Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1012/15.5T8VRL-AW.G1
Relator: JOSÉ CRAVO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS EM INSOLVÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
REQUISITOS
CRÉDITO DO PROMITENTE-COMPRADOR
CONSUMIDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/16/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – À luz da interpretação restritiva do art. 755º/1, f) do CC que resultou do AUJ nº 4/2014, o direito de retenção pressupõe a verificação cumulativa de quatro requisitos: a existência de um crédito fundado num contrato-promessa; a tradição da coisa referida no contrato-promessa; o incumprimento definitivo imputável ao promitente-vendedor; e, a qualidade de consumidor do promitente-comprador.

II – A tradição exigida para que se constitua o direito de retenção nos termos do art. 755º/1, f) do CC reclama apenas a detenção material lícita da coisa, não se confundindo com a posse e podendo existir sem esta.

III – O crédito do promitente-comprador deverá corresponder ao sinal em dobro, conforme dispõe o art. 442º/ 2 do CC, e não em singelo, nem tão pouco ao valor que decorre da conjugação das normas do CIRE constantes nos seus arts. 102º/3, c), 106º/2 e 104º/5.

IV – Segundo o acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, de 20-03-2014, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador apenas goza do direito de retenção, previsto no art. 755º/1, f) do CC, caso detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor.

V - Tomando como referencial para tal efeito a noção de consumidor previsto no n.º 1 do art. 2º da Lei n.º 24/96, de 31-07, relevante é que o promitente-comprador destine o imóvel a uso particular, no sentido de não o comprar para revenda, nem o afetar a uma atividade profissional ou lucrativa.

VI – Sendo a promitente-compradora pessoa singular e destinando a fração por ela pretendida adquirir a sua habitação própria, deve a mesma ser considerada consumidora, nos termos e para os fins do disposto no art. 2º/1 da Lei n.º 24/96.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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1 RELATÓRIO

Por apenso aos autos (1) em que foi declarada a insolvência de M. R., Ldª, foi apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência a relação de créditos a que se refere o artigo 129º do CIRE.

A relação de créditos foi impugnada pelo credor Banco ... – Banco ..., S.A., actualmente substituído processualmente por X, SA e Banco ..., SA, na parte em que é reconhecido o crédito no montante de € 50.000,00 garantido com direito de retenção reclamado por A. M., referente à fracção autónoma designada pela letra “N”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de Vila Real, descrito na Conservatória do Registo Civil sob o nº ....

A. M. também apresentou impugnação à lista do art. 129º/1 do CIRE, defendendo que lhe deveria ter sido reconhecido o montante de € 100.000,00, por entender beneficiar de direito de retenção relativamente ao mesmo imóvel, tendo o Banco ... exercido a faculdade prevista no art. 131º/1 do CIRE, reafirmando a posição sustentada no articulado de oposição que oferecera.

Dispensada a realização de audiência preliminar, em 19-10-2018, foi proferido despacho saneador, prosseguindo os autos para apreciação da impugnação do crédito reconhecido a A. M..

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do pertinente formalismo legal.

No final, foi proferida decisão em 17-12-2018, nos seguintes termos:

Em face de todo o exposto, decide-se:

a) Julgar improcedente a impugnação suscitada pelo Banco ... – Banco ..., S.A. relativamente ao crédito reconhecido, sob o n.º 4, a A. M., na lista da ref. n.º 625549 (cfr. artigo 129.º, n.º 1, do C.I.R.E.);
b) Julgar procedente a impugnação aduzida por A. M. quanto ao crédito por si reclamado e parcialmente reconhecido, sob o n.º 4, na lista da ref. n.º 625549 (cfr. artigo 129.º, n.º 1, do C.I.R.E.);
e, consequentemente,
c) Decide-se reconhecer o crédito reclamado por A. M., no montante de € 100.000,00 (cem mil euros), o qual beneficia de direito de retenção, relativamente à fracção autónoma designada pela letra “N”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de Vila Real, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….º;
d) Condenar as credoras X, S.A. e Banco ..., S.A. nas custas do incidente de impugnação relativo ao crédito invocado por A. M., fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) U.C. – cfr. artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C. e 7.º, n.ºs 4 e 7, do R.C.P.
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Registe e notifique.
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Inconformada com essa sentença, apresentou a credora X, SA recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

A. Vem a aqui Recorrente interpor o presente recurso da sentença que reconhece o crédito reclamado pela credora A. M., pelo valor de € 100.0000,00 (cem mil euros), garantido por direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra “N”, por não se conformar com a mesma.
B. A matéria de facto assente e dada como provada na douta sentença em apreço e relevante para a boa decisão da causa é a seguinte:
1. Por sentença de 10/07/2015, transitada em julgado, foi decretada a insolvência de “M. R., Lda.”.
2. Consta dos autos um documento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, na qual intervieram M. R. (na qualidade de gerente da insolvente) e A. M., datado de 04/09/2010, no qual foi declarado que a insolvente prometia vender, livre de quaisquer ónus e encargos, àquela, que por sua vez prometia comprar, «(…) a fracção autónoma tipo T3, no .. Andar … com 3 frentes, com 1 lugar de garagem na cave do edifício, situado no prédio urbano a construir em regime de propriedade horizontal, no lote n.º .., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real sob o n.º ... (…)” ajustando-se como preço o montante de € 145.000,00 (englobando € 50.000,00 “a título de sinal e princípio de pagamento (…) que pelo presente lhe dá quitação” e o montante de € 95.000,00, a pagar no acto da outorga do contrato prometido), estipulando se que a marcação do negócio definitivo caberia à insolvente e convencionando-se ainda que “(…) na data da conclusão da obra, poderá a primeira outorgante entregar à segunda outorgante a chave da fracção ora prometida vender, desde que, essa última, apresente àquela, uma garantia bancária do pontual e integral cumprimento do presente contrato promessa, no valor correspondente ao preço em dívida”, bem como que “(…) no caso de incumprimento do presente contrato, por parte da Primeira Outorgante, assistirá à Segunda Outorgante a faculdade de exigir àquele o dobro da quantia paga a título de sinal”, e nos demais termos apostos no documento, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. Em 14/10/2015 o Sr. Administrador da Insolvência outorgou título de constituição de propriedade horizontal na Conservatória do Registo Predial de Terras de Bouro, relativamente ao prédio urbano sito na freguesia e concelho de Vila Real, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ...º, daí resultando a constituição das fracções autónomas A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O e P, nos termos apostos nesse acto (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
4. Em 15/09/2014 o prédio descrito sob o n.º ... foi penhorado no processo executivo n.º 414/14.9TBVRL, que correu termos no Juízo de Execução de Chaves.
5. As fracções autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... foram apreendidas para a massa insolvente sob as verbas n.ºs 36 a 51.
6. Foram inscritos no registo relativo às fracções autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... os seguintes factos, com relevo para a boa decisão da causa:
# aquisição do direito de propriedade a favor da insolvente - cfr. ap. n.º 1, de 09/12/1991.
# hipoteca para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, que existam ou venham a existir em nome da insolvente até ao limite de € 5.906.630,00, e emergentes de ou resultantes de operações de crédito que lhe tenham sido concedidas, ou venham a sê-lo pelo Banco ..., por contratos de empréstimo ou de abertura de crédito, por financiamentos por livranças, por descontos de papel comercial, por crédito por assinatura, por descoberto em conta de depósitos à ordem e por créditos documentários de importação. Taxa de juro anual de 4,135 %, acrescida de 4 % em caso de mora a título de cláusula penal e despesas € 184.000,00 – cfr. ap. n.º 3043, de 07/04/2009.
7. Em 08/09/2010 foi pago um cheque no montante de € 25.000,00, emitido a favor da insolvente, sacado por L. M., sobre a conta n.º ..., do Banco ..., S.A., datado de 07/09/2010, de que aquela é co-titular.
8. Em 08/09/2010 foi pago um cheque no montante de € 25.000,00, emitido a favor da insolvente, sacado por M. P., sobre a conta n.º 7412200, da Caixa ..., S.A., datado de 07/09/2010, de que aquela é co-titular.
9. L. M. e M. P. pagaram à insolvente os montantes apostos nos cheques indicados em 10 e 11 a pedido de A. M., tendo adiantado os quantitativos que esta esperava receber com a venda de um outro imóvel e que ulteriormente lhes entregou.
10. Em 06/10/2014 o Sr. Agente de Execução nomeado no processo n.º 414/14.9TBVRL procedeu ao arrombamento e mudança de fechaduras das portas de acesso aos edifícios implantados no prédio descrito sob o n.º ....
C. Não existe matéria de facto dada como não provada.
D. Ao contrário do entendimento do douto Tribunal a quo, não ficou provado o seguinte facto:
1. A fração destinava-se à sua habitação.
E. Em sede de audiência e discussão de julgamento e com o depoimento das várias testemunhas arroladas pela credora, ficou claro e tal como consta da douta sentença ora recorrida, que a mesma residia alegadamente na fração apenas aos fins-de-semana, não sendo esta a sua residência habitual e permanente.
F. Ou seja, a Credora apenas foi ocupar o dito imóvel, anos depois da celebração do contrato-promessa e mesmo depois de entregue as chaves do mesmo, que ocorreu em 7 de Abril de 2014 (4 anos depois da celebração do contrato-promessa).
G. Dir-se-á que andou mal o douto Tribunal ao considerar que a Credora habita o dito apartamento desde a entrega das chaves, ao mesmo tempo que afirma que a mesma apenas o utilizava aos fins-de-semana, não sendo esta a sua residência habitual e permanente.
H. Assim, padece o direito de retenção de três pressupostos, que são os seguintes:
1. A existência de um crédito emergente de promessa de transmissão ou constituição de um direito real, que pode não coincidir com o direito de propriedade;
2. A entrega ou tradição da coisa abrangida ou objecto da promessa;
3. O incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente, como fonte do crédito do retentor.
I. Por conseguinte, para existir traditio da coisa, tem que se confirmar a posse do bem a que respeita e, consequentemente, a coisa objeto do contrato-promessa tem que se encontrar apta a desempenhar a função a que se destina, no caso sub judice, à habitação (vide neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-12-2013, consultável em http://www.dgsi.pt).
J. No caso em apreço, ficou provado que a fração objeto do contrato-promessa, não foi logo habitada pela Credora que a utilizou alegadamente, apenas aos fins-de-semana e que esta não constituía, àquela data, a sua residência habitual, própria e permanente.
K. Desta feita, conclui-se muito resumidamente de tudo o supra explanado que não estão preenchidos os pressupostos do direito de retenção, nos termos dos artigos 754.º e ss do CC, porquanto nunca houve traditio da coisa, nem posse do bem imóvel sub judice.
L. Chegados a esta parte não pode a aqui Recorrente concordar com o reconhecimento do sinal em dobro à Credora, porquanto decorre da Jurisprudência que é pressuposto para a restituição do sinal em dobro que o contrato-promessa seja resolvido, o que não aconteceu no caso em apreço, porquanto a Credora vive atualmente no apartamento em questão e nunca houve da sua parte a vontade expressa de resolver o contrato-promessa, caso contrário não viveria no dito imóvel.
M. Neste sentido, diz-nos o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-03-2012 (consultável em http://www.dgsi.pt), que: “(…) Se o contrato-promessa não estiver definitivamente incumprido à data da declaração da insolvência da promitente vendedora, o promitente-comprador não teria direito ao dobro do sinal que pagou (…)”.
N. Diz-nos, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-06-2017 (consultável em http://www.dgsi.pt), que: “(…) No caso de contrato-promessa, o promitente lesado fica (…) com a faculdade de o resolver ou de exigir a execução específica (artigo 830.º do Código Civil) (…)”.
O. Ora, a Credora nunca em tempo algum fez menção de resolver o contrato-promessa, tanto mais que vive no apartamento aqui em discussão, nem tão-pouco exigiu a execução específica do mesmo.
P. Destarte e atento tudo o supra exposto, não pode ser reconhecido o pagamento do sinal em dobro à aqui Credora, porquanto não ficaram preenchidos os pressupostos para que esta a isso tenha direito.
Q. Por último, dá-nos a Lei n.º 24/96, no seu artigo 2.º, n.º 1, a definição de consumidor.
R. Tendo em conta tudo o supra exposto, denota-se claramente que à aqui Credora não se lhe pode conferir a definição de consumidora, porquanto a mesma à data da entrega das chaves e alegada traditio da coisa, apenas utilizava a fração aos fins-de-semana, não constituindo esta a sua residência habitual, própria e permanente.
S. Destarte, resulta com meridiana clareza que a Credora não é detentora de um direito de retenção, muito menos pelo valor do sinal em dobro, pois não resulta provado que tenha existido a efetiva traditio da coisa, nem existiu a resolução ou a exigência da execução específica do contrato-promessa, pressupostos essenciais aos mesmos.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXA., DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, POR PROVADO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, NÃO RECONHECENDO À CREDORA A. M., UM CRÉDITO DE € 100.0000,00 (CEM MIL EUROS), GARANTIDO POR DIREITO DE RETENÇÃO SOBRE A FRACÇÃO AUTÓNOMA DESIGNADA PELA LETRA “N”, FAZENDO-SE A TÃO ACOSTUMADA JUSTIÇA.
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Notificada do recurso interposto pela credora X, SA, a reclamante A. M. respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela improcedência do recurso com a consequente manutenção da decisão recorrida.
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O Exmº Juíz a quo proferiu despacho a admitir o interposto recurso, providenciando pela subida dos autos.
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Foram facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos.
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Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex. vi dos arts. 663º/2; 635º/4; 639º/1 a 3; 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pela apelante, esta pretende que se reaprecie o reconhecimento do crédito de A. M. no montante de € 100.000,00, crédito esse garantido por direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra “N”.
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3OS FACTOS

Matéria de facto provada:

1. Por sentença proferida em 10/07/2015, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de M. R., Lda.
2. Consta dos autos um documento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, na qual intervieram M. R. (na qualidade de gerente da insolvente) e A. M., datado de 04/09/2010, no qual foi declarado que a insolvente prometia vender, livre de quaisquer ónus e encargos, àquela, que por sua vez prometia comprar, “(…) a fracção autónoma tipo T3, no .. Andar … com 3 frentes, com 1 lugar de garagem na cave do edifício, situado no prédio urbano a construir em regime de propriedade horizontal, no lote n.º …, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real sob o n.º ... (…)” ajustando-se como preço o montante de € 145.000,00 (englobando € 50.000,00 “a título de sinal e princípio de pagamento (…) que pelo presente lhe dá quitação” e o montante de € 95.000,00, a pagar no acto da outorga do contrato prometido), estipulando-se que a marcação do negócio definitivo caberia à insolvente e convencionando-se ainda que “(…) na data da conclusão da obra, poderá a primeira outorgante entregar à segunda outorgante a chave da fracção ora prometida vender, desde que, essa última, apresente àquela, uma garantia bancária do pontual e integral cumprimento do presente contrato promessa, no valor correspondente ao preço em dívida”, bem como que “(…) no caso de incumprimento do presente contrato, por parte da Primeira Outorgante, assistirá à Segunda Outorgante a faculdade de exigir àquele o dobro da quantia paga a título de sinal”, e nos demais termos apostos no documento, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. Em 14/10/2015 o Sr. Administrador da Insolvência outorgou título de constituição de propriedade horizontal na Conservatória do Registo Predial de Terras de Bouro, relativamente ao prédio urbano sito na freguesia e concelho de Vila Real, descrito Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo 22.º, daí resultando a constituição das fracções autónomas A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O e P, nos termos apostos nesse acto (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
4. Em 15/09/2014 o prédio descrito sob o n.º ... foi penhorado no processo executivo n.º 414/14.9TBVRL, que correu termos no Juízo de Execução de Chaves.
5. A. M. instaurou embargos de terceiro, liminarmente admitidos, cuja instância foi posteriormente julgada extinta, por inutilidade superveniente da lide.
6. As fracções autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... foram apreendidas para a massa insolvente sob as verbas n.ºs 36 a 51.
7. Foram inscritos no registo relativo às fracções autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... os seguintes factos, com relevo para a boa decisão da causa:
# aquisição do direito de propriedade a favor da insolvente – cfr. ap. n.º 1, de 09/12/1991.
# hipoteca para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, que existam ou venham a existir em nome da insolvente até ao limite de € 5.906.630,00, e emergentes de ou resultantes de operações de crédito que lhe tenham sido concedidas, ou venham a sê-lo pelo Banco ..., por contratos de empréstimo ou de abertura de crédito, por financiamentos por livranças, por descontos de papel comercial, por crédito por assinatura, por descoberto em conta de depósitos à ordem e por créditos documentários de importação. Taxa de juro anual de 4,135 %, acrescida de 4 % em caso de mora a título de cláusula penal e despesas € 184.000,00 – cfr. ap. n.º 3043, de 07/04/2009.
8. Em 23/09/2015 realizou-se assembleia de apreciação de relatório, decorrendo da acta respectiva que no decurso da diligência o Sr. Administrador da Insolvência declarou:
(…) quanto à primeira questão, do cumprimento dos contratos o Sr. ,Administrador de Insolvência só cumpre contratos que estejam, de acordo com o artº 106 º do CIRE que demonstrem eficácia real; quanto à questão de direito de créditos com direito de retenção, só poderá fazê-lo depois de existir a propriedade horizontal do lote 17 em lote 18, e caso entenda que se verifiquem todos os pressupostos que fundamente a reclamação de crédito garantido por direito de retenção. Aquando a entrada no processo da relação definitiva de credores (…).
9. A insolvente possui como objecto social a exploração de construção civil.
10. Em 08/09/2010 foi pago um cheque no montante de € 25.000,00, emitido a favor da insolvente, sacado por L. M., sobre a conta n.º ..., do Banco ..., S.A., datado de 07/09/2010, de que aquela é co-titular.
11. Em 08/09/2010 foi pago um cheque no montante de € 25.000,00, emitido a favor da insolvente, sacado por M. P., sobre a conta n.º 7412200, da Caixa ..., S.A., datado de 07/09/2010, de que aquela é co-titular.
12. L. M. e M. P. pagaram à insolvente os montantes apostos nos cheques indicados em 10 e 11 a pedido de A. M., tendo adiantado os quantitativos que esta esperava receber com a venda de um outro imóvel e que ulteriormente lhes entregou.
13. Em 07/04/2014 as chaves de acesso ao edifício e ao apartamento correspondente à fracção autónoma designada pela letra “N”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de Vila Real, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... foram entregues pelo gerente da insolvente a A. M..
14. (…) passando a residir no apartamento com a filha, embora nos primeiros meses somente ao fim-de-semana.
15. (…) utilizando para o efeito, numa fase inicial, uma ligação à electricidade de obra e a água de um poço utilizado pela insolvente no decurso das obras de construção dos edifícios implantados nos prédios descritos sob os n.ºs … e ....
16. (…) deixando os colaboradores da insolvente de ter acesso ao apartamento.
17. Desde 15/03/2018 a fracção “N” dispõe de um contador de electricidade em nome de A. M., tendo em 20/02/2015 sito autorizada a colocação de um contador de água para esse imóvel.
18. Com a celebração do contrato-promessa A. M. pretendeu a futura aquisição do imóvel, para aí viver com o seu agregado familiar.
19. Em 06/10/2014 o Sr. Agente de Execução nomeado no processo n.º 414/14.9TBVRL procedeu ao arrombamento e mudança de fechaduras das portas de acesso aos edifícios implantados no prédio descrito sob o n.º ....
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Matéria de facto não provada:

Com relevo para a boa decisão da causa inexistem factos não provados.
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Ao nível da fixação da matéria de facto o Tribunal não se pronunciou sobre as demais afirmações contidas nos articulados por constituírem afirmações genéricas e conclusivas e/ou juízos de direito e que não podem ser objecto de uma pronúncia em termos de "provado" ou "não provado", ou por constituírem factos em oposição com os factos dados como provados ou serem logicamente dependentes dos factos dados como não provados.
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Motivação:

Quanto aos factos considerados provados e não provados a convicção do Tribunal assentou nos seguintes meios de prova:

No que respeita aos factos provados n.ºs 1, 4, 5, 6 e 8, considerou-se o teor da sentença da ref. n.º 28225565 (proc. princ.), do auto de penhora da ref. n.º 127606 (ap. A), da petição de embargos da ref. n.º 73044 (ap. G), dos despachos das ref. n.ºs 27301795 e 28413359 (ap. G), da contestação da ref. n.º 268941 (ap. G), do auto de arrolamento da ref. n.º 1199488 (ap. M) e da acta da ref. n.º 28486018 (proc. princ.) – cfr. artigos 369.º, n.º 1, 371.º, n.º 1, do Código Civil e 607.º, n.ºs 4 e 5, do C.P.C.
No que concerne ao facto provado n.º 2, atendeu-se ao conteúdo do contrato-promessa de 04/09/2010 (junto como doc. n.º 1 com o articulado de reclamação de créditos), cuja probidade não foi colocada em causa pelas partes – cfr. artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do C.P.C.
No que tange aos factos provados n.ºs 3, 7 e 9, consideraram-se as certidões prediais relativas ao prédio descrito sob o n.º ... e às suas fracções autónomas (ref. n.ºs … e …/ap. Y) e a escritura pública de constituição da propriedade horizontal (ref. n.º 584752/ap. M), bem como a certidão comercial da insolvente (ref. n.º …/ap. Y) – cfr. artigos 369.º, n.º 1, 371.º, n.º 1, do Código Civil e 607.º, n.ºs 4 e 5, do C.P.C.
No que se reporta aos factos provados n.ºs 10 a 19, procedeu-se à ponderação dos depoimentos de parte do gerente da insolvente (M. R.) e de A. M., dos documentos n.ºs 1, 2 e 4 que instruíram o articulado de reclamação de créditos, do auto de entrega de fls. 110 (ap. Y), do relatório relativo à contabilidade da insolvente (ref. n.º 863430/ap. Y), do relatório de avaliação da ref. n.º 644452 (ap. M) e dos ofícios da fornecedora de energia. (ref. n.º 1791123/ap. Y) e da … (ref. n.º 1802748/ap. Y).
Assim, e a título prévio, importa ter presente que apesar do depoimento de parte se destinar em primeira linha à obtenção da confissão judicial provocada (cfr. artigos 352.º, 354.º, 355.º, n.ºs 1, 2 e 3, 356.º, n.º 2, do Código Civil, 452.º, 453.º, n.ºs 1 e 3 e 454.º, do C.P.C.), decorre do preceituado nos artigos 463.º, n.º 1, do C.P.C. e 361.º do Código Civil, que mesmo quando não possua valor confessório, como sucede no caso concreto, quer quanto a A. M., quer quanto ao legal representante da insolvente (encontra-se privado dos seus poderes de disposição do seu património - cfr. artigos 81.º, n.º 1, do C.I.R.E. e 353.º, n.º 1, do Código Civil), o depoimento de parte poderá estar sujeito à livre apreciação do julgador (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do C.P.C.) (2). Aliás, não podemos olvidar que o artigo 452.º, n.º 1, do C.P.C., prevê a possibilidade de ser determinada “(…) a comparência pessoal das partes para a prestação de (…) informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa”, estendendo o objecto deste meio de prova para além do depoimento propriamente dito (ao contrário do sucedia com o artigo 552.º, n.º 1, do anterior C.P.C.).
Cumpre também salientar que no articulado de impugnação do Banco ... – Banco ..., S.A. (ref. n.º 636885), não foi colocada em crise a valia probatória dos documentos particulares oferecidos pela reclamante com o seu articulado de reclamação de créditos, pelo que tais meios de prova gozam da valência probatória conferida aos documentos particulares (cfr. artigos 372.º a 376.º do Código Civil).
Posto isto, A. M. confirmou que foram pagos à insolvente os montantes de € 25.000,00 e € 25.000,00, através de dois cheques (juntos como doc. n.º 2 com o articulado de reclamação de créditos), emitidos pela sua mãe (M. P.) e pela sua irmã (L. M.), as quais adiantaram tais quantitativos por se encontrar a aguardar a venda de um imóvel que lhe pertencia, após se ter divorciado, tendo-as ressarcido quando conseguiu concretizar a alienação, o que vai de encontro à narrativa de M. R. (este reconheceu terem sido recebidos tais quantitativos) para além de ser corroborado pelo contrato-promessa de 04/09/2010 (junto como doc. n.º 1 com o articulado de reclamação de créditos), pois nesse documento a insolvente deu quitação do montante de € 50.000,00, para além de tais pagamentos terem sido reflectidos na contabilidade da insolvente (como perpassa do relatório da ref. n.º 863430/ap. Y e do extracto da conta bancária da …, Crl, referente a Setembro de 2010, anexo a esse relatório).
Paralelamente, verifica-se que na declaração datada de 07/04/2014 (junta como doc. n.º 4 com o articulado de reclamação de créditos) a insolvente, através do seu gerente, declarou ter entregue à reclamante as chaves do imóvel objecto do contrato-promessa, o que se revela consonante com o relato de A. M. (explicou que tendo recebido as chaves na data aposta na declaração, numa primeira fase começou por ficar no apartamento aos fins-de-semana, até a sua filha completar o quarto ano de escolaridade, e, após, passou a viver em permanência no imóvel, apesar de este somente dispor de água e electricidade da obra, até conseguir instalar os contadores privativos do seu apartamento, sendo efectuado um acerto de contas para os consumos de electricidade) e M. R. (embora este tenha manifestado que não se recordava do imóvel em concreto, confirmou que lhe fora solicitada a disponibilização das chaves e que a partir daí a insolvente deixou de ter acesso ao apartamento, não obstante este somente dispor de água e electricidade da obra aquando da entrega do imóvel).
Por outro lado, perpassou dos depoimentos de A. M. e M. R. que o apartamento estaria pronto a ser habitado, sendo tal narrativa confortada pelo relatório de avaliação da ref. n.º 644452, para além de que o ofício da fornecedora de energia (ref. n.º 1791123/ap. Y) evidencia que a reclamante A. M. somente contratou o fornecimento de energia eléctrica em 15/03/2018, enquanto o ofício da ... (ref. n.º 1802748/ap. Y) informa a data em que foi comunicada a autorização para a colocação do contador de água (20/02/2015).
De igual modo, cabe salientar que se afigura crível que A. M. tenha pretendido destinar o imóvel para a sua habitação, como esta indicou, pois não foi trazido qualquer outro elemento de sentido contrário e, verifica-se que o apartamento se encontra a ser fruído pela reclamante desde há vários anos.
Por último, apurou-se que o Sr. Agente de Execução promoveu o arrombamento das fechaduras quando diligenciou pela entrega dos imóveis penhorados, face ao teor do auto de entrega de fls. 110 (ap. Y), não infirmado por qualquer outro meio de prova trazido ao processo.
Em decorrência, sopesando todos estes meios de prova, e atendendo ao critério plasmado no artigo 414.º do C.P.C., concluiu-se pela verificação da materialidade descrita nos factos provados n.ºs 10 a 19.

[transcrição de fls. 34 a 37vº].
*

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Apesar de constarem das conclusões algumas afirmações que poderiam integrar a pretensão de ver alterada a matéria de facto (3), verifica-se que nada foi deduzido nesse sentido. Temos, pois, como assente o quadro factual julgado provado e não provado pelo Tribunal a quo, o que torna dispensável aferir do cumprimento dos ónus impostos pelo art. 640º do CPC e inócuas todas as referências sobre a apreciada prova produzida.
Vejamos, pois, a única questão colocada no recurso, que é relativa ao mérito da acção: reapreciar o reconhecimento do crédito de A. M. no montante de € 100.000,00, crédito esse garantido por direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra “N”.
Ora, adiantando desde já a decisão, temos que não assiste qualquer razão à recorrente, pois, perante o quadro factual julgado provado e não provado pelo Tribunal a quo, é de manter a decisão jurídica da causa nos seus precisos termos, uma vez que se mostra adequada e correcta (face à factualidade apurada e aos normativos aplicáveis).
Com efeito, é assertivamente referido na sentença, o seguinte:
A propósito do crédito reclamado por A. M., provou-se que esta e a insolvente outorgaram um documento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, datado de 04/09/2010, no qual foi convencionado:
 que a insolvente prometia vender a A. M. «(…) a fracção autónoma tipo T3, no .. Andar … com 3 frentes, com 1 lugar de garagem na cave do edifício, situado no prédio urbano a construir em regime de propriedade horizontal, no lote n.º .., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real sob o n.º ... (…)” (4), livre de ónus e encargos, a qual, por sua vez, a prometia adquirir;
 que foi ajustado o preço global de € 145.000,00, compreendendo € 50.000,00 “a título de sinal e princípio de pagamento (…) que pelo presente lhe dá quitação e o montante de € 95.000,00, a pagar no acto da outorga do contrato prometido;
 que a marcação do negócio definitivo caberia à insolvente;
 que “(…) na data da conclusão da obra, poderá a primeira outorgante entregar à segunda outorgante a chave da fracção ora prometida vender, desde que, essa última, apresente àquela, uma garantia bancária do pontual e integral cumprimento do presente contrato promessa, no valor correspondente ao preço em dívida”.
Face a estas estipulações contratuais, inexistem dúvidas que estamos efectivamente perante um contrato-promessa, entendido como uma convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, que neste caso se revela bilateral (cfr. artigo 410.º, n.º 1, do Código Civil).
Apurou-se também que em cumprimento do acordado no contrato-promessa (cfr. artigo 406.º, n.º 1, do Código Civil) A. M. pagou à insolvente, socorrendo-se para o efeito dos adiantamentos disponibilizados por M. P. e L. M., o montante global de € 50.000,00, recebido em 08/09/2010, presumindo-se que tal quantitativo apresenta a natureza de sinal (cfr. artigo 441.º do Código Civil) (5), uma vez que não releva a origem dos fundos empregues pela reclamação, sem que tal presunção se mostre ilidida (cfr. artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil).
Provou-se ainda que em 07/04/2014 o gerente da insolvente entregou a A. M. as chaves de acesso ao edifício e ao apartamento correspondente à fracção autónoma designada pela letra “N”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de Vila Real, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., e, a partir desse momento, passou a reclamante a viver no apartamento com a sua filha (embora nos primeiros meses somente ao fim-de-semana), ainda que se tenha socorrido da electricidade e da água disponíveis na obra executada pela insolvente, enquanto os colaboradores da insolvente deixaram de ter acesso ao apartamento.
Perante este enquadramento, e não obstante o convencionado no contrato-promessa acerca do momento em que o imóvel deveria ter sido entregue, afigura-se que A. M. passou a deter, com exclusão da insolvente, o controlo de facto da coisa, apesar de não ter ainda sido celebrado o negócio definitivo e passou a ser A. M. quem usufruía das vantagens susceptíveis de serem proporcionadas pelo imóvel.
Por outro lado, face à jurisprudência fixada no Acórdão do Pleno das Secções Cíveis publicado no D.R.-II, de 08/06/1996 (6), relativamente à qual não se divisa fundamento para divergir, afigura-se que pode ser reconhecida a tradição de uma dada fracção autónoma apesar de não estar constituída a propriedade horizontal (no caso concreto a propriedade horizontal apenas foi constituída a impulso do Sr. Administrador da Insolvência no decurso do pleito – cfr. facto provado n.º 3) (7).
Deste modo, verifica-se que a entrega das chaves não se tratou de um mero acto simbólico, mas visou uma efectiva “traditio rei”, embora somente susceptível de permitir atribuir à reclamante a qualidade de detentora da coisa (cfr. artigos 1251.º e 1253.º, al. a), do Código Civil).

Com efeito, somente foi pago cerca de 34 % do preço convencionado para o negócio definitivo, e apenas em casos excepcionais se deve reconhecer a qualidade de possuidor ao promitente comprador, mesmo quando este obteve a entrega da coisa, por inexistir o “animus possidendi” exigido pelo artigo 1253.º do Código Civil (8), uma vez que, como se explica no Acórdão do S.T.J. de 13/09/2007, rel. Santos Bernardino (9), “(…) os direitos pessoais de gozo do promitente-comprador, embora compreendam as faculdades de uso e fruição da coisa, «assentam sempre sobre a pura expectativa da alienação prometida, e não podem, por essa razão, exceder os limites impostos por tal situação». Eles têm por fundamento uma relação obrigacional assumida pela pessoa a quem compete o gozo da coisa (o contrato-promessa, com tradição) e são, por isso, direitos relativos, dependentes e ligados à respectiva matriz, da qual nunca se desprendem. (10)
Aqui chegados, importa chamar à colação o decidido no A.U.J. n.º 4/2014 (11), onde se firmou a seguinte jurisprudência: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.
Em matéria de contrato-promessa podemos, no essencial, reconduzir as situações de incumprimento definitivo a determinadas categorias, na ausência de estipulação de uma cláusula resolutiva: a impossibilidade de prestação imputável ao devedor, a perda do interesse do credor, objectivamente considerada, o decurso do prazo estabelecido na interpelação admonitória, a recusa séria e categórica de cumprimento e a declaração resolutiva infundada (12).
Como foi salientado na fundamentação do A.U.J. n.º 4/2014, para se considerar ter ocorrido o incumprimento definitivo, pressuposto da intervenção do disposto no artigo 442.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil, é suficiente a inclusão do crédito emergente do contrato-promessa na lista a que alude o artigo 129.º, n.º 1, do C.I.R.E., na medida em que constitui um comportamento concludente, que leva implícita a existência de incumprimento, presumindo-se ainda a culpa da insolvente (cfr. artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil) (13).
Trata-se do que ocorreu “in casu”, pois o Sr. Administrador da Insolvência incluiu na lista da ref. n.º 625549 o crédito reclamado por A. M., pelo que se torna dispensável indagar da existência de outro fundamento para se concluir pela existência de incumprimento definitivo, imputável à insolvente, que de todo o modo existiria, face à posição sufragada pelo Sr. Administrador da Insolvência na assembleia de apreciação do relatório quanto ao cumprimento dos contratos-promessa.
Aliás, apesar do segmento decisório do A.U.J. n.º 4/2014 não o indicar de forma expressa, deve entender-se como premissa lógica e necessariamente contida naquela decisão, que a tese que obteve vencimento é aquela segundo a qual o crédito do promitente-comprador deverá corresponder ao sinal em dobro, conforme dispõe o artigo 442,º, n.º 2, do Código Civil, e não em singelo, nem tão pouco ao valor que decorre da conjugação dos artigos 102.º, n.º 3, al. c), 106.º, n.º 2, e 104.º, n.º 5, do C.I.R.E. (14).
Deste modo, verifica-se dever ser reconhecido à reclamante A. M. o crédito correspondente ao dobro do sinal prestado (€ 100.000,00).
Uma outra dúvida que se poderia colocar prende-se com a circunstância da fracção autónoma ter sido objecto da penhora realizada no processo n.º 414/14.9TBVRL, sendo alteradas as chaves de acesso ao imóvel objecto do contrato-promessa, porquanto é causa de extinção do direito de retenção a entrega da coisa (cfr. artigo 761.º do Código Civil).
No entanto, não apenas a seu tempo a reclamante A. M. reagiu contra tal diligência judicial de apreensão da coisa mediante embargos de terceiro (liminarmente admitidos, mas que vieram a findar sem uma decisão de mérito), como a entrega da coisa susceptível de conduzir à extinção do direito de retenção é necessariamente a entrega voluntária da coisa, pois apenas quando ocorre um acto voluntário é que se pode atribuir ao retentor uma renúncia tácita ao direito (15), pelo que a penhora não conduziu à extinção do direito que a reclamante veio fazer valer.
Ainda de acordo com o A.U.J. n.º 4/2014 o reconhecimento do direito de retenção pressupõe que o promitente comprador possua a qualidade de consumidor.
O A.U.J. n.º 4/2014 não define na sua fundamentação o que se deve entender por consumidor, pelo que tem sido debatida na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores a significância de tal exigência (16), vindo a prevalecer o entendimento segundo o qual se deve atender ao “(…) conceito restrito, funcional, segundo o qual consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transaccionado, ou do serviço adquirido, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa” (17), ou noutra formulação, a “(…) pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, não abrangendo quem obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa (18)”, independentemente de se destinar a habitação permanente do promitente-comprador (19).
Para se chegar a esse resultado interpretativo a jurisprudência maioritária tem tomado como referencial da noção de consumidor a previsão do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, segundo a qual “considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
In casu”, a reclamante constitui uma pessoa singular que pretendia alocar a fracção autónoma objecto do contrato-promessa à sua residência, pelo que deve ser qualificada como consumidora, tanto mais que a promitente vendedora actuou no exercício profissional de uma actividade económica a que se dedicava (cfr. facto provado n.º 9), como é pressuposto pela parte final do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho.
Nesta decorrência, impõe-se concluir que deverá ser reconhecida à reclamante A. M. a titularidade de um direito de retenção, por reporte à alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil, interpretada em consonância com a jurisprudência firmada no A.U.J. n.º 4/2014, quanto à totalidade do direito de crédito reclamado (€ 100.000,00).

Questiona a recorrente não estarem preenchidos os pressupostos do direito de retenção, nos termos do art. 754º e ss. do CC, porquanto nunca houve traditio da coisa, nem posse do bem imóvel sub judice, bem como não poder ser reconhecido o pagamento do sinal em dobro à aqui Credora, porquanto não ficaram preenchidos os pressupostos para que esta a isso tenha direito, sendo que não se lhe pode conferir a definição de consumidora, porquanto a mesma à data da entrega das chaves e alegada traditio da coisa, apenas utilizava a fracção aos fins-de-semana, não constituindo esta a sua residência habitual, própria e permanente (sublinhado nosso).

Vejamos, então, as três questões separadamente:

1- Do indevido reconhecimento do direito de retenção da recorrida/credora reclamante sobre o imóvel objecto do contrato promessa celebrado com a devedora insolvente (por falta de traditio da coisa, nem posse do bem imóvel).

Quanto a esta questão, verifica-se que a argumentação explanada pela recorrente alicerça-se, essencialmente, na fundamentação do Ac. da RC de 10-12-2013, prolatado no Proc. nº 1729/12.6TBCTB-B.C1, no qual se concluiu que “para existir traditio da coisa, tem que se confirmar a posse do bem a que respeita e, consequentemente, a coisa objeto do contrato-promessa tem que se encontrar apta a desempenhar a função a que se destina, no caso sub judice, à habitação”. Isto porque, alega, “para que se opere a tradição exigida para o direito de retenção a que se reporta o art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC, é necessário que a coisa objecto do contrato prometido se encontre perfeitamente concluída e apta a desempenhar a função a que se destina”, concluindo não estarem “preenchidos os pressupostos do direito de retenção, nos termos dos arts. 754º e ss. do CC, porquanto nunca houve traditio da coisa, nem posse do bem imóvel sub judice, bem como esta fracção não foi logo habitada pela Credora que a utilizou alegadamente, apenas aos fins de semana e que esta não constituía, àquela data, a sua residência habitual, própria e permanente”. Todavia, o aludido acórdão da RC no qual a recorrente baseou a sua argumentação viria a ser revogado pelo Acórdão do STJ de 25-3-2014 (relator Azevedo Ramos), disponível in www.dgsi.pt, o qual, na decorrência dessa revogação, repristinou o decidido na sentença da 1ª instância, determinando que o crédito dos recorrentes, garantido por direito de retenção, deveria “ser pago à frente e imediatamente antes do crédito do Banco recorrido, garantido por hipoteca”.

Quid iuris?

Tendo-se pronunciado sobre esta questão o recente Ac. desta Secção e RG de 2-05-2019, in Proc. nº 1012/15.5T8VRL-AT.G1 (relator Alcides Rodrigues), em que a recorrente foi igualmente a impugnante X, SA, porque com ele concordamos, seguiremos de perto o mesmo, transcrevendo algumas partes.

Nos termos em que a questão se mostra colocada cumpre indagar se, num contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, devidamente sinalizado, os promitentes-compradores gozam, ou não, do direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato-prometido, caso o administrador de insolvência opte por não cumprir o contrato-promessa, questionando a recorrente que aqueles tenham obtido a tradição da coisa.

Importa, porém, desde logo deixar claro que o reconhecimento do direito de retenção é independente de saber qual o regime aplicável à determinação do montante do crédito assim garantido (cfr. nº 2 do art. 102º do CIRE e nº 2 do art. 442º do CC) (20).
O direito de retenção regulado nos arts. 754º e ss. do CC traduz-se no direito conferido ao credor, que se encontra na detenção de coisa que deva ser entregue a outra pessoa, de não a entregar enquanto esta não satisfizer o seu crédito, verificada alguma das relações de conexidade entre o crédito do detentor e a coisa que deva ser restituída a que a lei confere tal tutela.
Mas, para além desse carácter compulsório que está na origem do instituto, atento o escopo de garantia desse direito – posto que constitui um verdadeiro direito real de garantia – o seu titular pode executar a coisa nos mesmos termos que um credor pignoratício ou hipotecário, a que a lei o equipara, consoante a coisa seja móvel ou imóvel.
Tem assim o direito a pagar-se à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores do devedor (arts. 758º, 759º e 604º do CC).
Desempenha, pois, uma função coercitiva (como meio de compelir o devedor a cumprir a prestação) e uma função de garantia (21).

O art. 755º/1 do CC consagra casos especiais de direito de retenção, reconhecendo-o na al. f) ao “beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º” do CC.

São três os pressupostos do reconhecimento deste direito de retenção:

a) – a existência de promessa de transmissão ou de constituição de um direito real;
b) – a entrega ou tradição da coisa objecto do contrato-promessa;
c) – a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato-promessa.

Temos, assim, que o direito de retenção como direito real de garantia é invocável pelo promitente-comprador que obteve a tradição da coisa, visando garantir os créditos indemnizatórios previstos no art. 442º do CC, em caso de incumprimento definitivo do contrato pelo promitente-vendedor (22).

No caso especial do art. 755º/1, f) do CC, a concessão do direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa justifica-se no facto de o crédito garantido emergir do incumprimento da obrigação da contraparte (promitente vendedor) e de aquele estar impedido de recorrer à excepção de não cumprimento do contrato, uma vez que inexiste relação sinalagmática entre a obrigação de restituição da coisa e o crédito do promitente-comprador (23).
Centraremos a nossa atenção sobre o requisito da tradição da coisa, por ser o que foi questionado pela recorrente.
A esse respeito – rejeitando um dos fundamentos em que a recorrente baseia a impugnação – diremos que a traditio exigida para que se constitua o direito de retenção nos termos do art. 755º/1, f) do CC reclama apenas a detenção material lícita da coisa, não sendo necessário, para esse efeito, uma posse (24).
O exercício do direito de retenção assenta numa detenção lícita da coisa, que pode traduzir-se tanto em posse, como em detenção ou posse precária.
A entrega antecipada do imóvel na vigência do contrato-promessa, não é um efeito do contrato, mas resulta de uma convenção de natureza obrigacional entre o promitente-vendedor [dono da coisa] e o promitente-comprador.
Assim, e em regra, o promitente-comprador que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – é, nesta perspectiva, um detentor precário – art. 1253º do CC – já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpus possessório (relação material) – art. 1251º do CC (25).
Como se decidiu no citado Ac. do STJ de 25-3-2014 (relator Azevedo Ramos), disponível in www.dgsi.pt, “é possível concluir que, radicando o direito de retenção num contrato-promessa, não é necessário que o beneficiário da promessa tenha a posse da coisa objecto do contrato prometido.
É suficiente que a detenha, por simples tradição.
A tradição de que fala a alínea f), do nº 1, do art. 755 do CC não se confunde com a posse e pode existir sem esta”.

Como explicita Antunes Varela (26), o direito de retenção é hoje um verdadeiro direito real de garantia – que não de gozo – em virtude do qual o promitente-comprador que seja credor da indemnização prevista no art. 442º do CC, goza, contra quem quer que seja, da faculdade de não abrir mão da coisa enquanto se não extinguir o seu crédito.

Trata-se, pois, de um direito que, decorrendo apenas de uma certa conexão eleita pela lei, e não, por exemplo, da própria natureza da obrigação, representa uma garantia directa e especialmente concedida pela lei; desde que o credor tenha um crédito relacionado, nos termos legalmente previstos, com a coisa retida, reconhece-se-lhe o direito de garantia, válido erga omnes.
Há, porém, que distinguir dois diferentes direitos, que podem surgir na esfera jurídica do promitente-comprador com tradição: um direito pessoal de gozo sobre a coisa, que radica na entrega ou tradição desta, e que se assemelha, v.g., ao do locatário ou do comodatário, e um direito real de garantia (o direito de retenção).
Só por si, o contrato-promessa não é susceptível de transmitir a posse ao promitente-comprador: se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do contrato prometido, adquire o corpus possessório, mas não o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.
Daí que se entenda que a tradição da coisa, móvel ou imóvel, realizada a favor do promitente-comprador, no caso de promessa de compra e venda sinalizada, não investe o accipiens na qualidade de possuidor da coisa (27).
Com efeito, acrescenta o citado autor (28), o “que a entrega (tradição) do móvel ou imóvel atribuiu ao promitente comprador é um direito pessoal de gozo sobre a coisa”, sendo que estes direitos, “compreendendo embora as faculdades de uso e fruição da coisa”, “assentam sempre sobre a pura expectativa da alienação prometida, e não podem, por essa razão, exceder os limites impostos por tal situação”.

Por sua vez, o conceito de tradição da coisa foi profusamente tratado no Ac. do STJ de 19-04-2001 (publicado na RLJ, ano 133º, p. 367 e ss., com Anotação favorável do Prof. Calvão da Silva, na mesma R.L.J. Ano 133º, p. 370 e Ano 134º, p. 21), onde se refere:

A tradição da coisa exprime, na disciplina dos direitos reais, a transmissão da detenção de uma coisa entre dois sujeitos de direito, sendo constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e um elemento positivo, a tradicionalmente chamada apprehensio (acto que exprime a tomada de poder sobre a coisa).
A alínea b) do artigo 1263 do C.C., na esteira de uma velha tradição romanista, confere igual valor à tradição material e à tradição simbólica.
É no elemento positivo da traditio (apprehensio) que se verificam as variações que explicam a distinção entre tradição material e tradição simbólica.
A tradição é material quando, p. ex., o livreiro entrega em mão o livro ao comprador, ou o vendedor de uma casa leva o comprador a entrar nela, abandonando-a de seguida; será simbólica quando o vendedor de um apartamento entrega as chaves ao comprador, ou o vendedor de uma quinta entrega ao comprador os títulos ou os documentos que justificavam o seu direito, ou, como nos antigos costumes, lhe entregava uma porção de terra do prédio ou, por exemplo, uma cepa de uma vinha.
A tradição material é, portanto, realizada através de um acto físico de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões.
A relevância atribuída à tradição simbólica foi a natural consequência de nem sempre a apprehensio poder ser materialmente realizada, por impossibilidade objectiva ou subjectiva, mas o seu uso generalizou-se e diversificou-se de acordo com as necessidades do comércio jurídico.
O valor simbólico de um acto depende, naturalmente, do tipo de coisa que se transmite, como supra ficou exemplificado e explicado.
Mas também a traditio material varia de configuração e intensidade, de acordo com a natureza da coisa alienada.
A chamada traditio longa manu ou traditio oculis et affectu, que exprimiam o consenso das partes junto das coisas transmitidas, com o significado de abandono e apprehensio, sofreu, nos direito romano e comum, uma evolução no seio da tradição material, para formas atenuadas de transmissão da coisa.
A traditio material, suposta pelo legislador, não implica, portanto, um acto plasticamente representável, de largar e tomar, bastando-se com a inequívoca expressão de abandono da coisa e a consequente expressão de tomada de poder material sobre a mesma, por parte do beneficiário”.

E, conforme se afirma no Ac. do STJ de 16-02-2016 (relatora Clara Sottomayor), in www.dgsi.pt, a traditio configura-se como o poder de facto sobre a coisa que o promitente vendedor conferiu ao promitente-comprador, passando este a ter uma relação material com a coisa, revelada em actos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo que tem sobre a mesma, que fica na sua disponibilidade, renunciando, simultaneamente, o promitente-vendedor do poder que tinha sobre ela.
A tradição basta-se com este poder de facto e não necessita de ser tão enérgica como na aquisição originária, porque está em causa apenas a transferência do poder do promitente-vendedor para o promitente-comprador, e não a aquisição de um direito novo.
O conceito legal de tradição do imóvel é, assim, o principal requisito ou elemento constitutivo do direito de retenção – excluindo-se este direito em todos os casos em que se verifique que, afinal, o promitente-comprador não deu ao imóvel uso real, permanente e efectivo, afectando-o à satisfação dos seus interesses e necessidades de forma que se justificasse a tutela reforçada da confiança na estabilidade da sua posição jurídica.
Revertendo ao caso dos autos, face aos factos provados são de considerar verificados os necessários pressupostos da tradição da coisa da coisa prometida.

Na verdade, mostra-se provado que:

- A credora A. M. e a insolvente outorgaram um documento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, datado de 04/09/2010, no qual foi convencionado:

- que a insolvente prometia vender a A. M. «(…) a fracção autónoma tipo T3, no ..º Andar … com 3 frentes, com 1 lugar de garagem na cave do edifício, situado no prédio urbano a construir em regime de propriedade horizontal, no lote n.º .., inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real sob o n.º ... (…)” (29), livre de ónus e encargos, a qual, por sua vez, a prometia adquirir;
- que foi ajustado o preço global de € 145.000,00, compreendendo € 50.000,00 “a título de sinal e princípio de pagamento (…) que pelo presente lhe dá quitação e o montante de € 95.000,00, a pagar no acto da outorga do contrato prometido;
- que a marcação do negócio definitivo caberia à insolvente;
- que “(…) na data da conclusão da obra, poderá a primeira outorgante entregar à segunda outorgante a chave da fracção ora prometida vender, desde que, essa última, apresente àquela, uma garantia bancária do pontual e integral cumprimento do presente contrato promessa, no valor correspondente ao preço em dívida”.
- Com a celebração do contrato-promessa, A. M. pretendeu a futura aquisição do imóvel, para aí viver com o seu agregado familiar.
- Em cumprimento do acordado no contrato-promessa, A. M. pagou à insolvente, socorrendo-se para o efeito dos adiantamentos disponibilizados por M. P. e L. M., o montante global de € 50.000,00, recebido em 08-09-2010, presumindo-se que tal quantitativo apresenta a natureza de sinal.
- A insolvente entregou à credora A. M. as chaves de acesso ao edifício e à fracção em 7 de Abril de 2014.
- A partir desse momento, a credora A. M. passou a viver no apartamento com a sua filha (embora nos primeiros meses somente ao fim-de-semana), ainda que se tenha socorrido da electricidade e da água disponíveis na obra executada pela insolvente, enquanto os colaboradores da insolvente deixaram de ter acesso ao apartamento.
Resultando, pois, de tais factos, inequivocamente, a materialização de actos de detenção por parte da promitente-compradora.
Acresce que, se rejeita o entendimento de que, para existir traditio da coisa prometida, tem que se confirmar a posse do bem a que respeita, e, consequentemente, a coisa objecto do contrato-promessa tem que se encontrar apta a desempenhar a função a que se destina (v.g. habitação) (30).

Consequentemente, a tradição da fracção autónoma designada pela letra N, tipo T3, situada no .. andar .. com 3 frentes, e do respectivo lugar de garagem na cave, situado no prédio identificado nos autos, efectuada a favor da recorrida, é válida e eficaz, integrando o direito de retenção desta, previsto no art. 755º/1, f) do CC.

2- Do indevido reconhecimento à recorrida/credora reclamante do pagamento do sinal em dobro, porquanto não ficaram preenchidos os pressupostos para que esta a isso tenha direito. Entendendo ser pressuposto para a restituição do sinal em dobro, que o contrato-promessa seja resolvido, o que, in casu, não aconteceu.

Ora, quanto à determinação do montante do crédito garantido, duas são as hipóteses em relação ao regime aplicável que se colocam: o do nº 2 do art. 102º do CIRE ou o do nº 2 do art. 442º do CC.

Também aqui propendemos para a posição adoptada pela 1ª instância.

Sobre isto, diz-se o seguinte, a dado passo no já supra mencionado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 4/2014, de 20-3-2014, publicado no DR I Série, n.º 95, de 19-05-2014: «(…) O DL nº 236/80 de 18 de Julho veio reforçar a posição jurídica do promitente-comprador nomeadamente no âmbito das transações de imóveis para habitação, conferindo-lhe em caso de incumprimento da outra parte e em alternativa ao direito ao sinal em dobro, também o valor da coisa desde que a mesma lhe tivesse sido transmitida encontrando-se pois em seu poder. Tal desiderato surge corporizado na alteração então introduzida ao nº 2 do artigo 442º do Código Civil. Por seu turno, o DL 379/86 de 11-11, além de haver modificado o normativo em análise veio ainda, coerentemente com tal alteração, elencar no âmbito dos titulares do “direito de retenção” a que se reporta o artigo 755º do Código Civil, o do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito sobre a coisa a que se reporta o contrato prometido, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte de harmonia com o artigo 442º (então modificado). (…) O Tribunal da Relação opta, como vimos, por uma visão distinta desta problemática, com reflexos inerentes na solução a conferir-lhe. Na sua tese, declarada a insolvência, o artigo 102º do CIRE confere ao Administrador o direito a não cumprir a obrigação já que “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que à data da declaração de insolvência não haja total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”. Destarte, sendo a própria lei a admitir a possibilidade de não cumprimento por parte do administrador, tal significa que não há dever de cumprimento, o que necessariamente afasta a possibilidade de ilicitude e culpa, que supõem uma obrigação prévia de agir de outra forma; a reforçar este entendimento, argumenta ainda a CBB com o estatuído no artigo 119º do CIRE ao salientar nos seus nsº 1 e 2 que “1– É nula qualquer convenção das partes que exclua ou limite a aplicação das normas anteriores do presente capítulo. 2 – É em particular nula a cláusula que atribua à situação de insolvência de uma das partes o valor de uma condição resolutiva do negócio ou confira nesse caso à parte contrária um direito de indemnização, de resolução ou de denúncia em termos diversos dos previstos neste capítulo”. Corolário lógico desta argumentação seria assim o afastamento do âmbito do CIRE da aplicabilidade do artigo 442º do Código Civil referente ao incumprimento do contrato promessa; a cominação constante do nº 2 desse normativo está dependente da constatação de culpa da parte não cumpridora. Só que esta, com a declaração de insolvência da Sociedade Construções AA Lda. transmudou-se, não sendo já a entidade que era, estando agora representada pelo administrador. Tal modificação traria consigo a impossibilidade de responsabilizar aquela pelo incumprimento do contrato-promessa, uma vez que já não subsiste juridicamente. Em consequência não haveria direito do promitente-comprador ao dobro do sinal prestado, desaparecendo de igual forma o seu direito de retenção. O respetivo crédito iria assim figurar na graduação com uma natureza meramente comum. (…) Começaremos por referir que a norma do artigo 102º do CIRE acima transcrito se aplica, como se vê do próprio texto, “sem prejuízo do estatuído nos artigos seguintes”, conferindo de certa forma autonomia ao estatuído no artigo 106º; e aqui a lei é expressa ao referir que “no caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador; a isto acresce que nada apontando, a nosso ver, para o facto de ter havido intuito de modificar com a entrada em vigor do CIRE a orientação legislativa ao nível das consequências de incumprimento da promessa do contrato e suprindo pelo recurso ao regime da compra e venda com reserva de propriedade, a omissão da regulamentação do contrato promessa com efeito obrigacional e tradição do objeto, ficará o nº 2 do artigo 106º aplicável apenas ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não tenha havido aquela tradição ao promitente-comprador. Só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato.
Não se aduza ainda, contra o entendimento exposto, que não há imputação de culpa a fazer em caso de insolvência porque com a declaração desta última, a relação jurídica existente, então reconfigurada, não a poderá comportar, já que ao insolvente se substitui e passa a figurar em juízo apenas a massa falida e o administrador; é para nós claro o cariz redutor deste entendimento; a insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações. Nestes casos já foi decidido e bem, neste Supremo Tribunal de Justiça, que se verifica uma imputabilidade reflexa considerando o comportamento da insolvente na origem do processo falimentar; acresce que, seria sempre a esta última que cumpriria afastar a culpa, que se presume, em matéria de responsabilidade civil contratual – artigo 799º nº 1 do Código Civil. Por último diremos que o artigo 97º do CIRE que se reporta à extinção de privilégios creditórios e garantias reais, com a declaração de insolvência, não enumera “o direito de retenção” no elenco dos extintos. Adiante-se ainda que, como bem salienta o recorrente, bastaria, caso contrário, que uma empresa promitente vendedora e incumpridora do contrato, se apresentasse à insolvência para evitar as consequências do incumprimento. Em suma concluímos que não sendo afetado o contrato-promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artigo 442º nº 2 do Código Civil. Destarte o crédito pedido do reclamante, valor em singelo no montante de € 108.488,54, mantém a prevalência que lhe é conferida pelo “direito de retenção” tendo sido e bem, graduado acima da hipoteca da CBB.».
Retira-se do exposto que a tese que obteve vencimento é aquela segundo a qual o crédito do promitente-comprador deverá corresponder ao sinal em dobro, conforme dispõe o art. 442º/ 2 do CC, e não em singelo, nem tão pouco ao valor que decorre da conjugação das normas do CIRE constantes nos seus arts. 102º/3, c), 106º/2 e 104º/5.
Trata-se de entendimento que, muito embora não integre o segmento de uniformização, encerra o valor de premissa lógica necessária que o antecede e, nessa medida, deverá assumir o mesmo carácter vinculativo. (31)
Como assim, deve ser reconhecido à reclamante o crédito correspondente ao dobro do sinal prestado (€ 100.000,00).

3- Da (não) qualidade de consumidora da promitente-compradora.

Pretende a recorrente que a recorrida/promitente-compradora não preenche o conceito legal de consumidora previsto no art. 2º/1 da Lei n.º 24/96, porquanto a mesma à data da entrega das chaves e alegada traditio da coisa, apenas utilizava a fracção aos fins-de-semana, não constituindo esta a sua residência habitual, própria e permanente. Já vimos que esta versão que a recorrente apresenta não se apurou, pois a recorrida/promitente-compradora pretendeu a futura aquisição do imóvel, para aí viver com o seu agregado familiar e a partir do momento - 7 de Abril de 2014 - que a insolvente lhe entregou as chaves de acesso ao edifício e à fracção, aí passou a viver no apartamento com a sua filha (embora nos primeiros meses somente ao fim-de-semana), ainda que se tenha socorrido da electricidade e da água disponíveis na obra executada pela insolvente, enquanto os colaboradores da insolvente deixaram de ter acesso ao apartamento.

Logo, atendendo a que nos termos do art. 2º/1 da L 24/96 de 31-07 (Lei de Defesa do Consumidor) alterada pelo DL 67/2003 de 8-04, “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.”, e tendo já sido decidido que “O consumidor contrapõe-se ao profissional: quem compra um edifício para nele instalar máquinas que vai utilizar na sua actividade produtiva – conforme se provou – não age como consumidor, mas sim na sua qualidade profissional, mesmo que não tenha intenção de comprar o prédio para revenda, até porque o conceito de profissão é muito mais lato do que a compra para revenda.” (32), dúvidas inexistem que a recorrida/promitente-compradora preenche o referido conceito legal de consumidora.
Diremos ainda, porque pertinente, tal como se pronunciou o já referido recente Ac. desta Secção e RG de 2-05-2019, in Proc. nº 1012/15.5T8VRL-AT.G1 (relator Alcides Rodrigues) que, a propósito da controvérsia jurídica de saber se, num contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, o promitente-comprador, que tendo entregue o sinal e obtido a tradição da coisa objecto do contrato-prometido, goza ou não do direito de retenção sobre ela, caso o administrador de insolvência opte por não cumprir o contrato-promessa, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 4/2014, de 20/03/2014, in D.R., 1.ª série, n.º 95, de 19/05/2014, págs. 2882 sgs., acabou por firmar jurisprudência, tirada por maioria, nos seguintes termos:

No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil”.

Decorre deste segmento uniformizador que, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente comprador apenas goza do direito de retenção previsto no citado art. 755º, n.º 1, al. f), do CC se detiver, simultaneamente, a qualidade de consumidor (33). De facto, interpretando restritivamente o art. 755º, n.º 1, al. f) do CC, o Supremo Tribunal de Justiça, no AUJ referido, pronunciou-se em termos de só atribuir o direito de retenção ao promitente-comprador consumidor, recusando, expressamente, tal garantia aos demais (34).
Assim, se tiver havido tradição da coisa e o promissário da transmissão for um consumidor, o direito à restituição do sinal em duplicado será um crédito garantido pelo direito de retenção do art. 755º, n.º 1, al. f) do CC; se for um profissional será só um crédito comum (35).
Apesar desta exigência (quanto à qualidade do promitente-comprador consumidor), o conceito de consumidor não foi, porém, objeto do âmbito da uniformização.
Todavia, na fundamentação do AUJ o conceito de consumidor adotado corresponde à visão mais restrita (36) (37), constante da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que é, também, a do Dec. Lei n.º 24/2014, mostrando-se definido, na nota 10, da seguinte forma: «o promitente comprador é, in casu, um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda» (38) (39).

Daí que, ulteriormente, sucessivos arestos dos Tribunais Superiores vieram esclarecer que a solução jurisprudencial colhida no AUJ deve ser alvo de uma aplicação restritiva, fundada no escopo da solução legal em questão, nos termos da qual, para que se reconheça o direito de retenção do promitente-comprador, se tem de exigir que este, além de ter obtido a tradição do imóvel negociado, revista a qualidade de consumidor prevista no n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31-07, excluindo, portanto, o promitente-comprador que não seja consumidor e competindo ao credor reclamante (promitente-comprador) a alegação e prova dessa qualidade de consumidor, por aplicação da regra geral do art. 342º, n.º 1 do C. Civil, visto a qualidade de consumidor ser um elemento constitutivo essencial da garantia real/direito de retenção (40).

Tomando, pois, como referencial a noção de consumidor prescrita no art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96 – dado se tratar do diploma que incorpora os princípios gerais do direito do consumo –, «considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios».
É assim a finalidade do ato em causa que determina, essencialmente, a qualificação do consumidor como sujeito do regime de benefício que aquele diploma instituiu (41).
Por sua vez, o Dec. Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, que transpôs para o nosso ordenamento jurídico a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, define como consumidor a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional – art. 3º, alínea c).
Partindo daquela conceção legal, a jurisprudência maioritária vem entendendo que se deve atender ao «conceito restrito, funcional, segundo o qual consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transaccionado, ou do serviço adquirido, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa» (42), ou, noutra formulação, a «pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, não abrangendo quem obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa» (43) ou, ainda noutra enunciação, consumidor é “aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável”, “[r]elevante é que não seja dado ao bem adquirido um uso profissional” (44).

Numa síntese desse entendimento maioritário, diz-nos o recente Ac. do STJ de 9/04/2019 (relatora Graça Amaral), in www.dgsi.pt, que consumidor para tal efeito é o promitente-comprador que destina o imóvel a uso particular no sentido de não o comprar para revenda nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa.

Na doutrina, Calvão da Silva (45), depois de postular que o n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96 representa a consagração da noção de consumidor em sentido estrito, a mais corrente e generalizada na doutrina e nas Directivas comunitárias, define o consumidor como a “pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico (…) – de modo a satisfazer necessidade pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens ou serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa”. Continuando: razão pela qual “todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional – ao seu uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, portanto, por oposição a uso profissional – será uma pessoa humana ou pessoa singular, com exclusão das pessoas jurídicas ou pessoas colectivas, as quais adquirem bens ou serviços no âmbito da sua actividade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectivos profissionais (art. 160º do CC e art. 6º do CSCom”. A referida necessidade de proteção, como sublinha o mesmo Autor, tem subjacente a “ideia básica do consumidor como parte fraca, leiga, profana, a parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente de uma relação de consumo concluída com um contraente profissional, uma empresa”. Acrescenta o citado Autor que “a ratio do direito do consumo repousa na assimetria formação-informação-poder, com desvantagem para o consumidor; a sua aplicação não pode nem deve conduzir à protecção especial de (…) alguém que, conquanto formalmente actue in casu na veste de consumidor, materialmente seja pessoa dotada de competência técnico-profissional” (46). Rematando, finalmente, que a «noção estrita de consumidor – pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional –, que defendemos em geral e temos por consagrada no nº1 do art. 2º da LDC (…) impõe-se pertinente e inquestionavelmente in casu à luz do princípio da interpretação conforme à Directiva, em que se define consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente Directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” (al. a) do nº 2 do art. 1º)».
Por sua vez, Carlos Ferreira de Almeida (47) explicita que: “... parece, em princípio, mais ajustado que, quando se adopte um conceito genérico e supletivo de consumidor, ele se contenha em limites restritos, relacionados apenas com o uso pessoal ou familiar de bens fornecidos (ou disponíveis para fornecer) por quem exerça uma actividade profissional”.

Por fim, Jorge Morais de Carvalho (48), depois de sublinhar que o conceito de consumidor pode ser analisado com referência a quatro elementos (subjetivo, objetivo, teleológico e relacional), explicita que, relativamente ao elemento teleológico, a finalidade pode ser revelada por forma positiva (“uso privado”) ou por via negativa (“uso não profissional”), sendo que o conceito de “uso não profissional” se afasta da noção de “destinatário final” mais ampla utilizada em ordenamentos jurídicos de outros países. Acrescenta o citado autor que o nosso ordenamento jurídico acolheu a doutrina finalista (“interpretação mais restritiva do conceito, não podendo o objeto ter uso profissional”), e não a doutrina maximalista (“interpretação ampla do conceito, estando em causa a retirada do bem do circuito de produção”) e que “o elemento teleológico exclui do conceito todas as pessoas, físicas ou jurídicas, que atuam no âmbito de uma atividade profissional, independentemente de terem ou não conhecimentos específicos no que respeita ao negócio em causa”.

Adverte, igualmente, para o facto de, em alguns domínios, se assistir a um fenómeno de equiparação das empresas, nomeadamente as microempresas, aos consumidores para efeitos de proteção, concluindo que essas pessoas não são, no entanto, qualificadas como consumidores.

Revertendo ao caso sub judice, verifica-se que a recorrida detém um crédito de € 100.000,00 sobre a insolvente (empresa que se dedicava à construção civil, com o fim lucrativo inerente à sua natureza), correspondente ao sinal em duplicado que lhe havia prestado num contrato-promessa de compra e venda de imóvel, definitiva e culposamente incumprido pelo administrador da insolvência.
Vimos já que, em momento anterior a esse incumprimento, a recorrida obtivera a tradição da fracção objecto do dito contrato-promessa por parte da insolvente.
Verifica-se, por último, que a recorrida é pessoa singular e destinava a fracção por ela pretendida adquirir a sua habitação própria.
O mesmo é dizer que destinava o bem objecto do contrato-promessa a um uso não profissional (para ali instalar a sua residência própria), não se mostrando apurado nos autos que a recorrida tivesse qualquer propósito de revenda lucrativa do referido bem.

Nesta conformidade, secundando o afirmado na sentença recorrida, é de manter a decisão que reconheceu à recorrida a titularidade de um direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra “N”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de Vila Real, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art. .., tendo por referência o art. 755º/1, f) do CC, interpretado em conformidade com a jurisprudência firmada no AUJ n.º 4/2014, quanto à totalidade do direito de crédito reclamado no montante de € 100.000,00.
A sentença recorrida merece, assim, plena confirmação, improcedendo todas as conclusões da apelante.
*
4 – SÍNTESE CONCLUSIVA (art. 663º/7 CPC)

I – À luz da interpretação restritiva do art. 755º/1, f) do CC que resultou do AUJ nº 4/2014, o direito de retenção pressupõe a verificação cumulativa de quatro requisitos: a existência de um crédito fundado num contrato-promessa; a tradição da coisa referida no contrato-promessa; o incumprimento definitivo imputável ao promitente-vendedor; e, a qualidade de consumidor do promitente-comprador.
II – A tradição exigida para que se constitua o direito de retenção nos termos do art. 755º/1, f) do CC reclama apenas a detenção material lícita da coisa, não se confundindo com a posse e podendo existir sem esta.
III – O crédito do promitente-comprador deverá corresponder ao sinal em dobro, conforme dispõe o art. 442º/ 2 do CC, e não em singelo, nem tão pouco ao valor que decorre da conjugação das normas do CIRE constantes nos seus arts. 102º/3, c), 106º/2 e 104º/5.
IV – Segundo o acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, de 20-03-2014, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador apenas goza do direito de retenção, previsto no art. 755º/1, f) do CC, caso detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor.
V - Tomando como referencial para tal efeito a noção de consumidor previsto no n.º 1 do art. 2º da Lei n.º 24/96, de 31-07, relevante é que o promitente-comprador destine o imóvel a uso particular, no sentido de não o comprar para revenda, nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa.
VI – Sendo a promitente-compradora pessoa singular e destinando a fracção por ela pretendida adquirir a sua habitação própria, deve a mesma ser considerada consumidora, nos termos e para os fins do disposto no art. 2º/1 da Lei n.º 24/96.
*
5 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente o recurso de apelação interposto e consequentemente manter a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente (art. 527º do CPC).
Notifique.
*
Guimarães, 16-05-2019

(José Cravo)
(António Figueiredo de Almeida)
(Raquel Baptista Tavares)


1. Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, V.Real – JL Cível – Juiz 1.
2. Cfr. o Ac. do Trib. da Rel. do Porto de 19/01/2015, rel. Rita Romeira, proc. n.º 3201/12.5TBPRD-A.P1 e o Ac. do Trib. da Rel. de Coimbra de 12/04/2011, rel. Alberto Ruço, proc. n.º 737/09.9T6AVR-B.C1, in www.dgsi.pt.
3. Cfr. as als. D., E. e G. das conclusões, aonde a recorrente refere que, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, não ficou provado que a fracção se destinava à habitação da credora A. M..
4. Há um lapso na identificação da fracção autónoma, pois alude-se ao lote n.º .., quando se depreende que se tratava do lote n.º .., pois é este que corresponde ao prédio descrito sob o n.º …, em contraponto com o prédio descrito sob o n.º …, correspondente ao lote n.º ….
5. Não releva que os dois quantitativos tenham sido pagos após a outorga do contrato-promessa, porquanto, como salienta Gravato de Morais, “Contrato-Promessa em Geral, Contratos-Promessa em Especial”, 2009, Almedina, pág. 197, “(…) qualquer importância entregue posteriormente, seja pela primeira vez, seja por via do «reforço do sinal» tem, à partida, essa natureza”, uma vez que o artigo 441.º do Código Civil não distingue, inculcando antes a letra do preceito que deverão ser consideradas todas as entregas na vigência do contrato-promessa, ao dispor “toda a quantia entregue”.
6. “Nos termos do n.º 3 do artigo 442.º do Código Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, tendo havido tradição de fracção de prédio urbano, o promitente-comprador goza do direito da sua retenção, mesmo que o edifício ainda não esteja submetido ao regime de propriedade horizontal”.
7. Cfr. os Ac. do S.T.J. de 03/06/2003, rel. Silva Salazar, proc. n.º 03A1432 e de 09/01/2018, rel. Pinto de Almeida, proc. n.º 212/14.0T8OLH-AB.E1.S1, in www.dgsi.pt
8. Cfr. Santos Justo, “Direitos Reais”, 2007, Coimbra Editora, pág. 150-156.
9. Proc. n.º 07B2256, in www.dgsi.pt
10. Perfilhando-se a doutrina expendida por Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. III, 1987, 2.ª Ed., Coimbra Editora, pág. 6-7.
11. Publicado no D.R.-I, de 19/05/2014.
12. Para uma categorização mais detalhada, vide Gravato de Morais, idem, pág. 160-165.
13. Cfr. na nota 13, pág. 2889, onde se escreve: “O incumprimento definitivo verifica-se aliás no caso em análise, sendo concludente o comportamento do administrador da insolvência ao mencionar na relação de créditos apresentada o crédito do reclamante com as garantias que entende ser portador – artigo 129º do CIRE; a declaração prestada pelo Administrador leva implícita a existência de incumprimento”.
14. Cfr. o Ac. do S.T.J. de 09/07/2014, rel. Nuno Cameira, proc. n.º 1206/11.2TBLSD-H.P1.S1, in www.dgsi.pt.
15. Cfr., Júlio Gomes, “Direito de Retenção (arcaico, mas eficaz…)”, C.D.P. n.º 11, pág. 24, e os Ac. do S.T.J. de 16/03/2004, rel. Faria Antunes, proc. n.º 04A041 e de 15/04/2015, rel. Serra Baptista, proc. n.º 2583/05.0TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt.
16. Para uma exaustiva exegese desse debate, vide o Ac. do S.T.J. de 16/02/2016, rel. Maria Clara Sottomayor, proc. n.º 135/12.7TBMSF.G1.S1, in www.dgsi.pt.
17. Na enunciação do Ac. do S.T.J. de 17/11/2015, rel. Fonseca Ramos, proc. n.º 1999/05.6TBFUN-I.L1S1, in www.dgsi..pt.
18. Cfr. o Ac. do S.T.J. de 25/11/2014, rel. Fernandes do Vale, proc. n.º 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1, in www.dgsi.pt.
19. Cfr. o citado Ac. do S.T.J. de 16/02/2016.
20. Cfr. Voto de vencida da Exma Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 4/2014, de 20/03/2014, in D.R., 1.ª série, n.º 95, de 19/05/2014.
21. Cfr. Calvão da Silva, Cumprimento e sanção compulsória, pp. 345 e ss. e L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das garantias, 2017, 2ª ed., Almedina, p.359.
22. Cfr. Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 3ª ed., Coimbra, 1993, 120.
23. Cfr. Mariana Coimbra Piçarra, O direito de retenção do promitente-comprador: algumas reflexões, in Julgar, n.º 34, 2018, janeiro-abril, pp. 20/21 e 26.
24. Cfr. Ac. da RC de 15-01-2013 (relator Henrique Antunes) e Ac. da RP de 25/10/2016 (relator Rui Moreira), ambos disponíveis in www.dgsi.pt
25. Cfr. Ac. do STJ de 14/06/2011 (relator Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt.
26. Cfr. Revista Decana, ano 124, p. 351.
27. Cfr. Antunes Varela, Anotação ao acórdão do STJ de 25/02/1986, in RLJ Ano 124.º, pp. 347 e segs.
28. Cfr. Anotação ao acórdão do STJ (…), in RLJ Ano 124.º, pp. 347/348 e 349.
29. Há um lapso na identificação da fracção autónoma, pois alude-se ao lote n.º .., quando se depreende que se tratava do lote n.º .., pois é este que corresponde ao prédio descrito sob o n.º .., em contraponto com o prédio descrito sob o n.º …, correspondente ao lote n.º ...
30. Cfr., Acórdão desta Relação de 4/04/2019 (relatora Maria João Marques Pinto de Matos), processo n.º 1012/15.5T8VRL-AV.G1.
31. Neste sentido, vd. o Ac. do STJ de 09/07/2014, rel. Nuno Cameira, proc. n.º 1206/11.2TBLSD-H.P1.S1, in www.dgsi.pt.
32. Vd. Ac. STJ de 29.07.2016, Proc. Nº 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1, in www.dgsi.pt.
33. O mesmo é dizer que se entendeu que a declaração de insolvência do promitente vendedor mantém intocado o direito de retenção conferido pelo citado art. 755º, n.º 1, al. f) quando o promitente-comprador revestir a qualidade de consumidor - cfr. Filipe Albuquerque de Matos, Os efeitos da Declaração de insolvência sobre os negócios em curso, IV Congresso de Direito da Insolvência, Coordenação Catarina Serra, Almedina, p. 61.
34. Cfr. Margarida Costa Andrade/Afonso Patrão, “A posição jurídica do beneficiário de promessa de alienação no caso de insolvência do promitente-vendedor - Comentário ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, de 19 de Maio”, Julgar online, setembro de 2016, disponível in http://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/09/20160915-ARTIGO-JULGAR-A-posição-jurídica-do-beneficiário-de-promessa-de- alienação-Margarida-C-Andrade-e-Afonso-Patrão.pdf., Mariana Coimbra Piçarra, in estudo citado, p. 32 e o Ac. do STJ de 24/05/2016 (relator Nuno Cameira), in www.dgsi.pt.
35. Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pp. 240/241, Adelaide Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2017, AAFDL, p. 152 e Mariana Coimbra Piçarra, in estudo citado, p. 32.
36. Que, de acordo com a maioria da doutrina, corresponde ao entendimento adotado no nosso ordenamento jurídico.
37. Como se ponderou no Ac. do STJ de 09/07/14 (relator Nuno Cameira), in www.dgsi.pt., trata-se de “entendimento que, muito embora não integre o segmento de uniformização, encerra o valor de premissa lógica necessária que o antecede e, nessa medida, deverá assumir o mesmo carácter vinculativo”.
38. Cfr., entre outros, Acs. do STJ de 13/07/2017 (relator Pinto de Almeida) e de 17/04/2018 (relator Henrique Araújo), in www.dgsi.pt. e Jorge Morais de Carvalho, Manuel de Direito de Consumo, 5ª ed., 2018, Almedina, p. 25.
39. O AUJ confortou-se na posição de Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito de Retenção Contrato promessa e Insolvência” in “Cadernos de Direito Privado”, n.º 33, p. 3 e ss., para restringir a manutenção do direito de retenção em processo de insolvência aos casos em que o promitente comprador tenha a qualidade de consumidor.
40. Cfr., entre outros, Acs. do STJ de 3/10/2016 (relator Júlio Gomes), 29/07/2016 (relator Júlio Gomes), 14-10-2014 (Relator João Camilo) e de 25 /11/2014 (Relator Fernandes do Vale), Ac. da RP de 25/10/2016 (relator Rui Moreira), Ac. RC de 02/02/2016 (Relatora Maria Catarina Gonçalves), Ac. da RC de 08- 09-2015 (Relatora Maria Domingas Simões), Ac RC 3/11/2015 (relator Jorge Arcanjo), todos consultáveis in www.dgsi.pt.
41. Cfr., Ac. do STJ de 14/02/2017 (relator João Camilo), in www.dgsi.pt.
42. Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 17.11.2015, (relator Fonseca Ramos), disponível in www.dgsi.pt.
43. Cfr., Ac. do STJ de 25.11.2014, (relator Fernandes do Vale), disponível in www.dgsi.pt.
44. Cfr. Ac. do STJ de 13/07/2017 (relator Pinto de Almeida), in www.dgsi.pt.
45. Cfr. Venda de Bens de Consumo”, 4ª Ed. (2010), Almedina, p. 55 e segs. e Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 2001, Almedina, pp. 112/114.
46. Cfr. obra citada, p. 114.
47. Cfr. Direito do Consumo, Almedina, 2005, p. 50.
48. Cfr. obra citada, pp. 25/27.