Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
459/23.8T8VNF-D.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
REQUISITOS
INSOLVÊNCIA ACTUAL
PEAP´S PRÉVIOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- No PEAP e no PER a lista de créditos reconhecidos tem por exclusiva finalidade a identificação dos créditos para efeitos de votação do plano de pagamento (PEAP) ou do plano de revitalização (PER) e, acessoriamente, qualificar, discriminando, os créditos subordinados, que são relevantes para o segundo quórum de aprovação, e não definir/determinar os direitos de créditos (respetivos montantes e garantias) dos credores perante o devedor.
2- Para que o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante da al. d), do n.º 1 do art. 238º do CIRE se verifique, é necessário que se preencham os seguintes requisitos cumulativos: a) o devedor se encontre em situação de insolvência; b) que não se apresente à insolvência no prazo máximo de seis meses sobre a data em que ficou insolvente; c) que, em consequência desse comportamento omissivo, resulte prejuízo para os seus credores; e d) o conhecimento ou o desconhecimento com culpa grave do devedor da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
3- O ónus da alegação e da prova de facticidade que preencha esses requisitos cumulativos impende sobre os credores do devedor e sobre o administrador da insolvência, sem prejuízo dos poderes inquisitoriais que assistem ao tribunal.
4- Estando provado que os devedores se apresentaram a dois PEAP e que esses processos foram encerrados em, respetivamente, 13/03/2019 e 15/12/2021, sem que neles tivesse sido aprovado e homologado plano de pagamento e sem que o administrador judicial provisório que neles exerceram funções tivessem emitido parecer no sentido de que os devedores, à data do encerramento daqueles processos, já se encontravam numa situação de insolvência atual (o que teria como consequência jurídica necessária que tivesse de ser instaurado processo de insolvência contra os devedores), não é possível concluir que os devedores já se encontravam numa situação de insolvência atual em 05/12/2018.
5- À data da instauração do segundo PEAP os devedores já tinham vendido as duas frações de que eram proprietários e tinham já cedido as participações sociais de que eram detentores, sem que, em 15/12/2021 (data do encerramento deste PEAP) o administrador judicial provisório tivesse emitido parecer no sentido de que os devedores se encontravam numa situação de insolvência atual à data desse encerramento, pelo que não é possível concluir que, por via de não se terem apresentado à insolvência, nos seis meses subsequentes a 05/12/2018, foi possível aos devedores celebrarem aqueles negócios de transmissão das frações e das participações sociais, com o que causaram prejuízo aos seus credores.
6- O prejuízo que é pressuposto pela al. d), do n.º 1 do art. 238º do CIRE não se presume, nem é uma consequência automática do facto do devedor não se ter apresentado à insolvência no prazo máximo de seis meses a contar da data em que se constituiu em situação de insolvência, mas tem de se trata de um prejuízo efetivo (real, efetivo e concreto), irreversível e grave, que seja evidenciado pela facticidade que se provou nos autos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

RELATÓRIO

AA, e mulher, BB, residentes na Rua ..., ..., freguesia ..., em 20/01/2023, apresentaram-se à insolvência e requereram que lhes fosse concedido o benefício da exoneração do passivo restante.
Por sentença proferida em 24/01/2023, transitada em julgado, declarou-se os requerentes insolventes e, além do mais, dispensou-se a realização da assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE.
Em 02/03/2023, o administrador da insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, em que formulou as seguintes conclusões, que aqui se sintetizaram:
“O insolvente marido nasceu no dia ../../1977; a insolvente mulher nasceu no dia ../../1977; são casados entre si desde ../../2003, sem convenção antenupcial;  atualmente, o insolvente encontra-se a trabalhar a tempo parcial na sociedade comercial que gira sob a firma “EMP01..., S.A.”, com a categoria profissional de “Contabilista Certificado”, local onde aufere uma remuneração fixa mensal de 550,00€; a insolvente mulher encontra-se a trabalhar para  a firma “EMP02..., Lda.”, com a categoria profissional de “técnica de gestão”, local onde aufere cerca de 850,00€ mensais; e trabalha ainda em regime de part-time para a sociedade comercial que gira sob a firma “EMP03..., Lda.”, onde aufere um rendimento mensal de 150,00€; residem na Rua ..., ..., ... ..., numa habitação arrendada, pela qual pagam, mensalmente, a quantia de 450,00€; não se consegue conceber, nem muito menos aceitar a referida despesa quando os insolventes detêm o direito de uso e habitação sobre o imóvel onde residem; o agregado familiar dos insolventes é composto por ambos e pelos dois filhos do casal, ainda menores de idade, os quais se encontram em período escolar; os bens (de maior valor) que compõem a habitação efetiva são, na sua generalidade, propriedade da senhoria dos insolventes – a sociedade comercial que gira sob a firma “EMP01..., S.A.” –, motivo pelo qual não foram objeto de qualquer apreensão ou arrolamento; atendendo às reclamações de créditos apresentadas e aos créditos relacionados, os insolventes têm dívidas no montante global de 229.488,89€, de natureza comum, sendo que a quantia de 70.681,30€ assume a natureza de crédito condicional; atendendo a toda a factualidade subjacente, não se vislumbra que, no curto ou médio prazo, os insolventes possam vir a auferir rendimentos suscetíveis de satisfazer todas as suas responsabilidades, face à situação e conjuntura económica existente”.
Concluiu, propondo que: “As dívidas dos insolventes, os parcos rendimentos que auferem, a ausência de património imobiliário, a falta de meios ou capacidade financeira ou de recurso ao crédito, impossibilitam os insolventes de cumprir pontualmente os compromissos assumidos e são as causas que estão na base da situação de insolvência.
A situação em que os insolventes se encontram não parece ter retorno na medida em que não conseguem fazer face a todos os compromissos assumidos.
As dívidas da massa insolvente resumem-se, atualmente, às custas do processo, às despesas e remuneração do Administrador de Insolvência.
Considerando que subiste por aquilatar os contornos das transmissões ocorridas em 05 de dezembro de 2018 (transmissão de participações sociais) e 10 de abril de 2019 (transmissão de bem imóvel), e a boa-fé dos insolventes em ambos os negócios, o administrador de insolvência propõe que os autos aguardem o decurso do prazo para exercício do contraditório por parte dos insolventes, após o que estará em condições de avançar num de dois sentidos:
A. Na eventualidade dos insolventes não lograrem afastar a presunção que ambos os negócios em causa padecem de nulidade, por simulação, o Administrador da Insolvência, ora signatário, propõe que se diligencie pela submissão de requerimento de proteção jurídica junto dos serviços do Instituto da Segurança Social, I.P., nas modalidades de “dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo”, a fim de ser instaurada ação judicial para o efeito;
B. Na eventualidade dos insolventes lograrem afastar a presunção que ambos os negócios em causa padecem de nulidade, por simulação, e atendendo a que os insolventes não têm qualquer hipótese de pagar as suas dívidas, conforme afirmação dos mesmos na sua petição de apresentação à insolvência, e pelo que se depreende do exposto nos pontos anteriores, por não existir massa insolvente para suportar as custas do processo e restantes dívidas da massa, o Administrador da Insolvência dará conhecimento desse facto ao Senhor Juiz de Direito, para efeitos do disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 230.º e/ou artigo 232.º, do CIRE. Nesta hipótese, e em face da manifestada ausência de bens na titularidade dos insolventes, não haverá lugar à submissão nos autos do plano de liquidação de venda dos bens, a que se reporta o n.º 1, do (novo) artigo 158.º do CIRE.
Quanto ao pedido de exoneração do passivo restante alegou que: “(…) até ao momento, não foi possível apurar se as transmissões em causa foram, ou não, celebradas de boa-fé. Por esse motivo, e considerando que aos insolventes será concedido prazo para se pronunciarem quanto aos aludidos negócios, o Administrador da Insolvência, ora signatário, reserva-se o direito de emitir o seu parecer após a pronúncia por parte daqueles”.
O credor Banco 1... – Instituição Financeira de Crédito, S.A. declarou aderir integralmente à proposta apresentada pelo administrador da insolvência.
Em 01/03/2023, os devedores pronunciaram-se quanto ao relatório apresentado pelo administrador da insolvência, impugnando parte dos factos nele alegados e sustentando: terem prestado ao administrador toda a colaboração, documentação e informação que lhes foram solicitadas; desconhecerem que informação pretende o administrador que lhes seja prestada para preencher o seu conceito de boa fé; e não se verificarem os pressupostos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previstos no art. 238º do CIRE.
Em 23/02/2023, o administrador da insolvência emitiu parecer em que se opôs à concessão aos devedores do benefício de exoneração do passivo restante, requerendo que esse pedido fosse liminarmente indeferindo, alegando:
“Em sede de relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, o signatário reservou-se o direito de emitir o seu parecer após a pronúncia por parte dos insolventes quanto às transmissões das participações sociais e de bem imóvel, sendo certo que, no exercício do seu direito ao contraditório, os insolventes não lograram demonstrar que as transmissões em causa não defraudaram os credores.
Com efeito, e perante a falta de junção de novos elementos aos presentes autos de insolvência, o aqui signatário está já em condições de verter o seu parecer quanto ao pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes, o que faz com os seguintes factos e fundamentos:
Por escritura pública outorgada no dia 10 de abril de 2019, os insolventes venderam à sociedade comercial que gira sob a firma “EMP01..., S.A.”, pelo preço global de 118.664,00€, as frações autónomas designadas pelas letras ... e ..., pertencentes ao prédio descrito na CRP ... sob o n.º ...20 (freguesia ...), e inscritas na respetiva matriz sob os artigos ...8... e ...8.º-L, reservando para si o direito de uso e habitação, simultâneo e sucessivo, pelo prazo de cinco anos, livre de quaisquer ónus ou encargos, à exceção das hipotecas a seguir referidas: duas hipotecas a favor do Banco 2..., S.A., nos termos das apresentações ...3 e ...4, ambas de 10.02.2006; os insolventes declararam ainda que ambos são responsáveis pela dívida de 118.664,00€ ao Banco 2..., S.A., correspondente ao saldo devedor de dois empréstimos, que lhes foram concedidos pelo Banco 2..., S.A., por contratos de mútuo, garantidos por duas hipotecas sobre as frações ... e ..., sendo que a sociedade adquirente declarou, por sua vez, que assume o pagamento desse passivo perante o indicado banco, sendo tal assunção de dívida essencial para a outorga deste contrato de compra e venda; o pagamento do preço é pago pela assunção da totalidade da mencionada dívida ao Banco 2..., S.A. no montante de 118.664,00€, por parte da sociedade compradora.
A propósito deste negócio, e em sede de relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, o aqui signatário já teve oportunidade de esgrimir os seguintes comentários: no negócio em causa não existiu qualquer contraprestação económica, sendo que a contrapartida do negócio foi a assunção da dívida por banda da sociedade adquirente; a referida assunção da dívida por banda da sociedade adquirente não exonerou os insolventes das obrigações decorrentes dos contratos de mútuo, garantidos por hipoteca sobre os referidos imóveis; desconhece-se por que razão os insolventes reservaram para si o direito de uso e habitação do imóvel em causa (direito impenhorável), e ainda por que razão a sociedade adquirente permitiu que isso sucedesse; o imóvel em causa constitui a casa de morada de família dos insolventes, sendo que, pese embora os insolventes detenham o direito de uso e habitação sobre aquela, afirmaram, em sede de petição inicial, que pagam, a título de arrendamento, a quantia de 450,00€; a sociedade adquirente é uma sociedade anónima, cujo Presidente do Conselho de Administração é CC, (…), alegadamente amigo dos insolventes; além disso, é na sociedade adquirente onde o insolvente atualmente trabalha, em regime de “part-time”, com a categoria profissional de “Contabilista Certificado” e onde aufere o ordenado base de 550,00€.
Por documento particular intitulado “contrato de cessão de quota”, outorgado a 05 de dezembro de 2018, a insolvente mulher cedeu a DD, uma quota no valor nominal de 15.000,00€, correspondente a 50% do capital social da “EMP03..., Limitada”, pelo valor global de 15.000,00€; foi acordado entre as partes que o preço da cessão da referida quota seria pago pela cessionária (DD) à cedente (insolvente mulher), através de transferência bancária, em data a acordar entre ambas; igualmente por documento particular intitulado “contrato de cessão de quota”, outorgado a 05 de dezembro de 2018, o insolvente marido cedeu a CC, uma quota no valor nominal de 15.000,00€, correspondente a 50% do capital social da “EMP03..., Limitada”, pelo valor global de 15.000,00€; foi acordado entre as partes que o preço da cessão da referida quota seria pago pelo cessionário (CC) ao cedente (insolvente marido), através de transferência bancária, em data a acordar entre ambos.
De acordo com informação prestada pelos insolventes, o produto da venda foi pago da seguinte forma: através de cheque sacado sobre a conta n.º ...75, da Banco 3..., emitido a ../../2019; através de cheque sacado sobre a conta n.º ...76, da Banco 3..., emitido a ../../2019.
A propósito deste negócio, e em sede de relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, o aqui signatário teve igualmente oportunidade de esgrimir os seguintes comentários: a sociedade comercial que gira sob a firma “EMP03..., Limitada” foi constituída no dia 15 de março de 2007, com o capital social de 8.000,00€, distribuído por duas quotas: uma quota no valor nominal de 4.000,00€, pertencente à sócia BB (insolvente mulher); e uma quota no valor nominal de 4.000,00€, pertencente ao sócio AA (insolvente marido); no respetivo contrato de sociedade ficaram a figurar como gerentes ambos os insolventes; a insolvente mulher permaneceu como gerente da referida sociedade comercial até 31 de outubro de 2013, data na qual renunciou à respetiva gerência; o insolvente marido permanece como gerente e responsável técnico da referida sociedade até hoje, sendo que não aufere qualquer quantia pelo desempenho das referidas funções; no dia 13 de março de 2013, o capital social da referida sociedade sofreu um aumento, em consequência do que aquele passou a ser de 30.000,00€, distribuído por duas quotas: uma quota no valor nominal de 15.000,00€, pertencente à sócia BB (insolvente mulher); e uma quota no valor nominal de 15.000,00€, pertencente ao sócio AA (insolvente marido); no dia 05 de dezembro de 2018, os insolventes (marido e mulher) cederam as participações sociais que detinham na sociedade comercial que gira sob a firma “EMP03..., Limitada” a DD e CC, sem que, à data da sua transmissão, lhes tenha sido pago qualquer valor pelos respetivos cessionários e/ou prestada qualquer garantia; de acordo com informação prestada pelos insolventes (marido e mulher), o preço do negócio foi, alegadamente, concretizado 3 (três) meses após a outorga dos respetivos contratos de cessão de quotas, através de dois cheques sacados sobre a Banco 3..., e pelo valor nominal das respetivas participações sociais, ou seja, pelo valor global de 30.000,00€.
Acontece que, na perspetiva do Administrador Judicial ora signatário, o valor pelo qual as referidas participações sociais foram transmitidas – i. é., 30.000,00€ (ou seja, o correspondente ao valor nominal das participações sociais) não apresenta qualquer correspondência com o respetivo valor comercial (i. é., o valor efetivo das participações sociais), sendo este de valor manifestamente superior.
É consabido que, atualmente, não existe um único método de avaliação de uma empresa e, mesmo que existisse, as partes podiam chegar a resultados diferentes, pois o cálculo é complexo e as variáveis são muitas – e, em alguns casos, bastante subjetivas.
Não obstante, e recorrendo, desde logo, ao MEP – método de equivalência patrimonial –, o qual nos remete para a situação líquida da sociedade, à data da transmissão das respetivas participações sociais – 05 de dezembro de 2018 – estas apresentavam um valor (efetivo/comercial) na ordem dos 50.000,00€.
Todavia, como a sociedade comercial em causa é proprietária de um imóvel, e o valor refletido na contabilidade desse imóvel não corresponde ao seu efetivo valor comercial (mas a um valor manifestamente inferior), na venda da sociedade deverá ser valorado o valor comercial daquele e não o custo contabilístico.
Serve isto para referir que, o apuramento do valor comercial da sociedade realizado através do MEP não leva em consideração o valor efetivo do imóvel, mas apenas o respetivo valor contabilístico (que é manifestamente inferior àquele). Portanto, ao valor (efetivo/comercial) apurado pelo MEP deverá acrescer o resultado da reavaliação para o valor de mercado (efetivo/comercial do imóvel).
Acresce ainda referir que, e não menos relevante, no caso das sociedades de cariz profissional, como parece ser o caso da sociedade “EMP03..., Limitada”, há um índice que deve ser valorado na determinação do valor comercial da sociedade, que é precisamente a carteira de clientes. Sendo esta sociedade uma sociedade de cariz profissional, é corrente que a valorização da empresa se faça através dos seus clientes, os quais configuram um dos ativos intangíveis mais valiosos, pela sua respetiva fonte de receita. Quer isto significar, portanto, que ao valor (efetivo/comercial) apurado pelo MEP deverá igualmente acrescer a carteira de clientes, concretamente, o volume de faturação anual da sociedade (no ano de 2018) – neste caso, de aproximadamente 100.000,00€.
Após a transmissão da respetiva participação social pelo insolvente marido a um terceiro, aquele continuou, até ao presente, a exercer funções como gerente e como responsável técnico, a título meramente gratuito.
Igualmente após a transmissão das respetivas participações sociais pelos insolventes a terceiros, aqueles continuaram, e continuam, até ao presente, a ser garantes no contrato de locação financeira imobiliário formalizado entre a “EMP03..., Limitada” e a Banco 3..., com todos os riscos a isso associados.
Os adquirentes da referida participação social mantêm uma relação de amizade com os insolventes desde há vários anos para cá.
Concluiu que: “perante os factos acima enunciados, corroborados pelos documentos anexos ao relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, o Administrador Judicial ora signatário vem opor-se contra a admissão liminar do incidente de exoneração formulado pelos insolventes.
Na verdade, o facto dos insolventes terem vendido um imóvel e duas participações sociais numa fase em que parte dos seus créditos já estavam vencidos (i.e., os créditos da “EMP04..., S.A.”, “Instituto da Segurança Social, I.P.”, “EMP05... DAC”, e “EMP06... – STC, S.A.”), e ainda numa fase que os próprios insolventes já se encontravam numa situação financeira difícil, tendo-se apresentado à insolvência após o decurso do prazo para a resolução em benefício da massa insolvente de ambos os negócios, defraudou, manifestamente, os seus credores.
Por conseguinte, e evidenciando-se que a situação dos insolventes como deficitária remonta já ao ano de 2018, deve, assim, ser indeferida a exoneração do passivo restante, de acordo com o artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE.
Da factualidade constante dos presentes autos, resulta que a generalidade dos créditos detidos sobre os insolventes (com exceção dos créditos da Banco 3..., S.A. e Banco 4..., S.A. – Sucursal em Portugal), se encontravam vencidos na data da concretização de ambos os negócios jurídicos, tendo os insolventes sido submetidos a um PEAP – Processo Especial para Acordo de Pagamento – em 28 de junho de 2018 (processo n.º 4163/18....) e em 06 de julho de 2021 (processo n.º 3802/21....) a outro PEAP – Processo Especial para Acordo de Pagamento –, apresentando-se apenas à insolvência em 20 de janeiro de 2023.
Ora, se se atentar ao percurso percorrido pelos insolventes: no dia 28.06.2018 dão início a um PEAP; no dia 05.12.2018 vendem as participações sociais (por um valor abaixo do valor de mercado); no dia 10.04.2019 vendem o imóvel (por um valor abaixo do valor de mercado); no dia 06.07.2021 dão início a um outro PEAP; e apenas no dia 20.01.2023 se apresentam à insolvência; e ao facto dos únicos bens dos insolventes, neste momento, serem apenas aqueles que decorre dos respetivos salários, tais factos são suficientes, quanto a nós, para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.
Quem, à data da transmissão dos referidos bem imóvel e direitos, tem dívidas (vencidas) na ordem dos 90.000,00€, e vive apenas do seu ordenado, não tem como não deixar de saber e ter consciência de que não tem meios económicos que lhe permitam saldar as suas dívidas. Com essa consciência, apesar de verificada a sua situação de insolvência, dado que impeditiva de liquidar a generalidade das dívidas que detinham, os insolventes desfizeram-se do único património que lhes permitiria dar pagamento aos credores, com evidente prejuízo para os mesmos.
Acresce ainda referir que, e salvo melhor entendimento em contrário, o facto de tais factos terem ocorrido há mais de 3 (três) anos, não é impeditiva de dar por preenchidos os requisitos legais estatuídos na alínea d), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE, uma vez que tal preceito normativo não está balizado por qualquer momento temporal, com a exceção da não apresentação à insolvência no prazo de seis meses desde a verificação da situação de insolvência.
Assim sendo, revertendo aos autos, é possível concluir que, não sendo os insolventes proprietários de outros bens, e que numa altura em que já tinham uma grande parte dos seus créditos vencidos e se encontram numa situação económica débil (daí terem recorrido a dois PEAP), após o qual transmitiram todos os seus bens, por um preço inferior ao respetivo valor de mercado, não há como negar que os insolventes tornaram a recuperação dos créditos contra si existentes substancialmente mais difícil”.

Os devedores responderam ao parecer que antecede, impugnando parte dos factos alegados pelo administrador e mantendo a sua posição de que o pedido de exoneração do passivo restante deverá ser liminarmente admitido, por não se verificar o preenchimento de nenhuma das alíneas do n.º 1 do art. 238º do CIRE.
Por despacho de 21/04/2023 determinou-se a notificação dos credores para, em dez dias, tomarem posição quanto à prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
Apenas o credor Banco 1..., S.A. pronunciou-se no sentido de que as questões suscitadas pelo administrador da insolvência devem ser esclarecidas e, caso sejam provados os factos por ele alegados, deverá ser indeferido o pedido de exoneração.
Por despacho de 16/06/2023, determinou-se o prosseguimento dos autos de insolvência para liquidação do ativo, ficando estes a aguardar a instauração das ações de simulação invocadas pelo administrador da insolvência e votadas favoravelmente pelos credores.
Mais se determinou que: “a) os devedores juntem aos autos, em 20 dias, os extratos bancários referentes ao período compreendido entre dezembro de 2018 e dezembro de 2022 relativos à conta associada ao empréstimo hipotecário; b) a sociedade “EMP03..., Limitada” para, em 10 dias, juntar aos autos os balancetes analíticos do mês em que se realizou a transmissão da participação social (ou seja, dezembro de 2018); c) a sociedade EMP01... S.A. para, em 10 dias, esclarecer quem procedeu ao pagamento do crédito hipotecário, em que data e por que valor e se o imóvel adquirido tem, neste momento, alguma hipoteca a onerá-lo; d) os devedores e a sociedade EMP01... S.A. para, em 20 dias, esclarecerem a razão pela qual  acordaram reservar para os primeiros o direito de uso de habitação, mas, concomitantemente, celebraram um contrato de arrendamento, convencionado uma renda de €450,00/mês”.
A sociedade “EMP01..., S.A.”, prestou a informação que se encontra junta aos autos de insolvência a 04/07/2023.
Os devedores prestaram a informação juntas aos mesmos autos em 12/07/2023 e juntaram cópia de cheque e, em 11/08/2023, extratos das suas contas bancárias.
A sociedade “EMP03..., Lda.” juntou os autos, em 14/08/2023, documentos.
Em 01/...23, ordenou-se a notificação do administrador da insolvência e os credores para, “tendo em conta as informações prestadas pela sociedade EMP01..., S.A. e as explicações dos insolventes” se “pronunciarem quanto à prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante”.
O administrador da insolvência pronunciou-se, renovando o seu parecer no sentido de que o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores fosse indeferido, repetindo os mesmos argumentos que já expusera no parecer que acima transcrevemos.
Os devedores responderam, mantendo a posição que anteriormente já tinham manifestado e requerendo que o administrador da insolvência fosse destituído do cargo.
Seguiu-se resposta do administrador da insolvência, pugnando no sentido de que fosse indeferida a pretensão dos devedores no sentido de que fosse removido do cargo de administrador da insolvência.
Em 21/11/2023, a 1ª Instância indeferiu liminarmente o pedido de concessão do benefício da exoneração do passivo restante formulado pelos devedores, constando esse despacho da seguinte parte dispositiva:
“Em face do exposto, considerando preenchidos os pressupostos a que alude a alínea d) do n.º 1 do artigo 236.º do CIRE, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE”.

Inconformados com o decidido, os devedores, AA e BB, interpuseram recurso, em que formularam as seguintes conclusões:

1- Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pelo Tribunal a quo que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos Recorrentes.
2- A decisão, com o devido respeito, apresenta diversas incongruências, que a ferem de nulidade, e ainda falha quer na apreciação da matéria de facto, quer na aplicação do direito aos factos que foram dados como assentes.
3- Desde logo, o despacho em apreço padece de nulidade nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC por apresentar obscuridade na utilização de conceitos indeterminados como “prejuízo” e “mais vantajosos”, sem que para tal quantifique e clarifique tais conceitos.
4- E ainda por concluir pelo “aumento do passivo” dos Recorrentes, quando toda a prova produzida aponta em sentido contrário, o que se traduz numa contrição da decisão com os seus fundamentos de facto.
5- O despacho em apreço padece ainda de nulidade nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC por ter deixado de apreciar questões devidamente alegadas pelos Recorrentes, mormente a clara diminuição do passivo dos mesmos ao longo dos anos.
DA NULIDADE DO DESPACHO:
6- Conforme exposto, a decisão em apreço assenta sobre dois conceitos de caráter indeterminado utilizados aqui como factos: “prejuízo” e “mais vantajosos”;
7- No entanto, tais conceitos não são factualmente concretizados e concretizáveis, mormente indicando-se os valores dos créditos que seriam pagos e não foram caso fosse declarada a insolvência e qual prova que tal demonstra, e ainda quais os valores que se entendem seriam alcançados com a venda do património em insolvência e em que prova se baseia o Tribunal para aferir tal conclusão;
8- Acresce que esta última conclusão não foi alegada por qualquer uma das partes nos autos, pelo que, se não foi feita a alegação, muito menos foi feita prova de qualquer valor;
9- Pelo que não podem os Recorrentes deixar de concluir que tal decisão se encontra ferida de nulidade nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC pela obscuridade que apresenta.
Acresce que,
10- No seu requerimento de 10/03/2023 os Recorrentes alegam e demonstram a diminuição do seu passivo ao longo dos anos, de €545.635,75 no primeiro PEAP em 2018, para €269.916,42, no 2.º PEAP, em 2021, para €157.118,12 nestes autos.
11- Desde logo, a demonstração destes factos inviabiliza as conclusões deste Tribunal de que o passivo dos Recorrentes aumentou ao longo dos anos, colocando o despacho recorrido em oposição com os factos provados nos autos e ferindo-o de nulidade nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
12- Por outro lado, tais considerações não foram objeto de qualquer apreciação no douto despacho recorrido, sendo essenciais para as conclusões de tal decisão, mormente na quantificação do referido conceito de prejuízo.
13- Tendo o Tribunal a quo deixado de se pronunciar sobre questões alegadas pelas partes, tal facto fere o despacho em apreço de nulidade nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

14- Os Recorrentes aceitam os factos dados como provados, mas não podem aceitar a conclusão de que nada mais resultou provado. 15- Desde logo, nos seus requerimentos de 10/03/2023, 03/04/2023, 12/07/2023 e 31/10/2023 é insistentemente alegado que o crédito hipotecário detido pelo Banco 2..., S.A. foi integralmente pago pela sociedade “EMP01..., S.A.”, tendo os insolventes sido desonerados de tal passivo.
16- Tal afirmação é depois sustentada pelos documentos juntos no relatório elaborado pelo Exmo. Senhor AI nos termos do artigo 155.º do CIRE, pela relação de créditos elaborada nos termos do artigo 129.º do CIRE, e pelo requerimento da sociedade “EMP01..., S.A.” de 04/07/2023.
17- No relatório do artigo 155.º do CIRE encontram-se igualmente os anúncios de encerramento dos PEAP apresentados pelos Recorrentes, demonstrando o seu encerramento sem o pedido de declaração de insolvência dos Recorrentes.
18- Sendo ainda possível consultar publicamente no Portal Citius as relações de créditos de tais processos, que demonstram os valores dos créditos reconhecidos em cada processo: €545.635,75 em 2018 e €269.916,42 em 2021.
19- Já no Apenso A destes autos é possível consultar a relação de créditos do artigo 129.º, bem como a sentença de verificação e graduação de créditos e confirmar que os créditos aí reconhecidos ascendem a €157.118,12.
20- Pelas reclamações de créditos apresentadas nos autos, pela relação de créditos do artigo 129.º e pelo teor do relatório do artigo 155.º do CIRE e respetivos anexos, e pelo teor da petição inicial e respetivos anexos, é possível verificar que a generalidade dos créditos dos Recorrentes se devem a avais prestados à sociedade EMP07... S.A.”.
21- Cujo processo de insolvência decorreu entre 24 de outubro de 2018 e julho de 2020, conforme anúncios passíveis de consulta pública em www.citius.mj.pt.
22- Por toda a prova supramencionada, é entendimento dos Recorrentes que, para além dos factos dados como provados e constantes do referido despacho, devem ainda constar como provados os seguintes factos:
a- Foi integralmente pago o crédito hipotecário detido pelo “Banco 2..., S.A.”, cujo pagamento foi a contrapartida económica da venda das frações autónomas propriedade dos insolventes, que ficaram desonerados de tal passivo;
b- No âmbito do processo especial para acordo de pagamento com o n.º 4163/18.... foram reconhecidos pela Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória créditos no montante total de €545.635,75;
c- Encerrados estes autos sem a aprovação de Plano de Pagamento, não foi requerida pelo Exmo. Senhor AJP a declaração de insolvência dos Recorrentes;
d- No âmbito do processo especial para acordo de pagamento com o n.º 3802/21.... foram reconhecidos pela Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória créditos no montante total de €269.916,42;
d- Encerrados estes autos sem a aprovação de Plano de Pagamento, não foi requerida pelo Exmo. Senhor AJP a declaração de insolvência dos Recorrentes;
e- No âmbito destes autos, o passivo verificado e graduado em sede de reclamação de créditos ascende a €157.118,12;
f- A sociedade “EMP07... S.A.” foi declarada insolvente por sentença datada de 24 de outubro de 2018 no âmbito do processo de insolvência n.º 6634/18...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz ..., e foi encerrado em julho de 2020, por insuficiência da massa insolvente.
DO ERRO NA APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:
23- Quanto à aplicação do direito aos factos, os Recorrentes discordam que se encontram preenchidos os pressupostos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.
24- No que respeita o PRIMEIRO PRESSUPOSTO, os insolventes não estão obrigados a apresentar-se à insolvência nos termos do disposto no artigo 18.º do CIRE, mas pende sobre os mesmos a necessidade de se apresentarem à insolvência nos seis meses subsequentes à verificação da situação de insolvência.
25- Os Recorrentes discordam que a sua situação de insolvência tenha ocorrido no final do ano de 2018 com a venda das suas participações sociais na sociedade comercial que gira sob a firma “EMP03..., Limitada”.
26- Quanto ao vencimento dos seus créditos, pela matéria provada nos autos apenas resulta que, em 2018, estavam vencidos os créditos da “EMP04..., S.A.”, “Instituto da Segurança Social, I.P.” e da “EMP06... – STC, S.A.”, que totalizam um capital de €23.357,00.
27- Nada foi apurado nestes autos quanto à capacidade financeira dos Recorrentes àquela data, mormente no que respeita à sua capacidade de gerar rendimentos capazes de prover pelo pagamento pontual das suas obrigações.
28- Acresce que, a generalidade das dívidas dos Recorrentes resultam de avais prestados à sociedade EMP07..., sociedade que veio a ser declarada insolvente em outubro de 2018 e cujo processo apenas encerrou em 2020, tendo os Recorrentes acalentado até esse momento a possibilidade de esse processo acarretar a diminuição do seu passivo.
29- Até à data da declaração de insolvência, os Recorrentes os seus bens ou os rendimentos dos Recorrentes não foram objeto de qualquer penhora ou apreensão.
30- Ao longo dos anos, os Recorrentes foram conseguindo reduzir de forma substancial o seu passivo, que passou de €545.635,75 em 2018 para €269.916,42 em 2021 e €157.118,12 aquando da insolvência.
31- Esta diminuição de passivo foi possível em virtude da alineação de património efetuada e fruto de negociações pontuais que os Recorrentes foram fazendo ao longo dos anos.
32- Quanto ao TERCEIRO PRESSUPOSTO, previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, os Recorrentes discordam em absoluto com o Tribunal a quo quando conclui que “aquando da formalização da escritura de compra e venda de bem imóvel e transmissão das participações sociais, já os insolventes se encontravam em incumprimento das suas obrigações, sem que elementos nenhuns conhecidos fizessem antever que tal situação viesse a ser ultrapassada” e que os PEAP apresentados “não foram viáveis, uma vez que os planos não foram homologados”.
33- Quando em 2018 a sociedade EMP07... foi declarada insolvente os Recorrentes mantinham o seu património intacto e intentaram de imediato um PEAP numa tentativa de negociar com os seus credores.
34- Apesar do término do processo sem sucesso nas negociações, a Administradora Judicial Provisória nomeada não requereu a declaração de insolvência dos Recorrentes, nos termos da anterior redação do artigo 222.º-G do CIRE, pelo que terá concluído a mesma, perante a factualidade existente à data, que os Recorrentes não se encontravam numa situação de insolvência.
35- Não tendo o PEAP surtido o efeito desejado, os Recorrentes iniciaram a venda do seu ativo e o pagamento das dívidas que mais pesavam sobre si, aguardando o desfecho do processo de insolvência mencionado.
36- Em 2021, com o seu passivo substancialmente reduzido, os Recorrentes voltaram a negociar com os seus credores, propondo aos mesmos o pagamento de 100% do capital em dívida.
37- Apenas quando em 29 de dezembro de 2022 os Recorrentes são confrontados com a execução n.º 7556/22.... desaparece perante os mesmos qualquer possibilidade de manter a resolução dos seus problemas fora da esfera judicial, pelo que de imediato iniciaram os procedimentos necessários para requerer a sua declaração de insolvência, o que veio a suceder em janeiro de 2023.
38- Volvendo agora ao SEGUNDO PRESSUPOSTO da alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, os Recorrentes negam categoricamente que tenha sido dado como provado as afirmações do Tribunal de que as alienações de património efetuadas pelos Recorrentes em 2018 e 2019 “prejudicaram os interesses dos credores”, contribuindo assim, dolosamente, para a criação ou, pelo menos, para o agravamento da sua própria situação de insolvência” e que “tiveram como único propósito dissipar tal património e assim evitar a sua execução ou apreensão nos autos de insolvência”.
39- Tendo sido dado como provado o pagamento do preço de todas as transmissões, que totalizaram uma receita total de €148.664,00, que os Recorrentes tinham um único credor garantido, que foi integralmente ressarcido, e que não foi feito qualquer pagamento a credores especialmente relacionados, e 
40- Não tendo sido feita qualquer prova de que os bens foram vendidos abaixo do seu valor de mercado, que a sua venda em insolvência traria receita superior ou que as transmissões tenham visado unicamente a dissipação de património, 
41- As conclusões anteriores são desprovidas de qualquer fundamentação fática.
42- Na verdade, entre o ano de 2018 e a data da declaração de insolvência, a situação financeira dos Recorrentes passou de um saldo negativo de €396.971,75 para um saldo negativo de apenas €157.118,12, o que demonstra uma melhoria de cerca de €240.000,00.
43- Pelo que de forma alguma pode este Tribunal concluir que da não apresentação à insolvência dos Recorrentes em 2018 decorreu prejuízo para os seus credores ou o agravamento da situação dos Recorrentes.
44- O que aqui aconteceu foi uma verdadeira tentativa por parte dos Recorrentes de ressarcir os seus credores através do seu património sem ter de passar por um processo judicial como a insolvência com as consequências que a mesma acarreta em termos de imagem, familiares e profissionais.
45- Por tudo o que foi exposto, e por não se encontrem preenchidos os pressupostos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, deverá a decisão em apreço ser de imediato revogada e substituída por outra que determine o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos devedores, fixando-se o rendimento disponível dos mesmos.
Nestes termos e nos melhores de direito, deverá ser julgado totalmente procedente o presente recurso e revogado o douto despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos devedores, fixando-se o rendimento disponível dos mesmos.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
Acresce que a 1ª Instância pronunciou-se quanto às nulidades que os recorrentes assacaram ao despacho recorrido, concluindo pela improcedência destas.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos apelantes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devessem ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito) nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
a- se o despacho recorrido padece do vício da nulidade da al. c), do n.º 1 do art. 615º do CPC;
b- se esse despacho é nulo, nos termos da al. d), do n.º 1, do art. 615º, por omissão de pronúncia;
c- se o mesmo padece de erro de julgamento da matéria de facto, por deficiência, e se, em consequência, atenta a prova produzida, se impõe julgar adicionalmente como provada a seguinte facticidade:
“a- Foi integralmente pago o crédito hipotecário detido pelo “Banco 2..., S.A.”, cujo pagamento foi a contrapartida económica da venda das frações autónomas propriedade dos insolventes, que ficaram desonerados de tal passivo;
b- No âmbito do processo especial para acordo de pagamento com o n.º 4163/18.... foram reconhecidos pela Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória créditos no montante total de €545.635,75;
c- Encerrados estes autos sem a aprovação de Plano de Pagamento, não foi requerida pelo Exmo. Senhor AJP a declaração de insolvência dos Recorrentes;
d- No âmbito do processo especial para acordo de pagamento com o n.º 3802/21.... foram reconhecidos pela Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória créditos no montante total de €269.916,42;
e- Encerrados estes autos sem a aprovação de Plano de Pagamento, não foi requerida pelo Exmo. Senhor AJP a declaração de insolvência dos Recorrentes;
f- No âmbito destes autos, o passivo verificado e graduado em sede de reclamação de créditos ascende a €157.118,12;
g- A sociedade “EMP07... S.A.” foi declarada insolvente, por sentença datada de 24 de outubro de 2018, no âmbito do processo de insolvência n.º 6634/18...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz ..., e foi encerrado em julho de 2020, por insuficiência da massa insolvente”.
d- se na sequência do êxito da impugnação do julgamento da matéria de facto operado pelos apelantes ou, independentemente dele, o despacho recorrido padece de erro de direito (ao indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos apelantes, com fundamento na al. d), do n.º 1, do art. 238º do CIRE) e se, em consequência, se impõe a sua revogação e admitir liminarmente esse pedido. 
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão a proferir em sede de (in)deferimento do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos apelantes:

A- AA e BB, respetivamente, N.I.F. ...72 e ...96, casados entre si no regime de comunhão de adquiridos, residem Rua ..., ..., Código Postal: ... ....
B- O devedor nasceu em ../../1977. 
C- A devedora nasceu em ../../1977.
D- Os devedores residem ambos com os dois filhos menores do casal.
E- O devedor encontra-se, atualmente, a trabalhar a tempo parcial na sociedade comercial “EMP01..., S.A.”, com a categoria profissional de “Contabilista Certificado”, local onde aufere uma remuneração fixa mensal de 550,00€.
F- A devedora encontra-se a trabalhar para a sociedade comercial “EMP02..., Lda.”, com a categoria profissional de “técnica de gestão”, local onde aufere cerca de 850,00€ mensais; e trabalha ainda em regime de part-time para a sociedade comercial que gira sob a firma “EMP03..., Lda.”, onde aufere um rendimento mensal de 150,00€. 
G- Os devedores instauraram dois Processos Especiais para Acordo de Pagamento, os quais não foram homologados, e que correram os seus termos sob os seguintes processos:
- processo que, sob o n.º 4163/18...., correu os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ..., Juiz ..., cujo Administrador Judicial Provisório nomeado foi o Exmo. Senhor Dr. EE;
- processo que, sob o n.º 3802/21...., correu os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ..., Juiz ..., cuja Administradora Judicial Provisória nomeada foi a Exma. Senhora Dra. FF.
H- Por escritura pública outorgada no dia 10 de abril de 2019, os insolventes venderam à sociedade comercial que gira sob a firma “EMP01..., S.A.”, pelo preço global de €118.664,00, as frações autónomas designadas pelas letras ... e ..., pertencentes ao prédio descrito na CRP ... sob o n.º ...20 (freguesia ...), e inscritas na respetiva matriz sob os artigos 18.º-AP e ...8..., reservando para si o direito de uso e habitação, simultâneo e sucessivo, pelo prazo de cinco anos, livre de quaisquer ónus ou encargos à exceção das hipotecas a seguir referidas: duas hipotecas a favor do Banco 2..., S.A., nos termos das apresentações ...3 e ...4, ambas de 10.02.2006.
I- Os insolventes declararam ainda que ambos são responsáveis pela dívida de € 118.664,00 ao Banco 2..., S.A., correspondente ao saldo devedor de dois empréstimos, que lhes foram concedidos pelo Banco 2..., S.A., por contratos de mútuo, garantidos por duas hipotecas sobre as frações ... e ..., sendo que a sociedade adquirente declarou, por sua vez, que assume o pagamento desse passivo perante o indicado banco, sendo tal assunção de dívida essencial para a outorga deste contrato de compra e venda.
J- O pagamento do preço é pago pela assunção da totalidade da mencionada dívida ao Banco 2..., S.A. no montante de € 118.664,00, por parte da sociedade compradora.
K- Por documento particular intitulado “contrato de cessão de quota”, outorgado a 05 de dezembro de 2018, a insolvente mulher cedeu a DD, uma quota no valor nominal de €15.000,00 (quinze mil euros), correspondente a 50% do capital social da “EMP03..., Limitada, pelo valor global de €15.000,00 (quinze mil euros).
L- Foi acordado entre as partes que o preço da cessão da referida quota seria pago pela cessionária (DD) à cedente (insolvente mulher), através de transferência bancária, em data a acordar entre ambas. 
M- Igualmente por documento particular intitulado “contrato de cessão de quota”, outorgado a 05 de dezembro de 2018, o insolvente marido cedeu a CC, uma quota no valor nominal de €15.000,00 (quinze mil euros), correspondente a 50% do capital social da “EMP03..., Limitada”, pelo valor global de €15.000,00 (quinze mil euros).
N- Foi acordado entre as partes que o preço da cessão da referida quota seria pago pelo cessionário (CC) ao cedente (insolvente marido), através de transferência bancária, em data a acordar entre ambos.
O- O produto da venda foi pago da seguinte forma:
- Através de cheque sacado sobre a conta n.º ...75, da Banco 3..., emitido a ../../2019;
- Através de cheque sacado sobre a conta n.º ...76, da Banco 3..., emitido a ../../2019.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Da nulidade do despacho recorrido com fundamento na al. c), do n.º 1 do art. 615º do CPC.
Os apelantes assacam ao despacho recorrido o vício da nulidade da al. c), do n.º 1 do art. 615º, com fundamento nos seguintes argumentos:
“Na decisão aqui sub judice o Tribunal a quo conclui que “a apresentação de PEAP é elucidativa do conhecimento pelos insolventes do incumprimento das suas obrigações e o aumento do seu passivo”. E ainda que “a conduta dos devedores constitui prejuízo porquanto dissipou o seu património, evitando a apreensão de tais bens, passíveis de posterior venda em sede de liquidação, cujos termos do negócio poderiam ser muito mais vantajosos para os credores do que os termos celebrados pelos insolventes com os compradores". Esta conclusão do Tribunal a quo assenta em dois conceitos indeterminados: “prejuízo” e “mais vantajosos”. Sucede que, nos presentes autos, em momento algum estes conceitos são devidamente quantificados. No que respeita ao prejuízo, o Tribunal a quo baseia a sua suposta existência na diminuição do património, olvidando a inerente diminuição de passivo que ao mesmo está associada. Por outro lado, não é quantificado o referido prejuízo, no sentido de indicar qual o montante e os credores cujo pagamento não foi possível efetuar em função dessa diminuição de património. Já quanto à afirmação de que as vendas efetuadas teriam sido mais vantajosas em sede de insolvência, os Recorrentes desconhecem em absoluto os fundamentos e os termos de tal afirmação, pois não existe qualquer prova nos autos relativa aos valores dos bens alienados.  No que respeita o imóvel, não foi feita qualquer alegação pelas partes no sentido de que o preço de venda foi diminuto. E não foi feita igualmente nos autos qualquer alegação de que a venda de tais bens em sede de processo de insolvência resultaria em valores superiores aos praticados pelos Recorrentes.  E se não foi feita a alegação de tais factos, muito menos foram os mesmos provados. Por outro lado, nada consta na fundamentação de facto da sentença quanto a esta afirmação. E, para tornar esta conclusão ainda mais grave, o Mmo. Tribunal a quo não faz qualquer concretização desta vantagem, nomeadamente, indicando os presumíveis valores de venda e, assim, quantificando o prejuízo que daí decorre”.
Concluem não poderem “deixar de entender que tais afirmações, que fundamentam a decisão final de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, padecem de extrema obscuridade, clamando pela nulidade desta sentença, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC”.
Mais aduzem que: “a conclusão de que o passivo dos Recorrentes aumentou está em clara contradição com o alegado e demonstrados pelos mesmos nestes autos. Na verdade, no seu requerimento de 10/03/2023 os Recorrentes alegam e demonstram os seguintes factos: no final do ano de 2018 os Recorrentes apresentavam um passivo de €545.635,75; aquando do seu segundo PEAP este passivo tinha diminuído para €269.916,42 - cfr. relação de credores do PEAP que decorreu em 2018, junta com o requerimento de 10/03/2023; nos presentes autos, o passivo reconhecido e graduado dos Recorrentes ascende a €157.118,12. Ora, face aos factos alegados e demonstrados, é ambígua e desconforme a conclusão de que o passivo dos Recorrentes aumentou e que tal constituiu prejuízo para os seus credores.  Aliás, o que se verificou e se encontra cabalmente demonstrado nos autos foi precisamente o contrário. Está demonstrado, por prova documental cabal e que não foi impugnada, que foi extinto, por via do pagamento, o crédito no valor de €118.664,00 que os Recorrentes tinham para com o Banco 2..., S.A. – cfr. declaração de distrate constante de fls. 56 a 60 do relatório do Sr. Administrador da Insolvência apresentado via citius em 02/03/2023, com a ref. ...28. Assim, a conclusão constante do despacho recorrido, é completamente falsa”.
Concluem que: “Tal facto, que serve de fundamento ao indeferimento do pedido de exoneração dos Recorrentes, afeta a decisão recorrida de forma irremediável, constituindo uma nulidade nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por colocar a decisão em oposição com os factos provados nos autos”.
Analisados os argumentos que se acabam de transcrever constata-se que a nulidade da al. c), do n.º 1, do art. 615º que os apelantes assacam ao despacho recorrido decorre, por um lado, da circunstância da facticidade que foi julgada provada pela 1ª Instância não permitir, em sede de subsunção dessa facticidade ao quadro legal aplicável, extrair a conclusão que a venda das duas frações a que alude a alínea H) da facticidade que julgou provada, bem como a cessão de quotas a que aludem as alíneas K) a O) da facticidade que também julgou como provada, redundaram em “prejuízo” para os credores daqueles e que, caso esses bens tivessem sido liquidados em sede de processo de insolvência,  teriam sido realizados em condições “mais vantajosas” para os seus credores e, bem assim, de no despacho recorrido não se concretizar o montante desse concreto alegado “prejuízo” e de “maior vantagem”, quando essa concretização, na sua perspetiva, se impunha que fosse feita, o que torna a decisão recorrida obscura, determinando a sua nulidade, e, por outro lado, de terem sido alegado factos que, na sua perspetiva, tinham de ser julgados provados pela 1ª Instância, mas que por ela foram desconsiderados na decisão recorrida (onde esses factos não foram julgados provados, nem como não provados), o que, na sua perspetiva, determina que os fundamentos (de facto e de direito) em que o julgador a quo alicerçou a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante esteja “em oposição com os factos provados (ou seja, que deveriam ter sido julgados como provados) nos autos”.
Acontece que nenhum dos apontados argumentos aduzidos pelos apelantes, salvo o devido respeito por opinião contrária, se reconduzem a qualquer causa determinativa de nulidade do despacho recorrido, que se encontram taxativamente enunciados no n.º 1 do art. 615º do CPC.
Com efeito, a ser certa a alegação dos apelantes, no que tange ao primeiro fundamento que invocam – a invocada “ambiguidade” decorrente de não se ter concretizado o “prejuízo” dos negócios que realizaram para os seus credores e a “maior vantagem” que teria decorrido caso os bens objeto desses negócios tivessem sido liquidados em sede de processo de insolvência -, está-se perante um erro de direito em que terá incorrido o julgador a quo, dado que, na perspetiva dos apelantes, contrariamente ao que se decidiu no despacho sob sindicância, em sede de subsunção da facticidade que nele  foi julgada provada não era possível ao julgador concluir pela  existência do pretenso “prejuízo” de tais negócios para os seus credores e de “maior vantagem” que teria sido obtido caso esses bens tivessem sido liquidados no âmbito de processo de insolvência, além de que, perante essa quadro jurídico, sempre teria de ser concretizado qual esse concreto “prejuízo” e “maior vantagem”. E quanto ao segundo argumento pelos mesmos aduzidos está-se perante um pretenso erro de julgamento da matéria de facto, na vertente de deficiência, que afetará o despacho recorrido, na medida em que os apelantes alegaram facticidade, que terá sido desconsiderada pelo tribunal a quo no despacho recorrido (ao não julgá-la como provada, nem como não provada) e que, caso tivesse sido julgado provada (conforme, na sua perspetiva, se impunha) teria levada à prolação de decisão de mérito distinta da proferida.
Ora, como temos reiteradamente escrito nos acórdãos que vimos relatando, as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas causas distintas, obstando qualquer delas à sua eficácia ou validade, a saber: a) por se ter errado no julgamento dos factos e/ou de direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e b) como atos jurisdicionais que são, por se terem violado as regras próprias da sua elaboração e/ou estruturação, ou as que balizam o conteúdo e/ou os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do disposto no art. 615.º do CPC[2].
As causas determinativas de nulidade das decisões judiciais encontram-se taxativamente enunciadas no n.º 1 do art. 615º do CPC e, conforme decorre das diversas alíneas desse preceito, reportam-se a vícios formais da sentença, acórdão (art. 666º, n.º 1) e, por extensão, despacho (art. 613º, n.º 3) em si mesmos considerados, decorrentes de, na sua elaboração e/ou estruturação, o tribunal não ter respeitado as normas processuais que regulam a sua elaboração e/ou estruturação e/ou as que balizam os limites da decisão nelas proferida. Precisando, o campo de cognição do tribunal fixado pelas partes e de que era lícito ao tribunal conhecer oficiosamente não foi respeitado, ficando a decisão aquém ou indo além desse campo de cognição, em termos de fundamentos – causa de pedir -, o que se reconduz à nulidade por omissão e excesso de pronúncia, respetivamente, e/ou de pretensão – pedido -, o que se traduz na nulidade por condenação ultra petitum. Trata-se, por isso, de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, acórdão ou despacho em si mesmos considerados, ou seja, vícios formais ou de conteúdo que afetam essas decisões de per se e/ou os limites à sombra dos quais são proferidas.
Como nota Abílio Neto, os vícios determinativos de nulidade da decisão judicial “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[3].
Diferentes desses vícios são os erros de julgamento (error in judicando), os quais contendem com erros em que incorreu o tribunal em sede de julgamento da matéria de facto e/ou em sede de julgamento da matéria de direito, decorrentes de, respetivamente: o julgador ter incorrido numa distorção da realidade factual que julgou provada e/ou não provada em virtude da prova produzida impor julgamento de facto diverso do que realizou (error facti); e/ou ter incorrido em erro na identificação das normas aplicáveis à relação jurídica material controvertida submetida pelas partes à apreciação e decisão do tribunal, na interpretação que fez dessas normas jurídicas e/ou na aplicação que delas fez à facticidade que se quedou provada e não provada (error juris).
Nos erros de julgamento assiste-se, assim, ou a uma deficiente análise crítica da prova produzida e/ou a uma deficiente enunciação, interpretação e/ou aplicação das normas jurídicas aplicáveis aos factos provados e não provados, sendo que esses erros, por já não respeitarem a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, acórdão ou despacho em si mesmos considerados (vícios formais ou de conteúdo) ou aos limites à sombra dos quais são proferidos, não os inquinam de invalidade, mas sim de error in judicando[4].  
Debruçando-nos especificamente sobre a causa determinativa de nulidade da decisão judicial prevista na al. c), do n.º 1, do art. 615º, lê-se nesta que: “É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Ocorre o vício da nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão quando se verifica uma construção viciosa da sentença, acórdão ou despacho, decorrente de neles existir uma contradição lógica interna entre a decisão de mérito neles prolatada (na respetiva parte dispositiva) e os fundamentos de facto e/ou de direito que foram aportados pelo tribunal para fundamentar essa decisão, ou seja, o julgador seguiu na sentença, acórdão ou despacho determinada linha de raciocínio fáctico-jurídico argumentativo, em sede de subsunção jurídica da facticidade que julgou provada e não provada, que aponta logicamente para determinada conclusão, mas, em vez de tirar essa conclusão, decide noutro sentido, oposto ou divergente.
Trata-se, portanto, de um vício interno, estrutural da sentença, acórdão ou despacho que decorre de existir neles contradição nas premissas, de facto ou de direito, que foram invocadas para ancorar a decisão proferida e a própria decisão, ou seja, ocorre um vício real no raciocínio do julgador, consistente em a fundamentação de que se socorreu apontar logicamente para uma decisão diferente daquela que se encontra expressa na respetiva parte dispositiva.
Por sua vez, uma sentença, acórdão ou despacho são obscuros quando contenham algum passo cujo sentido seja ininteligível, ou seja, quando não se sabe o que o juiz quis dizer nessa passagem, e serão ambíguos quando alguma passagem se preste razoavelmente a interpretações diferentes.
Os vícios da obscuridade ou da ambiguidade tanto podem incidir sobre a decisão (parte dispositiva) da sentença, acórdão ou despacho, como sobre os seus fundamentos, isto é, passagem neles exarada em sede de subsunção dos factos ao direito[5].
Note-se, contudo, que os referidos vícios de ambiguidade ou obscuridade quando ocorrem ao nível de alguma das passagens da subsunção jurídica dos factos, para que determinem a nulidade da decisão judicial terão de  atingir um grau de tal modo elevado que tornem a decisão proferida (na parte dispositiva da sentença, acórdão ou despacho) ininteligível (parte final da al. c), do n.º 1 do art. 615º); de onde deriva que, quando os vícios da obscuridade ou ambiguidade ocorram ao nível de uma (ou várias) passagens da sentença (acórdão ou despacho) em que o julgador procedeu ao enquadramento jurídico da facticidade que julgou provada e não provada, esses vícios têm de se ter projetado na parte dispositiva (decisão final), de modo a tornar essa decisão ininteligível, ou seja, tornar impossível alcançar com segurança o sentido da decisão proferida, a forma como o julgador quis resolver o litígio[6].
Frise-se que a nulidade em análise se relaciona, por um lado, com a obrigação imposta ao juiz, pelos arts. 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC e 205º, nº 1 da C.R.P., de ter de fundamentar as decisões que profere; e, por outro, com o facto de se exigir que a decisão judicial constitua um silogismo lógico-jurídico em que o seu decisório final deverá ser a consequência ou conclusão lógica da conjugação da norma legal - premissa maior - com os factos - premissa menor.
Dito por outras palavras, “os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão funcionam na estrutura expositiva e argumentativa em que se traduz a sentença (acórdão ou despacho) como premissas lógicas necessárias para a formação do silogismo judiciário”, de modo que “constituirá violação das regras necessárias à construção lógica da sentença que os fundamentos da mesma conduzam logicamente a conclusão diferente da que nela resulta enunciada”[7].
Saliente-se, porém, que o vício de nulidade da sentença da al. e) não se confunde com o erro de julgamento na vertente de “error iuris” (isto é, com o erro em que incorra o julgador na seleção, interpretação e aplicação das normas que aplicou aos factos que julgou provados e não provados), uma vez que, embora mal, se o juiz entender que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o mesmo incorre em erro de julgamento de direito, e não na oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação pelo julgador apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir[8].
Acresce que o vício da nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão, tipificado na al. c), do n.º 1 do art. 615º, também não se confunde com o erro de julgamento da matéria de facto, uma vez que, embora atualmente o julgamento de facto se contenha na sentença, os mesmos encontram-se sujeitos a um regime de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou a contradição da decisão ou a falta da sua motivação -, a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação (cfr. arts. 627º, 640º e 662º), não constituindo, por isso, em regra, causa de nulidade da sentença (acórdão ou despacho), mas antes sendo suscetíveis de dar lugar à atuação pela Relação dos poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto operada pela 1ª Instância, nos termos do disposto no art. 662º, n.ºs 1 e 2, al. c) do CPC[9].
Ora, conforme antedito, as pretensas causas determinativas de nulidade da al. c), do n.º 1, do art. 615º do CPC que os apelantes imputam ao despacho recorrido reconduzem-se, por um lado, a erro de direito (no que respeita à alegada ambiguidade decorrente da falta de concretização do “prejuízo” e da “maior vantagem”) e, por outro, a erro de julgamento da matéria de facto, na vertente de deficiência (no que tange à desconsideração de facticidade que terá sido alegada pelos apelantes e que se impunha que tivesse sido julgada provada, mas que foi desconsiderada no despacho recorrido, onde não foi julgada provada, nem não provada, e que, caso tivesse sido julgado provada impunha decisão de mérito distinta – o deferimento liminar do benefício de exoneração do passivo restante que deduziram).
De resto, dir-se-á que no despacho recorrido, ao concluir que, em face da facticidade que julgou provada e ao subsumir esta ao quadro jurídico aplicável, que os negócios de venda das frações e das participações sociais realizados pelos apelantes determinaram “prejuízo” para os seus credores e que aqueles bens teriam determinado uma “maior vantagem” para esses credores caso tivessem sido liquidados no âmbito de um processo de insolvência, sem quantificar esse pretenso “prejuízo” e “maior vantagem”, se a facticidade que julgou provada não permitia à 1ª Instância extrair esses juízos conclusivos que extraiu e se, adicionalmente, o quadro legal aplicável aos autos exigia que se tivesse quantificado esse “prejuízo” e “maior vantagem” para que pudesse indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante com fundamento na al. d), do n.º 1 do art. 238º do CIRE, trata-se, reafirma-se, de erro de direito, sem que se descortine que, naquele despacho, em sede de subsunção jurídica da facticidade que julgou provada (certa ou errada – o que contende com erro de direito), o julgador a quo tivesse incorrido em qualquer contradição lógica entre o discurso fáctico-jurídico argumentativo que aí aportou e a parte dispositiva explanada no despacho recorrido (em que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração com fundamento na dita al. d), do n.º 1 do art. 238º).
Pelo contrário, o discurso fáctico-jurídico argumentativo explanado pelo julgador em sede de subsunção jurídica de facticidade que julgou provada está em plena coerência com aquela decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração.
Decorre do excurso antecedente que o despacho recorrido não padece do vício de nulidade da al. c), do n.º 1, do art. 615º que lhe é imputado pelos apelantes, improcedente este fundamento de recurso.

B- Da nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia.

Advogam os apelantes que o despacho recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos da al. d), do n.º 1 do art. 615º do CPC, isto porque: “a diminuição do passivo foi devidamente alegada e provada pelos Recorrentes no seu requerimento de 10/03/2023, e através dos documentos remetidos para o Sr. Administrador de Insolvência, e que estão anexos ao seu relatório datado de 02/03/2023.  No entanto, a douta sentença aqui em apreço não faz qualquer menção a tais factos, mormente quanto aos valores do passivo reconhecido nos vários processos pelos quais os Recorrentes passaram e quanto ao valor de €118.664,00 do crédito que foi efetivamente pago. Esta análise da evolução do passivo dos Recorrentes é fundamental para a conclusão da existência de prejuízo resultante da venda do património dos Recorrentes, mormente porque a diminuição do passivo excedeu em muito os valores do património. O que forçosamente levará a concluir pela inexistência de qualquer prejuízo decorrente do alegado atraso dos Recorrentes na sua apresentação à insolvência. Esta inexistência de pronúncia por parte do Tribunal a quo afeta em toda a extensão a decisão a tomar e constitui, assim, uma causa de nulidade nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC”.
Conforme decorre da alegação dos apelantes que se acaba de transcrever os mesmos fundamentam a pretensa nulidade, por omissão de pronúncia, que assacam ao despacho recorrido na circunstância de alegadamente terem alegado facticidade que, na sua perspetiva, se impunha que tivesse sido julgada provada pela 1ª Instância no despacho sob sindicância, mas que nele foi totalmente desconsiderada (ao não ter sido julgada provada, nem como não provada) e que teria levada a uma decisão de mérito distinta daquela que foi proferida naquele despacho, o que tudo, conforme antedito, e que aqui nos abstemos de repetir, por fastidioso e desnecessário, se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, na vertente de deficiência, e não a qualquer causa de nulidade do despacho recorrido, nomeadamente, por omissão de pronúncia.
Termos em que, sem mais considerações, por desnecessárias, impõe-se concluir que o despacho recorrido não padece do vício de nulidade, por omissão de pronúncia, que lhe é assacado pelos apelantes, improcedendo este fundamento de recurso.

C- Dos erros de julgamento da matéria de facto

Sustentam os apelantes que, por ser essencial para a decisão de mérito a proferir nos autos, se impõe aditar ao elenco dos factos provados no despacho sob sindicância a facticidade que se segue:

“a- Foi integralmente pago o crédito hipotecário detido pelo “Banco 2..., S.A.”, cujo pagamento foi a contrapartida económica da venda das frações autónomas propriedade dos insolventes, que ficaram desonerados de tal passivo;
b- No âmbito do processo especial para acordo de pagamento com o n.º 4163/18.... foram reconhecidos pela Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória créditos no montante total de €545.635,75;
c- Encerrados estes autos sem a aprovação de Plano de Pagamento, não foi requerida pelo Exmo. Senhor AJP a declaração de insolvência dos Recorrentes;
d- No âmbito do processo especial para acordo de pagamento com o n.º 3802/21.... foram reconhecidos pela Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória créditos no montante total de €269.916,42;
e- Encerrados estes autos sem a aprovação de Plano de Pagamento, não foi requerida pelo Exmo. Senhor AJP a declaração de insolvência dos Recorrentes;
f- No âmbito destes autos, o passivo verificado e graduado em sede de reclamação de créditos ascende a €157.118,12;
g- A sociedade “EMP07... S.A.” foi declarada insolvente por sentença datada de 24 de outubro de 2018 no âmbito do processo de insolvência n.º 6634/18...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz ..., e foi encerrado em julho de 2020, por insuficiência da massa insolvente”.
Antes de avançarmos, impõe-se referir que ocorre o vício da deficiência do julgamento da matéria de facto quando o tribunal não julgue como provados, nem como não provados factos essenciais ou complementares que, segundo as várias soluções plausíveis de direito, relevam para a solução de mérito a proferir quanto à questão decidenda, na medida em que asseguram (ou podem assegurar) um enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo quanto a essa questão[10].
O tribunal não se encontra, assim, obrigado a pronunciar-se (julgando-a provada ou não provada) sobre toda a facticidade que tenha sido alegada pelas partes, mas apenas sobre aquela que, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, é suscetível de se projetar na decisão de mérito a proferir quanto à questão decidenda.
Neste sentido expende Tomé Soares Gomes que, em sede de critério de seleção dos factos a enunciar, “o tribunal só deve atender aos factos que forem relevantes para a resolução do pleito, não cabendo pronunciar-se sobre factos que se mostrem inequivocamente desnecessários para tal efeito. Assim, desde logo, são relevantes: os factos essenciais à procedência das pretensões deduzidas, ou seja, aqueles que têm a virtualidade de preencher a previsão normativa (facti species) favorável a tais pretensões, na perspetiva do efeito pretendido, segundo as regras de repartição do ónus da prova; os factos essenciais suscetíveis de integrar os fundamentos de exceção perentória deduzida ou que deva ser objeto de conhecimento oficioso. De entre os factos essenciais, há que destacar os que respeitam a factualismos complexos tendentes a preencher conceitos de direito indeterminados ou cláusulas gerais (culpa, necessidade do locado para habitação, justa causa, abuso de direito, boa fé, alteração normal das circunstâncias, posse, sinais visíveis e permanentes para efeitos de servidão de passagem, etc.). Nesse tipo de factualidade, o facto essencial não é consubstanciado num núcleo definido e cerrado, mas irradia-se numa multiplicidade de circunstâncias moleculares que, na sua aglutinação, preenchem o conceito indeterminado ou a cláusula genérica da facti species normativa. É sobretudo no âmbito deste tipo de factos complexos que podem ocorrer concretizações ou complementaridades dimanadas da produção da prova em audiência, suscetíveis de levar ao ajustamento do contexto narrativo dos articulados ao contexto histórico do litígio”.
E adianta que, em sede de “critério de aferição da relevância dos factos para a resolução do litígio”: “A aferição da relevância dos factos para a resolução do caso deverá ser feita em função de três vetores confluentes: (i)- Em primeiro lugar, o referencial normativo traçado na facti species legal, simples, complexa ou concorrente, em que se inscreve a pretensão deduzida ou a exceção perentória em causa, atentas as regras, gerais ou especiais, de distribuição do ónus da prova, numa perspetiva aberta do quadro de soluções de direito plausíveis que o tribunal possa vir, a final, a considerar, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º do CPC; (ii) – Em segundo plano, o contexto factológico narrativo alegado pelas partes na fase dos articulados e complementado, conforme os casos: (…); (iii) – Por fim, o contexto histórico ou real do litígio, que, em regra, emerge da produção da prova. Os três vetores referidos representam um esquema de base, triangular, fundamental para delinear tanto o objeto da prova a submeter a instrução na audiência final como para administrar as provas, no sentido de apurar tudo o que se revele necessário e útil para a decisão da causa”[11].
Acresce precisar que, por força do princípio do inquisitório consagrado no art. 11º do CIRE, aplicável ao incidente de exoneração do passivo restante[12], no incidente em causa o julgador na decisão a proferir não se encontra adstrito aos factos que tenham sido alegados pelas partes, podendo fundar essa decisão em factos cuja prova resulte do processo de insolvência e seus apensos (por via do princípio da aquisição processual genericamente consagrado no art. 413º do CPC) ou que resultem da atividade instrutória que, por sua iniciativa, entendeu dever ser realizada de modo a habilitar-se a decidir.
Ademais, sempre que ocorra o vício da deficiência do julgamento da matéria de facto realizado pelo julgador a quo, porque não julgou como provados, nem como não provados factos essenciais ou complementares que, segundo as várias soluções de direito plausíveis, são suscetíveis de se projetarem na decisão de mérito a proferir, esse vício nem sequer está dependente da sua arguição pelo recorrente, cumprindo ao tribunal de recurso dele conhecer oficiosamente, suprindo-o, no uso dos poderes de substituição, conferidos pelo art. 662º, n.º 1 do CPC, sempre que os autos contenham os elementos de prova necessários e suficientes para com a necessária segurança fazer esse julgamento de facto omitido; devendo, no caso contrário, nos termos do art. 662º, n.º 2, al. c) do mesmo Código, anular a decisão recorrida e ordenar a ampliação do julgamento da matéria de facto quanto à dita facticidade em relação à qual ocorreu o mencionado vício da deficiência do julgamento de facto[13].
Posto isto, revertendo ao caso dos autos, pretendem os apelantes que se julgue como provado que o crédito hipotecário detido pelo Banco 2..., S.A., cujo pagamento foi a contrapartida económica da compra das frações autónomas a que aludem as alíneas H) a J) da facticidade julgada provada, vendidas pelos apelantes à sociedade “EMP01..., S.A.”, nas condições enunciadas nessas alíneas, foi integralmente pago, que ficaram desonerados de tal passivo.
A expressão de que os apelantes “ficaram desonerados de tal passivo” é conclusiva e, como tal, insuscetível de ser levada ao elenco dos factos julgados provados ou não provados no despacho recorrido.
Com efeito, já Alberto dos Reis entendia que “é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior”[14]; e sustentava que a atividade do juiz se deve circunscrever ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente factos materiais e concretos”[15].
Na linha de que, ao elenco dos factos provados e não provados na sentença, o juiz apenas deve levar factos materiais (aqui se incluindo as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas e das coisas; neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior diretamente captáveis pelas perceções - pelos sentidos - do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo)[16], se tem pronunciado a jurisprudência nacional maioritária, designadamente, após a entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26/06, que reviu o CPC, na sequência do que a sentença passou a incluir o julgamento da matéria de facto e de direito e que não contém  um dispositivo legal equivalente ao anterior art. 646º, n.º 4 do CPC.
Na verdade, tem-se continuado maioritariamente a considerar como não escritas as respostas do julgador sobre matéria qualificada como de direito; e a equiparar às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados (sem prejuízo de se dever equiparar a factos as expressões verbais, com um sentido técnico-jurídico determinado, que são utilizadas comummente pelas pessoas sem qualquer preparação jurídica, na sua linguagem do dia a dia, falada ou escrita, com um sentido idêntico, contanto que essas expressões não integrem o próprio objeto do processo, ou seja, que não invadam o domínio de uma questão de direito essencial, traduzindo uma resposta antecipada à questão de direito decidenda)[17].
Posto isto, abstraindo dos segmentos conclusivos da facticidade que os apelantes pretendem ver aditada ao elenco dos factos provados no despacho sob sindicância, a circunstância das hipotecas constituídas a favor do Banco 2..., que oneravam os prédios identificados nas alíneas H) a J) da facticidade julgada provada no despacho sob sindicância, prédios esses que os apelantes venderam à sociedade “EMP01..., S.A.” nos termos descritos nessas alíneas, é indiscutivelmente facticidade que, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, relevam para a decisão a  proferir em sede de deferimento ou indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante que formularam.
Ora, conforme se vê da declaração emitida pela sociedade EMP01..., S.A., junta aos autos de insolvência em 04/07/2023, esta informou ter liquidado as hipotecas que oneravam aqueles dois prédio (duas frações, sitas em prédio constituído em propriedade horizontal) que comprou aos apelantes e constituídas a favor do Banco 2..., S.A., em 29/12/2021, através de dois cheques, emitidos pelo EMP08..., S.A., à ordem do Banco 2..., S.A., no valor de 58.452,51 euros e 48.987,24 euros.
Essa informação da sociedade EMP01..., S.A. é corroborada pelas certidões da Conservatória do Registo Predial ..., juntas pelo administrador da insolvência em anexo ao relatório a que alude o art. 155º do CIRE (junto aos autos de insolvência em 02/03/2023).
Com efeito, conforme emerge dessas certidões, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...15..., encontrava-se onerado com duas hipotecas voluntárias inscritas a favor do Banco 2..., S.A., pelas apresentações n.º ...3, de 2006/02/10, e n.º 84, de 2006/02/10, mas essas hipotecas foram canceladas pelas apresentações n.º ...88, de 2022/03/07, e n.º 2489, de 2022/03/07.
Por sua vez, o prédio descrito na mesma Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...15..., encontrava-se onerado com duas hipotecas constituídas a favor do Banco 2..., S.A., aí inscritas pelas apresentações n.º ...3, de 2006/02/10, e n.º 84, de 2006/02/10, mas essas hipotecas foram canceladas pelas apresentações n.º ...88, de 2022/03/07 e n.º 2489, de 2022/03/07.
Destarte, na parcial procedência do fundamento de recurso que se acaba de apreciar, ordena-se que se adite ao elenco dos factos provados no despacho recorrido a seguinte facticidade, que se julga provada:
P- A “EMP01..., Lda.”, que comprou as duas frações autónomas identificadas nas alíneas H) a J) aos devedores, nas condições referidas nessas alíneas, liquidou junto do Banco 2..., S.A., os empréstimos garantidos pelas duas hipotecas que oneravam essas duas frações, estando essas hipotecas canceladas no registo desde ../../2022.
*
Avançando…

Pretendem os apelantes que se adite ao elenco dos factos provados no despacho recorrido que:
b- No âmbito do processo especial para acordo de pagamento com o n.º 4163/18.... foram reconhecidos pela Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória créditos no montante total de €545.635,75;
d- No âmbito do processo especial para acordo de pagamento com o n.º 3802/21.... foram reconhecidos pela Exma. Senhora Administradora Judicial Provisória créditos no montante total de €269.916,42.

Essa pretensão dos apelantes funda-se na circunstância de pretenderem demonstrar que o passivo dos mesmos, à data em que lhes foi nomeado administrador judicial provisório, no âmbito daqueles processos, apenas ascendia às mencionadas quantias e que esse passivo diminuiu, mas, sem razão.

Com efeito, o facto do administrador judicial provisório ter reconhecido os montantes invocados pelos apelantes como passivo daqueles, à data em que foi proferido despacho nomeando administrador judicial provisório, no âmbito dos identificados processos especiais para acordo de pagamento (PEAP), não permite concluir que a lista de créditos reconhecidos pelo administrador no âmbito desses processos não tenha sido objeto de impugnação e que essa impugnação tenha obtido êxito, na sequência de decisão judicial, transitada em julgado, que sobre ela recaiu, julgando a reclamação procedente (cfr. art. 222º-D, n.º 3 do CIRE).
Depois, mesmo que a lista de créditos reconhecidos pelo administrador judicial provisório que exerceu funções em cada um dos identificados processos não tivesse sido alvo de impugnação, ou, tendo-o sido, que essa impugnação tivesse sido julgada procedente ou improcedente, por decisão judicial transitada em julgado, tal não significa que os débitos dos apelantes (aí devedores) para com os seus credores sejam efetivamente os que foram reconhecidos pelo administrador judicial provisório ou pelo tribunal por decisão judicial, transitada em julgado, que recaiu sobre as reclamações que aí foram apresentadas, nem que esses seus débitos ascendam apenas aos que aí foram reconhecidos (pelo administrador ou decisão judicial, transitada em julgado, que tivesse recaído sobre as eventuais reclamações apresentadas).
Na verdade, o PEAP, tal como o PER, são processos especiais de cariz urgentíssimo, que têm em vista o encetamento de negociações entre o devedor e os seus credores com vista à aprovação de, respetivamente, plano de pagamento ou plano de recuperação, com o objetivo de evitar que o devedor incorra numa situação de insolvência.
A circunstância de, no caso de impugnação de créditos constantes da lista de créditos provisórios elaborada pelo administrador judicial provisório, ao credor titular do crédito impugnado não assistir (diversamente do que acontece no processo de insolvência) o direito a responder à impugnação do seu crédito[18]; o curto espaço de tempo que o juiz dispõe para proferir decisão sobre a impugnação de créditos (escassos cinco dias úteis – art. 222º-D, n.º 3, parte final ); o facto de no PEAP e no PER não existir sentença de verificação e graduação de créditos, nem apreensão e liquidação do património do devedor, a fim de se proceder ao pagamento, a título principal, dos débitos da massa insolvente (massa essa que é inexistente em sede de PEAP e de PER) e, secundariamente, dos débitos da insolvência que tenham sido julgados verificados e graduados, por sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado; bem como o facto de, no caso de, na sequência desses processos, ser requerida a insolvência do devedor, os créditos constantes da lista definitiva aprovada em sede de PEAP ou de PER poderem ser impugnados pelos interessados no processo de insolvência que venha a ser instaurado contra o devedor, e, bem assim, o facto de os credores que não tenham reclamado os seus créditos, ou que viram esses seus créditos a serem julgados não reconhecidos, por decisão judicial proferida no âmbito do PEAP ou do PER, não estarem impedidos de os reclamar no âmbito do processo de insolvência que venha a ser instaurado contra o devedor, torna evidente que o processo concursal de reclamação de créditos no âmbito do PEAP e do PER não se destina a dirimir litígios sobre a existência ou a amplitude de quaisquer créditos com vista a viabilizar qualquer futuro pagamento dos mesmos.
Assim, embora, nos termos do n.º 8, do art. 222º-F, a decisão de homologação do plano de pagamento aprovado (por unanimidade ou por maioria dos credores) vincule o devedor e os seus credores, mesmo que não tenham reclamado os seus créditos, ou não tenham participado nas negociações quanto aos créditos constituídos à data em que foi proferido despacho nomeando administrador judicial provisório, havendo conflito entre devedor e um ou mais credores quanto à existência, montante ou garantia dos créditos que estes detêm sobre aquele, a homologação do plano de pagamento (em caso de PEAP) ou do plano de recuperação (em caso de PER), por sentença transitada em julgado, não impede que aqueles tenham de instaurar ação entre eles com vista a dirimir esse conflito[19].
No âmbito do PEAP e do PER, é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que a lista definitiva de créditos tem por exclusiva finalidade a identificação dos créditos para efeitos de votação do plano de pagamento (PEAP) ou do plano de recuperação (PER) e, acessoriamente, de os qualificar, discriminando os créditos subordinados, que são relevantes para aquilo a que se chama segundo quórum de aprovação.
A lista definitiva de crédito não é, aliás, absolutamente indispensável para o desempenho daquela primeira função, posto que, nos casos em que tenha havido impugnação de créditos, se no momento da votação do plano de pagamento (no PEAP) ou do plano de recuperação (no PER), essa reclamação ainda não estiver decidida, esses créditos impugnados não entram no quórum deliberativo, salvo se o juiz entender que existe probabilidade séria de esses créditos virem a ser reconhecidos (n.º 3, do art. 222º-F e n.º 5, do art. 17º-F).
Daí que a reclamação de créditos, no âmbito do PEAP (ou do PER), não visa satisfazer os créditos dos reclamantes (ao contrário do que acontece nas reclamações de créditos em processo executivo ou em processo de insolvência), mas tem como objetivo, por um lado, legitimar a intervenção do credor no PEAP ou no PER, e, por outro, calcular o quórum deliberativo e a maioria prevista no n.º 3 do art. 222º-F e no n.º 5 do art. 17º-F[20]
Por isso, é que, salvo melhor opinião, a facticidade que os apelantes pretendem ver aditada ao elenco dos factos provados no despacho recorrido, não permita concluir que, à data em que no âmbito do PEAP que correu termos sob o n.º 416/18...., foi proferido despacho nomeando administrador judicial provisório, os seus débitos ascendessem a 545.635,75 euros, e que quando, no âmbito do PEAP que correu termos sob o n.º 3802/21...., foi proferido despacho nomeando administrador judicial provisório, os seus débitos já só ascendessem a 269.916,42 euros.
Por conseguinte, em face do que se vem dizendo, a facticidade que os apelantes pretendem ver aditada ao elenco dos factos julgados provados no despacho recorrido é totalmente irrelevante para a decisão a proferir quanto à questão decidenda no âmbito dos presentes autos, improcedendo este fundamento de recurso.
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Pretendem os apelantes que se adite ao elenco dos factos provados no despacho sob sindicância a seguinte facticidade:

c- O processo especial para acordo de pagamento com o n.º 4163/18.... foi encerrado sem aprovação de plano de pagamento e sem que tivesse sido requerida pelo administrador judicial provisório a declaração da insolvência dos devedores.
e- O processo especial para acordo de pagamento com o n.º 3802/21.... foi encerrado sem aprovação de plano de pagamento e sem que tivesse sido requerida pelo administrador judicial a declaração da insolvência dos devedores.
           
Dir-se-á ser inegável que a facticidade em apreço assume assaz relevância para a questão decidenda nos presentes autos, uma vez que a 1ª Instância indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante com fundamento na al. d), do n.º 1 do art. 238º do CIRE, a qual consta da seguinte redação: “O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica”.
Com efeito, em sede de PEAP (mas também de PER), sempre que o devedor ponha termo às negociações com os seus credores, como é seu direito fazer (arts. 17º-G, n.º 2 e 222º-G, n.º 2 do CIRE), ou quando decorra o prazo legal de negociações sem que tivesse sido alcançado um acordo de pagamento (PEAP) ou um plano de revitalização (PER) entre o devedor e os seus credores, ou quando, apesar de ter sido alcançado esse acordo, este não seja homologado por decisão judicial transitada em julgado (arts. 17º-F, n.ºs 10 e 11 e 222º-F, n.ºs 5 e 7 do CIRE), nos termos do disposto nos arts. 17º-G, n.ºs 4 a 7 e 222º-G, n.ºs 4 a 7 do mesmo diploma, cumpre ao administrador judicial provisório emitir parecer sobre se o devedor está (ou não) numa situação de insolvência atual. E no caso do parecer do administrador judicial provisório ser no sentido de que o devedor já se encontra numa situação de insolvência atual tem de ser instaurado contra o mesmo processo de insolvência, que corre por apenso ao PEAP ou ao PER.
Daí que, a data em que ocorreu o encerramento dos PEAP a que se alude a al. G) dos factos julgados provados no despacho recorrido, é um facto que releva no âmbito da decisão a proferir nos presentes autos, assim como releva o sentido do parecer que neles foi emanado pelo administrador judicial provisório, por tais factos contenderem com a data em que os apelantes se constituíram na situação de insolvência e quanto à sua consciência sobre essa sua situação.
Posto isto, a data de encerramento dos PEAP a que alude a al. G) da facticidade julgada provada no despacho sob sindicância consta dos anúncios que foram juntos aos autos pelo administrador da insolvência em anexo ao relatório a que se reporta o art. 155º do CIRE (junto aos autos de insolvência em 02/03/2023).
Assim, o PEAP que correu termos sob o n.º 4163/18...., do Juízo de Comércio ..., Juiz ..., foi encerrado por despacho proferido em 13/03/2019; e o PEAP que correu termos sob o n.º 3802/21...., do Juízo de Comércio ..., Juiz ..., foi encerrado por despacho de 15/12/2021.
Nos presentes autos não existe qualquer notícia em como, na sequência do encerramento dos identificados PEAP, tivesse sido instaurado processo de insolvência contra os aqui (e ali) devedores, o que seria uma consequência jurídica necessária da circunstância de neles o administrador judicial provisório ter emitido parecer no sentido de que aqueles já se encontravam numa situação de insolvência atual, o que tudo força a que se conclua que os administradores judiciais provisórios que exercerem funções nesses processos não emitiram parecer no sentido de que os aí (e aqui) devedores já se encontrassem numa situação de insolvência atual, posto que, se assim fosse, esse facto não deixaria de ser conhecido nos autos.
Decorre do exposto que, na procedência do fundamento de recurso que se acaba de apreciar, ordena-se que sejam aditados ao elenco dos factos provados no despacho recorrido, os factos que se seguem, que se julgam provados:
Q- O processo especial para acordo de pagamento com o n.º 4163/18.... foi encerrado sem aprovação de plano de pagamento, por despacho proferido em 13/03/2019, e sem que tivesse sido requerida pelo administrador judicial provisório a declaração da insolvência dos devedores.
R- O processo especial para acordo de pagamento com o n.º 3802/21.... foi encerrado sem aprovação de plano de pagamento, por despacho proferido em 15/12/2021, e sem que tivesse sido requerida pelo administrador judicial a declaração da insolvência dos devedores.
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Os apelantes pretendem que se adite ao elenco dos factos julgados provados no despacho sob sindicância a seguinte facticidade: “g- A sociedade “EMP07... S.A.” foi declarada insolvente por sentença datada de 24 de outubro de 2018 no âmbito do processo de insolvência n.º 6634/18...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Comércio ... – Juiz ..., e foi encerrado em julho de 2020, por insuficiência da massa insolvente”.
Se bem interpretamos a posição dos apelantes, a relevância que atribuem à matéria fáctica em análise para efeitos de decisão a proferir no âmbito dos presentes autos decorre do facto de parte dos débitos em que se encontram constituídos emergir de avais que prestaram à sociedade declarada insolvente, em livranças por esta subscritas, tendo essa sua posição implícita a pretensão de que apenas a partir da declaração da insolvência dessa sociedade (subscritora das livranças que avalizaram) se constituíram devedores das quantias tituladas pelas livranças que avalizaram ou, pelo menos, tomaram consciência dessa sua qualidade de devedores das quantias por aquelas tituladas, mas, antecipe-se desde já, sem fundamento jurídico.
Com efeito, o aval consubstancia uma garantia típica dos títulos de crédito, tratando-se de um negócio jurídico cambiário, unilateral e abstrato, que tem por conteúdo uma promessa de pagar uma letra ou livrança na data dos respetivos vencimentos e por função garantir esse pagamento.
Nos termos do art. 32º da LULL, o dador do aval é responsável pelo pagamento da obrigação cambiária da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. Daí que a responsabilidade do avalista se determina pela do avalizado, mas a sua responsabilidade não é subsidiária, mas antes solidária e cumulativa com a do avalizado[21].
A posição do avalista, como a de qualquer interveniente na letra ou na livrança, é também autónoma em relação à obrigação do avalizado, na medida em que o aval subsiste mesmo que o ato do avalizado seja nulo por qualquer razão que não seja um vício de forma (art. 32º/2 da LULL).
Com a prestação do aval, o avalista passa, assim, a ser um devedor cambiário, sujeito de uma obrigação cambiária, embora dependente, no plano formal, da do avalizado (art. 47º e 77º da LULL), mas que é materialmente autónoma em relação à obrigação do avalizado, mantendo-se a sua obrigação mesmo quando a obrigação do avalizado seja nula por qualquer razão, que não seja um vício de forma.
A autonomia do aval traduz-se, portanto, num regime em que o avalista assume uma obrigação própria e pessoal pelo pagamento da obrigação cambiária que avalizou, em que a sua obrigação se define pela do avalizado, mas que vive e subsiste independentemente dela.
O avalista do sacador da letra ou o avalista do subscritor da livrança é responsável pelo cumprimento da obrigação cambiária que avalizou mesmo que a assinatura do sacador (no caso de letra) ou do subscritor (tratando-se de livrança) seja falsa ou de uma pessoa fictícia (art. 7º da LULL), porque o avalista garante não só que o sacador ou o subscritor pagará, mas também a genuidade da assinatura daqueles[22]. Por isso é que o avalista responde, mesmo que o avalizado não deva responder. A garantia dada pelo avalista pode funcionar separadamente da obrigação do avalizado, na medida em que a sua obrigação não é paralela da do avalizado, mas autónoma em relação à obrigação deste.
Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador, o mesmo acontecendo com o subscritor, endossantes ou avalistas de uma livrança (arts. 47º/1 e 77º da LULL).
O portador de uma letra ou de uma livrança tem o direito de acionar todos os identificados sujeitos cambiários (art. 47º e 77º da LULL).
Logo, os apelantes, enquanto avalistas das livranças subscritas pela sociedade “EMP07... S.A.”, entretanto declarada insolvente, assumiram a obrigação pessoal e autónoma em relação à obrigação cambiária da sociedade subscritora de liquidar as quantias tituladas pelas livranças que avalizaram, na data de vencimento destas, pelo que, caso não o façam, assiste ao portador dessas livranças o direito de lhes exigir, isolada ou conjuntamente com a sociedade subscritora, o cumprimento/pagamento das quantias tituladas por essas livranças, sem que, caso o portador daquelas opte por apenas lhe exigir a eles (devedores e avalistas) tais quantias (e não à subscritora), os apelantes não possam opor-lhe o benefício da excussão prévia ou alegar que apenas são responsáveis subsidiários pelo cumprimento da obrigação (quando assim não é, mas antes assumiram uma obrigações pessoal e autónoma em relação à obrigação do avalizado de pagar as quantias tituladas pelas livranças que avalizaram na data de vencimento destas).
Daí que, salvo melhor opinião, a circunstância da sociedade subscritora das livranças avalizadas pelos apelantes, nomeadamente, a data em que aquela sociedade foi declarada insolvente, consubstancie facticidade que se mostra totalmente irrelevante para efeitos da decisão a proferir nos presentes autos, posto que os apelantes, conforme acabado de demonstrar, enquanto avalistas da sociedade subscritora das livranças, encontravam-se obrigados pessoalmente a liquidar as quantias por aquelas tituladas, na data de vencimento das mesmas.
Improcede este fundamento de recurso.
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Pretendem os apelantes que se adite ao elenco dos factos provados no despacho recorrido que, nos presentes autos, o passivo verificado e graduado em sede de reclamação de créditos ascende a 157.118,12 euros.
A facticidade em análise mostra-se assaz relevante para a decisão a proferir nos presentes autos, onde, aliás, seria relevante apurar a data de vencimento de cada um dos débitos em que os apelantes se mostram constituídos perante os seus credores (data essa que, porém, não é possível alcançar a partir dos elementos de prova que se encontram juntos aos presentes autos de insolvência e respetivos apensos, nomeadamente, no apenso de incidente de reclamação de créditos, o que demandaria, em princípio, que se devesse anular a decisão recorrida e ordenar a ampliação do julgamento da matéria de facto quanto a essa facticidade, solução jurídica essa pela qual não iremos optar, por ser totalmente inútil, para a decisão a proferir, atentos os fundamentos jurídicos que infra se irão explanar em sede de mérito).
Posto isto, o administrador da insolvência juntou ao apenso de reclamação de créditos a lista de créditos reconhecidos e não reconhecido, a que alude o art. 129º do CIRE, em que reconheceu um total de 177.702,10 euros de créditos de natureza comum, e de 38,77 euros de créditos de natureza subordinada – cfr. lista de créditos reconhecidos junta ao apenso de reclamação de créditos em 10/03/2023.
Os devedores (apelantes) impugnaram os créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência:
- à Segurança Social, no montante de 1.707,43 euros (por ele reconhecido como tendo natureza comum), alegando que este se encontrava prescrito;
- ao Banco 1..., S.A., no montante global de 26.947,23 euros (por ele reconhecido como tendo natureza comum), pretendendo que apenas se reconhecesse o crédito de 8.031,95 euros, com natureza comum;
- o crédito reconhecido à EMP09..., no montante de 12.202,21 euros (por ele reconhecido como tendo natureza comum), pretendendo que se reconhecesse esse crédito sob condição.
Por decisão proferida em 20/06/2023, transitada em julgado, foi julgada procedente a impugnação apresentada pelos devedores (apelantes) quanto aos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência ao Banco 1..., S.A. e à EMP09... e, em consequência, reconheceu-se a ambos estes credores os créditos nos precisos termos impugnados pelos devedores.

Em 06/11/2023, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado, que consta da seguinte parte dispositiva:
“Face ao exposto, e em consonância com os preceitos legais citados:
a) Julga-se totalmente procedente a impugnação do crédito do credor ISS, no valor de € 1.707,43 (mil setecentos e sete euros e quarenta e três cêntimos), atenta a prescrição do mesmo.
b) Ordena-se que se proceda ao pagamento de todos os créditos reconhecidos, através do produto da venda dos direitos/bens apreendidos para massa insolvente depois de observada a regra do artigo 172.º do CIRE, bem como o disposto no artigo 181.º do mesmo diploma, pela ordem seguinte:
- Em 1.º lugar: Créditos comuns, os quais serão pagos em paridade e rateadamente, se necessário.
- Em 2.º lugar: Crédito subordinado”.
Em suma, nos presentes autos, por decisões judiciais, transitadas em julgado, encontram-se reconhecidos: créditos de natureza comum, no montante global de 144.877,18 euros; crédito sob condição (o reconhecido à EMP09...), no montante de 12.202,21 euros; e créditos de natureza subordinada, no montante de 38.77 euros.

Decorre do exposto que, na parcial procedência do fundamento de recurso que se acaba de analisar, ordena-se que se adite ao elenco dos factos provados no despacho recorrido, a seguinte facticidade, que se julga provada:
S- Por decisões judiciais, transitadas em julgado, encontram-se reconhecidos nos presentes os seguintes créditos sobre a insolvência: créditos de natureza comum, no montante global de 144.877,18 euros; crédito sob condição (o reconhecido à EMP09...), no montante de 12.202,21 euros; e créditos de natureza subordinada, no montante de 38.77 euros.
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Decorre do excurso antecedente proceder parcialmente a impugnação do julgamento da matéria de facto, na vertente de deficiência, operada pelos apelantes.
No entanto, dado que releva para a decisão de mérito a proferir no âmbito dos presentes autos, ao abrigo do disposto no art. 662º, n.º 1 do CPC, tendo em consideração o auto de arrolamento e de apreensão junto pelo administrador da insolvência, em 07/07/2023, ao apenso B; o teor dos documentos n.ºs ... e ...0, juntos pelos apelantes em anexo à petição inicial com que se apresentaram à insolvência, bem como a facticidade que alegaram no ponto 8º dessa petição inicial, que não foi impugnada, ordena-se que seja aditado ao elenco dos factos provados no despacho sob sindicância a seguinte facticidade, que se julga provada:
T- Nos presentes autos de insolvência não foram apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente, tendo, em 05/07/2023, o administrador da insolvência arrolado e apreendido as frações autónomas identificadas na alínea H) dos factos provados e as participações sociais identificadas nas alíneas K) e M) desses mesmos factos, ficando esse arrolamento e apreensão dependente do êxito da ação a ser intentada pela massa insolvente, com vista a obter a nulidade, por simulação, dos negócios identificados naquelas alíneas, mediante os quais os devedores transmitiram aquelas frações e participações sociais para as pessoas identificadas nessas alíneas.
U- Os filhos dos devedores nasceram, respetivamente, em ../../2004 e ../../2007.
V- O filho mais velho do casal encontra-se a estudar no ensino universitário.
 
C- Mérito.
A 1ª Instância indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos apelantes, com fundamento na al. d), do n.º 1 do art. 238º do CIRE, com os argumentos que se seguem:
Será que está verificada a alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE?  
Para que isso acontecesse importaria apurar se se verificaram os seguintes pressupostos: 
A- Incumprimento do dever de apresentação à insolvência ou, não estando o devedor obrigado a se apresentar, se se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;  
B- Inexistência de perspetivas sérias de melhoria da situação financeira do devedor que o mesmo conhecesse ou não pudesse ignorar sem culpa grave;  
C- Existência de prejuízo para os credores, decorrente do atraso do devedor na apresentação à insolvência;  
Temos para nós que não pendia sobre os insolventes, um dever de apresentação à insolvência, nos termos do art. 18.º, n.º 2. do CIRE. 
No entanto, embora à luz do art. 18.º, n.º 2, do CIRE não impendesse um dever de apresentação à insolvência sobre os insolventes, pode ainda ponderar-se, em abstrato, pela aplicabilidade do art. 238.º, n.º 1, al. d) do mesmo diploma, que assenta nos seguintes fundamentos: 
i) ter o devedor incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a apresentar-se, ter deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; 
ii) ter causado, com tal atraso, prejuízo aos credores;
iii) sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Importa referir, em primeira linha, que constitui jurisprudência assente do Supremo Tribunal de Justiça que a alegação e prova da verificação de um fundamento de indeferimento liminar, como é a situação em apreço, compete aos credores ou ao administrador de insolvência, nos termos do art. 342.º, n.º 2 do Código Civil, não obstante a eventual suficiência do material probatório já carreado para os autos (cf., a título de exemplo, os Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 27-032014, Proc. n.º 331/13.0T2STC.E1.S1; de 21-01-2014, Proc. n.º 497/13.9TBSTR-E.E1.S1; e de 24-012012, no Proc. n.º 152/10.1TBBRG-E.G1.S1). 
Relembremos: No respeitante à existência de nexo causal entre o putativo atraso e a produção de prejuízo para os credores, reafirmamos que a contagem de juros não é apta a, só por si, configurar prejuízo para os credores, na aceção do art. 238.º, n.º 1, al. d) do CIRE, porquanto é natural que a mera passagem do tempo depois do prazo para cumprimento conduza ao vencimento de juros moratórios, não ocorrendo ademais cessação do vencimento de juros com o início do processo de insolvência – cuja instauração pode ser igualmente ser impulsionada pelos credores.
Nesse sentido, é igualmente jurisprudência assente do Supremo Tribunal de Justiça que «não há prejuízo que, automaticamente, decorra do retardamento na apresentação, nomeadamente, pelo facto de os juros associados aos créditos em dívida se acumularem no decurso desse atraso, pois que tais juros, no atual regime de insolvência, se continuam a contar mesmo depois da apresentação. Esse prejuízo seria patente e automaticamente verificável se, com a apresentação à insolvência, cessasse a produção de juros associados ao ou aos créditos, o que, como se disse, não acontece, pelo que a existência de prejuízos decorrentes de qualquer apresentação tardia sempre terá que ser demonstrada pelos credores. Neste sentido, o STJ tem-se pronunciado, pelo menos desde 2010, de forma unânime» (cf. Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 27-03-2014, Proc. n.º 331/13.0T2STC.E1.S1). 
Avançando, urge não esquecer que estamos perante uma “avaliação liminar, com os limites que daí advêm, apenas se assegurando assim o prosseguimento da instância, sem constituir caso julgado quanto à consistência substancial do mérito da pretensão, que culminará com a prolação da decisão de cessação antecipada do procedimento ou com o despacho final de exoneração” (cfr. o Ac. do STJ de 19/6/2012).  Centremo-nos, agora, no caso concreto
Em 05-12-2018, numa ocasião em que a generalidades dos seus créditos se encontravam vencidos e/ou na iminência de se vencerem, os insolventes cederam as participações sociais que detinham na sociedade comercial que gira sob a firma “EMP03..., Limitada”, no valor de € 30.000,00 (€ 15.000,00 a cada cessão).
Mais ainda, em 10-04-2019, celebraram um negócio de contrato compra e venda das frações autónomas designadas pelas letras ... e ..., pertencentes ao prédio descrito na CRP ... sob o n.º ...20 (freguesia ...), e inscritas na respetiva matriz sob os artigos ...8... e ...8.º-L, reservando para si o direito de uso e habitação, simultâneo e sucessivo, pelo prazo de cinco anos, livre de quaisquer ónus ou encargos à exceção das hipotecas a seguir referidas: duas hipotecas a favor do Banco 2..., S.A., nos termos das apresentações ...3 e ...4, ambas de 10.02.2006, com a sociedade comercial “EMP01..., S.A.”.
A verdade é que aquando da formalização da escritura de compra e venda de bem imóvel e transmissão das participações sociais, já os insolventes se encontravam em incumprimento das suas obrigações, sem que elementos nenhuns conhecidos fizessem antever que tal situação viesse a ser ultrapassada. 
Até porque, pese embora os insolventes se escudem na circunstância de terem dado entrada de dois Processos Especiais para Acordo de Pagamento, sob o n.º 4163/18...., correu os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ..., Juiz ..., e foi encerrado em 13-03-2019, com fundamento na falta de obtenção de acordo do plano; e o processo n.º 3802/21...., correu os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ..., Juiz ..., que foi encerrado a 15-12-2021, com fundamento na falta de obtenção de acordo do plano.
Ora, resulta então que tais processos não foram viáveis, uma vez que os planos não foram homologados, sobretudo, para o período temporal a que se reportam tais negócios, o PEAP encerrado em 13-03-2019, anterior ao negócio de contrato compra e venda das frações autónomas designadas pelas letras ... e ..., celebrado em ../../2019. 
Com efeito, tal circunstância de apresentação de PEAP é elucidativa do conhecimento pelos insolventes do incumprimento das suas obrigações e o aumento do seu passivo. 
Tal como consigna o sr. AI no seu parecer, ao qual se adere: «Os insolventes, ao optarem por formalizar ambas as transmissões, nos termos em que o fizeram, em vez de se terem apresentado de imediato à insolvência, possibilitando que a venda do imóvel e das participações sociais tivessem lugar no respetivo processo, prejudicaram os interesses dos credores.  Os bens e/ou direitos em causa, que eram de significativo valor, poderiam, em sede de liquidação da massa insolvente, entrar em rateio, abatendo ao montante das dívidas da insolvência, numa altura em que os insolventes deviam concentrar os seus esforços na liquidação ou, pelo menos, na amortização do seu passivo, aproveitando para o efeito o património que detinham na sua esfera, optaram por formalizar aquelas transmissões nos termos já relatados, contribuindo assim, dolosamente, para a criação ou, pelo menos, para o agravamento da sua própria situação de insolvência, tornando-se mais ou menos evidente que as transmissões operadas tiveram como único propósito dissipar tal património e assim evitar a sua execução ou apreensão nos autos de insolvência. O que redundou em objetivo prejuízo de todos os seus credores, que viram a sua garantia — património geral dos devedores — esvaziado.
Consequentemente, comparando a situação que teve lugar mercê da atuação dos insolventes com aquela que teria tido lugar caso o bem imóvel e participações sociais tivessem ficado à ordem da massa insolvente, é inegável o agravamento da situação de insolvência, relevante para efeitos do disposto no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, verificados que estão os seus pressupostos temporais
Nesta senda, a conduta dos devedores constituiu prejuízo porquanto dissipou o seu património, evitando a apreensão de tais bens, passíveis de posterior venda em sede de liquidação, cujos termos do negócio poderiam ser muito mais vantajosos para os credores do que os termos celebrados pelos insolventes com os compradores. 
Em face do exposto, considerando preenchidos os pressupostos a que alude a alínea d) do n.º 1 do artigo 236.º do CIRE, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE”.   
Os apelantes não se conformam com o decidido, imputando-lhe erro de direito, advogando que nenhum dos pressupostos legais da al. d), do n.º 1 do art. 238º do CIRE se encontram preenchidos.
Urge indagar se lhes assiste razão, para o que é necessário, ou, pelo menos, conveniente, traçar os objetivos que são prosseguidos pelo legislador com a consagração do instituto da exoneração do passivo restante e enunciar o processualismo a que se encontra submetido, a fim de apreendermos a razão de ser e a filosofia que lhe está subjacente.

C.1- Do instituto da exoneração do passivo restante
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º do CIRE, a que se reportam todos os dispositivos legais que se venham a referir sem menção em contrário), do que resulta que o principal objetivo do processo de insolvência é a satisfação dos interesses dos credores do devedor declarado insolvente.
Esse objetivo é reafirmado no ponto 3º do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, em que se obtempera que: “o objetivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
Acontece que, inspirado no modelo do fresh start, com origem no ordenamento jurídico norte-americano (Bankruptcy Act de 1898), depois incorporado na legislação alemã (§§ 286 a 303 da InsO), o CIRE, no Título XII, introduziu na ordem jurídica nacional, em relação às insolvências de pessoas singulares, o instituto da exoneração do passivo restante, regulando-o nos arts. 235º a 248º.
O referido instituto permite aos devedores, pessoas singulares, declarados insolventes, quando a insolvência ocorra em determinadas condições e mediante o cumprimento de determinados requisitos e obrigações, libertarem-se das dívidas que os onerem e que não sejam satisfeitas pelo produto da liquidação da massa insolvente e pelos rendimentos que cedam ao fiduciário, durante o período de cessão, a fim de recomeçarem de novo, sem elas, a sua vida económica, e em que, por isso, se prossegue fundamentalmente o interesse do devedor.
O princípio do fresh start consubstancia o princípio fundamental e básico do instituto de exoneração do passivo restante, ao permitir ao devedor, pessoa singular, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente liquidados no processo de insolvência ou no denominado período de cessão, salvo os indicados no n.º 2 do art. 245º.
Neste sentido expende-se no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, que: “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos (atualmente, na sequência da revisão operada ao CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, reduzido para três anos) posteriores ao encerramento deste. A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos (agora três) – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.
O instituto da exoneração configura, assim, “uma medida de proteção” do devedor, pessoa singular, cujo objetivo primordial é reabilitá-lo e dar-lhe “uma segunda oportunidade, para que possa recomeçar a sua vida evitando a indigência que nada beneficia a sociedade”[23].
Trata-se, em rigor, de uma nova causa de extinção das obrigações, extraordinária relativamente às causas extintivas que se encontram tipificadas nos arts. 837º a 874º do CC, em que o principal interesse nele tutelado é o do devedor. Daí que nele se assista a uma “colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos: de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro (…) da proteção geral do património; do outro, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, de proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente)”[24].
Precisamente porque o instituto em causa tem subjacente uma colisão de direitos constitucionalmente protegidos e exige a consequente concordância prática dos diversos direitos conflituantes, procurando-se, em primeira linha, salvaguardar os interesses do devedor/insolvente e, a título secundário, os dos credores, é indiscutível que se está perante um instituto de exceção, que não consubstancia, nem pode consubstanciar, “um brinde ao incumpridor”[25], sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade ao se postergar injustificadamente os direitos de crédito que assistem aos credores e de se banalizar o próprio instituto da exoneração, ao qual todos recorreriam, sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício e olvidando não ter sido propósito do legislador que o instituto em causa tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, nem que o processo judicial possa ser uma porta aberta para se atingir semelhante desiderato.
Por isso, compreende-se que no ordenamento jurídico nacional o instituto da exoneração não assenta num modelo de puro fresh start, mas antes no modelo derivado do earned start ou da reabilitação, nos termos do qual o devedor, pessoa singular, declarado insolvente não pode ser exonerado das suas dívidas em quaisquer circunstâncias, dado que, em princípio, os contratos são para cumprir (art. 406º, n.º 1 do CC), mas apenas pode ser concedido quando não se prove que adotou uma das condutas ou que se verificam quanto a ele uma das situações anteriores à declaração da sua insolvência que se encontram taxativamente tipificadas no n.º 1 do art. 186º, n.º 1, geradoras de indeferimento liminar do pedido de exoneração.
Depois, deferido liminarmente o pedido de exoneração, o devedor terá de passar por uma espécie de período de prova (o período de cessão), durante o qual parte dos seus rendimentos (rendimento disponível) serão afetados ao pagamento das dívidas da insolvência remanescentes, isto é, que não obtiveram pagamento no âmbito do processo de insolvência mediante a liquidação da massa insolvente, e em que fica sujeito a um conjunto de obrigações, que terá de cumprir, demonstrando que é merecedor (“earn”) do perdão de dívida em causa.
Por isso é que, apenas findo o período de cessação e verificado que seja que o devedor cumpriu com todas as suas obrigações é que a exoneração lhe poderá ser concedida, caso naturalmente se verifique que é merecedor desse perdão de dívida por ter cumprido com todas as obrigações que lhe foram impostas[26].
Deste modo, atenta a colisão de direitos de credores e devedor e a ratio que está subjacente ao instituto da exoneração, para que esse benefício seja concedido ao devedor, pessoa singular, declarado insolvente, é necessário que antes do processo de insolvência, durante o mesmo e, bem assim, até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que confira a exoneração (art. 246º, n.ºs 1 e 2 do CIRE) o devedor justifique ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”[27] a sua vida económica liberto das anteriores dívidas que o oneravam.
Para que o benefício da exoneração seja concedido ao devedor este terá de percorrer um processo próprio, onde se destacam, como principais fases: o pedido de exoneração, o despacho liminar ou inicial e o despacho final.
O pedido de concessão do benefício de exoneração do passivo restante tem de ser formulado pelo devedor na petição inicial com que se apresenta à insolvência ou, na hipótese da insolvência ter sido requerida por um dos legitimados indicados no art. 20º, n.º do CIRE, tem de ser formulado pelo devedor demandado (para o caso de vir a ser declarado insolvente) no prazo de dez dias, a contar da sua citação para o processo de insolvência (art. 236º, n.º 1 do CIRE).
Não sendo o pedido deduzido pelo devedor que se apresente à insolvência na petição inicial ou, no prazo de dez dias, a contar da sua citação para o processo em que é requerida a declaração da sua insolvência, aquele ainda poderá requerer a concessão desse benefício até ao encerramento da assembleia de credores para apreciar o relatório emitido pelo administrador da insolvência a que alude o art. 155º ou, no caso de dispensa de realização dessa assembleia, após os 60 dias subsequentes à sentença que o declarou insolvente, mas nesses casos, em que o pedido é formulado durante o denominado período intermédio, o juiz decide livremente sobre a admissão ou não do pedido (art. 236º, n.º1, parte final).
Depois da realização da assembleia de credores para apreciar o relatório a que alude o art. 155º o pedido de concessão do benefício de exoneração é sempre rejeitado, por ser intempestivo.
Acresce que o pedido de exoneração, ainda que tempestivamente deduzido e ainda que tenha sido liminarmente admitido pelo tribunal e se encontre já em curso o período de cessão, porque totalmente incompatível com a aprovação e homologação de um plano de pagamento (art. 237º, al. c)), porquanto, os efeitos da exoneração já resultam da homologação do plano de pagamento (art. 198º, al. c)), terá de ser rejeitado sempre que for apresentado um plano de pagamento pelo devedor, salvo se este, aquando da sua apresentação, declare que pretende que lhe seja concedido o benefício da exoneração na hipótese de o plano que apresentou não ser aprovado (art. 254º).
Quanto ao conteúdo do requerimento em que solicita a concessão do benefício de exoneração do passivo restante o devedor tem de declarar expressamente que preenche os requisitos para que esse benefício lhe seja concedido e se dispõe a observar todas as condições e obrigações decorrentes da sua concessão (n.º 3 do art. 236º).
Perante esse pedido, exceto quando seja apresentado fora do prazo legal ou de no processo já constarem documento ou documentos autênticos comprovativos da verificação de algum dos fundamentos de indeferimento liminar previstos taxativamente nas diversas alíneas do n.º 1, do art. 238º do CIRE, em que o juiz deverá logo indeferir liminarmente o pedido de exoneração, ouvidos os credores e o administrador da insolvência (n.º 4 do art. 236º), o julgador profere despacho liminar, pronunciando-se sobre a admissibilidade liminar (ou não) do pedido, consoante se encontre ou não preenchido um dos fundamentos de indeferimento liminar taxativamente enunciados nas diversas alíneas do n.º 1, do art. 238º.
No caso de deferimento liminar do pedido de exoneração o julgador fixa as condições que o devedor terá de cumprir durante o período de cessão (arts. 237º, al. b) e 239º do CIRE).
O despacho inicial tem, assim, como único objetivo a aferição da existência de condições mínimas, a ser emitido segundo um juízo de prognose e prova sumária, que justificam que ao devedor deva ser dada uma oportunidade de se submeter a uma espécie de período de prova - o período de cessão - que, uma vez terminado, pode resultar (ou não) na concessão do benefício de exoneração do passivo restante e, no caso positivo, fixar as obrigações a que fica adstrito durante esse período (arts. 239º, 244º e 245º do CIRE).
Frise-se que, apesar de não existir unanimidade jurisprudencial a esse respeito, é atualmente largamente maioritária a corrente segundo a qual não impende sobre o devedor, pessoa singular, requerente do benefício da exoneração, o ónus da alegação e da prova de facticidade de onde decorra não estarem preenchidos nenhum dos fundamentos taxativos previstos no n.º 1 do art. 238º de indeferimento liminar do pedido de exoneração, mas, sem prejuízo do princípio do inquisitório que assiste ao julgador (art. 11º), é antes sobre os interessados, ou seja, sobre os credores e o administrador da insolvência que impende o ónus alegatório e probatório de facticidade integrativa de um dos fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração previstos numa das alíneas do n.º 1 do art. 238º, dado tratar-se de matéria de exceção ao direito que assiste ao devedor de lhe ser concedido o benefício de exoneração[28].
Por conseguinte, o deferimento liminar do pedido de exoneração não significa que esse benefício venha efetivamente a ser concedido ao devedor, mas apenas tem o alcance de que existem condições para proferir o despacho inicial, em que se determina que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – período de cessão (n.º 2 do art. 239º) - e qual o rendimento disponível que aquele terá de ceder, durante o período em causa, a uma entidade, denominado fiduciário, e em que se fixam os comportamentos a que fica adstrito durante esse período.
Apenas findo o período de cessão, caso, entretanto, não tenha sido decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243º), é que o juiz decide, em definitivo, sobre a concessão (ou não) da exoneração do passivo restante ao devedor (arts. 239º, n.ºs 2, 3 e 4 e 244º, n.º 1 do CIRE)[29].
Dito por outras palavras, o despacho inicial que defere liminarmente o pedido de exoneração “só promete conceder a exoneração efetiva se o devedor, ao longo” do período de cessão, no caso de observar certos comportamentos que lhe são impostos. A concessão efetiva da exoneração depende, pois, da verificação dessas condições (…) e é decidida no despacho regulado no art. 244º se, entretanto, não tiver havido cessão antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do art. 243º[30].

C.2-Fundamento de indeferimento liminar de exoneração da al. d), do n.º 1 do art. 238º do CIRE

A 1ª Instância indeferiu liminarmente o pedido de concessão do benefício de exoneração do passivo restante formulado pelos apelantes com fundamento na circunstância de, na sua perspetiva, se encontrarem preenchidos os requisitos de indeferimento liminar da al. d), do n.º 1, do art. 238º, argumentando, em síntese, que: em 05/12/2018, aqueles já se encontravam com a generalidade dos seus créditos vencidos, ou seja, já se encontravam numa situação de insolvência atual ou, pelo menos, iminente, e cederam as participações sociais que detinham no capital social da sociedade “EMP03..., Lda.” a terceiros e, em 10/04/2019, venderam as duas frações autónomas de que eram proprietários à sociedade “EMP01..., S.A.”, numa altura em que já não podiam ignorar, sem culpa grave, que não tinham quaisquer perspetivas sérias de que a sua situação económica iria melhorar, uma vez que tinham instaurado dois processos especiais para acordo de pagamento, que vieram a ser encerrados, em 13/03/2019 e 15/12/2021, por falta de obtenção de acordo de pagamento entre os mesmos e os seus credores, o que, na sua perspetiva,  é bem elucidativo do conhecimento que tinham do incumprimento das suas obrigações e do aumento do seu passivo.
Mais ponderou que, apesar disso, os apelantes optaram por formalizar as transmissões das ditas frações de que eram proprietários e das participações sociais que detinham, com o que prejudicaram os interesses dos seus credores, posto que, o valor de transmissão desses bens teria sido superior caso se tivessem apresentado à insolvência e os mesmos tivessem aí sido liquidados, concluindo que, ao assim agirem, os mesmos dolosamente agravaram a situação de insolvência em que se encontravam, com prejuízo relevante para os seus credores.
Os apelantes são pessoas singulares e não são titulares de empresa, pelo que sobre os mesmos não impede o dever de se apresentarem à insolvência que é imposto pelo art. 18º, n.º 1 (cfr. art. 18º, n.º 2, al. b)).
Para que o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração da al. d), do n.º 1, do art. 238º fique preenchido em relação a devedor que não seja titular de empresa (como é o caso dos apelantes) é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos cumulativos: a) o devedor se encontre numa situação de insolvência; b) não se apresente à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da sua situação de insolvência; c) que por via desse seu comportamento omissivo tenha resultado prejuízo para os seus credores; e d) o seu conhecimento ou o desconhecimento com culpa grave da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica[31].
O ónus da alegação e da prova da facticidade que preencha os requisitos que se acabam de enunciar, conforme antedito, não impende sobre o devedor, ou seja, não é ao último que cabe alegar e provar facticidade de onde resulte que os identificados requisitos cumulativos não se encontram preenchidos, mas é antes aos seus credores e ao administrador da insolvência que cabe o ónus de alegar e provar facticidade de onde decorra que esses pressupostos se encontram preenchidos para que o pedido de exoneração possa ser liminarmente indeferido, sem prejuízo dos poderes inquisitoriais que impendem sobre o tribunal.
Neste âmbito cumpre esclarecer que, contrariamente à posição expressa pelo administrador da insolvência no relatório a que alude o art. 155º, sobre os apelantes (devedores) não impende qualquer presunção de que os negócios que celebraram (mediante os quais transmitiram para terceiros as participações sociais e as frações de que eram proprietários), são nulos, por simulação, mas antes é sobre a massa insolvente que, caso intente a competente ação, com vista a obter a declaração de nulidade desses negócios, por simulação, que terá de alegar e provar facticidade demonstrativa em como os negócios em causa são simulados.
Posto isto, passando à análise do primeiro dos requisitos acima identificados (encontrar-se o devedor numa situação de insolvência), cumpre enfatizar que o conceito básico de insolvência consta do art. 3º, n.º 1 do CIRE, nos termos do qual é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Desse conceito decorre que, para que se considere que o devedor se encontra numa situação de insolvência é necessário que se encontre em mora em relação à generalidade (isto é, à maior parte ou à grande maioria) das suas obrigações por falta de liquidez.
Dito por outras palavras, para que se considere que o devedor se encontra numa situação de insolvência, exige-se que se encontre impossibilitado de cumprir com a generalidade (a maior parte, a grande maioria) das suas obrigações vencidas, mas não a alegação e prova de que se encontra impossibilitado de cumprir com todas as obrigações que assumiu e que já se encontrem vencidas.
Na verdade, “o que verdadeiramente releva para a insolvência é a suscetibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos”, podendo “até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até uma única indicie, por si só, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante. Assim, se, por hipótese, uma sociedade comercial com algumas centenas de trabalhadores entra em rutura quanto aos seus encargos para a segurança social e deixa também de honrar as dívidas com os seus credores bancários mais relevantes, ela não deixará de se encontrar numa situação de insolvência atual, apesar de manter religiosamente o pagamento aos seus colaboradores e mesmo assegurar o serviço da dívida a um ou outro banco. Ao contrário, o facto de, porventura, deixar atrasar, circunstancialmente, o pagamento dos salários, continuando, no entanto, a satisfazer os credores bancários, fornecedores e o setor público, não será, só por si, caracterizador do estado de insolvência em termos de se requerer a correspondente declaração”[32].
Em suma, para se considerar que o devedor se encontra em estado de insolvência, poderá bastar a alegação e prova do não pagamento pontual de uma única dívida vencida quando também se provem factos e circunstâncias que evidenciem que essa dívida, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, revelam a impossibilidade ou a impotência daquele de satisfazer a grande maioria dos seus compromissos financeiros vencidos.
Revertendo ao caso dos autos, a facticidade que se quedou provada não permite determinar quando é que os apelantes se constituíram na situação de insolvência dado que para tal era necessário que se tivesse apurado a data concreta em que se venceram cada um dos débitos que têm para com os seus credores e, em que, consequentemente, se constituíram em mora em relação a cada um desses seus débitos, de modo a poder aquilatar-se quando é que ficaram impossibilitados de cumprir com a maioria das suas obrigações vencidas, o que tudo ficou por apurar, dado que a data da constituição em mora em relação a esses débitos não vem indicada na lista de créditos reconhecidos pelo administrador  da insolvência, nem sequer em qualquer outro elemento probatório que conste dos presentes autos de insolvência e respetivos apensos.
Acresce dizer que, contrariamente ao decidido pela 1ª Instância, jamais se afigura possível concluir que os apelantes já, em 05/12/2018, se encontravam numa situação de insolvência.
Com efeito, os apelantes apresentaram-se a dois processos especiais para acordo de pagamento: o PEAP que correu termos sob o n.º 4163/18...., do Juízo de Comércio ..., Juiz ..., e que foi encerrado por despacho proferido em 13/03/2019; e o PEAP que correu termos sob o n.º 3802/21...., do Juízo de Comércio ..., Juiz ..., que foi encerrado por despacho de 15/12/2021, sem que em nenhum desses processos o administrador judicial provisório que neles exerceram funções tenham requerido a declaração da insolvência dos apelantes (cfr. alíneas. G, Q e R dos factos apurados).
À data da instauração deste segundo PEAP os apelantes já tinham vendido as duas frações de que eram proprietários à sociedade “EMP01..., S.A.” (cfr. alíneas H a J dos factos apurados), bem como já tinham cedido as duas quotas que detinham no capital social da “EMP03..., Lda.” (cfr. alíneas K a O dos factos apurados), sem que tais vendas, em que, a final, a 1ª Instância ancorou a sua decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração formulado pelos apelantes, com fundamento na al. d), do n.º 1, do art. 238º, tivesse levado o administrador judicial provisório que exerceu funções nesse processo a concluir que os mesmos, em 15/12/2021, data do encerramento desse PEAP, já se encontrassem numa situação de insolvência atual, não obstante ter necessariamente de emitir o parecer em causa e caso nele tivesse concluído que os devedores já se encontravam  numa situação de insolvência atual demandava que tivesse de ser obrigatoriamente instaurado processo de insolvência contra os mesmos, o que não sucedeu.
Daí que a situação de insolvência em que se constituíram os devedores tivesse de ter necessariamente ocorrido em data posterior a 15/12/2021, mas em momento temporal que, conforme antedito, não se apurou, pelo que, salvo melhor opinião, nunca podia a 1ª Instância ter concluído (como fez), que os apelantes, já em 05/12/2018, se encontravam numa situação de insolvência atual.
Por conseguinte, não permitindo a facticidade que se quedou provada nos autos determinar a data concreta em que os apelantes se constituíram na situação de insolvência, claudica o requisito negativo de indeferimento liminar da al. d), do n.º 1 do art. 238º do pedido de exoneração (a não apresentação dos apelantes à insolvência no prazo máximo de seis meses a contar do momento em que se constituíram em situação de insolvência).
Acresce que, ainda que se pudesse concluir que os insolventes se constituíram na situação de insolvência em que se encontram já em 05/12/2018, tal como decidido pela 1ª Instância (o que não se consente), jamais se poderia concluir que os mesmos, por via de não se terem apresentado à insolvência no prazo máximo de seis meses a contar daquela data, causaram prejuízo aos seus credores, ao, em 10/04/2019, terem vendido à sociedade “EMP01..., S.A.” as duas frações autónomas de que eram proprietários nas condições especificadas nas alíneas H) a  J) dos factos apurados e, bem assim, de, em 05/12/2018, terem cedidos as participações sociais de que eram detentores na sociedade “EMP03..., Limitada” a terceiros, nas condições referidas nas alíneas K) a O) dessa mesma facticidade, por esses bens poderem ser vendidos em condições mais vantajosas para os credores em processo de insolvência a que se tivessem apresentado, conforme foi decidido pelo julgador a quo.
Na verdade, o prejuízo para os credores a que alude o art. 238º, n.º 1, al. d) tem de ser um efeito necessário de não apresentação atempada do devedor à insolvência, mas esse prejuízo não se presume nem pode ser um efeito automático da não apresentação daquele à insolvência no prazo máximo de seis meses a contar da data em que ficou insolvente.
Com efeito, a não apresentação atempada do devedor à insolvência provoca sempre um conjunto de consequências nefastas para os seus credores que decorrem da circunstância: do ativo se reduzir por força das execuções singulares dos credores e, em princípio, desvaloriza-se com o decurso do tempo; em contrapartida, o passivo aumenta por via do aumento de juros. É que a jurisprudência é unânime que o aumento da contagem dos juros, resultante do retardamento da apresentação do devedor à insolvência não constitui, por si só, fundamento bastante para se poder decidir pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, mas é necessário que o devedor, após o decurso do prazo legal para se apresentar à insolvência, celebre negócios dos quais resulte um aumento do seu passivo (v.g., celebração de contratos de financiamento, leasing, etc. de que resultem novas responsabilidades financeiras para o devedor),  ou a diminuição do seu ativo (v.g., celebração de contratos de compra e venda de bens do devedor por preço inferior ao seu valor de mercado, contrato de doação, etc.)[33].
O dito prejuízo tem de ser provado, ou seja, tem de decorrer dos factos que se quedaram provados nos autos e tem de ser tal que constitua um patente agravamento da situação dos credores que assim ficaram onerados pela atitude culposa do insolvente e deve ser um prejuízo irreversível e grave[34].
Daí que, para que se pudesse concluir pela verificação do mencionado requisito, teria de se ter provado facticidade nos autos que permitisse concluir que, por via da circunstância dos apelantes não se terem apresentado à insolvência no prazo máximo de seis meses a contar do momento em que ficaram insolventes, foi possível aos mesmos celebrarem aqueles negócios de venda das duas frações de que eram proprietários e de cedência das participações que detinham em “prejuízo dos seus credores”, quer demonstrando que aqueles bens não foram vendidos pelo seu efetivo valor de mercado, ou que no processo de insolvência a que se tivessem apresentado era possível obter um melhor preço do que aquele pelo qual os venderam, o que tudo se quedou por provar.
Daí que, também por falta de prova do nexo causal entre a não apresentação dos apelantes à insolvência, caso esse retardamento tivesse possibilitado a celebração daqueles negócios, não é possível concluir que deles tivesse resultado um prejuízo (efetivo, real e concreto) para os credores.
Em suma, nos presentes autos não se provou a data concreta em que os devedores ficaram numa situação de insolvência e ainda que tivesse provado (tal como decidiu a 1ª Instância, que os mesmos já se encontravam insolventes em 05/12/2018 - o que não é o caso), não se provou que dos negócios de venda das duas frações e de cedência das participações sociais tivesse decorrido qualquer prejuízo (efetivo e concreto) para os credores dos mesmos, pelo que também por aqui jamais se pode dar por verificado o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração da al. d) do n.º 1 do art. 238º.
Resulta do excurso antecedente, impor-se concluir pela procedência do presente recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido e ordena-se que a 1ª Instância admita liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos apelantes.
*
Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- No PEAP e no PER a lista de créditos reconhecidos tem por exclusiva finalidade a identificação dos créditos para efeitos de votação do plano de pagamento (PEAP) ou do plano de revitalização (PER) e, acessoriamente, qualificar, discriminando, os créditos subordinados, que são relevantes para o segundo quórum de aprovação, e não definir/determinar os direitos de créditos (respetivos montantes e garantias) dos credores perante o devedor.
2- Para que o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante da al. d), do n.º 1 do art. 238º do CIRE se verifique, é necessário que se preencham os seguintes requisitos cumulativos: a) o devedor se encontre em situação de insolvência; b) que não se apresente à insolvência no prazo máximo de seis meses sobre a data em que ficou insolvente; c) que, em consequência desse comportamento omissivo, resulte prejuízo para os seus credores; e d)  o conhecimento ou o desconhecimento com culpa grave do devedor da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
3- O ónus da alegação e da prova de facticidade que preencha esses requisitos cumulativos impende sobre os credores do devedor e sobre o administrador da insolvência, sem prejuízo dos poderes inquisitoriais que assistem ao tribunal.
4- Estando provado que os devedores se apresentaram a dois PEAP e que esses processos foram encerrados em, respetivamente, 13/03/2019 e 15/12/2021, sem que neles tivesse sido aprovado e homologado plano de pagamento e sem que o administrador judicial provisório que neles exerceram funções tivessem emitido parecer no sentido de que os devedores, à data do encerramento daqueles processos, já se encontravam numa situação de insolvência atual (o que teria como consequência jurídica necessária que tivesse de ser instaurado processo de insolvência contra os devedores), não é possível concluir que os devedores já se encontravam numa situação de insolvência atual em 05/12/2018.
5- À data da instauração do segundo PEAP os devedores já tinham vendido as duas frações de que eram proprietários e tinham já cedido as participações sociais de que eram detentores, sem que, em 15/12/2021 (data do encerramento deste PEAP) o administrador judicial provisório tivesse emitido parecer no sentido de que os devedores se encontravam numa situação de insolvência atual à data desse encerramento, pelo que não é possível concluir que, por via de não se terem apresentado à insolvência, nos seis meses subsequentes a 05/12/2018, foi possível aos devedores celebrarem aqueles negócios de transmissão das frações e das participações sociais, com o que causaram prejuízo aos seus credores.
6- O prejuízo que é pressuposto pela al. d), do n.º 1 do art. 238º do CIRE não se presume, nem é uma consequência automática do facto do devedor não se ter apresentado à insolvência no prazo máximo de seis meses a contar da data em que se constituiu em situação de insolvência, mas tem de se trata de um prejuízo efetivo (real, efetivo e concreto), irreversível e grave, que seja evidenciado pela facticidade que se provou nos autos.
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação procedente e, em consequência, revogam o despacho recorrido e ordenam que a 1ª Instância admita liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos apelantes.
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Custas da apelação pela massa insolvente (arts. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC e 304º do CIRE).
*
Notifique.
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Guimarães, 29 de fevereiro de 2024

José Alberto Moreira Dias – Relator
Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade – 1ª Adjunta
Gonçalo Oliveira Magalhães – 2º Adjunto               



[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Ac. STA. de 09/07/2014, Proc.00858/14, in base de dados da DGSI, em que constam todos os arestos infra indicados, sem menção em contrário.
[3] Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
[4] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277.
[5] Ac. STJ., 28/03/1995, BMJ., 445º, pág. 388; de 28/03/2000, Sumários, 39º, pág. 22.
[6] Abílio Neto, ob. cit., pág. 739.
[7] Acs. STJ, de 13.02.1997, BMJ nº 464, pág. 524; de 22.06.1999, CJ, 1999, tomo II, pág. 160; RC, de 11.01.1994, BMJ nº 433, pág. 633; RG, de 14.05.2015, Proc. nº 414/13.6TBVVD.G1.
[8] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, págs. 736 e 737; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, págs. 763 e 764, notas 11 e 12; Ac. STJ., de 20/01/2004, Proc. 03S1697.
[9] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, págs. 293 a 295, em que pondera: “Outras decisões podem revelar-se total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias, resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, da sua natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa ou reveladora de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso. Verificado algum dos referidos vícios, para além de serem sujeitos a apreciação oficiosa da Relação, esta poderá supri-los a partir dos elementos que constem do processo ou da gravação”.
Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, Coimbra Editora, 1987, pág. 553, em que defende que o vício da deficiência do julgamento da matéria de facto abrange: “tanto o caso de falta absoluta de decisão, como o caso de decisão incompleta, insuficiente ou ilegal”.
[10] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 294.
[11] Tomé Soares Gomes, inDa Sentença Civil”, págs.14 a 16, a 24 de janeiro de 2014, nas Jornadas de Processo Civil, disponível in file:///C:/Users/MJ01758/Downloads/texto_intervencao_Manuel_Tome.pdf
[12] Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Almedina, 2013, pág. 39; RG., de 23/11/2023, Proc. 3833/22.4T8VCT-H.G1, em que foi reator o aqui 1º Adjunto; R.P., de 18711/2013, Proc. 251/13.0TBVFR-C.P1; RE., de 12/04/2018, Proc. 569/16.8T8OLHE1.
[13] Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 293 e 294.
[14] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, págs. 206 e 207.
[15] Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 212.
[16] Ac. STJ. de 09/03/2003, Proc. 03B1816.
[17] Acs. STJ. de 01/10/2019, Proc. 109/17.1T8ACB.C1.S1; de 07/05/2014, Proc. 39/12.3T4AGD.C1.S1; de 11/07/2012, Proc. 3360/14.0TTLSB.L1.S1; e de 14/11/2006, Proc. 06A2992.
[18] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 150, nota 3.
[19] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 155, nota 12.
[20] Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, “PER o Processo Especial de Revitalização”, Coimbra Editora, 1ª ed., março de 2014, pág. 51; Catarina Serra, ob. cit., pág. 409; Acs. STJ. de 28/04(2021, Proc. 1377/17.4T8OAZ-D.P1-S1; RG. de 09/07/2020, Proc. 1490/19.3T8VRL.G1; de 03/02/2022, Proc. 3985/20.7T8VNF-A.G1.
[21] Pedro Pais de Vasconcelos, “Direito Comercial, Títulos de Créditos”, Associação Académica da Faculdade de Lisboa, 1990, pág. 126.
[22] Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., págs. 127 e 128.
[23] Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2016, 4ª ed., Almedina, pág. 535; no mesmo sentido, Luís Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 4ª ed., págs. 236 e ss.; Catarina Serra, “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2008, 3ª ed. Almedina, págs. 102 e 103.
[24] Paulo Mota Pinto, “Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade”, no “III Congresso de Direito da Insolvência”, Almedina, 2015, págs. 187 e 194.
[25] Alexandre de Soveral, “Um Curso de Direito de Insolvência”, 2016, 2ª ed., pág. 584.
[26] Catarina Serra, ob. cit., pág. 559.
[27] Luís M. Martins, ob. cit. pág. 535; Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1.
[28] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 855; Acs. STJ., de 19/04/2012, Proc. 434/11.5TJCBR-D.C1-S1; de 06/07/2011, Proc. 7295/08.0TBBRG.G1.S1; RG., de 16/01/2014, Proc. 1409/12.2TBVVD-B.G1; de 22/06/2023, Proc. 1824/20.8T8GMR.G1; R.P., de 27/09/2011, Proc. 3713/10.5TBVLG-E.P1; R.C., de 07/03/2017, Proc. 2891/16.4T8VIS.C1; de 17/01/2012, Proc. 165/11.6TBACN-G.C1; R.E., de 12/07/2012, Proc. 9/12.1TBENT-C.E1; de 12/07/2012, Proc. 5241/11.2TBSTB-D.E1.
[29] Ac. RC. de 03/06/2014, Proc. 747/11.6TBTNV-J.C1.
[30] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 853.
[31] Catarina Serra, ob. cit., pág. 565, onde defende que para que o requisito de indeferimento da al. d) fique perfetibilizado “é preciso que se verifiquem cumulativamente três requisitos negativos: a sua não apresentação atempada à insolvência (tendo ou não o devedor a obrigação de se apresentar), o prejuízo para os credores e o conhecimento ou o desconhecimento com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica”.
[32] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 86 e 87.
[33] Acs. STJ., de 27/03/2011, Proc. 331/13.0T2STC.E1.S1; RG., de 12/05/2011, Proc. 1870/10.0TBBRG-D.G1; R.C., de 13/09/2011, Proc. 579/11.1TBVIS-D.C1; R.E., de 07/04/2011, Proc. 2025/09.1TBCTX-D.E1
[34] Alexandre Soveral Martins, ob. cit., págs. 617 e 618, onde perfilha o seguinte entendimento: “Também é fundamento de indeferimento liminar o incumprimento do dever de apresentação à insolvência se daí resultou prejuízo para os devedores e sabendo o devedor, ou não podendo ignorar sem culpa grave, que não existia «qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica». Se o devedor não está sujeito ao dever de apresentação à insolvência, ainda assim será indeferido liminarmente o pedido de exoneração se não se apresentou à insolvência desde que, mais uma vez, disso tenha resultado prejuízo para os credores e o devedor soubesse ou não pudesse ignorar, sem culpa grave, que não existia «qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica» (al. d)). Em qualquer das duas hipóteses deve entender-se que o prejuízo para os credores tem de ser provado, não bastando o mero decurso do tempo. A lei exige uma relação causal entre o comportamento do devedor e o prejuízo dos credores. Para que se possa concluir pela existência desse prejuízo, será necessário fazer a comparação com o que seria a sua previsível situação se o devedor tivesse cumprido o dever de apresentação ou, não existindo esse dever, se tivesse apresentado nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência” (sublinhado e destacado nosso).
No mesmo sentido, aparentemente Catarina Serra, ob. cit., pág. 566: “O prejuízo para os credores passa a consubstanciar um efeito necessário da não apresentação à insolvência. É verdade que o atraso na apresentação à insolvência conduz invariavelmente a um conjunto de consequências nefastas para os credores: o ativo reduz-se por força das execuções singulares dos credores e, em princípio, desvaloriza-se com o decurso do tempo; em contrapartida, o passivo aumenta, seja em virtude da contração de novas dívidas, seja do decurso de juros, seja da constituição do devedor na obrigação de pagamento das custas judiciais que fiquem a seu cargo como parte vencida. Mas se se considerar que isso é suficiente para configurar (mediante o funcionamento da presunção ou a produção de prova) o prejuízo para os credores, não se vê para que serviria a alusão (autónoma) da norma e ele?”.
Na jurisprudência: Ac. STJ., de 24/01/2012, Proc. 152/10.1TBRG-E.G1.S1: “O facto da lei não estabelecer qualquer critério para ajuizar do acréscimo de prejuízo, não autoriza que se conclua ser indiferente a sua expressão, bastando o facto objetivo em  si mesmo, não se pode sufragar – se porque seria desconsiderar a finalidade do instituto e não fazer prevalecer um juízo de equidade e proporcionalidade que a lei justa deve contemplar. De outro modo, um prejuízo avultadíssimo teria o mesmo tratamento que um prejuízo insignificante, “sumus jus suma insuria”. O prejuízo, entendemos, tem de ser tal que constitua patente agravamento da situação dos credores que assim ficariam onerados pela atitude culposa do insolvente. (…). O prejuízo a que se refere o art. 238º, n.º 1, al. d) do CIRE deve ser um prejuízo irreversível e grave, como aquele que resulta da contração de dívidas, estando já o devedor em estado de insolvência, a ocultação do seu património ou atos de dissipação dolosa. Para que se possa considerar prejuízo para os credores pelo facto do insolvente/requerente da exoneração do passivo restante, não basta que este se apresente a pedir a sua insolvência para lá do período de seis meses sequentes à verificação da situação de insolvência, essa tardia apresentação não implica, por si só, a presunção de prejuízo, que carece de demonstração efetiva” (destacado nosso).
No mesmo sentido Ac. STJ. de 03/11/2011, Proc. 85/10.1TBVCB-F.P1.S1: “O prejuízo para os credores previsto na al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE não resulta automaticamente do atraso na apresentação à insolvência, mas abrange qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, provocada por esse atraso, desde que concretamente apurado, em cada caso” (destacado nosso).
Ainda, Ac. RC., de 11/12/2012, Proc. 1194/11.5T2AVR-E.C1: “O prejuízo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração – e que, não podendo ser presumido -, tem que decorrer dos factos demonstrados ou evidenciados nos autos – não é o prejuízo que advém para os credores da situação de incumprimento e da insolvência do devedor; mas sim o prejuízo emergente do atraso na apresentação à insolvência, ou seja, o prejuízo sofrido pelos credores que teria sido evitado caso o devedor se tivesse apresentado à insolvência em tempo oportuno. A afirmação de tal prejuízo pressupõe a verificação de factos ou circunstâncias que permitam concluir que, no caso concreto, o atraso na apresentação à insolvência determinou uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou a diminuição do ativo (em virtude de o devedor ter praticado atos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ele se vem apresentar). O mero vencimento de juros moratórios é insuficiente para integrar o conceito de prejuízo a que alude a norma em questão”.
No mesmo sentido: Acs. R.G., de 22/09/2016, Proc. 137/16.4T8MDL.G1; RC., de 07/09/2021, Proc. 3/21.1T8CBR-B.C1; de 11/07/2012, Proc. 1058/11.2TBCNT-C.C1; RL., de 28/11/2013, Proc. 9507/12.6TBCSC-C.L1-8; R.E., de 16/01/2014, Proc. 1098/13.7TBSTR-C.E1.