Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1665/14.1T8BRG-M.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE PARTILHA
EXECUÇÃO
LEGITIMIDADE
ADQUIRENTE DE DIREITO OU COISA LITIGIOSA
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Na acção executiva a legitimidade afere-se, em regra, colocando em confronto as partes daquela.
II – Porém, essa regra comporta excepções, pois a lei permite que a ação executiva seja intentada por alguém e/ou contra alguém que não figure no título executivo.
III – Uma dessas situações é a prevista no art.º 55º do CPC, a qual abrange a situação em que a sentença produz efeitos contra o adquirente, não habilitado, de direito ou coisa litigiosa (cf. artigo 263º, n.º 3).
IV – Assim e à luz dos referido normativos, numa execução para entrega de coisa certa, fundada em sentença homologatória da partilha e adjudicação dos quinhões, é parte legítima como executado o adquirente do direito à meação de um dos interessados, pese embora não tenha sido parte, nem requerida a sua habilitação como adquirente no processo de inventário.
V - A usucapião, no momento em que produz o seu efeito aquisitivo consubstancia uma forma de extinção objectiva do direito de propriedade do anterior proprietário, em virtude da (total) incompatibilidade do mesmo, com o direito de propriedade que surge, ex novo, no que vem a usucapir. E com a extinção do direito anterior, extinguem-se as faculdades subjacentes ao mesmo, como seja o direito de exigir a entrega da coisa.
VI – Mas para que a usucapião possa ser invocada, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea g) do art.º 729º, a mesma há-de fundar-se totalmente em factos posteriores ao encerramento da discussão em primeira instância.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório

AA intentou acção executiva para entrega de coisa certa contra EMP01..., Ldª, alegando para tanto que:

- no âmbito do processo de inventário instaurado por divórcio da Exequente e do Executado BB, que correu termos sob o processo número 1665/14...., no Juiz ... do Juízo de Família e Menores ..., foi adjudicado à Exequente, entre outros, o Prédio rústico denominado “Campo ...”, sito em ... ou ..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... ...19 da freguesia ... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ...24;
- durante a pendência do processo de inventário, o referido imóvel esteve em poder do Executado BB, por força da sua qualidade de cabeça de casal;
- a sentença de partilha transitou em julgado a 10 de Setembro de 2021;
- o executado BB recusa-se a entregar o imóvel à exequente;
- na pendência do processo de inventário, por escritura pública de 31 de Agosto de 2011 o Executado BB cedeu a sua meação no património comum à Executada EMP02..., Lda.
- o Executado BB é gerente da Executada EMP02..., Lda. e, também nessa qualidade, recusa-se a entregar o referido imóvel.

Foi ordenado cumprimento do disposto no art.º 859º do CPC.

A executada EMP02..., ldª deduziu embargos de executado invocando a sua ilegitimidade e a usucapião.
Quanto à primeira alegou, concretamente e em síntese, que o título executivo corresponde a uma decisão judicial condenatória no âmbito do processo de inventário por divórcio da exequente e do executado BB, a executada EMP02..., Lda. não foi parte no referido processo, não devendo ser considerada parte legítima na medida em que é considerado como tendo legitimidade passiva quem no título executivo figura como devedor.
Quanto à segunda alegou, concretamente e em síntese, que foi outorgada escritura pública de cessão da meação do executado BB, com a executada EMP02..., Ldª, que adquiriu aquela de boa fé, mediante o pagamento da quantia que indica, na convicção de estar a adquirir o imóvel em causa nos autos, para fazer parte do seu património, tendo-o registado a seu favor; desde a data daquela decorreram mais de 11 anos; a executada mantêm-se desde essa data na posse do referido prédio, interruptamente, de forma pública, pacífica e de boa fé, havendo, inclusive o registo de uma penhora, cujos sujeitos activos e processo indica, o que reforça a ideia de que a executada tem vindo a agir como proprietária do imóvel, criando, inclusive, essa ideia, junto de terceiros, nomeadamente no próprio tribunal; deve assim considerar-se que a executada, tendo já decorrido mais de dez anos desde a data da aquisição de boa fé e registo do referido imóvel e encontrando-se na posse do mesmo desde essa data, adquiriu o mesmo por usucapião; não pode a exequente alegar desconhecimento do negócio em causa, na medida em que, não obstante a referida escritura tenha sido outorgada em 2011, foi dado conhecimento da mesma à exequente, pelo executado BB, através do processo 1165/14.....

A exequente/embargada contestou:
- relativamente à ilegitimidade, invocando o disposto no art.º 263º do CPC, que o inventário não está sujeito a registo e, nessa medida, independentemente da habilitação da executada, a sentença de partilha é vinculativa para a mesma, produzindo os efeitos de caso julgado e o disposto no art.º 55º do CPC, concluindo pela legitimidade da embargante;
- relativamente à usucapião, defendendo que, estando em causa a execução de uma sentença, a oposição à execução apenas pode ter os fundamentos taxativamente previstos no art.º 729º do CPC; o invocado pela embargante não se enquadra nos fundamentos previstos nas alíneas a) a h); não cabe na alínea g) porque a factualidade alegada pela embargante não é posterior ao encerramento da discussão no processo de inventário, nem tão pouco está provada por documento, concluindo que não é legalmente admissível a invocação daquela; a embargante tinha consciência de que estava a adquirir a meação do património comum do executado BB e não qualquer imóvel em concreto; a mesma tinha consciência de que o executado BB estava no uso do imóvel por ser o cabeça de casal; caso a embargante entendesse que havia adquirido o imóvel objecto de execução, não teria deduzido habilitação, mas reagido contra a ofensa da sua propriedade; a posse não é titulada; o direito à meação não se confunde com os bens que em concreto compõem o património comum do casal; o domínio e posse sobre esses bens só se efetiva após a partilha, uma vez que, até aí, tais bens constituem um património autónomo, não tendo os cônjuges ou eventuais cessionários, mais do que o direito a uma quota ideal desse património, só pela partilha se concretizando a quota parte ou a meação de cada interessado, pelo que a escritura de cessão não constitui modo legítimo de transmitir e adquirir o direito de propriedade de um qualquer imóvel, nem o registo dessa escritura constitui qualquer registo de posse sobre um qualquer imóvel; ainda que existisse a posse da embargada, a mesma não é titulada nem registada, sendo o prazo para usucapião de 15 anos, ainda não decorridos.

E invocou a litigância de má-fé da embargante.

Considerando que seria possível conhecer imediatamente da oposição à execução, foi ordenada a notificação da embargante para querendo se pronunciar sobre as questões suscitadas na contestação, incluindo a litigância de má fé.

Pronunciou-se a embargante dizendo, em síntese e no que releva à economia do recurso, que em momento algum foi chamada a intervir no processo declarativo que deu origem ao titulo executivo, pelo que a génese da restrição criada com os fundamentos previstos no art.º 729º não se encontra preenchida, na medida em que a embargante em momento algum se pôde defender até à citação para a acção executiva, considerando ainda aplicável, no caso, o disposto na alínea d) do art.º 729º do CPC – falta de intervenção do réu no processo declarativo; foi suscitada pela embargante a inexistência ou inexequibilidade do título, na medida em que a embargante não figura no mesmo.

Foi proferida decisão cujo decisório tem o seguinte teor:
“Pelo exposto, julga-se totalmente improcedentes os embargos de executado e, assim, determina-se o prosseguimento da execução.
Não há sinais de litigância de má fé.
Custas pela embargante.”

A embargante interpôs recurso, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. A Recorrente nos autos à margem melhor identificada, notificada da Douta Sentença, não se conforma com a mesma;
II. Entendeu o Douto Tribunal que através da escritura pública de cessão de meação, celebrada no dia 30.08.2011, a embargante declarou adquirir ao executado a meação que lhe pertence no património do casal dele outorgante e de AA, dissolvido por divórcio, e que corresponde a metade indivisa dos bens constantes da relação apresentada no processo de divórcio.
III. E que, considerando que a embargante declarou adquirir direito litigioso na pendência do processo de inventário e não cuidou (de forma legalmente admissível) em se habilitar na mesma, a sentença produz efeitos em relação a si enquanto adquirente, ainda que não tenha tido intervenção no processo de inventário (cfr. art.263º, nº3 do CPCivil).
IV. Pelo que, atento o disposto no art.55º do CPCivil e uma vez que a sentença homologatória da partilha vincula a embargante, enquanto terceiro, e opera caso julgado quanto à mesma, do que se conclui que aquela embargante é parte legítima na execução em apenso.
V. Julgando improcedente a invocada exceção dilatória de ilegitimidade da embargante “EMP02..., Lda”.”
VI. Entende a Recorrente, com o devido respeito, que, correspondendo o título executivo nos presentes autos, a uma decisão judicial condenatória no âmbito do processo de inventário instaurado por divórcio da exequente AA e do Executado BB, em momento algum foi a embargante parte no mesmo.
VII. Não tendo Tribunal a quo em atenção que o executado BB chegou a requerer habilitação de cessionário, através de requerimento junto ao Processo 1665/14...., dando conhecimento da realização de escritura de meação outorgada em 30.08.2011, no cartório do Notário CC, em Guimarães, junta aos autos.
VIII. Requerendo, inclusive, que o requerimento em causa fosse autuado por apenso ao referido inventário, notificando a embargada para contestar, querendo.
IX. Ora, não obstante o referido requerimento, em momento algum foi a aqui recorrente considerada parte no referido inventário, nem teve qualquer oportunidade de se pronunciar relativamente ao mesmo.
X. Pelo que, entende a aqui recorrente, que não deveria ser considerada parte legítima na presente ação executiva, porquanto não interveio no processo declarativo e não figura em lado algum, muito menos no título executivo, como devedora.
XI. E ainda, decidiu o Tribunal que, “fundando-se a execução em sentença, dispõe o art. 729º do CPCivil que a oposição só pode ter algum dos fundamentos que vêm concretamente especificados nas várias alíneas. Estes fundamentos repartem-se em três categorias: a) Falta de pressupostos processuais gerais: aplicam-se a qualquer ação judicial, quer executiva, quer declarativa. São, por exemplo, o patrocínio judiciário, a capacidade judiciária, a legitimidade. Resumem-se, neste artigo, à alínea c). b) Falta de pressupostos processuais específicos: dizem respeito apenas à ação executiva. São, basicamente, todas as alíneas que não sejam referentes aos outros pressupostos. C) Inexistência da obrigação exequenda. Resumem-se, neste artigo, às alíneas g) e h).
XII. Referindo ainda que, “para o caso que nos interessa, preceitua-se na al. g), do art. 729º do CPCivil, como fundamento da oposição à execução de sentença, qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento. In casu, estamos perante uma execução para entrega de coisa certa cujo título executivo é a sentença homologatória da partilha proferida em 30.09.2019.
XIII. Ora, a factualidade alegada pela embargante reporta-se a 30.08.2011 (...) ou seja, não é posterior ao encerramento da discussão no processo de inventário, nem se mostra provada por documento pelo que não se verifica qualquer dos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença consagrados no art. 729º do CPCivil. “
XIV. Mais uma vez, não concorda a Recorrente com tal posição.
XV. Ora, não obstante os factos que a aqui Recorrente efetivamente invoca na sua oposição à execução mediante embargos digam respeito a factos que não sejam posteriores ao encerramento da discussão no processo de inventário e, como tal, entenda o Tribunal a quo que só possam ser enquadrados na alínea g) no artigo 729º, mas que, sendo posteriores ao encerramento da discussão, não possam ser admitidos, a verdade é que, na esteira do que já foi supra referido, a Recorrente não teve qualquer intervenção no processo de inventário em causa.
XVI. E no seguimento do entendimento do Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-07-2020 Processo nº 1039/19.8T8VNF-A.G1, entende a Recorrente que o objetivo principal do legislador quando criou a referida norma foi impedir a repetição da apreciação de questões que foram invocadas em sede declarativa, estabelecendo quais os fundamentos da oposição à execução com base em sentença admissíveis.
XVII. Neste caso em concreto, a Recorrente “EMP02..., Lda” nunca foi parte ou
habilitada, conforme já referimos, no processo declarativo que deu origem ao título executivo em que se baseia a presente execução.
XVIII. Pelo exposto, deverá a exceção dilatória de ilegitimidade da Recorrente “EMP02..., Lda” ser julgada procedente.
XIX. E, caso assim não se entenda, ser admissível como fundamento da oposição à execução baseada em sentença os factos originadores de usucapião, sendo reconhecido o direito de propriedade da Recorrente sobre o prédio em causa nos presentes autos.

A embargada contra alegou pugnando pela improcedência do recurso.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida.

A questão que cumpre apreciar é a de saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue a embargante parte ilegítima ou, caso assim não se entenda, ser substituída por outra que considere ser admissível como fundamento da oposição à execução a invocação da usucapião.

3. Fundamentação de facto

3.1. A decisão recorrida considerou provada a seguinte factualidade, que não é objecto de impugnação:

1. A exequente dá à execução sentença homologatória da partilha proferida em 30.09.2019, transitada em julgado, pela qual foi homologado o mapa de partilha constante de fls. 865 e foi adjudicado aos interessados os respetivos quinhões;
2. A referida sentença foi confirmada por Acórdão da Relação de Guimarães de 18.02.2021;
3. Nos autos de inventário que correram termos sob o n.º 1665/14.... foram juntas relações de bens em 27.09.2010 e 17.02.2011, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
4. Por escritura pública de Cessão de Meação, celebrada no dia 30.08.2011, o aqui executado, por si e na qualidade de sócio gerente da EMP02..., Lda, declarou vender à EMP02..., Lda, pelo preço de € 250.000,00 que afirma já ter recebido, a meação que lhe pertence no património comum do casal dele outorgante e de AA, dissolvido por divórcio, e que corresponde a metade indivisa dos bens constantes da relação apresentada no processo de divórcio, sendo que do referido preço corresponde € 35.050,00 a bens imóveis e € 214.950,00 a bens móveis, direitos e participações sociais;
5. A EMP02..., Lda veio requerer a habilitação de cessionário através dos Apensos G e J;
6. No Apenso G foi proferida, em 18.04.2017, sentença transitada em julgado que, nos termos do citado art. 48º, nº 2 do CPCivil, declarou sem efeito tudo que nestes autos foi praticado pela ilustre representante forense do Cabeça de Casal BB, em nome do Cabeça de Casal/Requerente, tendo os Requeridos sido absolvidos da instância;
7. No Apenso J foi proferida, em 16.01.2023, sentença transitada em julgado que julgou improcedente a habilitação da EMP02..., Lda como cessionária.

3.2. Considera-se ainda provado que:

8. A sentença referida no ponto 7 julgou improcedente a habilitação de cessionário deduzida no apenso J por a requerente ter indicado que a mesma devia ser autuada por apenso ao apenso E – processo de inventário e o tribunal ter considerado:
“In casu, conforme resulta dos factos dados como provados, a instância do processo de inventário do apenso E mostra-se extinta há muito pelo que falha, desde logo, um dos pressupostos indispensáveis ao deferimento da pretensão apresentada e, bem assim, à pretendida substituição processual, o que implica a improcedência do incidente.”

4. Fundamentação de direito
4.1. Os embargos de executado

Os embargos de executado são uma das formas de oposição à execução, pela qual se visa a extinção, total ou parcial, da mesma, mediante o reconhecimento da actual inexistência (total ou parcial) do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, especifico ou geral da acção executiva (com a concomitante declaração da sua inadmissibilidade) – Lebre de Freitas, in A Acção Executiva, 7ª Edição, pág. 195.

Os embargos de executado têm vista obstar à produção dos efeitos do título executivo e ou da acção em que ele se baseia.

Quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título executivo, cujo escopo é obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação, por via indirecta, da eficácia do título executivo enquanto tal – Lebre de Freitas, ob. cit. pág. 215.

Quando tem um fundamento processual, o seu objecto é, já não uma pretensão de acertamento negativo do direito exequendo, mas uma pretensão de acertamento, também negativo, da falta dum pressuposto processual, que pode ser o próprio título executivo, igualmente obstando ao prosseguimento da acção executiva, mediante o reconhecimento da sua inadmissibilidade – autor e ob. cit. pág. 215-216.

4.2. Do título executivo e dos fundamentos por que, em função do título, podem ser deduzidos embargos de executado

A acção executiva tem por finalidade a realização coactiva duma prestação, mas pressupõe a prévia definição dos elementos subjectivos e objectivos da mesma.

Para que possa ter lugar a realização coactiva duma prestação devida, o dever de prestar deve constar de um título executivo.

O título executivo é o «documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servir de base ao processo executivo» (Manuel de Andrade, Noções Elementares do Código de Processo Civil, pág. 58).

Trata-se dum pressuposto de caráter formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva.

O titulo executivo é o documento que, integrando o elenco do art.º 703º do CPC, representa um facto jurídico constitutivo de um direito e, por isso, permite a realização coactiva de uma prestação, através de uma acção executiva.

É pelo título executivo que se determinam o fim e os limites da acção executiva, isto é, o tipo de acção e o seu objecto (cfr. art.º 10º n.º 5 do CPC), sendo que o fim da execução, para o efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo (art.º 10º n.º 6 do CPC).

Além disso, os fundamentos por que podem ser deduzidos embargos de executado variam em função do titulo executivo que serve de base à execução.

Só são títulos executivos os elencados no n.º 1 do art.º 703º do CPC, como aliás resulta do corpo do normativo: “À execução apenas podem servir de base: (…)”

Uma das espécies de titulo executivo, é a sentença condenatória – alínea a) do n.º 1 do art.º 703º do CPC.

No âmbito das sentenças condenatórias e como é unanimemente considerado, cabe a sentença homologatória da partilha - neste sentido Lebre de Freitas, in A Acção Executiva, 7ª edição, pág. 62, Rui Pinto in A Acção Executiva, 2018, pág. 152 e 985 e Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Executivo, 5ª edição, pág. 72 e na jurisprudência e, a título meramente exemplificativo, o Ac. desta RG de 28/02/2019, processo 28/18.4T8MNC-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg.
Vejamos em concreto

Nos autos de inventário que correram termos sob o n.º 1665/14.... foram juntas relações de bens em 27.09.2010 e 17.02.2011, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (ponto 3 dos factos provados).

Compulsado o processo electrónico verifica-se que na Relação de bens apresentada a 27/09/2010 foi relacionado, sob a verba n.º 1 do activo, o Prédio rústico denominado “Campo ...”, sito no lugar ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... ...19 e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ...24.

E verifica-se também que no Mapa de Partilha de 27/09/2019 consta que o quinhão da interessada AA foi preenchido com o referido imóvel.

A 30.09.2019 foi proferida sentença que homologou o referido Mapa de partilha  e adjudicou aos interessados os respetivos quinhões (ponto 1 dos factos provados).

O interessado BB interpôs recurso da referida sentença, a qual foi confirmada por Acórdão da Relação de Guimarães de 18.02.2021. (ponto 2 dos factos provados).

E foi com base naquela sentença, confirmada pelo referido Acórdão, que foi intentada a acção executiva de que os presentes são apenso.

Importa ter em consideração que estamos perante uma execução para entrega de coisa certa, pelo que há que atender às respectivas normas e, nomeadamente, ao n.º 1 do art.º 860º, o qual dispõe que o “executado pode deduzir oposição à execução pelos motivos especificados nos artigos 729º a 731º, na parte aplicável e com fundamento em benfeitorias a que tenha direito.”

Ao dispor que o “executado pode deduzir oposição à execução pelos motivos especificados nos artigos 729º a 731º, na parte aplicável”, quer significar que os fundamentos invocáveis determinam-se em função do título executivo com base no qual é intentada a execução (neste sentido Marco Carvalho Gonçalves, in ob. cit. supra pág. 583).

Sendo o título executivo a sentença homologatória da partilha, os fundamentos porque podem ser deduzidos embargos de executado são, única e exclusivamente, os que constam do art.º 729º do CPC, que tem o seguinte teor:

Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:
a) Inexistência ou inexequibilidade do título;
b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;
c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
d) Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.º;
e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;
f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;
g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;
h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;
i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.

4.3. Da ilegitimidade da executada

Dispõe a alínea c) do art.º 729:
“Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:
(…)
c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
(…)”

Um dos pressupostos gerais da acção executiva é a legitimidade, que se afere, em regra, colocando em confronto as partes daquela e o título executivo, pois o art.º 53º n.º 1 do CPC dispõe que a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.

E neste sentido acompanha-se o Ac. desta RG de 28/01/2016, processo 54/14.2TBPCR-B.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, citado pela recorrente, em cujo sumário consta: 1) Na ação executiva a questão da legitimidade resolve-se no confronto entre as partes e o título executivo: têm legitimidade como exequente e executado, respetivamente, quem no título figura como credor e como devedor;

Porém, se essa é a regra, a mesma comporta excepções, ou seja, há situações em que a legitimidade não se afere pura e simplesmente em função do título executivo.

Como refere Marco Carvalho Gonçalves, in ob. cit., pág. 223 o “principio da legitimidade formal comporta, (…), diversas excepções” na medida em que “em obediência ao principio da economia processual, o legislador optou, em determinados casos, por derrogar o principio da legitimidade formal, isto é, permitir que a ação executiva seja intentada por alguém e/ou contra alguém que não figure no título executivo (ultra titulum), evitando desse modo a necessidade de formação de um novo título executivo e subsequente sobrecarga dos tribunais (…).”

Uma dessas situações é a exequibilidade da sentença contra terceiros, inscrita no art.º 55º do CPC, o qual dispõe:
A execução fundada em sentença condenatória pode ser promovida não só contra o devedor, mas ainda contra as pessoas em relação às quais a sentença tenha força de caso julgado.

A propósito deste preceito refere Rui Pinto, A Acção Executiva, 2018, pág. 283:
“No plano material, esses terceiros tanto podem ser credores, como devedores que adquiriam o crédito ou coisa litigiosa, mas que não chegaram a adquirir a correlativa qualidade de parte processual na causa em que foi produzida a sentença.
Efetivamente, apenas está aqui abrangida a situação em que a sentença produz efeitos contra o adquirente, não habilitado, de direito ou coisa litigiosa (cf. artigo 263º, n.º 3).”

E Miguel Teixeira de Sousa, in CPC Online, pág. 65, Blog do IPPC, refere:
“A garantia do contraditório determina que são excepcionais as situações nas quais o caso julgado é vinculativo para terceiros. Para efeitos de aplicação do preceito, terceiros são aqueles que, apesar de terem legitimidade para ser parte na acção, nesta não chegaram a intervir.
2 (a) Uma das hipóteses nas quais um terceiro fica vinculado ao caso julgado é a que se encontra regulada no art. 263º, n.º 3. Tendo havido uma transmissão ou cessão do direito litigioso durante a pendência da acção, o transmitente ou cedente assume a posição de substituto processual do adquirente ou cessionário (art. 263.º, n.º 1). Ainda que não chegue a intervir na acção (art. 263.º, n.º 1 e 2), o adquirente ou cessionário fica vinculado ao caso julgado que se constitua nessa acção (art. 263.º, n. 3).”

Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC anotado, I, pág. 92 referem:
“Em regra, a sentença condenatória apenas produz efeitos na esfera jurídica  do demandado (art.º 619º, n.º 1). Mas tal regra comporta excepções (…). Razões atinentes à eficácia da actividade judicial justificam que o caso julgado também seja oposto a terceiros nas situações previstas no art.º 263º, n.º 3 (adquirente de coisa ou direito litigioso)….
(…) considera-se vinculado aquele que, na pendência da ação, adquiriu do demandado a coisa ou o direito litigioso sem promover a respetiva habilitação (art.º 263º, n.º 3. Com uma particularidade: tratando-se de ação sujeita a registo, é pressuposto da extensão subjetiva do caso julgado que o registo da ação na qual foi proferida a sentença tenha prioridade sobre o registo da transmissão operada, constituindo este um dos efeitos da protecção concedida aos terceiros para efeitos de registo.”

E Marco Carvalho Gonçalves, in Lições de Processo Executivo, 5ª edição pág. 233-234 refere:
“(…) ainda que um terceiro não tenha sido condenado, a ação executiva poderá ser promovida contra ele desde que se encontre abrangido pelo efeito do caso julgado da sentença condenatória. É o que sucede, por exemplo, com o transmissário ou com o cessionário do direito litigioso, nos casos em que este não tenha chegado a intervir na causa, já que essa intervenção é meramente facultativa - salvo se a ação estiver sujeita a registo e o adquirente da coisa ou direito litigioso registar a transmissão antes do registo da ação ( art.º 263º, n.º 3)…”

Em sentido diverso, Lebre de Freitas, in A Acção Executiva, 7ª edição, pág.  145 considera:
“Tendo sido transmitida a situação litigiosa do réu, a legitimidade estaria sempre assegurada pelo art. 55 (…), mas a equiparação das duas situações (sucessão no crédito; sucessão no débito) leva a abrange-las na norma do art. 54-1, que prevalece no concurso aparente dos dois preceitos.”

E, mais adiante, pág. 152:
“Esta extensão da eficácia subjetiva passiva do título executivo, de caráter, também ela, excecional, não abrange, por já ser abrangida pela norma do art 54-1, o caso de transmissão da situação jurídica do réu, por ato entre vivos, sem subsequente intervenção do adquirente no processo, em que há caso julgado perante o adquirente, desde que a transmissão seja posterior à propositura da ação ou, estando sujeita a registo, seja registada depois do registo da ação ( art. 263-3).”

O art.º 54º do CPC dispõe:
1 - Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão.

E o art.º 263º do CPC dispõe:
1 - No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.
(…)
3 - A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação.

Ressalvado o devido respeito por opinião contrária, entende-se que a situação prevista no n.º 3 do art.º 263º do CPC - extensão da eficácia da sentença transitada em julgado, ao adquirente da coisa ou direito litigioso que não chegou a intervir no processo em que a mesma foi proferida, por não ter deduzido a respectiva habilitação, ou tendo-a deduzido, a mesma, não tenha tido seguimento ou tenha sido julgado improcedente (por outro motivo que não o não reconhecimento da transmissão do crédito, pois, como é lógico, neste caso a questão não se pode colocar) - é abrangida pelo art.º 55º do CPC, pois o mesmo prevê que a execução fundada em sentença condenatória pode ser promovida não só contra o devedor, mas ainda contra as pessoas em relação às quais a sentença tenha força de caso julgado e não pelo art.º 54º, pois este abrange uma situação de pura e simples sucessão inter vivos ou mortis causa, sem qualquer interferência do facto de a coisa ou direito ser objecto de um processo judicial e da prolação de uma sentença.

Feito este enquadramento, vejamos no caso concreto.

Como já ficou referido a execução de que os presentes são apenso, foi intentada com base na sentença homologatória do Mapa de Partilha de 27/09/2019 e que adjudicou aos interessados os respetivos quinhões, proferida a 30.09.2019, sentença essa confirmada pelo Acórdão de 18.02.2021, sendo que os interessados que intervieram no processo de inventário foram, única e exclusivamente, a embargada AA e BB (cfr. pontos 1 e 2 dos factos provados).

Dir-se-ia, assim, face ao que consta do título executivo, que a acção executiva de entrega do Prédio rústico denominado “Campo ...”, sito no lugar ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... ...19 e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ...24, não poderia ser intentada contra a embargante EMP02..., Ldª.

Sucede que por escritura pública outorgada a 30.08.2011, o aqui executado BB, por si e na qualidade de sócio gerente da EMP02..., Lda, declarou vender à EMP02..., Lda, pelo preço de € 250.000,00, “a meação que lhe pertence no património comum do casal dele outorgante e de AA, dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida pelo Tribunal de Família e Menores ... - ... Secção, transitada em julgado no dia vinte e seis de junho de dois mil e quatro” a qual “corresponde a metade indivisa dos bens constantes da relação apresentada no processo de divórcio”.

Como já referido, dispõe o n.º 1 do art.º 263º do CPC que no caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso – na situação dos autos, o direito à meação no património comum do extinto casal constituído pelos interessados AA e BB -, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.

Resulta da factualidade provada (ponto 5 dos factos provados) que a EMP02..., Lda requereu a habilitação de cessionário através dos Apensos G e J

No Apenso G a 18.04.2017 foi proferida sentença, transitada, em julgado que, nos termos do citado art. 48º, nº 2 do CPCivil, declarou sem efeito tudo que nestes autos foi praticado pela ilustre representante forense do Cabeça de Casal BB, em nome do Cabeça de Casal/Requerente, tendo os Requeridos sido absolvidos da instância (ponto 6 dos factos provados).
Neste contexto, é irrelevante, o invocado nas conclusões recursivas VII e VIII, pois o que é facto é que a deduzida habilitação não produziu o resultado pretendido.

E no Apenso J a 16.01.2023 foi proferida sentença transitada em julgado que julgou improcedente a habilitação da EMP02..., Lda como cessionária, porque, tendo a requerente indicado que a mesma devia ser autuada por apenso ao apenso E – processo de inventário -  tribunal considerou:
“In casu, conforme resulta dos factos dados como provados, a instância do processo de inventário do apenso E mostra-se extinta há muito pelo que falha, desde logo, um dos pressupostos indispensáveis ao deferimento da pretensão apresentada e, bem assim, à pretendida substituição processual, o que implica a improcedência do incidente.”

Resulta do exposto que a EMP02..., Ldª nunca foi habilitada no processo de inventário, ou seja, nunca substituiu o interessado BB em tal processo e, assim, nunca teve intervenção no processo, o que só a si é imputável, pois não foi invocado, nem se vislumbra, qualquer obstáculo a que a mesma tivesse, em tempo e de forma adequada, deduzido a sua habilitação.

E esse facto não obsta a que a referida sentença homologatória produza efeitos em relação à EMP02..., Ldª e nomeada e concretamente, permita à interessada AA intentar acção executiva contra ela, porque:
- nos termos do art.º 55º do CPC, a execução fundada em sentença condenatória, categoria em que se integra a sentença homologatória da partilha,  como referido supra, pode ser promovida não só contra o devedor, mas ainda contra as pessoas em relação às quais a sentença tenha força de caso julgado;
- nos termos do n.º 3 do art.º 263º do CPC, mesmo não tendo tido intervenção no processo de inventário (como a mesma afirma e é um facto), aquela sentença produz efeitos, ou seja, faz caso julgado, em relação à EMP02..., Ldª.
De referir que não tem aqui aplicação a excepção constante da parte final do n.º 3 do art.º 263º, porque o processo de inventário, tenha ele a finalidade que tenha (cfr. art.º 1082º do CPC), não está sujeito a registo, já que não existe qualquer previsão legal nesse sentido.
Neste sentido e ainda que relativamente a um inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha dos bens, mas que se aplica mutatis mutandis ao inventário destinado a partilhar bens comuns do casal, porque não há qualquer diferença de fundo que justifique um diverso entendimento, vd. o Ac. da RL de 15/09/2020, processo 17548/19.7T8LSB.L1-7, consultável in www.dgsi.pt/jtrl, em cujo ponto I do sumário, que retrata o decidido, consta: “Não existe previsão legal que legitime a sujeição à inscrição no registo predial da acção judicial de inventário, ainda que com o objectivo, de cariz prático, de acautelar a não produção dos efeitos translativos quanto aos bens legados pelo de cujus e sujeitos à provável redução por inoficiosidade dos respectivos actos de disposição mortis causa.”

Em face do exposto, a EMP02..., Ldª tem legitimidade para ser executada, improcedendo este fundamento dos embargos.

4.4. Da usucapião

A sentença recorrida analisou este fundamento dos embargos à luz da alínea g) do art.º 729º do CPC, onde se dispõe:
Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:
(…)
g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;
(…)”

A recorrente entende que, muito embora os factos que invoca (consubstanciadores da usucapião) não sejam posteriores ao encerramento da discussão no processo de inventário, não tendo sido parte, nem tido intervenção no processo de inventário, não os pôde invocar no mesmo, pelo que deve ser admitida a invocá-los agora.

A lei, ao prever como fundamento de embargos de executado, qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento, excluindo desta última exigência a prescrição, que pode ser provada por qualquer meio, tem em vista situações de “inexistência actual da obrigação exequenda” (Lebre de Freitas, in Acção Executiva, pág. 197).

Vejamos

A usucapião não é susceptível de constituir um facto modificativo da obrigação, ou seja, não altera, nem quantitativa, nem qualitativamente, a obrigação.

Por outro lado, os factos extintivos das obrigações são o cumprimento, a dação em cumprimento, a consignação em depósito, a compensação legal, a novação, a remissão, a confusão, a prescrição extintiva (realidade diversa da prescrição aquisitiva e que corresponde à usucapião) (cfr. Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 26 a 75).

Consigna o art.º 1287º do CC que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.

A usucapião é um modo de aquisição originária de direitos reais (no que respeita ao direito de propriedade, vide o art.º 1 316º do CC), pela transformação em jurídica duma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa.

Baseia-se na posse, numa posse em nome próprio, de uma intenção de domínio, e uma intenção que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade (Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, Revista de Legislação e Jurisprudência, 122, p. 67).

Requisitos da usucapião são a posse / mantida por certo lapso de tempo, determinado na lei.

Para que a mesma seja eficaz, carece de ser invocada (art.º 303º, aplicável ex vi art.º 1292º, ambos do CC).

A detenção ou posse precária (cfr. art.º 1253º do CC) não permite a aquisição por usucapião, a menos que haja inversão do título.

Assim dispõe o art.º 1290º do CC que os detentores ou possuidores precários não podem adquirir, por si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, III, pág. 8-9, “ a figura do detentor ou possuidor precário corresponde à situação daquele que, tendo embora o corpus da posse, a detenção da coisa, não exerce o poder de facto com o animus de exercer o real correspondente (com animus possidendi).”.

Dispõe o art.º 1263º, alínea d) do CC que a posse se adquire por inversão do título da posse.

E o art.º 1265º dispõe que a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.

A usucapião, no momento em que produz o seu efeito aquisitivo consubstancia uma forma de extinção objectiva do direito de propriedade do anterior proprietário, em virtude da (total) incompatibilidade do mesmo, com o direito de propriedade que surge, ex novo, no que vem a usucapir (no sentido de que a usucapião extingue o anterior direito de propriedade, cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, pág. 394-395).

E extinguindo-se o direito anterior, extinguem-se as faculdades subjacentes ao mesmo, como seja o direito de exigir a entrega da coisa.

Neste contexto, numa situação em que alguém, que não é proprietário de uma coisa e está constituído, nomeadamente por sentença judicial transitada em julgado,  na obrigação de a entregar, sendo, portanto, mero detentor da mesma, inverta, entretanto, o título da posse e, por total inércia do proprietário, mantenha essa posse pelo lapso de tempo determinado na lei, em função das características daquela, pode, caso lhe seja exigida a entrega da coisa com fundamento naquela sentença, opor tal aquisição originária ao anterior proprietário, com a consequente extinção do direito de propriedade do mesmo e, assim, a extinção daquela obrigação.

Mas, como resulta do disposto na alínea g) do art.º 729º, tal aquisição originária há-de fundar-se totalmente em factos posteriores ao encerramento da discussão em primeira instância.

No processo declarativo comum, o encerramento da discussão, de facto e de direito, é o momento em que terminam as alegações orais (art.º 604, n.º 2, alínea e) do CPC) (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 693).

O processo de inventário em que foi proferida a sentença homologatória regia-se pelos artigos 1326º a 1406º do CPC, aprovado pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, já que, muito embora não conste do processo electrónico do processo de inventário o requerimento inicial do mesmo, consta que tal requerimento foi autuado a 03/02/2009, data em que vigoravam tais normativos.
É certo que a Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho revogou os artigos 1326º a 1405º do CPC e colocou o regime do processo de inventário fora do Código de Processo Civil.
Porém, o art.º 84.º da citada Lei dispunha que a mesma não era aplicável aos processos de inventário que, à data da sua entrada em vigor, se encontrassem pendentes.
E o mesmo sucedeu com a Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, pois nos termos do art.º 7.º, o disposto em tal Lei não se aplicava aos processos de inventário que, à data da sua entrada em vigor, se encontrassem pendentes.
E, finalmente, muito embora a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, tenha alterado de novo o regime do inventário, reintroduzindo-o no CPC, nos termos do n.º 1 do seu art.º 11º, o disposto na referida lei aplica-se apenas aos processos iniciados a partir da data da sua entrada em vigor, bem como aos processos que, nessa data, estivessem pendentes nos cartórios notariais mas fossem remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º

Destarte, aos referidos autos de inventário era aplicável o regime do inventário constante do CPC alterado pelo DL 329-A/95.

No citado regime, apresentada a relação de bens, os interessados eram notificados de que podiam reclamar contra ela no prazo de 10 dias.
E um dos fundamentos possíveis da reclamação era a exclusão de bens, indevidamente relacionados, por não fazerem parte do acervo a dividir.

No entanto o n.º 6 do art.º 1348º dispunha que as reclamações contra a relação de bens podiam ainda ser apresentadas posteriormente, mas o reclamante era condenado em multa, excepto se demonstrasse que a não pôde oferecer no momento próprio, por facto que não lhe era imputável.

A lei dispunha que as reclamações contra a relação de bens podiam ainda ser apresentadas posteriormente, mas não continha qualquer delimitação temporal.

Entendia-se, no entanto, que, no limite, podiam ser apresentadas até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha (cfr. Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 16ª edição, 2001, pág. 1407, a recensão de jurisprudência que ali consta e concretamente o Ac. da RE de 07/07/1999, Colectânea de Jurisprudência, 1999, 5ª, 257).

Destarte, no regime do processo de inventário constante do CPC, na sequência das alterações introduzidas pelo DL 329-A/95, o encerramento da discussão quanto à definição objectiva do acervo patrimonial activo a partilhar ocorria com o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.

Deste modo, numa execução para entrega de coisa certa, intentada com base numa sentença homologatória da partilha, para efeitos do disposto na alínea g) do art.º 729º, os factos extintivos relevantes são apenas e tão só os que ocorreram depois do trânsito em julgado daquela sentença.

No caso dos autos, a sentença homologatória da partilha foi proferida a 30.09.2019.
Da mesma foi interposto recurso para esta RG, que a 18/02/2021 proferiu Acórdão que a confirmou.
Do mesmo não era admissível recurso de revista.
Mas podia a parte requerer a retificação do Acórdão, nos termos do disposto no art.º 614º, arguir nulidades nos termos do disposto no art.º 615º ou requerer a reforma, nos termos do disposto no art.º 616º, todos aplicáveis ex vi art.º 666º n.º 1 e no prazo geral de 10 dias a contar da notificação do mesmo – art.º 149º, n.º 1 do CPC.
Tendo o Acórdão sido notificado às partes a 18/03/2021 e tendo em consideração o disposto no n.º 1 do art.º 248º do CPC, as partes consideram-se notificadas a 22 de Março e o prazo para requerer a retificação do Acórdão, arguir nulidades do mesmo ou requerer a sua reforma terminou a 12 de Abril, o que, não tendo sucedido, determinou o trânsito em julgado daquela sentença.

Ora, a factualidade relevante invocada pela embargante, consubstanciadora da alegada usucapião, situa-se em momento temporal anterior a tal momento.

É totalmente irrelevante o facto de a embargante não ter sido parte, nem ter tido intervenção no processo de inventário porque, como já acima ficou dito, se tal não sucedeu, só a si é imputável, pois não foi invocado, nem se vislumbra, qualquer obstáculo a que a mesma tivesse, em tempo e de forma adequada, deduzido a sua habilitação.

E como tal, em nada sustenta a tese da recorrente, o Ac. desta RG de 09/07/2020, processo 1039/19.8T8VNF-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg que a mesma cita e em cujo sumário consta:

I - A decisão judicial que conferiu força executiva à petição inicial apresentada em sede de ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias ao abrigo do art. 2º do Anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 01/09, constituiu uma sentença condenatória.
II - Há uma significativa diferença entre o requerimento de injunção com fórmula executória e uma decisão judicial a conferir força executiva à petição.
III - Na base desta distinção está o carácter não jurisdicional do procedimento de injunção, já no caso de decisão judicial que conferiu força executiva à petição, há um controlo jurisdicional que ocorre antes da formação do título executivo.
IV - Daí que, ao restringir os fundamentos da oposição quando a execução for fundada em decisão judicial que conferiu força executiva à petição, ao equipará-la a uma decisão condenatória, o legislador visou impedir a repetição da apreciação de questões que já foram ou deveriam ter sido invocadas em sede declarativa, salvaguardando-se ainda o respeito pela certeza e segurança jurídica em termos de evitar, até, a prolação de decisões judiciais contraditórias.

Finalmente, nenhuma da factualidade invocada pela embargante se prova por documento.

Destarte, a invocada usucapião, por não reunir os requisitos da alínea g) do art.º 729º do CPC, é patentemente improcedente.

Em face de tudo o exposto, a decisão recorrida deve ser mantida e, em consequência, o recurso deve ser julgado improcedente.

4.5. Custas

As custas da apelação devem ficar a cargo da recorrente por vencida – art.º 527º, n.º 1 do CPC.

5. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção da Relação de Guimarães em manter a decisão recorrida e, em consequência, julgar o recurso totalmente improcedente.

Custas pela embargante

Notifique-se
*
Guimarães, 01/02/2024
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator: José Carlos Pereira Duarte
1º Adjunto: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
2º Adjunto: Alexandra Maria Viana Parente Lopes