Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
933/10.6PBVCT.G1
Relator: ANA TEIXEIRA
Descritores: BURLA
QUEIXA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
FALTA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Sendo o crime em causa de natureza semi-pública, carece o MP de legitimidade para promover o processo penal e como tal, justifica-se a conclusão da tribunal recorrido ao entender existir falta de uma condição de procedibilidade para procedimento criminal pelo crime de burla simples, por inexistência de queixa da ofendida.
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES SECÇÃO CRIMINAL - Acórdão

I - RELATÓRIO

1. No processo Comum (tribunal Singular n.º 933/10.6 PBVCT, do 1º juízo criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, foi proferida decisão judicial nos seguintes termos [fls.71]:
«(…) A fls.56 e ss. foi deduzida acusação pela Digna Magistrada do Mº.Pº. contra o arguido ali identificado, imputando-lhe a prática de um crime de burla, p. e p. pelo art.217º, nº.1 do C.P..

Vejamos:

Para procedimento criminal quanto a crimes de natureza semi-pública, como é o caso do crime supra referido (cfr.art.217º, nº.3 do C.P.), é necessário que o ofendido se queixe, manifestando o desejo de procedimento criminal (cfr.art.49º, nºs.1 e 3 do C.P.P.).

Ora, compulsados os autos, verifica-se que a ofendida Caixa Geral de Depósitos, ou alguém que legalmente a representasse (munido de poderes para tal), não se queixou, (nem inicialmente, nem até ao termo do prazo para o exercício de tal direito - cfr. art.115º do C.P.).

E, na sequência desta falta de queixa, relativamente a crime de natureza semi-pública, carecia o Mº.Pº. de legitimidade para promover o processo penal (cfr.arts.48º e 49º, nº.1 do C.P.P.), nomeadamente, para deduzir acusação.

Em conformidade com o estatuído no art.311º, nº.1 do C.P.P., recebidos os autos no tribunal, o juiz pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

Ora, sendo a queixa desde logo um pressuposto inicial e essencial para o procedimento criminal por crime de natureza semi-pública, a sua falta determina que não possa receber-se a acusação deduzida, por se verificar a existência de questão prévia que obsta à apreciação de mérito.

Pelo exposto e sem necessidade de maiores considerações, concluindo pela aludida falta de queixa relativamente ao crime de natureza semi-pública em causa, de harmonia com o disposto nos arts.49º, nº.1, a contrario, e 311º, nº.1, do C.P.P., não se recebe a acusação deduzida, determinando-se, o oportuno arquivamento dos autos.

Sem custas.

Notifique.

(…)»

2. Inconformado, o MP recorre, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [fls.76 ]:
«(…)
CONCLUSÕES

1.A acusação pública configura apenas um ofendido – Artur Avelino Lima da Cruz.
2. Que ficou lesado na quantia ali especificada, e como tal, apresentou queixa-crime e foi notificado nos termos dos art°s. 75º, 76º e 77º.
3. A CGD não aparece como lesada nem na denúncia (apenas é o local do crime, não sendo a denúncia em representação), nem na acusação, nem no inquérito, pelo que não tinha legitimidade para apresentar queixa.
4. A douta decisão recorrida, ao rejeitar a acusação pública, viola os art°s. 113º, n.º 1 do C. Penal e 311º, nº 1 do C. Processo Penal.

Nesta medida, revogando o douto despacho recorrido e substituindo-o por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público nos seus exatos termos, farão V. Exas., a costumada e esperada
JUSTIÇA.

(…)»

3. Nesta instância, a Exma. procuradora-geral-adjunta emitiu parecer no sentido de ser concedido total provimento ao recurso [fls.86 ].
4. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO

5. Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª Ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª Ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.
6. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objecto do recurso, importa decidir as seguintes questões:
· Violação dos artigos 113º,n.º1 do CP e 311º do CPP;
Por decisão judicial entendeu-se existir a falta de uma condição de procedibilidade para procedimento criminal pelo crime de burla simples, por inexistência de queixa da ofendida.

No entender do recorrente não se verifica tal condição e tem ilegitimidade para apresentar queixa na medida em que, no caso em apreço não é ofendida a Caixa Geral de depósitos mas sim o identificado Artur Avelino Lima e esse no processo já apresentou queixa.

Analisemos a questão.

Dispõe o artigo 113º,n.º1 do Código Penal que “ Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”

Resulta, deste modo, da letra da lei que o legislador teve em vista a tutela do portador do bem jurídico. Nesta medida, no crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será o prejudicado, que não coincidirá necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com o enganado, não sendo de excluir a existência de uma pluralidade de lesados, a determinar (nos casos em que a lei os não identifica expressamente) em função da conformação do tipo legal de crime e das circunstâncias concretas do caso.

O crime de burla é um crime patrimonial e por isso a titular dos interesses patrimoniais em causa (cujo património foi atingido) é a CGD e só esta.

Como é sabido, a lei concede a certas pessoas a possibilidade de se integrarem no procedimento criminal, através do acompanhamento de um técnico de direito e de exercitarem alguns poderes próprios, além de auxiliarem o detentor da ação penal, ou seja, o Ministério Público, adquirindo a qualidade de sujeitos processuais, no objetivo da promoção da boa administração da justiça.

Porém, tal intervenção está limitada às pessoas indicadas expressamente em normas penais e às indicadas no art.68° CPP, sendo que a al. a) deste preceito, referencia os ofendidos, entendendo por estes os titulares dos interesses que a lei especialmente quer proteger com a incriminação (art.113, nº1, CP).

Mas, nem todos os lesados se podem considerar ofendidos, pois não basta que alguém seja prejudicado com a consumação da infração. É mister que, de acordo com a letra da lei, seja titular dos “interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.

A razão de ser do sistema consagrado prende-se, como salienta Figueiredo Dias, com “necessidades de proteção do lesado e de auxílio à função repressiva do direito penal”. (in Direito Processual Penal, pág. 543).

Como ensina este referido professor, a queixa é “ o requerimento feito segundo a forma e no prazo prescrito, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionado” (dto Penal II, as consequências jurídicas do crime,1993)

Ora, no caso em apreço o que temos não é uma queixa tal como descrita supra; o que sucedeu foi uma denúncia, como aliás se identifica pela própria polícia de segurança pública. Efetivamente foi feita uma simples comunicação, livre de exigências de forma ou de prazo, de molde a habilitar a entidade competente com a notícia do crime. A fls. 8 verso consigna-se que o auto foi lido e revisto e devidamente assinado pelo denunciante e pelo autuante.

No mesmo se consigna e passamos a transcrever:

“Compareceu neste departamento policial o lesado/ofendido a comunicar que o suspeito, no dia 12-11-2010, pelas 13h,30, entrou naquela dependência bancária da Caixa geral de Depósitos, em S. Vicente Viana do Castelo, solicitando um câmbio de novecentas libras estrelinas, após o câmbio já com o contra valor das libras no balcão, este pediu a anulação da transação por não concordar com o câmbio. Foi naquele momento que fez o desvio de 450 euros valor em causa. “

Não se verifica nos autos requerimento a manifestar expressamente a vontade de verificação de procedimento criminal.

Por outro lado importa ainda ter presente o seguinte:

Na acusação é referido que o arguido se dirigiu à dependência da Caixa Geral de depósitos e aí foi recebido por um funcionário desta. A intenção do arguido foi a de lesar a instituição e para isso aproveitou-se do funcionário desta. Ora, mesmo que no caso dos autos não estivéssemos perante a simples denúncia, como é o caso, teria a queixa respetiva que se centrar na representação desta instituição pois que o crime foi direcionado para ela. No caso a Caixa geral de depósitos ou alguém em sua representação não apresentou queixa.

Sendo o crime em questão de natureza semi-pública, carece o MP de legitimidade para promover o processo penal e como tal, andou bem a Exma. senhora juíza ao entender existir falta de uma condição de procedibilidade para procedimento criminal pelo crime de burla simples, por inexistência de queixa da ofendida.

Acresce que mesmo a considerar-se suficiente a intenção do funcionário da Caixa Geral de depósitos também quanto a ele temos de entender não ter ocorrido queixa, mas tão só denúncia, pelo que subsistia a falta de condição de procedibilidade para procedimento criminal.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, os juízes acordam:

· Negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente MP, mantendo o despacho recorrido inalterado.
· Sem tributação

[Elaborado e revisto pela relatora]


Guimarães, 11 de Junho de 2012