Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
621/17.2T8FAF.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
FALTA MANIFESTA
SOLUÇÕES PLAUSÍVEIS
INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Se a falta dos pressupostos processuais não resultar manifesta da simples leitura da petição, deve o juiz abster-se de a indeferir liminarmente;

II – Havendo várias soluções plausíveis para a questão de direito, não deve o juiz indeferir liminarmente a petição, ainda que tenha por certa a orientação que exclui a possibilidade de vir a ser proferida uma decisão de mérito;

III – Num caso em que, face ao alegado na petição inicial, não estava afastada a hipótese de, nomeadamente, o autor residir alternadamente em diversos locais, sendo um deles em Portugal, em circunstâncias suscetíveis de conferir competência aos tribunais portugueses, deve o juiz aguardar a posição da parte contrária sobre essa questão para, após produção da prova eventualmente indicada pelas partes, decidir da exceção da incompetência internacional.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

Inconformado com o despacho que julgou o Tribunal a quo internacionalmente incompetente para a preparação e julgamento da ação de divórcio que J. M. intentou contra E. R., indeferindo liminarmente o requerido, veio o primeiro interpor o presente recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

1- O art. 62º do CPC estabelece quais são os fatores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses.
2- Ora, o art. 62º a) do CPC conjuga-se com o art. 72º do mesmo Código, segundo o qual “para as ações de divórcio (…) é competente o tribunal do domicílio ou da residência do autor”.
3- No caso dos presentes autos, o tribunal recorrido afasta a aplicação da alínea a) do art.62º do CPC, por entender que o Autor, a Ré e o filho do casal residem na Suíça.
4- Não obstante, esta é uma objeção improcedente.
5- Ora, a competência do tribunal não pode deixar de aferir-se pelos termos em que a ação é proposta.
6- E ela foi proposta pelo Autor indicando logo na petição inicial, “residente, quando em Portugal, no lugar da …, freguesia de ..., do concelho de Celorico de Basto”, portanto, em Portugal.
7- O Autor, na petição inicial, ao utilizar a expressão “residente, quando em Portugal…”, quis, pois significar que tinha residências alternadas.
8- Conclui-se, que o Autor (também) tem domicílio em Portugal, pois o domicílio que indicou na petição inicial, será pelo menos um domicílio alternativo, nos termos do art. 82º nº1, do CC.
9- Aliás, para que a ação intentada pelo Autor seja apreciada em Tribunal Português, não é preciso que tenha residência habitual em Portugal, basta para o efeito, que tenha domicílio no país, conforme estabelece expressamente o art. 72º do CPC.(veja-se a este propósito o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 21-12-2015, relator João Ramos de Sousa, proc. nº 98/13.1TBPVC-A.L1-1, e o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 07/04/2011, relator Mário Canelas Brás, proc. nº 45/10.2TBCBT-C.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt);
10- Mesmo que assim não se entenda, não podemos olvidar que o Autor apenas trabalha temporariamente na Suíça, de tal forma que a residência do autor na Suíça, deve ter- se como residência meramente ocasional e/ou profissional – artº 82º nº2 e 83º do CC.
11- Portanto, a residência na Suíça apenas releva, para efeitos da sua profissão, ou seja, e na terminologia legal: «quanto às relações que a esta se referem» - artº 83º nº1 do CC.
12- Por conseguinte, tal residência não releva para o efeito que nos ocupa, antes sendo de relevar a morada/residência em Portugal (veja-se neste sentido os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, datados de 15/12/2016, e 14/06/2016, proc.nº192/15.4TBVLF.C1, e proc. nº 4756/13.2TBLRA.C1, respetivamente, ambos do relator Carlos Moreira, disponíveis em www.dgsi.pt).
13- A douta sentença, violou pois, o disposto nos artigos 38º, nº1 da LOSJ, os artigos 62º a), e 72º ambos do CPC, e o artigo 82º, nº1, 82º, nº2, e 83º, nº1 do CC.

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida, com as legais consequências.

A Recorrida não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).

No caso vertente, a questão a decidir que ressalta das conclusões recursórias é a seguinte:

- Saber se o tribunal a quo poderia ter indeferido liminarmente, como indeferiu, a petição inicial por se considerar internacionalmente incompetente para apreciar a ação de divórcio em causa.
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III. FUNDAMENTOS

Os Factos

1 - É o seguinte o teor da decisão recorrida:

I – J. M., emigrante na Suíça há 4 anos, onde reside (cfr. fls. 30 e ss), veio intentar a presente acção de divórcio contra E. R., também residente na Suíça.
O referido casal é pai do menor L. R., nascido em …, o qual também reside na Suíça e frequenta a escola na Suíça (cfr. fls. 28-v).

Cumpre proferir despacho liminar.

II – Dispõe o artigo 72º do Código de Processo Civil que para as acções de divórcio é competente o tribunal do domicílio ou da residência do Autor.
Por outro lado, os factores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses estão previstos no artigo 62º do Código de Processo Civil.

Aí se prevê que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

Sucede que o Autor, a Ré e o filho do casal residem na Suiça, o que afasta de imediato a aplicação da al. a) do referido normativo.

A alínea b), consagra o critério da causalidade e tem em vista impedir a denegação da competência dos nossos tribunais, nos casos de causa de pedir complexa (responsabilidade civil extracontratual), sempre que um só dos factos integradores da causa de pedir tenha sido praticado em território nacional.

Claro está que a circunstância de o Autor ter nascido em Portugal ou de o casamento ter sido celebrado em Portugal, tal não constitui qualquer facto integrador da causa de pedir do divórcio.

A alínea c), consagra o critério da necessidade, com vista a evitar conflitos negativos de jurisdição, sendo um critério excepcional e subsidiário, tendo a sua aplicação privilegiada aos casos dos refugiados.

Ora, o Autor nem sequer alegou essa necessidade de instaurar a acção em território português.

Assim, é forçoso concluir que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a presente causa.

A incompetência internacional constitui excepção dilatória que deve ser conhecida oficiosamente, implicando a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, nos termos do disposto nos artigos 96.º al. a), 97.º n.º 1, 99.º, 576.º n.º 1 e 2, 577.º al. a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.

III - Decisão:

Face ao exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 72º, 62º, 96.º al. a), 97.º n.º 1, 99.º, 576.º n.º 1 e 2, 577.º al. a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil, julgo este Tribunal internacionalmente incompetente para a preparação e julgamento dos presentes autos, pelo que indefiro liminarmente o requerido.

2 – Da consulta dos autos resulta ainda que:

a) Proposta a ação, foi designado dia para a realização da Tentativa de Conciliação a que alude o artigo 931º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tendo a Ré sido citada nos termos do art. 228º do CPC, nenhuma posição tendo a mesma assumido quanto à questão da eventual incompetência internacional.
b) O Autor, J. M., indicou na petição inicial ser “residente, quando em Portugal, no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de Celorico de Basto”, indicando a morada da Ré como sita na Suíça, mais tendo indicado que do casamento entre o A. e a R. existe um filho L. R., menor, nascido em …;
c) Por despacho de 08-02-2018, o Autor foi notificado para informar qual a residência do filho menor e qual a escola que o mesmo frequentava, bem como para informar qual a sua entidade patronal, o local onde exerce profissão e o lugar da residência durante o período em que trabalha (cfr- fls. 27).
d) O Autor informou que o menor reside e estuda na Suíça e que, quanto a si, exerce a profissão temporariamente na Suíça (cfr. fls. 28-v).
e) Ulteriormente, foi o mesmo notificado para juntar aos autos a última declaração de IRS apresentada e, bem assim, para esclarecer se é ou não emigrante, desde quando é emigrante e qual a residência na Suíça.
f) O Autor veio informar que está emigrado na Suíça há 4 anos e não juntou qualquer declaração de IRS (cfr. fls. 30 a 32)
g) Em momento prévio à prolação do despacho recorrido foi proferido despacho no sentido de que, vislumbrando-se a incompetência internacional, se notificasse o Autor para, querendo e em 10 dias, tomar posição.
c) Notificado para o aludido efeito, o Autor nada disse.

O Direito.

Dispõe o art. 590º, n.º 1, do CPC, que “nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560º”.
No caso da ação de divórcio e como decorre do nº 1 do art. 931º do CPC a apreciação liminar das condições para o prosseguimento da ação deve ser feita antes da designação de dia para a tentativa de conciliação.

Nos autos já havia sido designado dia para esse efeito e a Ré já havia sido citada nos termos do art. 228º do mesmo código (nenhuma posição tendo na altura assumido perante a alegação relativa ao domicílio do Autor), pelo que, em rigor, já estava ultrapassada a fase para eventual indeferimento liminar.

Independentemente do que se acabou de dizer, importa sobretudo relevar que, para haver lugar a indeferimento liminar por exceção dilatória insuprível, forçoso é que esta seja evidente, que decorra dos próprios termos da petição, sem necessidade de produção a respeito de qualquer tipo de prova.

Com efeito, como já frisava Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, pá. 223 e ss., em face do anterior código, com a expressão “evidente”, “quis o legislador significar que essa falha deverá resultar manifesta do teor da petição inicial e dos documentos que a acompanhem”, lembrando o referido autor que “a este propósito ensinava Alberto dos Reis, no domínio da lei anterior, que “só quando for evidente ou transparente a incompetência absoluta, a falta de personalidade ou de capacidade judiciária ou a ilegitimidade é que o juiz deve indeferir liminarmente a petição” – in CPC anotado Vol. II, pág. 375”.

Assim, já à luz da versão inicial do CPC “se a falta destes pressupostos não resultasse da simples leitura da petição, devia o juiz abster-se de a indeferir liminarmente, e aferir aqueles pressupostos na fase do despacho saneador, altura em que o processo já conteria elementos que permitiam uma decisão mais segura”, razão pela qual, segundo o mesmo autor, “Castro Mendes concluía que, “na dúvida o juiz não deverá estudar para decidir a dúvida” e Rodrigues Basto dizia que o despacho liminar deve ser guardado para os casos em que “os vícios não puderem suscitar qualquer espécie de dúvida” (in notas ao CPC, III, pág. 29).

Isso mesmo se repete, à luz da redação do atual art. 590º, nº 1, do CPC, no Acórdão da Relação de Lisboa de 05.06.2018 (Relator José Capacete), onde, relativamente a situação similar, se recorda que “a eventual incompetência material do tribunal recorrido poderia legitimar (…) a prolação de despacho liminar; no entanto, só no caso de tal incompetência ser evidente”, ali se acentuando que “uma exceção dilatória insuprível de que o juiz deva conhecer oficiosamente só é evidente se, face ao alegado na petição inicial, for absolutamente indiscutível, não suscitar qualquer dúvida”.

Ora, no caso, da mera leitura da petição inicial apresentada nos autos e dos documentos que a acompanham, nunca o juiz a quo poderia concluir ser evidente a incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgarem a ação de divórcio em causa, pelo que na fase liminar do processo sempre seria de aceitar – ainda que provisoriamente – a aludida competência.

Com efeito, na respetiva petição inicial o Autor alegou ser “residente, quando em Portugal, no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de Celorico de Basto”, assumindo, deste modo, perante o Tribunal, ter um domicílio em Portugal, ainda que não único, o que, face às pertinentes normas legais, não afastava a possibilidade de competência internacional do tribunal a quo.

Senão vejamos.

Os elementos de conexão que atribuem a competência internacional aos tribunais portugueses são os estabelecidos no art. 62º do CPC que, no que para o caso releva, consagra na sua alínea a) o chamado “princípio da coincidência, em função do qual os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando igualmente o sejam segundo as regras de competência interna em razão do território, (que) utiliza como elemento de conexão a norma de competência territorial interna” – Acórdão da Relação do Porto de 09.04.2013 (Relatora Cecília Agante).

E, de harmonia com o disposto no artigo 72.º do Código de Processo Civil, para as ações de divórcio e de separação de pessoas e bens é competente o tribunal do domicílio ou da residência do autor, sabendo-se que, nos termos do artigo 82.º do Código Civil, “a pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente, em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles” (nº 1) e “na falta de residência habitual, considera-se domiciliada no lugar da sua residência ocasional ou, se esta não puder ser determinada, no lugar onde se encontrar” (nº 2).

No caso concreto e face ao alegado na petição inicial não estava afastada a hipótese de, nomeadamente, o Autor residir alternadamente em diversos locais, sendo um deles em Portugal, o que conferiria competência aos tribunais portugueses.

Como se explana no Acórdão da Relação de Coimbra de 14.06.2016 (Relator Carlos Moreira), “o artº 82º do CC permite que um cidadão possa ter mais do que um domicílio desde que resida habitualmente alternadamente em diversos locais”, pelo que, apesar de a alternância em causa se reportar, “não a uma qualquer residência meramente passageira, esporádica e sem cariz de estabilidade, mas antes a duas ou mais residências habituais”, tornando-se, para o efeito, “necessário que em relação a cada uma delas se verifique alguma estabilidade, habitualidade, continuidade e efetividade de estada do centro da vida familiar” e “sem hierarquização de um local relativamente ao outro (como acontece com as residências secundárias ou acidentais, para fins de recreio), mas antes perante residências que são usadas com a mesma relevância e paritariamente – cfr. Acs. da Relação de Lisboa de 15.12.2005, dgsi.pt, p. 11237/2005-6 e de 21.06.2011 supra cit.”, do alegado pelo Autor na petição inicial não se podia excluir a hipótese de verificação de uma situação de alternância com as características legalmente exigíveis.

Por outro lado, como no último dos citados acórdãos se refere:

“Acresce que o conceito de domicílio pode emergir se, mesmo inexistindo uma residência habitual, se conseguir determinar uma residência meramente ocasional.

E, finalmente, mesmo à míngua desta, a pessoa tem-se por domiciliada no lugar em que esporádica e contingentemente se encontrar.

Destarte, verifica-se que nos encontramos perante uma série de possibilidades sucedâneas, as quais, ainda que com uma intensidade factual decrescente atinente à estabilidade e continuidade vivencial da pessoa num determinado lugar, são todas e cada uma delas, bastantes para densificar o conceito legal de domicílio”.

Assim sendo, mais uma vez se reafirma, em face do alegado, não era evidente ou transparente a incompetência absoluta do tribunal; esta não resultava da simples leitura da petição, pelo que deveria o juiz a quo abster-se de a indeferir liminarmente, nada justificando, por outro lado, a realização, por iniciativa do Tribunal, de quaisquer diligências tendentes a esclarecer/apurar o domicílio (ou domicílio principal) do Autor para efeito do decidido “indeferimento liminar”.

Na verdade, não sendo manifesta a exceção dilatória em causa, só em face da posição que venha a ser assumida pela parte contrária quanto ao alegado a respeito do domicílio do autor pelo próprio, deve o julgador, se for caso disso, proceder, com integral respeito pelo princípio do contraditório e a fim de consolidar a decisão, à produção de prova – a que as partes indicarem (de onde não se exclui a testemunhal) e outra que eventualmente considere essencial para aferir da veracidade do alegado – e, subsequentemente, pronunciar-se sobre a questão da incompetência internacional, com a consequente absolvição do réu da instância se se confirmar a verificação da aludida exceção dilatória.

Acresce que, no caso em apreço, nem os ulteriores esclarecimentos prestados pelo Autor a solicitação do Tribunal permitiam qualificar como evidente a inexistência de uma situação de alternância de residências, remanescendo, após tais esclarecimentos, por excluir a hipótese de a indicada morada em Portugal corresponder a uma residência do Autor com as características legalmente exigíveis, tanto mais que, no caso específico dos emigrantes, são conhecidas decisões no sentido do reconhecimento da existência de residências alternadas na hipótese de residência no estrangeiro e ocasional estadia em Portugal (cfr. indicado Acórdão da Relação de Coimbra de 15.12.2016 – Relator Carlos Moreira), o que, por si só, justificava a não prolação de despacho de indeferimento liminar, uma vez que, havendo várias soluções plausíveis para a questão de direito, não deve o juiz indeferir liminarmente a petição, ainda que tenha por certa a orientação que exclui a possibilidade de vir a ser proferida uma decisão de mérito (cfr. Abrantes Geraldes, obra citada e local citados).

É certo que notificado para se pronunciar sobre a questão da dita incompetência internacional o Autor nada disse, nem requereu.

Mas, mais uma vez frisamos, não sendo manifesta, face ao alegado na petição inicial (e até face aos esclarecimentos posteriormente prestados), a incompetência internacional do tribunal e, por outro lado, nenhuma posição tendo a Ré tomado até então sobre a questão, em rigor nada tinha aquele a demonstrar.

Por último, não se esqueça que no direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, sendo, pois, indiferentes para efeito do presente recurso os elementos carreados para os autos em momento ulterior à decisão recorrida.

Deve, pois, revogar-se a decisão recorrida, devendo os autos continuar os seus normais trâmites.

Isto sem prejuízo de poder vir a ser afirmada a incompetência internacional dos tribunais portugueses, caso o desenvolvimento do processo assim o justifique: na falta da evidência exigida por lei para o indeferimento liminar, o juiz a quo deve aguardar pela posição que o réu assuma a respeito do alegado quanto à residência do autor – cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 17.11.2016 (Relator Carvalho Guerra) e Acórdão da Relação de Lisboa de 03.07.2012 –, nada impedindo que, após tal tomada de posição, a exceção dilatória (determinante da absolvição da instância) resultante do desrespeito das regras de competência internacional venha a ser apreciada, ainda que oficiosamente, até ao trânsito em julgado da sentença (art. 97º, nº 1, do CPC), sendo o despacho saneador “o momento previsivelmente mais adequado” para a apreciar (art. 595º, nº 1, a), do CPC), “altura em que o juiz já disporá de mais elementos para uma decisão segura”, como, à luz do atual código, reafirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC Anotado, I, pág. 125, mas nada obstando também a que, em situações particulares como a dos autos, após a produção da prova que as partes julguem necessária, a decisão a tal respeito possa ser tomada em despacho pré-saneador.

Procede, pois, a apelação.
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Sumário:

I – Se a falta dos pressupostos processuais não resultar manifesta da simples leitura da petição, deve o juiz abster-se de a indeferir liminarmente;
II – Havendo várias soluções plausíveis para a questão de direito, não deve o juiz indeferir liminarmente a petição, ainda que tenha por certa a orientação que exclui a possibilidade de vir a ser proferida uma decisão de mérito;
III – Num caso em que, face ao alegado na petição inicial, não estava afastada a hipótese de, nomeadamente, o autor residir alternadamente em diversos locais, sendo um deles em Portugal, em circunstâncias suscetíveis de conferir competência aos tribunais portugueses, deve o juiz aguardar a posição da parte contrária sobre essa questão para, após produção da prova eventualmente indicada pelas partes, decidir da exceção da incompetência internacional.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.
Custas pela parte vencida a final.
Guimarães, 31.01.2019

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues