciam contestação-defesa, por exceção perentória traduzindo-se na invocação de factos que representam uma causa impeditiva do efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, constituem as designadas exceções-factos ou exceções genéricas, onde não vigora o princípio do pedido, expresso ou implícito, em termos idênticos aos verificados com o autor.
IV - E, por não estarem sujeitos ao princípio do pedido, expresso ou implícito, o tribunal conhecerá, oficiosamente, desses factos impeditivos, sem que ocorra contradição entre a exceção formulada pelos réus com base na existência de um direito de servidão e os fundamentos de facto em que se suportam para invocar a aquisição do logradouro, em regime de compropriedade, com base na usucapião.»

Diremos, pois, que os Réus alegaram factos de que resulta a aquisição originária do direito de propriedade sobre a faixa de terreno em causa, o que conduz à extinção do direito dos Autores sobre o mesmo bem.
Poderá argumentar-se contra esta conclusão que não é possível a aquisição por usucapião de uma parcela de terreno apenas… Costuma dizer-se que o direito real tem de incidir sobre a totalidade da coisa que, além do mais, há de ser certa e determinada – princípio da especialidade ou individualização, com manifestações, entre outros, nos arts. 408, 656, 666, 686 do CC.
Tanto não impede que o direito real incida sobre parte da coisa que se autonomize juridicamente (assim sucede nas servidões prediais ou no direito de superfície); ou que a coisa se fracione dando origem a várias coisas cada uma com a sua individualidade (como sucede em geral com as coisas divisíveis – art. 209 do CC – ou com o fracionamento de prédios rústicos – arts. 1376 e ss do CC); ou, ainda que haja uma desanexação parcial e simultânea incorporação da parte desanexada em coisa vizinha (como sucede no prolongamento de edifício por terreno alheio – art. 1343 do CC).

Na situação dos autos sucedeu, justamente, que, aquando da construção do edifício no terreno dos Réus, o dono deste, de boa-fé, com a anuência do dono do terreno dos Autores, ocupou parte deste, nele construindo um caminho de acesso ao edifício que estava a construir.
Não sabemos ao certo se houve alguma contrapartida pela ocupação (v. facto da al. p)), mas sabemos que o dono do prédio dos Autores dela conhecia e com ela concordou. A aquisição da faixa de terreno pelo ocupante podia ter sido efetuada nos termos do art. 1343 do CC. Não o foi.
A partir da ocupação os donos do terreno dos Réus exerceram sobre a totalidade do seu prédio, e concretamente sobre o caminho de acesso, atos de posse como se donos fossem e na convicção de o serem, o que conduziu à incorporação da faixa no seu terreno e extinguiu o direito que, em tempos, os donos do terreno dos Autores tiveram sobre a mesma (ou, pelo menos, é impeditivo da existência desse direito).

D. Da apropriação ilícita e culposa pelos Réus e dos danos causados aos Autores
Questão prejudicada.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente improcedente, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.

Guimarães, 16/03/2017

Relatora: Higina Castelo
1.º Adjunto: João Peres Coelho
2.ª Adjunta: Isabel Silva


* Escrevemos todo o texto, incluindo citações de obras ou trechos de decisões escritas à luz do Acordo Ortográfico de 1945, em conformidade com a grafia vigente, do Acordo Ortográfico de 1990.
1 - As letras I., J., K., L. e M. estão repetidas no original (embora não nos seus conteúdos) e aqui se mantêm dessa forma.
2 - Rui Pinto Duarte, «Caminhos públicos (comentário de jurisprudência)», Cadernos de Direito Privado, n.º 13, jan.-mar. 2006, pp. 3-8 (também em Escritos jurídicos vários, 2000-2015, Almedina, 2015, pp. 239-247).
3 - Ac. do STJ de 05/05/2016, proc. 5562/09.4TBVNG.P2.S1, a título exemplificativo.
4 - V. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, pp. 316-7, e, por todos, Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3.ª ed., Princípia, 2013, pp. 56-7.
5 - Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, cit., pp. 341-2.
6 - Neste sentido, exemplificativamente, os Acórdãos do STJ de 03/02/1999, proc. 98B1043, de 29/10/2009, proc. 577/04.1TVLSB, e de 21/03/2013, proc. 2173/07.2TBGRD.C1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.