Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
236/19.0T8GMR.G1
Relator: JOSÉ CRAVO
Descritores: MÁ FÉ
MULTA
VALOR DA ACÇÃO
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (art. 334.º do CC), nessa medida sendo de conhecimento oficioso.
II – São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.
III – Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, prosseguindo uma conduta contraditória, o A. que coloca em causa, na presente acção, a validade de um contrato, por forma a fundamentar os pedidos aqui formulados, que em acção anterior, não o colocando em crise, expressamente afirmou a sua validade.
IV – A condenação por litigância de má-fé pressupõe o dolo ou a negligência grave (cfr. art. 542º/2 do CPC), na violação do dever de boa-fé processual que deve pautar a actuação da parte que litiga em juízo.
V – Assim, deve ter lugar uma condenação neste quadro quando seja seguro que ao alegar como alegou, a parte tenha, com dolo ou negligência grave, feito do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal [al. d) do nº 2 do dito art. 542º do CPC].
VI – Quanto aos critérios atinentes à fixação do montante da multa por litigância de má-fé, importa considerar o que estabelece o art. 27º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), ao prever que nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC (nº 3), e que o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (nº 4 do citado preceito legal), importando, assim, ponderar o grau de má-fé revelado, as consequências processuais inerentes e as condições económicas dos litigantes de má-fé.
VII – Na falta de elementos atinentes às condições económicas e à situação financeira do autor/litigante de má-fé afigura-se razoável e proporcional às circunstâncias do processo ponderar o valor da acção.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

1 RELATÓRIO

O A. AA, intentou a presente acção declarativa com processo comum[1] contra os RR. BB e mulher, CC, DD e o então seu marido, EE, FF e mulher, GG, e HH e mulher, BB, pedindo a declaração de nulidade, por simulação, da compra e venda efectuada em .../.../1964 por II e esposa, JJ, ao 3º R. marido, consequentemente, seja declarado que os prédios objecto mediato dessa compra e venda, pertencem ao acervo hereditário dos vendedores e, como tal, sejam à herança restituídos.
Alegou para o efeito, serem ele e os 1º e 2º RR. maridos irmãos, todos filhos de II e de JJ, já falecidos. Mais alegou que em .../.../1964, os seus pais declararam vender ao 3º R. marido, cinco prédios que identificam, sendo que os 3ºs RR. venderam: um desses prédios aos 1ºs RR. que, mais tarde, o transmitiram ao 4º R., seu filho; outro dos cinco prédios ao 2º R. marido; dois dos prédios em referência a um KK; e o último prédio a LL. Aduz que o 3º R. se apropriou ilegitimamente dos prédios identificados na escritura pública de .../.../1964, já que não só o falecido II não assinou a escritura pública, como não foram recebidos pelos alegados vendedores os 58.000$00 mencionados como sendo o preço convencionado para a venda dos cinco prédios.
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Contestaram a 1ª R. (fls. 167 e ss. do processo físico), a 2ª R. (fls. 223 e ss.) e o 2º R. (fls. 232 e ss.), impugnando os fundamentos da acção e sustentando a improcedência do pedido.
Também os 3ºs e 4ºs RR. contestaram (fls. 297 e ss.), excepcionando a prescrição do direito arrogado pelo A. e impugnando ainda os fundamentos da p.i.
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Por despachos preferidos a 04-09-2021 (fls. 312) e 09-11-2021 (fls. 314) foram, respectivamente, concedida ao A. a possibilidade de contraditar a matéria de excepção invocada pelos RR. e habilitados os herdeiros do co-R. EE.
Proferiu-se despacho-saneador a 15-01-2022 (fls. 316 e ss.) com dispensa de realização da audiência prévia, identificação do objecto do litígio, da matéria assente e do objecto da prova, seguindo de despacho de apreciação dos meios de prova indicados pelas partes.
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Depois de designada data para realização da audiência de julgamento, veio a Habilitada MM em requerimento de 04-04-2022 (fls. 394 e ss.) requerer se declare a existência da exceção dilatória de caso julgado e, caso assim não se entenda, o abuso do direito do A. na instauração da presente acção.
O A. exerceu o contraditório em requerimento de 20-04-2022 (fls. 484 e ss.) pugnando pela improcedência das excepções invocadas e pelo prosseguimento dos autos.
Foi proferido o despacho de 29-05-2022 (fls. 503 e ss.) que, entre outras coisas, julgou improcedente a excepção do caso julgado invocada pela Habilitada e determinou a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão final do processo comum nº 3434/21.... do Juiz ... do Juízo Local Cível ..., por considerar que tal constituiria um precedente jurisprudencial que, considerada a identidade de parte significativa dos factos com a presente acção, recomenda a ponderação da eventual aplicação da posição aí vencedora.
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Transitada em julgado a decisão final do mencionado processo comum nº 3434/21...., foi declarada cessada a determinada suspensão da instância e oficiosamente foram instruídos os autos, bem como ouvidas as partes, quanto à excepção de abuso de direito invocada pela Habilitada e oficiosamente, a questão da litigância de má-fé do A.
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Seguidamente, entendendo-se que o tribunal já se encontrava na posse de todos os elementos para conhecer do mérito do pedido formulado pelo A., passou de imediato a apreciá-lo, proferindo sentença, que decidiu nos seguintes termos:
Pelo exposto:
A.
Julgo improcedentes os pedidos formulados pelo Autor, dos mesmos absolvendo os Réus.
B.
Condeno oficiosamente o Autor como litigante de má-fé, no pagamento de multa de 60 (sessenta) unidades de conta.
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Custas pelo Autor (sem prejuízo do benefício de apoio judiciário).
Após trânsito, comunique-se ao M.º P.º e À Segurança Social, nos termos e para os efeitos previstos pela alínea d) do n.º 1 do artigo 10º da Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais.
Registe e notifique.
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Inconformado com essa sentença, apresentou o A. AA recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou, com a apresentação das seguintes conclusões:

A. Não se conforma o recorrente com a douta decisão proferida, sendo seu entendimento, por um lado que não se preenchem os requisitos previstos no artigo 334.º do Código Civil e, por outro lado, que o tribunal a quo se precipitou, devendo ter relegado para final a apreciação da questão de abuso de direito.
B. Os documentos juntos aos autos (em especial as certidões judiciais juntas como doc. ... e doc. ... do requerimento apresentado pela Habilitada NN, em 04-04-2022), de per se, não se julgam suficientes para que o tribunal pudesse decidir e, concluir, como concluiu, ou seja, pela verificação de uma conduta que excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé, tornando abusivo e ilegítimo o exercício do direito que o A. se arroga, porquanto da prova a produzir em sede de audiência de julgamento, crê-se, resultaria provada factualidade que afastaria a conclusão precoce infundadamente alcançada.
C. Pelo que, se impunha a absolvição do recorrente do pedido de condenação em abuso de direito – na modalidade de venire contra factum proprium - e litigância de má-fé, por falta de verificação dos respectivos requisitos, prosseguindo os autos até final, ou, se assim não se entendesse deveria, tal decisão, ser relegada para decisão final, após produção de prova.
D. No entendimento do recorrente/apelante ao decidir como decidiu, violou, o tribunal a quo o disposto no artigo 334.º do Código Civil e, bem assim, o disposto no artigo 5.º e 542.º n.º 2 al. d) ambos do CPC, artigos 13.º n.º 1 e 2, 18.º n.º 1 e 20.º da CRP, artigos 1.º, 2.º, 3.º, 6.º, 7.º, 8.º, 10.º n.º 1 al d) da Lei 34/2004 de 29/07.
E. Entende o recorrente/apelante que o tribunal a quo incorreu em erro de apreciação da prova, mormente quanto às referidas certidões judiciais juntas sob os docs. n.º ... e ... no requerimento de 04-04-2022.
F. Na fundamentação da decisão o Exmo. Sr. Juiz a quo, socorrendo-se da decisão proferida nos autos do Processo n.º 3434/21...., concluiu, como naquele aresto que «…provado está que no âmbito da acção que sob o n.º 243/11.... correu termos pelo Juízo Central Cível ... (J...), instaurada pelo aqui A. contra BB e mulher CC, a … aqui 1.º R… e o então seu marido, EE e FF , entre outros e na sequência de incidente de ampliação do pedido e causa de pedir, o A. peticionou a declaração de nulidade, por simulação, das escrituras de compra e venda invocadas também nesta p.i., tendo vindo a desistir da instância relativamente a tal pretensão
G. Do documento junto sob o n.º 1 do requerimento apresentado pela habilitada NN, não se extrai, por um lado que o ali A., aqui recorrente, tivesse deduzido ampliação de pedido e causa de pedir onde peticionasse a declaração de nulidade, por simulação, da escritura de compra e venda outorgada em .../.../1964 entre os seus pais, II e OO e os aqui 1.ºs a 3.ºs R.R, uma vez que tal não resulta expressamente de nenhuma das peças do aludido documento.
Se assim não se entender, o que, não se concede mas por mera cautela de patrocínio se admite,
H. Do documento ... resulta que o ali A., aqui recorrente/apelante desistiu do pedido formulado em c), ou seja, «serem os 2.ºs Réus condenados a reconhecer a propriedade e deixarem de ocupar abusivamente o prédio identificado no artigo 72.º supra, prédio rústico designado por “...”, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...42 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...42, que pertence ao Autor e aos demais herdeiros de II e de JJ.»
I. Pelo que, não corresponde à verdade que o ali A., aqui recorrente tivesse desistido do pedido de declaração de nulidade, por simulação, «das escrituras de compra e venda invocadas também nesta p.i., tendo vindo a desistir da instância relativamente a tal pretensão.», como se refere na decisão de que se recorre.
J. Na acção declarativa sob a forma de processo ordinário, que correu termos sob o n.º 378/11...., ... Vara de Competência Mista do Tribunal ..., veio o A., aqui recorrente/apelante, e sua esposa, pedir se declarasse:
- A nulidade do registo quanto à parte rústica da descrição do prédio, actualmente descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...16 que foi extractada da descrição ...08;
- Que o prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ...08 que deu origem à 616/..., ... é urbano e não contém qualquer parte rústica;
- Que os Réus sejam condenados, solidariamente, a pagar aos autores a quantia de 679.334€;
- Que o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...08 e que deu origem à 616/..., ... tem natureza urbana, com a área de 754m2; área coberta de 117m2 e um logradouro de 637m2, matriz urbana n.º ...5.
K. Mais uma vez o tribunal a quo socorrendo-se da decisão proferida no Processo n.º 3434/21...., entendeu, que tal como ali se decidiu, o Autor [naquela acção, aqui, também Autor e recorrente], para fundamentar a pretensão formulada no âmbito daquela acção, não colocou em crise a validade das escrituras públicas de compra e venda outorgadas em .../.../1964 e .../.../1966 antes, ao invés, expressamente afirma a validade desses negócios.
L. Entende, porém, o recorrente que a douta decisão de que se recorre está, nesta parte, novamente, ferida de erro na apreciação da prova.
M. Porquanto, não devia o tribunal ter-se bastado com o recurso às afirmações contidas nos artigos 24.º, 28.º e 29.º da petição inicial daqueles autos (Proc. n.º 378/11....),
N. Atentando no teor dos artigos 23.º a 47.º e 68.º a 69.º daquela petição inicial, facilmente se depreende que o ali Autor (aqui A. e recorrente), não põe em causa «a validade das escrituras públicas de compra e venda outorgadas em .../.../1964 e ..., antes, ao invés, expressamente afirma a validade desses negócios.»
O. Entende o recorrente/apelante que o tribunal a quo incorreu num erro de apreciação da prova derrogando e violando, em consequência, os mais elementares princípios processuais.
P. É que, na modesta opinião do recorrente, não podia, muito menos devia, o tribunal a quo enxertar do petitório daquele processo [378/11....] as afirmações contidas nos mencionados artigos 24.º, 28.º e 29.º daquela peça processual, descontextualizadas de toda a demais factualidade alegada, uma vez que, ao fazê-lo, viola patentemente o princípio do dispositivo.
Q. Pois, os artigos em causa, juntamente com, pelo menos, todos os demais supra transcritos [23.º a 47.º e 68.º a 70.º daquela peça processual] integram o tal núcleo essencial e completador de uma causa de pedir complexa como é a de pedir a declaração de nulidade do registo do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ...16 (que foi extractada da descrição n.º ...08).
R. Para que o autor, naquela acção processual, pudesse carrear aos autos os factos essenciais fundamentadores da sua pretensão jurídica de obter a declaração de nulidade do registo da descrição n.º ...16 da freguesia .../..., tinha necessariamente que alegar os factos jurídicos – respectivos e sucessivos contratos de compra e venda – que estiveram na base da respectiva sucessão de “transmissão” do mencionado bem imóvel e os actos jurídicos posteriormente pelos “pretensos” titulares que determinaram a alteração da mencionada descrição predial, cuja nulidade se pretendia, sob pena de a sua pretensão decair por falta de alegação da factualidade essencial à respectiva procedência.
S. Pelo que as afirmações contidas nos referidos artigos 24.º, 28.º e 29.º daquela peça processual – petição inicial do processo n.º 378/11.... – limitam-se a descrever os factos jurídicos ocorridos entre os RR., e deles não se extrai o efeito jurídico pretendido obter pelo tribunal a quo.
T. O tribunal a quo, enxertando tais afirmações descontextualizadas do seu todo, não teve em consideração, descurando-as as várias alocuções contidas nos demais artigos, supra transcritos, que demonstram que o ali autor, efectivamente, não deu por válidas as escrituras de compra e venda outorgadas em .../.../1964 e ..., como foi o caso de: “supostamente” (artigo 23.º), “era suposto” (artigo 28.º), “se criou a aparência” (artigo 45.º), “essa aparência … foi combinada com os três primeiros réus com o objectivo…” (artigo 46.º), “recorreram ao 3.º réu marido, cunhado e amigo do 1.º réu, para alterar a descrição do prédio” (artigo 68.º), “para conseguir o objectivo e dessa forma constar na escritura de compra e venda de 30/12/1966” (artigo 69.º), “quando era falsa essa realidade” (artigo 70.º).
U. Em momento algum daquele petitório o aqui A. reconheceu qualquer um dos réus ali demandados como donos e proprietários do referido imóvel.
V. Por outro lado, os próprios pedidos deduzidos pelos AA., naquela acção são opostos ao raciocínio lógico formulado pelo tribunal a quo, de que o autor deu por válidos os contratos de compra e venda outorgados nas escrituras de .../.../1964 e ..., pelo que, o mesmo encontra-se ferido de um vício que se impõe sanar.
W. Atento tudo o supra referido, entende o recorrente que não se preencheram os requisitos do instituto do abuso de direito.
X. Por outro lado, ao longo dos seus articulados e da lide, naqueles processos, o Recorrente manifestou sempre a discordância entre o vertido no título e o espírito da vontade das partes – existência de conluio dos Réus e a falta de vontade dos progenitores do aqui recorrente e dos 1.º e 2.º Réus em transmitir as suas propriedades para saldar dívidas e obrigações.
Y. Para que dúvidas não subsistam, o Recorrente nunca as reconheceu, implícita ou expressamente, como válidas e eficazes.
Z. Da factualidade apurada até ao presente momento, não está demonstrado que a presente acção se encontra viciada ab initio, muito menos que a acção foi proposta com vista a satisfação de interesses ou escopos distintos daqueles que justificaram a concessão do direito.
AA. Assim sendo, salvo melhor entendimento, o aqui Recorrente considera não estarem reunidos, neste pleito, os requisitos necessários para verificar a existência de abuso de direito, na figura de venire contra factum proprium, muito menos de litigância de má-fé.
BB. O que aconteceu é que para ver acautelado o seu direito nos diferentes processos necessitou de “dar conhecimento” ao Tribunal de tais escrituras, sendo apenas para esses efeitos que as referiu, não constituído a referência a esses títulos e respectivas transmissões o reconhecimento de validade de qualquer um desses negócios.
CC. Assim sendo, o Recorrente não está, de forma alguma, a fazer dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, impedindo a descoberta da verdade.
DD. Posto isto, deverá ser o Recorrente absolvido do pedido de litigância de má-fé, uma vez que, nenhum dos factos descritos pressupõe, uma actuação dolosa ou com negligência grave – em termos da intervenção na lide –, consubstanciada, objectivamente, na ocorrência de alguma das situações previstas nas diversas alíneas do seu nº 2 do artigo 542º do Código de Processo Civil.
EE. Se assim não se entender, deverá o recorrente ver, substancialmente, reduzido o valor da multa a que foi condenado e que, em face ao exposto, entende ser manifestamente gravoso e penoso.

TERMOS EM QUE:
Deve o douto despacho saneador sentença de que se recorre ser revogado, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos.
Assim, fazendo, farão, V/Exas.
A costumada e sã Justiça!
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Notificada das alegações de recurso apresentadas pelo A., a habilitada MM apresentou as suas contra-alegações, que finalizou pedindo a sua improcedência e confirmação da sentença recorrida.
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Igualmente notificada das alegações de recurso apresentadas pelo A., também a R. DD apresentou as suas contra-alegações, que finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

1.º - O Autor, aqui Recorrente, intentou ação declarativa comum contra os Recorridos a pedir a declaração de nulidade por simulação de compra e venda efetuada em 14/03/1964 pelos seus pais ao 3º Ré marido da petição inicial.
2.º - Através de saneador-sentença, a ação foi julgada improcedente e os Recorridos foram absolvidos do pedido e foi o Recorrente condenado numa multa de 60 unidades de conta por litigância de má fé.
3.º - Isto porque o tribunal a quo entendeu, e bem, que a conduta do apelante se enquadrava no instituto de abuso de direito.
4.º - O Recorrente intentou recurso de apelação do saneador-sentença, manifestando a sua não concordância relativamente a que a sua conduta se enquadrasse no instituto do abuso de direito e ainda o seu desacordo com a quantificação feita no que tange à multa por litigância de má fé.
5.º - O Recorrente começa por alegar que o tribunal a quo incorreu em erro de apreciação de prova porque da petição inicial no processo 243/11...., que correu termos no Juiz ... do Juízo Central Cível ..., não se extrai que o Recorrente, ali autor, tivesse deduzido ampliação de pedido e causa de pedir onde peticionasse a declaração de nulidade, por simulação, da escritura de compra e venda outorgada em 14/03/1964 entre os seus pais, II e OO e os aqui 1.ºs a 3ºs réus.
6.º - Ora, no acórdão do Tribunal da Relação é possível ler que o ali autor, aqui Recorrente, “posteriormente, ampliou o pedido e a causa de pedir na réplica, peticionado a declaração de nulidade, por simulação, das escrituras de compra e venda dos autos o que foi admitido (fls. 347 e 652)”.
7.º - Posto isto, não se entende porque o Recorrente nega que tenha ampliado o pedido e a causa de pedir e duvida da palavra do Tribunal da Relação que, certamente, não o teria afirmado se não tivesse um documento nos autos que comprovasse essa ampliação do pedido efetuada pelo Recorrente, ali autor.
8.º - Além disso, o Recorrente alega ainda que na petição inicial do processo 378/11...., que correu termos na ... Vara de Competência Mista do Tribunal ..., não deu como válidas as escrituras públicas de compra e venda outorgadas em 14/03/1964 e em 30/12/1966.
9.º - A verdade é que lendo a petição inicial, verificamos que o Recorrente, ali autor, reconheceu na mesma e, mormente, nos artigos 24.º, 27.º, 28.º e 29.º da sua Petição Inicial desse processo, a validade das escrituras de compra e venda de 14 de março de 1964 e de 30 de dezembro de 1966.
10.º - No artigo 28.º da Petição Inicial desse processo, o Recorrente, ali autor refere, “No entanto, era suposto os 3.º réus terem vendido o que havia adquirido o 3º réu marido ainda solteiro – nem mais nem menos. E NÃO FOI O QUE ACONTECEU”.
11.º - No artigo 29.º da Petição inicial do mesmo processo, o autor diz que “O 3º réu marido comprou, por escritura pública celebrada em 14 de Março de 1964, – cfr segunda daquela escritura – a II e mulher: Prédio, urbano, compondo-se de casas de rés-do-chão e águas furtadas, com logradouro, no sítio do Campo ... ou da ..., Lugar ..., da mesma freguesia ..., formando o descrito ou melhor a totalidade do prédio descrito na Conservatória sob o número ..., do Livro B, ... e escrito na matriz sob o artigo urbano ...”.
12.º - Vem o Recorrente alegar que tais afirmações estão descontextualizadas da factualidade alegada no resto da petição inicial e que o tribunal não podia enxertar do petitório do mencionado processo as afirmações contidas nos artigos 24.º, 28.º e 29.º da petição, descontextualizadas do resto.
13.º - Afirma o Recorrente que nesse processo não deu por válidas as escrituras de compra e venda outorgadas em 14/03/1964 e 30/12/1966, como se pode verificar pelo uso de alocuções como “supostamente” (artigo 23.º), “era suposto” (artigo 28.º), “se criou a aparência” (artigo 45.º), “essa aparência...foi combinada com os três primeiros réus com o objetivo...” (artigo 46.º), recorreram ao 3º réu marido, cunhado e amigo do 1º réu, para alterar a descrição do prédio” (artigo 68.º), “para conseguir o objectivo e dessa forma constar na escritura de compra e venda de 30/12/1966”(artigo 69.º), “quando era falsa essa realidade” (artigo 70.º).
14.º - Ora, da leitura completa e atenta dessa petição inicial e do espírito da mesma, nada resulta que nos leve a crer que o Recorrente, ali autor, discorde da validade das escrituras acima mencionadas, muito pelo contrário.
15.º - O Recorrente pretende que o tribunal desvalorize todas as suas afirmações e o espírito da petição inicial, mas que valorize apenas algumas palavras soltas, algumas frases soltas, algumas alocuções, algumas expressões, para comprovar que não deu como válidas as escrituras de 1964 e de 1964, o que não faz qualquer sentido.
16.º -Certo é que o Recorrente já deu permanentes e sucessivos sinais de não colocar em causa a validade das escrituras de compra e venda de 1964 e de 1966 e já reconheceu expressamente a validade das mesmas.
17.º - Portanto, como bem referiu o tribunal a quo e a Mma. Juiz de Direito no saneador-sentença no processo n.º 3434/21...., que correu termos no Juízo Local Cível ... – Juiz ..., o Recorrente tem tido uma conduta absolutamente contraditória.
18.º - Isto porque, se o Recorrente numa ação ataca a validade das escrituras públicas de 1964 e 1966 para fazer valer a sua pretensão, já noutra ação reconhece a validade das mencionadas escrituras, no intuito de fazer valer outra sua pretensão.
19.º - Exercendo uma incessante perseguição judicial, a coberto do (abuso) do apoio judiciário, sobre os Recorridos e não lhes dando sossego nem descanso, nem respeitando a já avançada idade de alguns Recorridos, como é o caso da aqui Recorrida, e as consequências na saúde que, inevitavelmente, advém de tal perseguição.
20.º - O n.º 1 e n.º 2 do artigo 542.º do CPC estipulam o seguinte:
1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
21.º - A conduta do Recorrente pode-se enquadrar na alínea b) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC, pois como se viu, o Recorrente, nos diversos processos que intentou, foi alterando as causas de pedir e foi-se contradizendo, ora atacando, ora reconhecendo a validade das escrituras, conforme mais lhe conviesse para a sua pretensão em causa, impedindo a descoberta da verdade.
22.º - Portanto, andou muito bem o tribunal a quo em considerar a conduta do Recorrente como abuso de direito e em condená-lo numa multa de 60 unidades de conta por litigância de má fé, pois a sua conduta, totalmente contraditória e persecutória, ultrapassa todos os limites impostos pela boa fé.
Termos em que deve o recurso interposto pelo Recorrente ser julgado improcedente, mantendo-se a douta decisão do Tribunal a quo, assim se fazendo
JUSTIÇA!
 
*

O Exmº Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida.
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Foram facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos.
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Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pelo apelante, este pretende que seja reapreciada a decisão que julgou improcedentes os pedidos por si formulados e o condenou como litigante de má-fé.
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3 – OS FACTOS

Encontram-se provados por certidão os seguintes factos:
*
i. O A. AA, beneficiando de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação de patrono, intentou, em 16.06.2011, contra BB e mulher, CC, DD e o então seu marido, EE, e FF e mulher, GG, acção declarativa sob a forma ordinária de processo que correu termos pelo Juízo Central Cível ... (J...) sob o n.º 243/11.... peticionando a condenação dos ali demandados:

- os 1.ºs e 2.ºs, a reconhecerem que o prédio identificado no art. 56.º da p.i. (prédio rústico com a área de 200 m2) é propriedade do ali A. e dos demais herdeiros de II e de JJ;
- os 1.ºs e 3.ºs, a pagarem ao A. quantia a liquidar em incidente de liquidação, acrescida de juros moratórios a contar desde a citação até efectivo e integral pagamento, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos com a alienação do património dos pais;
- os 2.ºs, a reconhecerem que o prédio rústico designado por “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42 e inscrito na respectiva matriz sob o art.º ...42.º, é pertença do A. e demais herdeiros de II e JJ.
Alegou, para tanto e em síntese, que no dia .../.../1964 o ali 3.º R. marido se havia apropriado, “por escritura pública de compra e venda celebrada com II e JJ”, de dois prédios urbanos e três prédios rústicos, que identifica, apropriação essa que afirma ter existido por o falecido II não ter assinado a escritura pública e não ter recebido os 58.000$00 ali mencionados como sendo o preço convencionado para a venda dos cinco prédios (nos quais não se incluía aquele descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42).
Mais alegou que descobrira que por sentença transitada em julgado no ano de 1957 os falecidos pais haviam obtido a propriedade, a seu favor, do prédio rústico designado por “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42 e inscrito na respectiva matriz sob o art.º ...42.º, de que os ali 2.ºs RR. se arrogavam proprietários sem título bastante e que ilegitimamente ocupavam.
Posteriormente, ampliou o pedido e a causa de pedir na réplica, peticionando a declaração de nulidade, por simulação, das escrituras de compra e venda invocadas na p.i..
Contestando tal acção, invocaram os RR. EE e esposa a escritura de doação outorgada pelos pais do R. marido em 1964, concluindo por serem eles os donos e legítimos proprietários de tais prédios, e aludiram ainda ao facto de a mesma ser do conhecimento do A., por no âmbito da acção referida infra em vi., haver invocado tal negócio na sua causa de pedir, e como tal qualificando como má-fé a sua conduta processual (cfr. certidão junta como documento ... do requerimento de 04.04.2022 - fls. 396 e ss. dos autos);
ii. Em 10.10.2016, o A. desistiu da instância relativamente ao último pedido identificado em i. (cfr. certidão junta como documento ... do requerimento de 04.04.2022 - fls. 396 e ss. dos autos);
iii. Relativamente ao primeiro dos pedidos formulados no âmbito da acção identificada em i. foi proferida decisão que julgou: verificada, quanto a ele, a excepção de litispendência, em virtude da pendência do processo n.º 5034/09....; e quanto aos demais, a petição inicial foi julgada inepta por decisão confirmada por Ac. Rel. Guimarães de 16.02.2017 e como tal foram os ali RR. absolvidos da instância (cfr. certidão junta como documento ... do requerimento de 04.04.2022 - fls. 396 e ss. dos autos);
iv. O A. AA e mulher, BB, ambos beneficiando de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação de patrono, intentaram no segundo semestre de 2011 contra DD e o então seu marido, EE, BB e mulher, CC, FF e mulher, GG, e o Estado Português, acção declarativa sob a forma ordinária de processo que correu termos pelo Juízo Central Cível ... (J...) sob o n.º 378/11.... peticionando: - a declaração de nulidade do registo do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16 (que foi extractada da descrição n.º ...08) quanto à parte rústica da descrição do prédio; - a declaração de que o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...08, que deu origem ao n.º 616, é urbano e não contém qualquer parte rústica; - a condenação solidária dos RR. no pagamento, a seu favor, da quantia de € 578.834,00, posteriormente objecto de ampliação. Alegaram, para tanto e em síntese, que por escritura pública celebrada em 05.5.1982 haviam comprado a ... ou Campo ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... n.º 31.519 e inscrita na matriz sob o art.º ...06, sendo que os ali 1.ºs RR., em 25.10.1982, intentaram uma acção ordinária, que correu termos pelo ... Juízo Cível sob o n.º 147/82, invocando o seu direito de preferência na referida aquisição da "... ou Campo ...”, por serem proprietários de um prédio rústico, alegadamente denominado como “Campo ...”, situado no Lugar ..., freguesia ..., ..., ao qual teria sido atribuído o artigo matricial ...05.º da freguesia ..., ..., acção essa que veio a ser julgada procedente pelo STJ. Mais alegaram que o invocado prédio rústico Campo ... teria sido supostamente adquirido pelo ali 1.º R. marido, em conjunto com um outro prédio urbano, inscrito na matriz urbana sob o art.º ...5.º da mesma freguesia, por compra a FF e mulher GG (ali 3.ºs RR.) compra essa titulada por escritura pública compra e venda e constituição de servidão outorgada em .../.../1966. Aduziram que o ali 3.º R. marido (o vendedor) adquirira a II e mulher, por escritura pública celebrada em .../.../1964, um prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão e águas furtadas, com logradouro, no sitio do Campo ... ou da ..., Lugar ..., da mesma freguesia ..., estando a totalidade do prédio descrito na Conservatória sob o n.º ...08 e inscrito na matriz sob o artigo urbano ...5.º. ... que estes II e esposa, primitivos proprietários do Campo ..., haviam transformado o prédio, originariamente rústico (e inscrito na matriz sob o art.º ...05.º), em urbano, em virtude da construção de uma morada de casas de r/c com logradouro, tendo desaparecido logo em 1953, tanto na descrição predial como na realidade, a natureza rústica do prédio. Foram os ali 3.ºs RR., afirmaram, em conluio com o ali 1.º R. marido e com os 2.ºs RR., quem requereu junto da 1.ª Repartição de Finanças ... a certidão matricial do art.º rústico ...05.º, celebrando a escritura de compra e venda discriminando os prédios como sendo autónomos e diferentes – quando o não eram – por forma a criar a aparência da existência de um prédio rústico na titularidade do ali 1.º R., marido, com o objectivo de lhe atribuir um direito de preferência na venda de campos que se encontravam em contiguidade, a sul e a poente, designadamente o prédio adquirido pelos ali AA. e que foi o objecto da acção de preferência (cfr. certidão junta como documento ... do requerimento de 04.04.2022 - fls. 431 e ss. dos autos);
v. Pela procedência da excepcionada prescrição foi a acção identificada em iv. julgada improcedente quanto ao pedido indemnizatório e relativamente aos demais, por verificação da excepção inominada de falta de interesse em agir, foram os ali demandados absolvidos da instância. A decisão, datada de 23.05.2012, foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães por acórdão datado de 28.02.2013 (cfr. certidão junta como documento ... do requerimento de 04.04.2022 - fls. 431 e ss. dos autos);
vi. No primeiro trimestre do ano de 2008, A... & C.ª Lda., representada pelo aqui A. e ainda por PP, instaurou contra DD e falecido marido e BB e respectiva esposa, CC, acção declarativa sob a forma ordinária de processo, que correu termos pela extinta ... Vara Mista de Guimarães sob o n.º 116/08...., peticionando, pela sua procedência, a condenação dos ali demandados a reconhecerem que a ali demandante era dona e legítima proprietária de dois prédios, um dos quais o prédio rústico denominado ..., situado no lugar de ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42 e inscrito na matriz sob o art.º ...42.º, e ainda a condenação dos RR. a restituírem tais prédios livres de pessoas e bens bem como no pagamento de quantia a liquidar em incidente de liquidação. Alegou, para tanto e em síntese, que em 1971, AA, EE e BB constituíram uma sociedade irregular para o exercício, com fim lucrativo e carácter duradouro, da actividade de fabrico de artefactos de cimento, tendo sido acordado que os três sócios teriam participações iguais na sociedade. Mais alegou que para a formação do capital social, o sócio AA entrou com as máquinas necessárias ao exercício da respectiva actividade, o sócio EE entrou com o prédio rústico denominado ..., situado no lugar de ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42 e inscrito na matriz sob o art.º ...42.º, que havia adquirido por doação titulada por escritura pública outorgada em .../.../1964, e o sócio BB entrou com as obras necessárias à construção do pavilhão no prédio rústico que constituiu a entrada do irmão EE. Juntou como elemento probatório certidão da escritura de doação de .../.../1964. Prosseguiu arguindo que entre 1971 e 1975 a sociedade irregular desenvolveu a sua actividade, tendo sido em 1975 que os sócios decidiram legalizar a situação. Como o BB revelasse vontade de ceder a sua posição, com o consentimento dos demais sócios cedeu-a a PP, enquanto que o EE cedeu a sua à esposa, DD, tendo sido desta forma que nasceu, em .../.../1975, a A... & C.ª Lda., para quem foi transferido todo o património da sociedade irregular. Aduziu ainda que desde tal data se encontra na posse, entre outros, do prédio rústico denominado ..., transformando-o, colhendo os seus proventos, suportando os respectivos encargos (mormente de natureza fiscal), à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de ser dona do prédio em causa, sendo certo que os RR. se recusam a entregar-lho (cfr. certidão judicial da acção ordinária n.º 116/08.... da ... Vara Mista de Guimarães, junta aos autos);
vii. A acção referida em vi. foi julgada improcedente, por sentença transitada em julgado em 15.12.2014, com a consequente absolvição dos RR. do pedido, por se ter entendido inexistir qualquer acto válido translativo do direito de propriedade sobre a ... da esfera jurídica do R. EE para a da ali A. (cfr. certidão judicial da acção ordinária n.º 116/08.... da ... Vara Mista de Guimarães, junta aos autos);
viii. Em 22.04.2015, o aqui A. formulou junto do ISS pedido de apoio judiciário que lhe veio a ser concedido em 21.05.2015, com vista à propositura de nova acção cível (cfr. certidão judicial da acção comum n.º 2527/16.... do Juízo Central Cível ... - J..., junta aos autos);
ix. No âmbito da concessão mencionada em viii., veio a ser instaurada em 22.04.2016, pelo aqui A. contra os EE e mulher BB e mulher CC, com incidente de intervenção principal provocada de PP e mulher QQ, a acção declarativa sob a forma comum de processo a que veio a ser atribuído o n.º 2527/16...., que correu termos pelo Juízo Central Cível ... (J...) em que, entre outros, peticionou que pela procedência daquela acção, fosse declarado que a sociedade “A... & C.ª Lda.” era credora dos RR. EE e mulher pelo montante de € 353.813,94, acrescida das rendas recebidas após a instauração daquela acção ou, subsidiariamente, a condenação daqueles demandados no pagamento a ele, demandante, da quantia de € 117.937,98 (correspondente a 1/3 das rendas recebidas), acrescida de 1/3 das rendas recebidas após a instauração daquela acção. Alegou, para tanto e em síntese, que em 1971 ele (ali A.), EE (aqui R.) e BB constituíram uma sociedade irregular para o exercício, com fim lucrativo e carácter duradouro, da actividade de fabrico de artefactos de cimento, tendo sido acordado que os três sócios teriam participações iguais na sociedade. Mais alega que para a formação do capital social ele, A., entrou com as máquinas necessárias ao exercício da respectiva actividade, o sócio EE entrou com o prédio rústico denominado ..., situado no lugar de ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42 e inscrito na matriz sob o art.º ...42.º, que havia adquirido por doação titulada por escritura pública outorgada em .../.../1964, e o sócio BB entrou com as obras necessárias à construção do pavilhão no prédio rústico que constituiu a entrada do irmão EE. Prosseguiu, arguindo que entre 1971 e 1975 a sociedade irregular desenvolveu a sua actividade, tendo sido em 1975 que os sócios decidiram legalizar a situação. Como o BB revelasse vontade de ceder a sua posição, com o consentimento dos demais sócios cedeu-a a PP, enquanto que o EE cedeu a sua à esposa, DD, tendo sido desta forma que nasceu, em .../.../1975, a A... & C.ª Lda., que desde a data da sua constituição até 1980 fruiu, entre outros, o prédio denominado ..., colhendo os seus proventos, suportando os respectivos encargos (mormente de natureza fiscal), à vista de todos e sem oposição de ninguém. Prosseguiu, aduzindo que a A... & C.ª Lda. deixou de exercer a sua actividade em 1980, sendo certo que entre essa data e 2007 os RR. EE e mulher deram de arrendamento a terceiros que identifica, os edifícios que haviam sido erigidos na ... e que eram propriedade da A... & C.ª Lda. Aludindo à acção mencionada em v., e reconhecendo que, ante o conteúdo da decisão, não poderia reivindicar a propriedade do imóvel, enquadrou o seu pedido na substituição de tal pretensão por um direito de crédito decorrente do não cumprimento da obrigação de entrada e enriquecimento sem causa por utilização de bens societários (rendas percebidas pelo arrendamento dos pavilhões que eram propriedade da sociedade e que o ali R. EE havia demolido) (cfr. certidão judicial da acção comum n.º 2527/16.... do Juízo Central Cível ... - J..., junta aos autos);
x. Por decisão datada de 09.11.2016 e transitada em julgado em 14.12.2017 foram os RR. absolvidos da instância quanto aos pedidos referidos em ix. por ilegitimidade activa do A. (cfr. certidão judicial da acção comum n.º 2527/16.... do Juízo Central Cível ... - J..., junta aos autos);
xi. Em 10.06.2017, o aqui A. AA, beneficiando de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento de honorários a patrono, intentou contra DD e o então seu falecido marido, EE, acção declarativa sob a forma comum de processo, que correu termos sob o n.º 3313/17.... no Juízo Local Cível ..., peticionando a declaração de nulidade, por simulação, da doação do prédio rústico denominado ..., situado no lugar de ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42 e inscrito na matriz sob o art.º ...42.º, efectuada em .../.../1964 por II e JJ ao R. marido, com consequente devolução desse prédio à herança dos doadores. Alegou, para tanto e em síntese, ser irmão do R. marido e serem ambos filhos de II e de JJ, já falecidos. Mais alegou que em .../.../1964 os pais de ambos declararam doar ao R. marido o prédio rústico denominado ..., situado no lugar de ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42 e inscrito na matriz sob o art.º ...42.º, sendo que o verdadeiro negócio que os seus pais e o irmão quiseram celebrar foi não uma doação mas sim uma compra e venda, tanto que o demandado procedeu à entrega aos pais, por conta da transmissão da propriedade, da quantia de 30.000$00, só não tendo escriturado o verdadeiro e desejado negócio por o art.º 1565.º do Código de Seabra implicar que ele, demandante, desse autorização ao negócio, o que ele não fez (cfr. certidão judicial da acção comum n.º 3313/17.... no Juízo Local Cível ..., junta aos autos);
xii. A acção identificada em xi. foi julgada improcedente por não provada, por verificação da excepção de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (cfr. certidão judicial da acção comum n.º 3313/17.... no Juízo Local Cível ..., junta aos autos);
xiii. AA intentou contra DD, BB, MM, BB, AA e C... Lda., a acção declarativa sob a forma comum que com o n.º 3434/21.... correu termos no Juízo Local Cível ... – Juiz ..., peticionando a declaração de ineficácia em relação a ele, A., da venda efectuada em 09.09.2019 por EE à última R. e que teve por objecto o prédio urbano composto de r/c e águas furtadas com logradouro, sito no Campo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...08/... (actualmente descrito sob o n.º ...16) e inscrito na respectiva matriz sob o art. ...5.º (actualmente inscrito sob os arts. ...29.º urbano e ...27.º rústico). Alega, para tanto e em síntese, ser irmão do EE, entretanto falecido (sendo a 1.ª R. a viúva do seu irmão e os 2.ª a 4.º RR. filhos destes) e serem ambos filhos de II e de JJ, também já falecidos. Mais alega que em .../.../1964 os seus pais (também pais do falecido EE) declararam vender a FF, entre outros, o prédio urbano composto de r/c e águas furtadas com logradouro, sito no Campo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...08... ... (actualmente descrito sob o n.º ...16) e inscrito na matriz respectiva sob o art.º ...5.º, prédio este que o comprador veio a vender ao seu falecido irmão EE em .../.../1966. Aduz que estas apropriações são ilegítimas, já que o prédio em referência deveria integrar a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito dos pais. Argui que com vista à declaração de nulidade da compra e venda realizada em .../.../1964, instaurou a acção de condenação que se encontra a correr termos pelo Juízo Central Cível ... (J...) sob o n.º 236/19.... (a nossa acção), sendo que na pendência desta acção mas antes do respectivo registo, o seu falecido irmão e a 1.ª R. alienaram o prédio vindo de referir à C... Lda. (cfr. certidão judicial da acção comum n.º 3434/21.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., junta como documento ... do requerimento de 03.05.2022 - fls. 496 e ss.);
xiv. Regularmente citados no processo aludido em xiii. supra, contestaram os RR., tendo, entre o mais, excepcionado a ineptidão da petição inicial bem como a inoponibilidade da eventual nulidade ao falecido EE e alegado que em duas anteriores acções judiciais, que identificam, o agora A. havia reconhecido a validade dos negócios cuja invalidade agora argui. Reclamaram ainda a condenação do A. como litigante de má-fé porquanto alterou a verdade dos factos quando alegou que o registo do direito de propriedade incidente sobre o imóvel em discussão, efectuado pela última R., foi posterior ao registo da acção que sob o n.º 236/19.... corre termos pelo Juízo Central Cível ... (cfr. certidão judicial da acção comum n.º 3434/21.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., junta como documento ... do requerimento de 03.05.2022 - fls. 496 e ss.).
xv. A acção identificada em xiii. foi julgada improcedente por não provada e os Réus absolvidos dos pedidos, em saneador-sentença proferido a 07.02.2022, transitado em julgado, por verificação da excepção de abuso de direito, tendo o Autor sido condenado como litigante de má-fé em multa de 50 UCs. e indemnização a favor dos 1º ao 5º Réus (cfr. certidão judicial da acção comum n.º 3434/21.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., junta como documento ... do requerimento de 03.05.2022 - fls. 496 e ss. – e informação colhida a 23.11.2022).
xvi. A acção identificada em i. foi registada pela Ap. ...96 de 25.11.2011 e cancelada em 23.09.2019 (cfr. certidão do registo predial solicitada à acção comum n.º 3434/21.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., junta aos autos);
xvii. Os presentes autos foram registados pela Ap. ...90 de 10.02.2020 (cfr. certidão do registo predial solicitada à acção comum n.º 3434/21.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., junta aos autos);
xviii. Pela Ap. ...60 de 10.09.2019, a 6.ª R. procedeu ao registo, em seu nome, do direito de propriedade incidente sobre o prédio urbano composto de r/c e águas furtadas com logradouro, sito no Campo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16 e inscrito na respectiva matriz sob os arts. ...29.º urbano e ...27.º rústico (cfr. certidão do registo predial solicitada à acção comum n.º 3434/21.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., junta aos autos).

[transcrição dos autos].
*
           
4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Apreciemos as questões suscitadas nas conclusões formuladas pelo apelante (reapreciação da decisão de mérito da acção e da decisão da condenação do A. como litigante de má-fé, bem como o seu montante).
Pretendia o A. com a presente acção, a declaração de nulidade, por simulação, da compra e venda efectuada em .../.../1964 por II e esposa, JJ, ao 3º R. marido e, consequentemente, que fosse declarado que os prédios objecto mediato dessa compra e venda, pertencem ao acervo hereditário dos vendedores e, como tal, sejam à herança restituídos.

Mas comecemos por rememorar a decisão recorrida:

B. De Direito

Do abuso de direito
*
Na sequência dos factos supervenientes alegados por requerimento da Habilitada MM de 04.04.2022 (fls. 394 e ss.), veio esta invocar, entre outras excepções, o abuso de direito do Autor.
O abuso de direito – art.º 334º do Código Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
Como refere a Mm.ª Juíza do processo n.º 3434/21.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., na douta fundamentação do saneador-sentença, transitado em julgado, que proferiu, a …boa fé está ligada a ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança no cumprimento dos negócios jurídicos e impõe às partes, quer nas negociações preliminares, quer na formulação das cláusulas definitivas, quer no cumprimento das obrigações (quer em relação ao devedor, quer em relação ao credor), que ajam sem embuste, nem dolo, para que os interesses de todas elas tenham a equilibrada solução prevista por cada uma delas e subjacente ao contrato.
O abuso de direito pressupõe que, no exercício do direito, a parte aja com excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – limites esses definidos de acordo com os valores éticos predominantes na sociedade – e corresponde a um “exercício do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica”. (VARELA, João de Matos Antunes, “Das Obrigações em geral”, Vol. I, 8.ª edição, Livraria Almedina, 1994, pág. 552).
O abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.
Como refere o Professor Baptista Machado, o ponto de partida do venire é “…uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira…”, podendo “…tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico” (in “Obra Dispersa”, Vol. I, págs. 415 e ss.).
Consta da fundamentação do douto acórdão de 16.12.2009 do Tribunal da Relação do Porto, relatado pelo Juiz Desembargador Filipe Caroço (in www.dgsi.pt) também citado no mesmo saneador-sentença, A tutela das expectativas das pessoas é essencial a uma ordenação que pretenda ter como efeito a estabilidade e a previsibilidade das acções (...). Assim, o princípio pacta sunt servanda - independentemente de a aceitação da força vinculativa do mero consenso ser uma ideia já moderna, com raízes jusnaturalistas - tem subjacente também a ideia de fides, ideia que remonta aos períodos mais remotos da história, ao tempo mesmo da “invenção” do Direito pelos romanos - e não está só em causa naquele princípio a fidelidade à própria palavra, uma autovinculação por um qualquer poder da vontade, mas também a fidelidade às expectativas que se criou nos outros.
Nesta modalidade do abuso de direito, a conduta do abusante terá de objectivamente, trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em si, uma clara injustiça.
Não se procura o “animus nocendi”, mas apenas um comportamento anteriormente assumido que, objectivamente, contrarie aquele.
Retomando os fundamentos do saneador-sentença proferido no processo n.º 3434/21.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., que ao nosso caso se aplicam e aqui se reproduzem com pequenas adaptações, pela identidade das situações verificadas entre ambas as demandas, …provado está que no âmbito da acção que sob o n.º 243/11.... correu termos pelo Juízo Central Cível ... (J...), instaurada pelo aqui A. contra BB e mulher, CC, a… aqui 1.ª R. …e o então seu marido, EE, e FF e mulher, GG, entre outros e na sequência de incidente de ampliação do pedido e da causa de pedir, o A. peticionou a declaração de nulidade, por simulação, das escrituras de compra e venda invocadas também nesta p.i., tendo vindo a desistir da instância relativamente a tal pretensão.
Em acção intentada posteriormente, ainda no ano de 2011 (aquela que correu termos pelo Juízo Central Cível ... (J...) sob o n.º 378/11....), o aqui A., desta vez acompanhado pela sua esposa, instauraram contra os mesmos RR. daqueloutra acção, bem como contra o Estado Português, peticionando: - a declaração de nulidade do registo do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16 (que foi extractada da descrição n.º ...08) quanto à parte rústica da descrição do prédio; - a declaração de que o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...08, que deu origem ao n.º 616, é urbano e não contém qualquer parte rústica; - a condenação solidária dos RR. no pagamento, a seu favor, da quantia de € 578.834,00, posteriormente objecto de ampliação.
Em tal acção é afirmado, para fundamentação da pretensão formulada, entre o mais: “No entanto, era suposto os 3.ºs réus [FF e mulher, GG] terem vendido [a EE e esposa (…), por escritura pública de compra e venda e constituição de servidão celebrada em .../.../1966 – cfr. art. 24.º dessa p.i.] o que havia adquirido o 3.º réu marido ainda solteiro [sublinhado e negrito meus] - nem mais nem menos” (cfr. art. 28.º desse petitório) e “O 3.º réu marido [FF] comprou, por escritura pública celebrada em 14 de Março de 1964, - cfr. verba segunda daquela escritura - a II e mulher: Prédio Urbano compondo-se de casa de rés-do-chão e águas furtadas, com logradouro, no sítio do Campo ... ou da ..., Lugar ..., da mesma freguesia ..., formando o descrito, ou melhor a totalidade do prédio descrito na Conservatória sob o número ... do Livro B, ... e inscrito na matriz sob o artigo urbano ....” (cfr. Doc. ...8) - cfr. art. 29.º desse petitório.
Ou seja, inequivocamente o aqui A., para fundamentar a pretensão formulada no âmbito daquela acção, não coloca em crise a validade das escrituras públicas de compra e venda outorgadas em .../.../1964 e .../.../1966 antes, ao invés, expressamente afirma a validade desses negócios. (sublinhados meus).
E tal como se concluiu na douta decisão do processo n.º 3434/21...., ao colocar em causa, na presente acção, a validade do contrato de .../.../1964, por forma a fundamentar os pedidos aqui formulados -, de declaração de nulidade, por simulação, dessa compra e venda, para que à herança sejam restituídos -, depois do comportamento manifestado no âmbito da acção mencionada em iv., …o A. prossegue claramente uma conduta contraditória, pois deu evidentes, permanentes e sucessivos sinais de não colocar em causa a validade das compras e vendas efectuadas em 1964 e 1966. (sublinhado meu).
Razão pela qual, também nos presentes autos há razão para concluir que o Autor, a coberto do apoio judiciário que lhe vem sendo reiteradamente concedido, deduz pretensão que excede, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, tornando abusivo e ilegítimo o exercício do direito a que se arroga.
*
Da litigância de má-fé do Autor
*
Nos termos do art.º 542º, do CPC:

1. Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. (...).

Entre as normas em apreço, a al.ª a) do n.º 2, confere ao juiz do processo o poder de condenar por litigância de má-fé material quem, dolosamente ou com negligência grosseira, deduza pedido ou oposição cuja falta de fundamento conheça.
Para a apreciação do uso que, no caso concreto, o Autor faz do processo, dão-se, por razões de economia processual, por reproduzidas as considerações precedentes sobre o abuso de direito subjacente à propositura da presente acção, sendo de notar que o Autor assume, a coberto do benefício de apoio judiciário que lhe vem sendo concedido, uma conduta de litigância judiciária atentatória da boa-fé, abusiva e ilegítima, com o único fito de obter uma decisão que lhe permita retirar prédios da esfera jurídica dos aqui demandados mesmo que para tal assuma posições diametralmente contrárias sobre os negócios em que funda as suas pretensões.
Como consta do saneador-sentença do identificado processo n.º 3434 / ..., o Autor altera …as causas de pedir à medida que as suas pretensões não vão sendo judicialmente acolhidas. O que esta conduta processual indicia é que o A. tenta “disparar em todas as frentes”, na expectativa de uma das suas diversas versões ter acolhimento judicial e lograr, desta forma, obter algo a que julga ter direito (…). Tal corresponde a fazer dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, impedindo a descoberta da verdade.
Trata-se de uma conduta de que o Autor tem perfeita consciência na medida em que constituída pela alegação de factos e pela sustentação de teses jurídicas contraditórios, em sucessivas acções que propôs, conduta que é grave e, pelo menos, grosseiramente negligente, na medida em que obriga os tribunais a pronunciarem-se sucessivamente sobre o mesmo conflito com as nuances que entende introduzir a cada pleito, impondo aos Réus reiterada obrigação de se defenderem, o que é fonte de desgaste pessoal e despesas, sendo certo que ao Autor nada custa assumir tal posição porque conta com o benefício de apoio judiciário.
Entende-se, assim, que a conduta processual do Autor preenche os pressupostos do número 1 e da alínea d) do n.º 2 do artigo 542º do CPC, pelo que deve ser condenado como litigante de má-fé no pagamento de multa de 60 (sessenta) UCs. (art.º 27º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais).

Passemos, agora, a enquadrar a situação sub judice, começando pela questão da reapreciação da decisão de mérito da acção.
Como já acima foi referido, o A. intentou a presente acção visando a declaração de nulidade, por simulação, da compra e venda efectuada em .../.../1964 por II e esposa, JJ, ao 3º R. marido e, consequentemente, que fosse declarado que os prédios objecto mediato dessa compra e venda, pertencem ao acervo hereditário dos vendedores e, como tal, sejam à herança restituídos.
Entendendo que a conduta do apelante se enquadrava no instituto de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o Tribunal a quo julgou improcedente a acção e absolveu os Recorridos do pedido.
Numa abordagem singela ao instituto aqui em causa, diremos que a proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (art. 334º do CC), nessa medida sendo de conhecimento oficioso.
São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.
O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.
Debruçando-nos, agora, sobre o presente caso, questionando o recorrente/apelante que estejam reunidos, neste pleito, os requisitos necessários para verificar a existência de abuso de direito, na figura de venire contra factum proprium, diga-se, desde já, que se verifica não ter sido impugnado no recurso, a matéria de facto considerada provada ou requerida a sua alteração.
Todavia, o mesmo pretende que o tribunal a quo incorreu em erro de apreciação da prova, mormente quanto às referidas certidões judiciais juntas sob os docs. n.º ... e ... no requerimento de 04-04-2022. E isto porque da petição inicial no processo 243/11...., que correu termos no Juiz ... do Juízo Central Cível ..., não se extrai que o Recorrente, ali autor, tivesse deduzido ampliação de pedido e causa de pedir onde peticionasse a declaração de nulidade, por simulação, da escritura de compra e venda outorgada em 14/03/1964 entre os seus pais, II e OO e os aqui 1.ºs a 3ºs réus.
Ora, diga-se desde, já, que o que consta dos factos provados é que Posteriormente, ampliou o pedido e a causa de pedir na réplica, peticionando a declaração de nulidade, por simulação, das escrituras de compra e venda invocadas na p.i., sendo possível ler no acórdão do Tribunal da Relação que o ali A., aqui Recorrente, “posteriormente, ampliou o pedido e a causa de pedir na réplica, peticionado a declaração de nulidade, por simulação, das escrituras de compra e venda dos autos o que foi admitido (fls. 347 e 652)”. Logo, não assiste aqui qualquer razão ao recorrente.
Mais alega o recorrente que na petição inicial do processo 378/11...., que correu termos na ... Vara de Competência Mista do Tribunal ..., não deu como válidas as escrituras públicas de compra e venda outorgadas em 14/03/1964 e em 30/12/1966, tendo certas afirmações suas sido descontextualizadas da factualidade alegada no resto da P.I. Lembrando o uso de alocuções como “supostamente” (art. 23º), “era suposto” (art. 28º), “se criou a aparência” (art. 45º), “essa aparência...foi combinada com os três primeiros réus com o objetivo...” (art. 46º), “recorreram ao 3º réu marido, cunhado e amigo do 1º réu, para alterar a descrição do prédio” (art. 68º), “para conseguir o objectivo e dessa forma constar na escritura de compra e venda de 30/12/1966” (art. 69º), “quando era falsa essa realidade” (art. 70º). Ora, também aqui não lhe assiste qualquer razão, uma vez que lendo a mencionada P.I., se verifica que o Recorrente, ali A., reconheceu na mesma e, mormente, nos seus arts. 24º, 27º, 28º e 29º, a validade das escrituras de compra e venda de 14 de Março de 1964 e de 30 de Dezembro de 1966. Rememora-se que no indicado art. 28º da P.I., o Recorrente, ali A. refere, “No entanto, era suposto os 3.º réus terem vendido o que havia adquirido o 3º réu marido ainda solteiro – nem mais nem menos. E NÃO FOI O QUE ACONTECEU”, e que no dito art. 29º, o A. diz que “O 3º réu marido comprou, por escritura pública celebrada em 14 de Março de 1964, – cfr segunda daquela escritura – a II e mulher: Prédio, urbano, compondo-se de casas de rés-do-chão e águas furtadas, com logradouro, no sítio do Campo ... ou da ..., Lugar ..., da mesma freguesia ..., formando o descrito ou melhor a totalidade do prédio descrito na Conservatória sob o número ..., do Livro B, ... e escrito na matriz sob o artigo urbano ...”. Logo, da leitura da mencionada P.I. e do espírito da mesma, nada resulta que nos leve a crer que o Recorrente, ali A., discorde da validade das escrituras acima mencionadas, como pretende agora fazer crer no recurso. Concluindo-se nos mesmos termos a que chegou a recorrida DD nas suas contra-alegações, de que O Recorrente pretende que o tribunal desvalorize todas as suas afirmações e o espírito da petição inicial, mas que valorize apenas algumas palavras soltas, algumas frases soltas, algumas alocuções, algumas expressões, para comprovar que não deu como válidas as escrituras de 1964 e de 1964, o que não faz qualquer sentido. Sendo certo que o Recorrente já deu permanentes e sucessivos sinais de não colocar em causa a validade das escrituras de compra e venda de 1964 e de 1966 e já reconheceu expressamente a validade das mesmas.
Como assim, concluiu assertivamente o Tribunal a quo ter actuado o A., aqui recorrente, com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
*     *
Vejamos, agora, a questão da reapreciação da condenação do Recorrente numa multa de 60 unidades de conta por litigância de má fé.
Entendendo o apelante que esta condenação do A. como litigante de má-fé deve ser revogada, porquanto nenhum dos factos descritos pressupõe, uma actuação dolosa ou com negligência grave – em termos da intervenção na lide –, consubstanciada, objectivamente, na ocorrência de alguma das situações previstas nas diversas alíneas do seu nº 2 do artigo 542º do Código de Processo Civil. E, caso assim se não entenda, deverá o recorrente ver, substancialmente, reduzido o valor da multa a que foi condenado e que, em face ao exposto, entende ser manifestamente gravoso e penoso.

Quid iuris?

Estabelece-se no artigo 542º do CPC que:

1 – Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Isto é, para que possa haver lugar à condenação de qualquer das partes como litigante de má-fé, é necessário que se deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignoravam, se tenha conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais, ou que se tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade.
A este propósito, referem José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, no seu Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, 2.ª Edição, a páginas 219 e ss., que se “passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má-fé, com o intuito, como se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilização das partes.”.
Como se refere no Acórdão do STJ de 06-01-2000[2], “a má-fé psicológica, o propósito de fraude, exige, no mínimo, uma actuação com conhecimento ou consciência do possível prejuízo do acto; tal conhecimento ou consciência pode corresponder quer a dolo eventual quer a negligência consciente e, neste último quadro, aquela consciência pode reportar-se a uma simples previsão do prejuízo resultante do acto, nada se fazendo para o evitar, isto é, mesmo assim pratica-se o acto que se tem como potencialmente lesante”. Na obra acima citada do Dr. José Lebre de Freitas, a páginas 220, fornecem-se alguns elementos que permitem esclarecer alguns dos conceitos da previsão legal referida.
Assim, refere-se que “o autor visa, por exemplo, objectivo ilegal quando quer atingir, com a acção, uma finalidade não tutelada por lei, em vez da correspondente à função que lhe é própria; o autor ou o réu visa, também por exemplo, objectivo ilegal quando utiliza meios processuais, como a reclamação, o recurso ou simples requerimentos, para fins ilícitos, designadamente invocando fundamentos inexistentes. Visa impedir a descoberta da verdade a parte que oculta ou procura impedir que sejam produzidos meios de prova, ou produz ou provoca a produção de meios de prova falsos. Visa entorpecer a acção da justiça a parte que actua usando meios dilatórios. Por exemplo, o réu procura, de todo o modo, atrasar o processo: requer a expedição de várias cartas para a inquirição de testemunhas e a seguir desiste delas, ou suscita incidentes a que não dá seguimento. Cabe aqui também a actuação da parte no sentido de desviar a actuação do tribunal das questões essenciais para pontos sem qualquer interesse para o processo. Visa apenas protelar o trânsito em julgado da decisão a parte que recorre ou reclama sem fundamento sério, conseguindo assim atrasar o momento do trânsito em julgado e da exequibilidade da decisão.”.
Tendo também que se ter presente que não se deve confundir litigância de má-fé com lide meramente temerária ou ousada.
No sentido de que “mesmo que se esteja entre uma lide dolosa e uma lide temerária, mas não sendo seguros os elementos para se concluir pela existência de dolo, a condenação como litigante de má-fé não se deve operar, entendimento que pressupõe prudência e cuidado do julgador, exigindo-se para existir condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte”.[3]
Donde, a simples propositura de uma acção, que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, só por si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte, o mesmo valendo para a contestação deduzida a pedido que venha a ser julgado procedente.
Nesta linha de entendimento se pronunciou o Acórdão do STJ, de 28-5-2009[4], onde se diz o seguinte: “Este Supremo Tribunal decidiu no seu acórdão de 11-01-2001 que a condenação por litigância de má fé pressupõe a existência de dolo ou de grave negligência, não bastando uma lide temerária ousada, ou uma conduta meramente culposa» (Ac. STJ 11-01-2001, Pº nº 3155/00-7ª, Sumários, 47º) e este entendimento é de sufragar inteiramente, desde logo porque em íntima consonância com a littera legis do nº 2 do artº 456º do CPC. Efectivamente, já no recuado ano de 1975 este Supremo Tribunal havia decidido, por unanimidade, em acórdão relatado pelo Exmº e saudoso Conselheiro Almeida Borges, «a falta de razão com que uma das partes litiga não basta para justificar a má fé, apenas podendo provocar a improcedência de pedido». Para se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável, isto é, que com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou que altere a verdade dos factos ou omita factos relevantes ou, ainda, que tenha praticado omissão grave do dever de cooperação, nas expressões literais do nº 2 do artº 456º do CPC.”[5]

Ora, in casu, face à factualidade provada constante dos autos, afigura-se-nos não ter razão o apelante.
Com efeito, como afirmativamente se refere na sentença recorrida, o A. assume uma conduta de litigância judiciária atentatória da boa-fé, abusiva e ilegítima, com o único fito de obter uma decisão que lhe permita retirar prédios da esfera jurídica dos aqui demandados mesmo que para tal assuma posições diametralmente contrárias sobre os negócios em que funda as suas pretensões. E acrescenta que se trata de uma conduta de que o Autor tem perfeita consciência na medida em que constituída pela alegação de factos e pela sustentação de teses jurídicas contraditórios, em sucessivas acções que propôs, conduta que é grave e, pelo menos, grosseiramente negligente, na medida em que obriga os tribunais a pronunciarem-se sucessivamente sobre o mesmo conflito com as nuances que entende introduzir a cada pleito, impondo aos Réus reiterada obrigação de se defenderem, o que é fonte de desgaste pessoal e despesas, sendo certo que ao Autor nada custa assumir tal posição porque conta com o benefício de apoio judiciário.
Donde, a sua assertiva condenação como litigante de má-fé.
Desde logo, porque, fez do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal.
Depois, porque, tivemos presente que não se deve confundir litigância de má-fé com lide meramente temerária ou ousada. No sentido de que “mesmo que se esteja entre uma lide dolosa e uma lide temerária, mas não sendo seguros os elementos para se concluir pela existência de dolo, a condenação como litigante de má-fé não se deve operar, entendimento que pressupõe prudência e cuidado do julgador, exigindo-se para existir condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte”.[6] Donde, a simples propositura de uma acção, que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, só por si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte, o mesmo valendo para a contestação deduzida a pedido que venha a ser julgado procedente. No caso vertente, não estamos perante uma situação, como muitas vezes sucede, em que uma das partes simplesmente soçobra no seu ensejo probatório.
Assim, tendo em conta todos os factos que resultaram provados ao Tribunal é possível concluir pela actuação dolosa (pelo menos a título de dolo eventual) ou sempre gravemente temerária da ora Recorrente.
Resta a questão do montante da multa, que o recorrente entende ser manifestamente gravoso e penoso.
Ora, neste domínio, verifica-se que a decisão recorrida condenou o A., ora recorrente, na multa de 60 (sessenta) unidades de conta.
A propósito dos critérios atinentes à fixação do montante da multa por litigância de má-fé importa considerar o que estabelece o art. 27º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), ao prever que nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC (nº 3), e que o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (nº 4 do citado preceito legal).
No que concerne ao critério que deverá guiar o juiz na fixação do quantum da multa, dentro da moldura que lhe foi previamente fixada, refere Marta Frias Borges[7], «De acordo com o art. 27º, nº 4 do RCP, deverá o juiz tomar em consideração os efeitos da conduta de má-fé no desenrolar do processo e na correta decisão da causa, bem como a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património, em consonância com aquilo que era já afirmado por ALBERTO DOS REIS quando, ainda na vigência do CPC39, aludia à necessidade de atender ao grau de má-fé e à situação económica do litigante. De facto, a multa por litigância de má-fé, como qualquer outra pena, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo».
Quanto a esta questão, salienta ainda o Acórdão da Relação do Porto[8], que «[a] multa devida por litigância de má fé deve ser fixada com base no “prudente arbítrio” do juiz, que deve sopesar a gravidade da infracção e a situação económica do infractor, a maior ou menor gravidade dos riscos de lesão patrimonial causada ao litigante de boa fé, os interesses funcionais do Estado e o valor da acção».
Ora, como vimos, os factos provados nos autos levam a concluir que a A. fez do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, no que, aliás, já é recidivo, pois já mais que uma vez, contra alguns dos mesmos demandados, viu naufragar outra acções, sobre o mesmo conflito com as nuances que entende introduzir a cada pleito, já transitadas em julgado, por verificação da excepção de abuso de direito, tendo numa delas o A. sido mesmo condenado como litigante de má-fé em multa de 50 UCs.
Por conseguinte, à luz de todo o enquadramento antes enunciado, consideramos que a actuação do A. configura uma hipótese grave de litigância de má-fé, sendo a multa a fixar, como supra mencionado, entre 2 a 100 UC (cfr. art. 27º/3 do RCP).
Ademais, como se viu, importa ponderar que a justa fixação do montante da multa depende também das condições económicas e da situação financeira dos litigantes de má-fé, pelo que, na falta de elementos relevantes para o efeito, importa ponderar apenas o valor da acção, fixado em € 83.180,00.
Como assim, tudo considerado, à luz de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, consideramos que a fixação da multa no montante de 60 UC se mostra adequada e proporcional às circunstâncias do processo e às finalidades da condenação, entendendo-se que o juízo de reprovabilidade em que ela assenta engloba já todos os reflexos da actuação do A. na regular tramitação do processo.
Improcedendo, também, nesta parte, a apelação.
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Como assim, nenhuma alteração se impõe introduzir na decisão recorrida, que assim se confirma. Pressupondo o mérito da decisão de direito proposto no recurso, que a versão do recorrente tivesse ficado provada, o que não ocorreu. Aderindo-se, pois, à apreciação jurídica da causa nos seus precisos termos, que aqui se dão por reproduzidos a fim de evitar repetições, uma vez que se mostra adequada e correcta face à factualidade apurada e aos normativos aplicáveis.
Não merecendo, assim, a sentença do Tribunal a quo qualquer reparo, pois assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelos factos provados.
Logo, não assistindo qualquer razão ao recorrente A., improcede totalmente o recurso, com custas a pagar pelo mesmo (art. 527º do CPC). Sendo, in casu, nos termos da al. d) do art. 10º da L 34/2004 de 29-07 – vulgo Lei do Apoio Judiciário – caso para cancelamento da protecção jurídica de que o A. beneficia.
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6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente e consequentemente manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 04-05-2023

(José Cravo)
(António Figueiredo de Almeida)
(Raquel Baptista Tavares)


[1] Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca ..., Guimarães - ... - Juiz ...
[2] In www.dgsi.pt/jstj.
[3] Citámos o Acórdão do T. da Rel. de Lisboa, de 02/03/2010, no Proc. nº 6145/09.4TBSC.L1-1, acessível in www.dgsi.pt/jrtl.
[4] No Proc. nº 09B0681, acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[5] cfr., também neste sentido, os Acórdão do STJ, de 14/03/2002, no proc. nº 02B428, acessível in www.dgsi.pt/jstj, e o Acórdão do T. Rel. do Porto de 27/01/2009, no proc. nº 0827486, acessível in www.dgsi.pt/jtrp.
[6] Citámos o Acórdão do T. da Rel. de Lisboa, de 02/03/2010, no Proc. nº 6145/09.4TBSC.L1-1, acessível in www.dgsi.pt/jrtl.
[7] In Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre),na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, com Menção em Direito Processual Civil, 2014, Coimbra, pg. 69, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt.
[8] Acórdão prolatado em 26-02-2008, no Proc. nº 0820769, disponível em www.dgsi.pt.