Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
344/19.8JABRG.G1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: INSUFICIÊNCIA DO INQUÉRITO
RELATÓRIO FINAL AUTÓPSIA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL
DESCRIÇÃO LESÕES VÍTIMA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - Não constitui nulidade por insuficiência do inquérito, nem viola os direitos de defesa, a inexistência de relatório final da autópsia aquando do encerramento do inquérito e da dedução da acusação. Conhecidas as conclusões da autópsia - ainda que com base em relatórios preliminares - e descritas na acusação, pode protestar-se a junção posterior do relatório, logo que concluído.
2 - A autópsia é um ato médico que se consubstancia na análise dos indícios causais da morte, mostrando-se concluída quando se esgote a apreciação conjunta e concatenada de todos os elementos recolhidos (exame do hábito interno e externo, perícia tanatológica, exames laboratoriais, etc.) e se formula tal juízo causal. A descrição dos elementos e conclusões obtidos no relatório final constitui uma tarefa de teor essencialmente administrativo.
3 - Constitui uma alteração não substancial dos factos a discriminação, ainda que mais detalhada, das lesões evidenciadas no corpo da vítima.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. Em processo comum coletivo com o nº 344/19.8JABRG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Criminal de Braga – Juiz 6, foi proferido acórdão datada de 26/06/2020, com a seguinte decisão (transcrição parcial):
III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
a) Condenar o arguido M. F. pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, 131º e 132º, nºs1 e 2, alínea b), todos do CP, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão;
b) Condenar o arguido M. F. no pagamento das custas processuais, fixando-se em 5 (cinco) UC’s a taxa de justiça devida (cfr. artigos 513º e 514º, do CPP, e artigos 3º, nº1 e 8º, nº9, estes do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela Anexa III, do mesmo diploma legal), sem prejuízo do direito a protecção de que (eventualmente) beneficie(m);
c) DECLARAR a indignidade do arguido M. F. para suceder na herança aberta por óbito do seu cônjuge A. P., nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 2034°, alínea a) e 2037º, ambos do CC, em obediência ao disposto no artigo 69°-A, este do CP.
d) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pelos assistentes/demandantes A. F., M. J., H. F. e L. F. parcialmente procedente, e, em consequência condenar o arguido/demandado M. F. a pagar-lhes a quantia total de €270.292,43 (duzentos e setenta mil, duzentos e noventa e dois euros e quarenta e três cêntimos), assim discriminada:

[i] €97.000,00 (noventa e sete mil euros), a título do dano pela perda do direito à vida da vítima A. P. (cfr. artigo 496º, nº2, do CC), condenando o arguido/demandado M. F. a pagar a cada um dos assistentes/demandantes/descendentes H. F. e L. F. a quantia de €48.500,00 (quarenta e oito mil e quinhentos euros);
[ii] €10.000,00 (dez mil euros), a título do dano pré-morte, que cabe aos assistentes/demandantes/descendentes H. F. e L. F., na qualidade de herdeiros da vítima A. P. (cfr. artigo 2133º, nº1, alínea a), do CC);
[iii] €96.000,00 (noventa e seis mil euros), a título do dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte (cfr. artigo 496º, nºs1 e 4, este 2ª parte, do CC), condenando o arguido/demandado M. F. a pagar aos assistentes/demandantes A. F. e M. J. o valor de €20.000,00 (vinte mil euros), a cada um, e a pagar aos assistentes/demandantes H. F. e L. F. o valor de €28.000,00 (vinte e oito mil euros), a cada um;
[iv] aos montantes referidos em [i], [ii] e [iii] acrescem juros de mora (cfr. artigos 804º, 805º, nº2, alínea b), do CC), vencidos e vincendos, que serão contabilizados a partir do momento da prolação desta decisão actualizadora – e não a partir da notificação do pedido de indemnização civil formulado – à taxa legal em vigor em cada momento, sendo de 4% a actualmente aplicável (cfr. Portaria nº291/2003, de 08 de Abril, ex vi artigo 559º, do CC), por efeito do disposto nos artigos 805º, nº3, 2ª parte, do CC (este interpretado restritivamente), e 806º, nº1, do mesmo diploma legal (vide Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº4/2002, de 09 de Maio de 2002, publicado no Diário da República, I Série – A, nº146, de 27 de Junho de 2002), até efectivo e integral pagamento.
[v] €55.800,00 (cinquenta e cinco mil e oitocentos euros), a título do dano da perda de alimentos (cfr. artigo 495º, nº3, do CC), condenando o arguido/demandado M. F. a pagar: (i) ao assistente/demandante A. F. a quantia de €9.300,00 (nove mil e trezentos euros); (ii) à assistente/demandante M. J. a quantia de €22.000,00 (vinte e dois mil euros); (iii) à assistente/demandante L. F. a quantia de €14.500,00 (catorze mil e quinhentos euros); e (iv) ao assistente/demandante H. F. a quantia de €10.000,00 (dez mil euros);
[vi] €11.492,43 (onze mil, quatrocentos e noventa e dois euros e quarenta e três cêntimos), a título do dano patrimonial na vertente do pagamento de despesas (cfr. artigo 495º, nº1, do CC), a pagar pelo arguido/condenado M. F. aos assistentes/demandantes A. F. e M. J.;
[vii] aos montantes referidos em [v] e [vi] acrescem juros de mora, vencidos e vincendos, que serão calculados à taxa legal e anual em vigor em cada momento, sendo de 4% a actualmente aplicável (cfr. Portaria nº291/2003, de 08 de Abril, ex vi artigo 559º, do CC), contabilizados desde a notificação do arguido/demandado para contestar o pedido de indemnização civil deduzido e até efectivo e integral pagamento;
e) Condenar os assistentes/demandantes A. F., M. J., H. F. e L. F. e o arguido/demandado M. F. no pagamento das custas civis, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 45% para os assistentes/demandantes e 55% para o arguido/demandado (cfr. artigo 527º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 523º, este do Código de Processo Penal), sem prejuízo do direito a protecção jurídica de que (eventualmente) beneficie(m) – cfr., quanto aos assistentes/demandantes, fls.488-489/495 (M. J.), fls.490-491/494 (A. J.), fls.486-487 (H. F.) e fls.484-485/496 (L. F.) – e sem prejuízo da isenção prevista no artigo 4º, nº1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais, se for aplicável.
*
Notifique.
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(…)
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Do estatuto coactivo do arguido
(…)
Nos presentes autos, o arguido M. F. encontra-se sujeito à medida de prisão preventiva desde o dia 08 de Março de 2019 (cfr. referência nº162469736).
Esta medida de coacção, nos termos legais (cfr. artigo 213º, nº1, alínea a), do CPP), vem sendo revista e mantida, sendo que a última revisão teve lugar no dia 16 de Abril de 2020, por força do disposto no artigo 7º, da Lei nº9/2020, de 10 de Abril (cfr. referência nº167919491).
(…)
Deste modo, uma vez que o arguido se encontra sujeito à medida de coacção em causa desde o dia 08 de Março de 2019, concluiu-se que ainda não foi atingido o seu prazo de duração máxima, que (só) ocorrerá a 08 de Março de 2021.
(…)
Termos em que se decide manter a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, relativamente ao arguido M. F. (cfr. artigos 191º, 193º, 202º, nº1, alíneas a) e b), 204º, alíneas a) e c), 213º e 215º, nº1, alínea d) e nº2, todos do CPP, e artigo 7º, este da Lei).
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Em conformidade, até ao próximo reexame, o arguido mantém-se sujeito, além das obrigações decorrentes do TIR, à medida de coacção de prisão preventiva.
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Após trânsito em julgado:
- comunique ao Sistema de Informação de Identificação Criminal (SICRIM);
- remeta certidão ao Tribunal de Execução de Penas e ao(s) Estabelecimento(s) Prisional/Prisionais caso o(a)(s) arguido(a)(s) se encontre(m) detido(a)(s);
- solicite ao(s) Estabelecimento(s) Prisional/Prisionais, caso o(a)(s) arguido(a)(s) se encontre(m) detido(a)(s), o envio da respectiva ficha biográfica actualizada;
- proceda-se à recolha de amostras biológicas ao arguido, para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos artigos 8º, nº2 e 18º, nº3, ambos da Lei nº5/2008, de 12 de Fevereiro, uma vez que essa recolha terá lugar quando haja condenação pela prática de crime doloso, com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, o que sucede no caso vertente.
D. n., solicitando à entidade competente a sua realização.
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Vai proceder-se ao depósito do presente acórdão (cfr. artigos 372º, nºs4 e 5 e 373º, nº2, ambos do Código de Processo Penal).“
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2 – Não se conformando com a decisão, o arguido M. F. dela veio a interpor recurso, no qual - após convite ao aperfeiçoamento para sintetização das mesmas - ofereceu as seguintes conclusões (transcrição):

I. - Há, no caso em apreço, manifesta nulidade por insuficiência do inquérito (artigo 120.º, n.º2, al. d), do C.P.P), na medida em que o Despacho de acusação proferido nos presentes autos não continha o Relatório de Autópsia, não havendo, por isso, causa da morte.
II. A acusação não integrava todos os factos produzidos contra o Arguido, violando, com isso, o princípio basilar Constitucional dos Direitos de defesa daquele.
III. A alteração não substancial dos factos produzida pelo Tribunal a Quo, uma vez que a acusação não continha a autópsia, e que apenas reproduz o teor da mesma, é mais que substancial, o que não se aceita, e visa apenas tentar integrar a autópsia na própria acusação, contornando os direitos de defesa do Arguido e, portanto, violando os mesmos.
IV. Deve, assim, ser determinada a presença da nulidade decorrente do artigo 120.º, n.º2, al. d), do C.P.P., revogando o Acórdão proferido, conforme V/Exas. Venerandos Desembargadores, assim o farão, só assim se fazendo inteira Justiça Material!
V. Para além disso, a acusação proferida pelo Ministério Público, no caso em apreço, configura uma acusação insuficiente,
VI. Nela sendo feitas meras referências genéricas e inconclusivas, já que o relatório da autópsia, elemento que, de facto, integra os esclarecimentos probatórios necessários para o efeito, ainda não tinha sido, sequer, elaborado à data em que o Despacho de acusação foi proferido.
VII. Assim, por se encontrar, o Despacho de acusação, notoriamente desprovido de qualquer elemento de prova – relatório da autópsia - que permita, assim, uma fundada narração dos factos imputados ao Arguido, aqui Recorrente,
VIII. Violando, assim, o disposto no artigo 283.º, n.º3 al. f), do Código de Processo Penal, no que à indicação dos meios de prova diz respeito e o preceituado nos artigos 18.º, n.º 2 e n.º3 e 32.º,n.º 5 da CRP, no que aos direitos de defesa do Arguido diz respeito,
IX. Deve o mesmo ser declarado nulo e, em consequência, serem os presentes autos arquivados, o que, expressamente, se requer.
X. Posto sito, não é percetível a linha de raciocínio adotada pelo Tribunal a Quo para dar como provados os factos que deu como provados, quando, por outro lado, dá como não provados os factos constantes das alíneas a), g), h), j), m), n), o), v), x), y), ai) e am) constantes da decisão recorrida.
XI. Para além de resultar claro dos depoimentos das testemunhas, J. D. e D. C., testemunhas essas residentes em ..., local onde o casal residia e laborava desde 2018 e, como tal, com eles conviviam diariamente,
XII. É totalmente aferível que a relação mantida entre o Recorrente e a Vítima, A. P., espelhava uma relação considerada normal entre casal, sendo certo que o foco de altercação existente resultava, unicamente, da existência de um terceiro elemento no seu seio familiar – presença de J. F. – e, nunca por nunca, devido à manifestação, por parte do Arguido, de comportamentos violentos para com a sua esposa,
XIII. Motivo pelo qual, entende o aqui Recorrente que, contrariamente ao decidido no Acórdão recorrido, devem os factos dados como provados nos pontos 13 e 14 da matéria dada como provada serem dados como não provados, conforme V/Exas. Venerandos Desembargadores, assim o farão, absolvendo o Arguido, pois só assim será possível fazer inteira Justiça Material!
XIV. Já no que diz respeito aos factos constantes nos pontos 21, 22 e 23 da matéria dada como provada na decisão recorrida, sempre cumpre concluir que, conforme resulta claro quanto a esta matéria na Motivação apresentada, o Tribunal a Quo não detinha elementos probatórios suficientes para decidir conforme se verificou, ou seja, para dar como provados tais factos,
XV. Pelo que deve a presente decisão ser revogada e, consequentemente, dados como não provados tais factos, conforme V/Exas. Venerandos Desembargadores, assim o farão, absolvendo o Arguido, pois só assim será possível fazer inteira Justiça Material!
XVI. Desta feita, cumpre, agora, fazer referência aos factos dados como não provados na decisão recorrida, pois, tendo na devida consideração a factualidade que se retira dos elementos documentais juntos no âmbito dos presentes autos, nomeadamente das mensagens de texto extraídas do telemóvel da Vítima, A. P.,
XVII. Bem como, e essencialmente, a sua correlação com as regras da experiência comum que devem estar na base de qualquer decisão e, muito mais, numa decisão deste cunho, em que se encontra em causa a alegada prática de um crime de homicídio,
XVIII. Certo é que tais factos resultariam mais do que provados e a decisão tinha adotado, nesse sentido, outros moldes.
XIX. Assim, e sem necessidade de mais amplas considerações, não é de todo percetível a linha de raciocínio adotada pelo Tribunal a Quo que o levou a dar como não provados os factos contantes nos pontos c) e k) da matéria dada como não provada no Acórdão recorrido,
XX. Devendo, portanto, o Acórdão recorrido ser revogado, e em consequência, devem os factos dados como não provados nas als. c) e k) ser dados como provados, como V/Exas., Venerandos Desembargadores, certamente decidirão, absolvendo o Arguido, pois só assim se fará inteira Justiça Material!
XXI. No que respeita, concretamente, à pena aplicada ao aqui Recorrente, sempre se dirá que, não ponderou, no devido grau, o Acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância, a matéria de facto dada como provada e o preceituado nos artigos 71.º, e 40.º, do Código Penal.
XXII. Isto porque, o Tribunal a Quo, quando proferiu o Acórdão de que agora se recorre não teve na devida consideração, como se impunha, a existência de uma relação extraconjugal entre a Vítima, A. P., e o Sr. J. F.,
XXIII. E, mais ainda, o facto daquele residir na sua própria casa e, como tal, lá passar a maioria do seu tempo juntamente com a sua esposa que, para além de lá também residir, lá laborava, uma vez que geria o estabelecimento comercial “X” que se situava no andar inferior de tal moradia,
XXIV. Factualidade essa, que sem sombra de dúvida, causou, no aqui Recorrente, um acumular de situações geradoras de um conflito interior que durava há bastante tempo e que levou a um fenómeno de transbordamento da descarga afetiva,
XXV. O que é facto notório, que não necessita até de qualquer alegação e de prova e que o levou a atuar num estado de exaltação e perturbação psicológica na data dos factos.
XXVI. Assim sendo, e com o devido respeito, crê o Recorrente que a pena de 19 anos de prisão aplicada é elevada, não sendo a mesma adequada e proporcional, pelo que deveria ter sido aplicada uma pena equivalente ao mínimo legal aplicável, ou seja, uma pena de prisão de 12 anos de prisão, sendo esta a mais consentânea para, dentro do possível, acautelar as necessidades de prevenção geral e especial e servir a reintegração do agente na comunidade,
XXVII. Motivo pelo qual se impõe que seja reduzida tal pena imposta ao aqui Recorrente para esse mínimo legal de 12 (doze) anos de prisão, como V/Exas., Venerandos Desembargadores, com toda a certeza decidirão, revogando, nessa conformidade, o Acórdão recorrido, e fazendo, como sempre, inteira Justiça Material!

Termos em que e nos melhores de Direito deverão V/Exas., Venerandos Desembargadores, proferir decisão que nessa conformidade:

A) Determinar a presença da nulidade decorrente do artigo 120.º, n.º2, al. d), do C.P.P., e, como tal, revogar o Acórdão proferido;

Sem prescindir,
B) Determinar a presença das nulidades vertidas nas alíneas a) a c) do artigo.º 283.º, n.º3 do Código de Processo Penal na acusação proferida pelo Ministério Público, no âmbito dos presentes autos, e, como tal, revogar o Acórdão proferido, com o consequente arquivamento dos autos;

Sem prescindir,
C) Declarar a notória violação dos direitos de defesa do Arguido, de acordo com o preceituado nos artigos 18.º, n.º 2 e n.º3 e 32.º,n.º 5 da CRP;

Sem prescindir,
D) Julgar como não provados e como provados os factos mencionados, revogando o Acórdão proferido pelo Tribunal Coletivo e absolvendo-se o aqui Recorrente do crime de homicídio qualificado a este imputado;

Sem prescindir,
E) Decidir pela redução da pena de 19 (dezanove) anos que foi aplicada ao aqui Recorrente;

Com o que farão inteira Justiça Material.
*
3 – A Exma. Procuradora da República junto da primeira instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela integral manutenção da decisão recorrida, após formular as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Pugna o recorrente pela verificação da nulidade prevista no art. 120.º, n.º2, al.d), do C.P.P.(insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade), em virtude ter sido encerrado o inquérito, sem que tivesse sido elaborado e junto aos autos o relatório da autópsia-médico legal realizada.
2.Não obstante, no caso concreto esta questão não se coloca sequer, uma vez que a diligência em causa – autópsia médico-legal- foi efectivamente realizada, confundindo o recorrente a diligência em si, com a elaboração e junção aos autos do relatório respectivo que, por ainda não se encontrar concluído aquando da dedução da acusação, foi nesta protestado juntar.
3. A autopsia médico-legal, enquanto acto médico que é, foi realizada ainda no decurso do inquérito, em momento anterior à dedução da acusação.
4. Tendo-se realizado, no caso sub iudice, todas as diligências reputadas úteis para o apuramento dos factos denunciados e tendo-se reunido todos os meios de prova necessários em ordem à sua decisão, no caso, à acusação, proferiu-se, em conformidade, o respectivo despacho, devendo julgar-se improcedente a nulidade invocada.
5. A acusação deduzida não padece da nulidade invocada (por violação do disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b), do C.P.P.), na medida em que faz uma narração concreta dos factos praticados pelo arguido, incluindo tempo, lugar e modo, factos esses que integram os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de homicídio qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, 131º e 132º, nºs1 e 2, alínea b), todos do CP, que lhe é aí imputado, não se vislumbrando, ao contrário do que pretende o arguido, qualquer alegação genérica ou inconclusiva.
6. A tal não obsta, o facto de não se encontrar aí ainda junto o relatório da autópsia médico-legal, tanto mais que se encontravam já juntos aos autos, aquando da dedução da acusação, os documentos probatórios de fls. 120 a 121 e 122 a 125, que tiveram por base a autópsia médico-legal realizada e nos quais se sustentou o ponto 17.º daquela e foram ali indicados como meios de prova.
7.Da mesma forma se afasta a alegada nulidade da acusação por violação do art. 283.º, n.º3. al.f) do C.P.P., na medida em que a indicação, a título de prova pericial, do relatório da autópsia que se protestou juntar, satisfaz a exigência de indicação das provas a produzir ou a requerer.
8. Não houve assim, qualquer violação do direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrado.
9. A tal não obsta, conforme pretende o arguido, a alteração não substancial dos factos efectuada, que resultou da prova produzida em audiência (que não só o relatório da autópsia médico-legal), conforme, aliás, aí se fez constar, que lhe foi devidamente comunicada, dando cumprimento ao disposto no art. 358.º do C.P.P. e, relativamente à qual, o arguido não prescindiu do prazo para preparação da defesa, que lhe foi concedido.
10. Os factos vertidos nos pontos 13,14, 21,22, 23 e 36 dos factos provados e os factos a que correspondem as alíneas c), k) e m) dos factos não provados foram correctamente julgados, reflectindo os primeiros a prova produzida e os últimos, a ausência dela.
11. Com efeito, o tribunal analisou de forma exaustiva todos os meios de prova, que conjugou entre si, plasmando de forma clara e perceptível as razões pelas quais estes mereceram ou não credibilidade, nada ficando, neste ponto, por dizer, enumerando, exaustivamente, os motivos de facto e de direito da sua decisão, valorando critica e racionalmente todas as provas carreadas para os autos, de acordo com as regras da razão e da experiência comum, de forma que não merce qualquer reparo e até, a nosso ver, insusceptível de complemento.
12.Da mesma forma carece de razão o arguido quando alega que existe contradição entre aqueles factos provados e os não provados, enunciados nas alíneas a), g),h), j), m), n), o),v), x), y), ai), am), pretendendo certamente, com tal alegação, afirmar que a decisão recorrida enferma do vício previsto na al.b), do n.º2, do art. 410.º, do C.P.P. (contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão).
13. Ora, no caso, não existe qualquer contradição entre a fundamentação, uma vez que não existe qualquer antagonismo entre os factos provados e não provados, nem entre esta e a decisão, sendo a primeira perfeitamente consentânea com a segunda, tendo, as considerações expendidas na motivação, servido para se demonstrar o raciocínio lógico que levou a tribunal a considerar credíveis os depoimentos prestados.
14.Não padece pois, a douta decisão recorrida de qualquer dos vícios apontados, sendo inevitável, concatenados todos os meios de prova produzidos (documental, pericial, testemunhal) em audiência de julgamento e juntos aos autos, devida e criticamente analisados, considerar como provados os factos dados por assentes e a condenação do arguido pela sua prática.
15.Da mesma forma, a decisão recorrida não merece qualquer reparo no que concerne à natureza e dosimetria da pena aplicada.
16.No caso vertente, a norma incriminadora do tipo legal de crime de homicídio qualificado impõe a aplicação de pena de prisão.
17. No quadro dos fins das penas, e atendendo ao binómio culpa-ilicitude dos factos, a pena concreta aplicada é ajustada, não ultrapassando de modo nenhum os limites da culpa e dando resposta cabal às exigências de prevenção geral e especial.
18. Foi ponderada, na medida da pena, a existência de uma relação extraconjugal entre a vítima e a testemunha J. F., considerando-se que o arguido agiu motivado por ciúme.
19.Não obstante o ciúme não pode ser visto como atenuante, como aliás tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, de que é exemplo o Acórdão da Relação de Lisboa, de 09.04.2013, proferido no proc. n.º 641/11.0JDLSB.L1.5, pub in www.dgsi.pt.
20. Com efeito, a pessoa que mata por ciúme revela uma total intolerância e desprezo pela vítima e pelo direito desta à autodeterminação como pessoa livre e autónoma.
21. Bem andou pois, o Tribunal em condenar o arguido na pena de 19 anos de prisão, que deverá ser mantida nos seus precisos termos, já que a sua concreta determinação atendeu aos critérios elencados nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, n.º 1 e n.º 2, todos do Código Penal, revelando-se a mesma adequada.
Por tudo o exposto, o douto Acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal.
Deverá assim, o recurso interposto ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra a douta decisão, assim se fazendo JUSTIÇA.”

4 – Também os assistentes A. F., M. J., H. F. e L. F., vieram apresentar resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela integral manutenção do acórdão recorrido, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Alega o recorrente que a acusação pública, constante dos autos, padece da nulidade prevista no artigo 120º, n.º 1 e n.º 2, al. d) do Código de Processo Penal, in casu sofre “do vício de insuficiência do inquérito”, na medida em que, aquando da prolação da acusação não se encontrava nos autos o relatório de autópsia efetuada à vítima, pelo Instituto de Medicina Legal, para além de, tal douto despacho, padecer, também, da nulidade/violação do disposto nas alíneas b) e f), do n.º 3, do artigo 283º, do Código de Processo Penal, na medida em que “a falta de indicação das provas que fundamentam os factos provoca a nulidade da acusação”.
2. Salvo o devido respeito, que é muito, por opinião contrária, entendem os assistentes que não assiste nenhuma razão ao recorrente, pelos motivos que se passam a descriminar;
- em primeiro lugar e ao contrário do que alega o arguido no seu requerimento o Ministério Público não deduziu acusação sem que estivesse munido de um exame pericial que lhe permitisse concluir pela existência de indícios suficientes (no caso fortes indícios) de que a infeliz vítima foi morta, pelo arguido, in casu “por asfixia”;
- na verdade, compulsados os autos, verifica-se que a fls. 217 e 218, dos autos, no dia 07 de Março de 2019, pelas 00:50 horas, os técnicos forenses da Polícia Judiciária de Braga, efetuaram à vítima (no local da sua morte) um “Exame Pericial”, com o n.º 326/19, do qual resulta de forma indesmentível que aquela apresentava escoriações ao nível do pescoço e na região do peito; o rosto apresentava-se congestionado (caraterística em fenómenos de asfixia), bem como, ao nível do pescoço, eram percetíveis marcas de compressão (equimoses) de ambos os lados, sendo que ao nível ocular era percetível a presença de petéquias tudo vestígios e marcas compatíveis com a conclusão inequívoca de que a morte da vítima se deveu a asfixia.
Por outro lado, e em segundo lugar, no dia seguinte, em 08 de Março de 2019, pelas 09:30 horas, nas instalações do Gabinete Médico-legal de Braga, foi o corpo da infeliz vítima submetida a exame de tanatologia forense (ou seja foi realizada a necessária autópsia médico-legal à vítima, à qual foi atribuída o n.º 121/2019-BR-P (cfr. fls. 120 e 121, dos autos), tendo, a mesma, sido efetuada pelos peritos médico-legais, do INML, Dr. R. M. e Dr.ª D. A., obtendo-se, no final, a confirmação, de forma inequívoca e absoluta, das conclusões já constantes do citado “Exame Pericial”, com o n.º 326/19.
Para além de se ter, ainda, concluído, após a conclusão da citada autópsia, e em síntese, que: “...de tudo o que foi observado e dada a ausência de outras indicações (de momento) sobre a causa da morte, concluíram os Srs. Peritos Médicos, que tudo aponta para que a morte tenha resultado por asfixia”.
Finalmente, no decurso da audiência de julgamento, mais uma vez, os Exmos. Srs. Peritos Médicos voltaram a esclarecer qual a causa da morte da infeliz vítima, tendo confirmando, sem margens para nenhuma dúvida, que aquela morreu devido à asfixia causada pela conduta do arguido quando lhe apertou o pescoço aliás como o próprio arguido/recorrente confirmou perante o tribunal.
3. Face a tais conclusões (note-se que as mesmas foram obtidas no próprio dia da morte da vítima e no dia seguinte) o Ministério Público, quando deduziu a douta acusação pública já tinha na sua posse, quer o citado exame pericial, quer as conclusões do referido exame de tanatologia forense, que lhe permitiram concluir, sem margens para dúvidas, de que existia um nexo causal entre a conduta do arguido ao apertar o pescoço da vítima e o resultado morte (cfr. artigo 17º da acusação pública), ao contrário do que é alegado pelo arguido no seu requerimento onde invoca a ausência de autópsia médico-legal, aquando da prolação do despacho de acusação.
4. Pelo que, e consequentemente, quando foi elaborada a douta acusação pública, já constavam nos autos todos os elementos provatórios necessários para que o digno magistrado titular do processo pudesse concluir pela existência, ou não, de indícios suficientes da prática pelo arguido M. F. do crime de homicídio de que está acusado nos presentes autos, motivo pelo qual não se verifica a invocada nulidade estatuída no artigo 120º, n.º 1, al., d), do Código de Processo Penal.
5. Por outro lado, cumpre também invocar que esta nulidade, por omissão de diligências, prevista no artigo 120°, n.° 1 al. d), do Código de Processo Penal, não sendo uma nulidade da sentença, mas uma nulidade do procedimento, está sujeita ao regime decorrente dos artigos 120° e 121°, ambos daquele Código, pelo que, a mesma, tinha de ser invocada, no prazo de dez dias, nos termos do disposto no artigo 105°, n° 1, do Código de Processo Penal.
6. Todavia, tendo em conta que, no caso em análise, só com a leitura do douto acórdão/recorrido o recorrente tomou conhecimento definitivo da prescindibilidade, para o julgador, do referido relatório de autópsia, então, o recorrente, querendo invocar tal nulidade, em sede de recurso, tinha de o fazer no prazo de dez dias, junto do tribunal recorrido, não lhe sendo lícito invocá-la em sede de recurso e para além do aludido prazo.
7. Constata-se, assim, que a referida nulidade foi invocada para além dos referidos 10 dias, uma vez que tal invocação apenas foi feita com as alegações de recurso apresentadas nos autos, em 24 de Julho de 2020, ou seja, fora de prazo, sendo que, em tal data, a referida nulidade já estava sanada.
8. Quanto à invocada insuficiência da matéria de facto constante da douta acusação pública, nos termos já explanados, que segundo o recorrente configura uma acusação insuficiente, e, desse modo, violadora do disposto no artigo 283º, n.º 3, al. b) e f), do Código de Processo Penal, situação que de per si consubstancia a nulidade do citado despacho acusatório, porquanto não narra taxativamente os factos imputados ao arguido, bem como não indica nem comprova, de forma esgotante, como deveria, os mesmos.
9. Atendendo a que resulta da simples análise do teor dos factos descritos na douta acusação pública, os quais descrevem de forma clara, objetiva e exaustiva todos os factos essenciais e necessários à caracterização dos elementos objetivos e subjetivos referentes ao tipo legal do crime de homicídio de que foi acusado o recorrente, nos presentes autos, bem como qual o efetivo e concreto objecto do processo, automaticamente é forçoso concluir que também não se verifica, de modo nenhum, a referida segunda nulidade, invocada pelo arguido, quer no seu requerimento de abertura de instrução, quer agora em sede de audiência de julgamento, por alegada violação do disposto no artigo 283º, n.º 3, al. b) e f), do Código e Processo Penal, para além de também não se verificar a alegada violação dos princípios constitucionais plasmados nos artigos 18º e 32º, ambos da Constituição da República Portuguesa, nos termos invocados.
10.Pelo exposto, entendem os assistentes que não se verifica nenhuma das nulidades e/ou violação dos princípios constitucionais invocados pelo recorrente, pelo que, e consequentemente, deverá a douta decisão recorrida manter-se nos seus precisos termos para todos os legais efeitos.
11.Alega, também, o recorrente que a comunicação de factos que lhe foi efetuada, pelo Tribunal a quo, no dia 15 de Junho de 2020, consubstancia uma alteração substancial de factos e não uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação, como foi entendido por aquele douto tribunal.
12.Na medida em que os factos que lhe foram comunicados são ipsis verbis os factos constantes do relatório de autópsia, datado de 30 de Setembro de 2019, os quais não constavam, na acusação proferida nos autos, pelo Ministério Pública, situação que consubstancia uma alteração substancial dos factos constantes da acusação e uma clara violação dos seus direitos constitucionais de defesa, para além de integrarem a nulidade decorrente do artigo 120.º n.º 2, al. d), do C.P.P. a qual deverá ser declarada para todos os legais efeitos.
13.Salvo o devido respeito, por opinião contrária, que é muito, não podem os assistentes concordar com o alegado pelo arguido/recorrente, pelos motivos seguintes;
- em primeiro lugar – e ao contrário do que alega o arguido no seu requerimento – o Ministério Público não deduziu acusação sem que estivesse munido de um exame pericial que lhe permitisse concluir pela existência de indícios suficientes (no caso fortes indícios) de que a infeliz vítima foi morta, pelo arguido, “por asfixia”;
- na verdade, compulsados os autos, verifica-se que a fls. 217 e 218, dos autos, no dia 07 de Março de 2019, pelas 00:50 horas, os técnicos forenses da Polícia Judiciária de Braga, efetuaram à vítima (no local da sua morte) um “Exame Pericial”, com o n.º 326/19, do qual resulta de forma indesmentível que aquela apresentava escoriações ao nível do pescoço e na região do peito; o rosto apresentava-se congestionado (caraterística em fenómenos de asfixia), bem como, ao nível do pescoço, eram percetíveis marcas de compressão (equimoses) de ambos os lados, sendo que ao nível ocular era percetível a presença de petéquias – tudo vestígios e marcas compatíveis com a conclusão inequívoca de que a morte da vítima se deveu a asfixia.
Por outro lado, e em segundo lugar, no dia seguinte, em 08 de Março de 2019, pelas 09:30 horas, nas instalações do Gabinete Médico-legal de Braga, foi o corpo da infeliz vítima submetida a exame de tanatologia forense (ou seja – foi realizada a necessária autópsia médico-legal à vítima, à qual foi atribuída o n.º 121/2019-BR-P – (cfr. fls. 120 e 121, dos autos), tendo, a mesma, sido efetuada pelos peritos médico-legais, do INML, Dr. R. M. e Dr.ª D. A., obtendo-se, no final,a confirmação, de forma inequívoca e absoluta, das conclusões já constantes do citado “Exame Pericial”, com o n.º 326/19.
Para além de se ter, ainda, concluído, após a conclusão da citada autópsia, e em síntese, que: “...de tudo o que foi observado e dada a ausência de outras indicações (de momento) sobre a causa da morte, concluíram os Srs. Peritos Médicos, que tudo aponta para que a morte tenha resultado por asfixia”.
14.Pelo que, é forçoso concluir, que o arguido/recorrente, desde que foi notificado do teor da acusação pública, constante dos autos, tomou conhecimento da totalidade dos factos caraterizadores da sua conduta criminosa, incluindo os elementos probatórios que sustentaram os factos que permitiram concluir que a morte da vítima foi causa direta e necessária do facto de o mesmo lhe ter apertado o pescoço, durante o tempo necessário, à sua asfixia, pelo que, e consequentemente, inexiste a invocada nulidade, prevista no artigo 120.º n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal, por alegada violação do objeto do processo e/ou por existir uma alteração substancial de factos, como é invocado pelo recorrente.
15.Pelo exposto, deverá, quer a invocada nulidade, quer a invocada violação do princípio constitucional do objeto de processo, ser indeferidas, mantendo-se na íntegra o teor do douto acórdão/recorrido, para todos os legais efeitos.
16.A questão de “os factos dados como provados nos pontos 13 e 14 da matéria dada como provada no douto acórdão/recorrido”. Fundamenta o recorrente as suas alegações de recurso que, a sentença recorrida, considerou erradamente provada a matéria de facto constante dos pontos 13 e 14 da matéria dada como provada, uma vez que não entende o que conduziu o Tribunal a quo a dar como provados tais factos, pois, da matéria probatória constante dos presentes autos, torna-se mais do que percetível que a relação existente entre o Recorrente e a vítima, não passava de uma relação normal, como tantas outras mantidas entre um casal.
17.Ora, mais uma vez, salvo o devido respeito, por opinião contrária, que é muito, a conclusão de que a relação entre o Recorrente e a vítima era uma relação absolutamente normal, como tantas outras mantidas entre qualquer um outro casal, não colhe, pelos seguintes motivos:
em primeiro lugar, porque se existia uma terceira pessoa no meio da aludida relação (que segundo o recorrente era normal), relação essa que não é, nem pode ser, colocada em causa, automaticamente é forçoso concluir, como se concluiu no douto acórdão/ recorrido, que a relação entre o casal era tudo menos normal;
e, em segundo lugar, porque resulta dos vários depoimentos constantes dos autos, nomeadamente das declarações dos filhos e dos sogros do recorrente e até das próprias declarações do recorrente, prestadas em sede de audiência de julgamento, que o casal, desde meados do ano de 2018, atravessava problemas sérios no seu relacionamento, problemas de tal ordem graves que o recorrente chegou a ameaçar com uma faca a vítima, tendo, o mesmo, que ser acalmado filho seu filho, situação paradigmática de que o relacionamento entre o casal já estava deteriorado desde há muito tempo, devido a problemas de violência do recorrente para com a vítima, bem como devido a problemas de cariz económico.
18.Pelo que, o alegado pelo recorrente não tem qualquer sustentabilidade tendo em conta a totalidade dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, conjugados com os restantes elementos de prova apurados nos autos, motivo pelo qual os factos dados como provados, constantes dos pontos 13 e 14 da matéria de facto dada como provada, se devem manter nos seus precisos termos, não existindo qualquer razão para que os mesmos sejam dados como não provados, como pretende o recorrente.
19.A questão “dos factos dados como provados nos Pontos n.ºs 21, 22 e 23 da matéria dada como provada no acórdão recorrido”.
Fundamenta, também, o recorrente, nas suas alegações de recurso, que a sentença recorrida, considerou erradamente como provada a matéria de facto constante dos pontos 21; 22 e 23, da matéria dada como provada, uma vez que não é possível dar como provados tais factos, atentos os depoimentos prestados pelas testemunhas, em sede de Audiência de Discussão e Julgamento e os elementos probatórios decorrentes da investigação levada a cabo, donde apenas se pode considerar ou concluir pela manifesta insuficiência de prova para dar como provados tais factos.
20.Mais uma vez, salvo o devido respeito, por opinião contrária, que é muito, a conclusão de que os factos dados como provados nos Pontos n.ºs 21º, 22º e 23º, da matéria de facto dada como provada, mormente que o recorrente "colocou as mãos no pescoço da esposa A. P., agarrou-o e apertou-o com força, exercendo uma pressão tal que a impediu de respirar" e que "o arguido, nestas circunstâncias, assim permaneceu durante alguns instantes até conseguir tirar a vida àquela A. P.” não merece qualquer censura.
21.E não merece qualquer censura, atenta a conjugação de todos os elementos probatórios apurados no decurso dos autos e em sede de audiência de julgamento, atentas as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, bem como tendo na sua devida conta o teor da prova pericial e documental constante dos autos, os quais não permitem que, da sua análise, o Tribunal a quo chegasse a outra conclusão a não ser a de que a morte da vítima foi o resultado da conduta do recorrente, nos termos melhor descritos na acusação pública e nos correspetivos factos dados como provados na douta decisão recorrida.
22.Pelo que, mais uma vez, o alegado pelo recorrente não tem qualquer sustentabilidade tendo em conta a totalidade dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, conjugados com os restantes elementos de prova apurados nos autos, motivo pelo qual os factos dados como provados, constantes dos pontos 21º; 22º e 23º, da matéria de facto dada como provada, se devem manter nos seus precisos termos, não existindo qualquer razão para que os mesmos sejam dados como não provados, como pretende o recorrente.
23. Quanto aos pontos c) e k) dos factos dados como não provados na decisão recorrida.
24.Alega, ainda, o recorrente, que, o douto acórdão recorrido ao dar como não provados os factos constantes nas als. c) e k) da matéria de facto dada como não provada, errou na apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, na medida em que resulta do teor dos autos e das regras da experiência comum, bem como dos elementos documentais juntos aos autos, in casu do teor das mensagens de texto extraídas do telemóvel da Vítima, A. P., que o aludido relacionamento amoroso da vítima, causava, no recorrente, um estado de perturbação psicológica e um conflito interior que já durava há bastante tempo, motivo pelo qual, deverá o Acórdão recorrido ser revogado, e em consequência, devem os factos dados como não provados nas als. c) e k) ser dados como provados.
25.Novamente, salvo o devido respeito, por opinião contrária, que é muito, a conclusão por parte do recorrente de que os factos dados como não provados nas als. c) e k) devem ser dados como provados, não merece qualquer censura.
26.E não merece qualquer censura, porque da conjugação de todos os elementos probatórios apurados no decurso dos autos e em sede de audiência de julgamento, atentas as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, bem como tendo na sua devida conta o teor da prova pericial e documental constante dos autos, não permitem que, da sua análise, o Tribunal a quo tivesse chegado a outra conclusão a não ser a de que a relação extraconjugal que existia entre a Vítima e a testemunha J. F., dentro das quatro paredes da casa de morada de família do Recorrente, não causava, neste último, um estado de perturbação psicológica e um conflito interior, pois tal perturbação e mau estar, entre o casal, já existia há bastante tempo, ou seja antes do alegado relacionamento amoroso.
27.Pelo que, mais uma vez, o alegado pelo recorrente não tem qualquer sustentabilidade tendo em conta a totalidade dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, conjugados com os restantes elementos de prova apurados nos autos, motivo pelo qual os factos dados como não provados, constantes dos pontos das als. c) e k), da matéria de facto dada como não provada, se devem manter nos seus precisos termos, não existindo qualquer razão para que os mesmos sejam dados como provados, como pretende o recorrente.
28. Relativamente ao facto de a pena de 19 anos de prisão, em que foi condenado o recorrente, ser excessiva. Nesta matéria, os assistentes, entendem, salvo o devido respeito, por opinião contrária, que é muito, que tal pena não merece qualquer censura.
29.E não merece qualquer censura, na medida em que da conjugação de todos os elementos probatórios apurados no decurso dos autos e em sede de audiência de julgamento, tendo, ainda, em conta a situação sociofamiliar e económica do condenado, as exigências de prevenção geral e especial, sem olvidar a reintegração do agente na comunidade e todo o circunstancialismo subjacente à prática dos factos, melhor descritos e plasmados no douto acórdão recorrido, bem como tendo, ainda, em conta todos os demais elementos de prova e relatórios sociais constantes dos autos, tudo conjugado e devidamente ponderado, entendem os assistentes que o Tribunal a quo ponderou bem a pena que aplicou ao arguido/recorrente, pela prática do crime de homicídio em que o mesmo foi condenado nos presentes autos.
30.Pelo exposto, o alegado pelo recorrente não tem qualquer sustentabilidade, atendendo à totalidade da prova constante dos autos e aos demais elementos probatórios juntos aos autos, bem como tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial que o caso carece, pelo que, a pena em que o mesmo foi condenado, na opinião dos assistentes, não merece qualquer censura, devendo, tal pena, se manter nos seus precisos termos.
Termos em que e nos melhores de direito, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo recorrente e mantido o douto acórdão/recorrido nos seus precisos termos.
Assim se fazendo inteira e Sá Justiça.”
5 - Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido, sufragando a “proficiente resposta” dada pelo MP na 1ª instância e sublinhando que o despacho instrutório “analisou e decidiu em definitivo” as nulidades invocadas.
Parecer que manteve, após a apresentação de novas conclusões pelo recorrente, devidamente sintetizadas.
6 - No âmbito do disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, o recorrente apresentou resposta ao parecer emitido, considerando-o “desprovido de qualquer fundamento, quer factual, quer legal”, persistindo na argumentação constante do recurso.
7 – Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da conferência, por o recurso aí dever ser julgado - artigo 419º, nº 3, al. c), do Código de Processo Penal.
* * *
II – Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação - artº 412º, n1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A -, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas - artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal (cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48).

2 – As questões invocadas no recurso são as seguintes:
- Nulidade prevista no art. 120º, nº 2, al. d), do CPP e violação dos direitos de defesa do arguido (por insuficiência do inquérito ao inexistir relatório da autópsia e causa da morte à data da dedução da acusação; a alteração não substancial dos factos comunicada, reproduzindo a autópsia, visou integrar esta na acusação, pelo que é uma alteração “mais que substancial”);
- A acusação deduzida é insuficiente e desprovida de qualquer elemento de prova, violando o disposto nos arts. 283º, nº 3, al. f), do CPP e 18º, nºs 2 e 3 e 32º, nº 5, estes da CRP (contém “meras referências genéricas e conclusivas “ e a falta do relatório da autópsia impossibilita uma fundada narração dos factos imputados);
- “Não é perceptível a linha de raciocínio adotada (…) para dar os factos como provados ou como não provados” (os pontos nºs 13, 14 e 21 a 23 devem ser tidos como não provados; por seu lado os factos dados como não provados nas alíneas c) e k devem ser tidos como provados);
- A pena concreta de 19 anos de prisão viola o disposto nos arts. 71º e 40º do CP (por não ser adequada e proporcional), devendo ser reduzida ao mínimo legal de 12 anos.
3 – Fundamentação (de facto) constante do acórdão (transcrição):
II.1. Factos provados
Discutida a causa, com relevo para a decisão a proferir, resultou provada a seguinte matéria de facto:

Da acusação pública/pronúncia

1. No assento de nascimento nº …, do ano de 2009, da Conservatória do Registo Civil de …, consta que no dia - de Maio de 1974 nasceu o, aqui, arguido M. F..
2. No assento de nascimento nº …, do ano de 2008, da Conservatória do Registo Civil de …, consta que no dia 26 de Julho de 1979 nasceu A. P., tendo como pai inscrito o, aqui, assistente A. F. e como mãe inscrita a, aqui, assistente M. J..
3. No assento de casamento nº …, da Conservatória do Registo Civil de .., consta que o arguido e aquela A. P., no dia - de Agosto de 1998, contraíram casamento católico, sem precedência de convenção antenupcial.
4. No assento de nascimento nº …/2003, do Consulado Geral de Portugal em Londres – Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, consta que no dia 14 de Outubro de 2002 nasceu o, aqui, assistente H. F., tendo como pais inscritos o arguido e a aludida A. P..
5. No assento de nascimento nº …/2006, do Consulado Geral de Portugal em Londres – Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, consta que no dia - de Julho de 2006 nasceu a, aqui, assistente L. F., tendo como pais inscritos o arguido e a identificada A. P..
6. O (extinto) casal formado pelo arguido e pela mencionada A. P. esteve emigrado em Inglaterra cerca de 17 (dezassete) anos, tendo regressado definitivamente a Portugal em Julho de 2017.
7. Ainda nesse ano de 2017, o aludido casal adquiriu um estabelecimento comercial de alojamento e restauração (café-restaurante), denominado ‘X’ (doravante, abreviadamente, ‘X’), sito na Rua …, da freguesia de ..., do concelho de ...... (…).
8. O agregado familiar do arguido e daquela A. P., integrado pelos assistentes, tinha a sua residência também no edifício referido em 7.
9. A identificada A. P. explorava o supra mencionado estabelecimento (‘X’) a tempo inteiro, inicialmente com a ajuda do arguido.
10. Posteriormente, mais concretamente, desde Fevereiro de 2019, o arguido passou a exercer a actividade profissional de motorista na “Transportes ...” (“… Bus – Transportes …, Lda.”) – doravante, abreviadamente, “Transportes ...” –, em Braga, auxiliando a esposa A. P. nos tempos livres.
11. Em data que, em concreto, não foi possível apurar, mas situada durante o Verão de 2018, um cliente habitual do supra identificado ‘X’, de nome J. F., passou também a ajudar aquela A. P., bem como o arguido, exercendo tarefas indiferenciadas no estabelecimento em questão.
12. Dada a proximidade e a forma como se relacionavam, o arguido começou a suspeitar que entre a sua esposa A. P. e o mencionado J. F. – que era divorciado – houvesse um relacionamento amoroso, rumor esse que se espalhou pela localidade.
13. Por essa razão e também porque a situação económica do (extinto) casal se agudizou, começaram a surgir discussões entre ambos, a ponto de no Verão de 2018, em data que, em concreto, não foi possível precisar, numa dessas discussões, o arguido M. F., encontrando-se na cozinha do estabelecimento ‘X’, pegou numa faca com vista a intimidar aquela A. P., sendo acalmado pelo filho H. F., aqui assistente, que também se encontrava presente.
14. Neste contexto, a relação entre o (extinto) casal deteriorou-se de tal modo que deixaram de dormir juntos e de manter relações sexuais.
15. Em data que, em concreto, não foi possível apurar, mas situada em Janeiro de 2019, o assistente H. F. viu que a sua mãe tinha uma equimose na zona do pescoço, apesar de andar tapada nessa zona com um cachecol.
16. Quando o aludido H. F. questionou a mencionada A. P. acerca dessa equimose, esta contou-lhe que fora o arguido que a tinha apertado no pescoço.
17. No dia 06 de Março de 2019, em hora que, em concreto, não foi possível precisar, mas situada entre as 20 horas e as 21 horas, o arguido M. F. chegou ao estabelecimento comercial ‘X’, vindo do trabalho referido em 10.
18. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 17., o arguido dirigiu-se ao restaurante, em concreto, à cozinha, onde se encontravam os assistentes A. F. e M. J., bem como o mencionado J. F..
19. Depois de saber que a sua esposa estava na zona da lavandaria – que fica no andar inferior e no extremo oposto do edifício em questão, tendo por referência a cozinha –, o arguido decidiu dirigir-se até àquela zona, a que acedeu pelo parque exterior do estabelecimento ‘X’.
20. Uma vez chegado à lavandaria, o arguido encetou uma conversa com aquela A. P., que se prolongou por período temporal que, em concreto, não foi possível concretizar, mas situado entre 30 (trinta) a 40 (quarenta) minutos, sendo que nesse intervalo de tempo apenas a assistente M. J. ali se deslocou, o que fez por breves momentos e devido a uma falha de água.
21. A dada altura dessa conversa, por razões relacionadas com as desavenças que vinham mantendo, o arguido M. F., desagradado com tal situação, colocou as suas mãos no pescoço da esposa A. P., agarrou-o e apertou-o com força, exercendo uma pressão tal que a impediu de respirar.
22. O arguido, nestas circunstâncias, assim permaneceu durante alguns instantes até conseguir tirar a vida àquela A. P..
23. O aludido M. F., depois de aperceber-se que a vítima A. P. ficou prostrada no solo em decúbito ventral e que já não tinha qualquer reacção, apagou a luz da lavandaria e abandonou essa divisão, dirigindo-se ao parque de estacionamento do estabelecimento comercial ‘X’ onde tinha deixado o seu veículo automóvel, da marca e modelo “Vauxhall Corsa CDTi”, com a matrícula ....
24. Após, o arguido entrou nessa viatura, tomou o lugar do condutor e arrancou sem dar conhecimento do que havia acontecido na lavandaria a quem quer que fosse que se encontrava presente nesse estabelecimento, designadamente os assistentes A. F. e M. J., progenitores da mencionada A. P..
25. Entretanto, a assistente M. J., estranhando a demora do arguido e da vítima e também para os chamar para jantar, pediu ao aludido J. F. para se deslocar à lavandaria, o que este fez, tendo-se deparado com aquela A. P. inanimada nos termos referidos em 23.
26. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido M. F., nos termos acima descritos, a vítima A. P. apresentava, entre o mais:

[i] Cabeça:
Hábito externo: presença de petéquias conjuntivas, peri-orbitárias e na face interior das pálpebras bilateralmente; rosto congestionado, com uma escoriação na face;
Hábito interno: presença de infiltração sanguínea e petéquias ao nível da face interna do couro cabeludo na região parietal esquerda, bem como do músculo temporal esquerdo.

[ii] Pescoço:
Hábito externo: na região inframentoniana direita, equimose de coloração avermelhada, com 5cm por 1,5cm de maiores dimensões; na extremidade anterior dessa equimose, escoriação de coloração avermelhada, arredonda, com 0,5cm diâmetro; na região inframentoniana esquerda, equimose de coloração avermelhada, arredondada, com 1,5cm de diâmetro; ao nível do terço médio da face ântero-lateral direita do pescoço, equimose de coloração avermelhada e de forma irregular, com 5,5cm por 2cm de maiores dimensões; no terço médio da face lateral esquerda do pescoço, equimose de coloração avermelhada e limites mal definidos, com 3cm por 1,5cm de maiores dimensões; no terço inferior da face lateral esquerda, equimose de coloração avermelhada, com 1,5cm por 1cm de maiores dimensões; ao nível do terço inferior da face anterior, duas equimoses de coloração avermelhada, sendo uma mais superior e medial com 0,5cm de diâmetro e outra mais inferior e lateral direita com 1cm por 0,6cm de maiores dimensões; escoriações na base anterior do pescoço e externo, todas elas lineares e superficiais, com marcas visíveis de compressão de ambos os lados;
Hábito interno:
Tecido celular subcutâneo: presença de área de infiltração sanguínea ao nível da face lateral esquerda do pescoço; ao nível da face lateral direita do pescoço, junto ao terço proximal da clavícula, área de infiltração sanguínea;
Músculos: presença de infiltração sanguínea nos músculos esternocleidomastoideu, face externa e interna, bilateralmente (mais evidente à direita), esterno-tiroideu direito, esterno-hioideu direito e tiro-hioideu bilateralmente (mais evidente à direita);
Osso hióide: presença de infiltração sanguínea ao nível do corno maior direito, sem traço de fratura associado;
Laringe e traqueia: presença de áreas de infiltração sanguínea ao nível da mucosa da laringe; presença de petéquias ao nível da epiglote.

[iii] Membro superior direito:
Hábito externo: equimoses na zona dos nós dos dedos anelar e auricular.

[iv] Membro superior esquerdo:
Hábito externo: na região supraclavicular, ao nível do terço distal da clavícula, equimose de coloração avermelhada, arredondada, com 1cm de diâmetro; na face posterior do ombro, duas equimoses lineares verticais separadas por área poupada e unidas por equimoses avermelhada arredondada central, ocupando uma área com 9cm por 1,5cm de maiores dimensões, compatível com lesão figurada cuja área poupada é compatível com alça do soutien; ao nível da face anterior do terço proximal do braço, equimose arroxeada com 1,5cm por 1cm de maiores dimensões; ao nível da face ântero-lateral do terço médio do braço, equimose arroxeada, arredondada, com 1,5cm de maior diâmetro; na face dorsal da articulação metacarpofalângica do 5º dedo, equimose de coloração acastanhada e de forma irregular, com 0,5cm por 0,5cm de maiores dimensões.

[v] Tórax:
Hábito interno:
Pulmões e pleura visceral: presença de sufusões hemorrágicas subpleurais dispersas pela superfície e parênquima hipocrepitante à palpação de ambos os lobos.

27. Nas calças da vítima era visível urina, localizada na zona próxima da vagina.
28. A morte da aludida A. P. foi devida a asfixia mecânica por compressão extrínseca do pescoço (esganadura).
29. Na sequência do referido em 24., o arguido contactou telefonicamente o seu familiar (2º primo) J. G., militar da Guarda Nacional Republicana (doravante, abreviadamente, GNR), a quem deu conta do sucedido.
30. Este J. G., por seu turno, contactou o comandante do Posto da GNR de Sameiro – H. B. –, a quem perguntou se sabia quem era o comandante do posto da GNR de ...... pois tinha recebido um telefonema de um primo, o qual disse ter tido uma discussão com a mulher, que lhe tinha apertado o pescoço, que, entretanto, ela estaria caída no chão e que muito provavelmente estaria morta e que queria entregar-se à GNR.
31. O arguido M. F. acabou por comparecer sozinho no Posto da GNR de Braga, no dia 06 de Março de 2019, cerca das 22 horas, apresentando-se com o bolso da camisa rasgado e pequenos ferimentos na face, mãos e canelas (como se tivesse sido arranhado e pontapeado), anunciando ao agente que aí se encontrava – o militar J. T. – ter tido uma discussão com a sua esposa, em ..., que lhe deitou as mãos ao pescoço e que desconhecia como esta teria ficado.
32. Cerca das 02 horas e 35 minutos do dia 07 de Março de 2019, o arguido, através do perfil de facebook “A. P.”, postou um comentário na notícia com o título “Mulher assassinada pelo marido em …”, publicada online pelo jornal “...”, com os seguintes dizeres “Um casamento a três não funciona foi feito um pedido para além se afastar não o fez dei nisto”.
33. O aludido M. F. agiu com o propósito, concretizado, de tirar a vida à sua esposa A. P., apertando-lhe o pescoço durante alguns instantes, a ponto de esta não conseguir respirar, uma vez que sabia que ao actuar desse modo a mesma acabaria por morrer por asfixia, o que efectivamente quis e veio a acontecer.
34. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Provou-se, ainda, que:

35. Para além dos motivos referidos em 12. e 13., as discussões entre o arguido e a vítima também ocorriam pelas seguintes razões: [i] o mencionado M. F. tinha ciúmes da aludida A. P.; [ii] esta última acusava aquele de manter relacionamentos extraconjugais; [iii] a vítima imputava ao arguido o desaparecimento de dinheiro do ‘caixa’ do estabelecimento comercial ‘X’; [iv] o auxílio que arguido prestava nesse estabelecimento era reduzido ou quase nenhum, designadamente, no que concerne às ‘diárias’; e [v] o arguido frequentava um curso de capacidade profissional para transporte de passageiros, no Porto, mas que não concluiu.
36. O arguido, devido aos ciúmes que tinha da vítima, era desconfiado, pelo que, além de vigiar aquela A. P., exercia pressão psicológica, o que determinava que esta chorasse e expressasse estar saturada dessa situação.
37. A vítima e o arguido iam divorciar-se no dia 07 de Março de 2019.
38. O identificado M. F., apesar de opor-se ao divórcio, foi convencido pela mencionada A. P. a fazê-lo, tendo em vista salvaguardar o património do (extinto) casal, atentas as dificuldades financeiras com que se debatiam.
39. A vítima tinha um tumor fibroso solitário que não teve qualquer influência na sua morte.
40. Os assistentes A. F. e M. J. trabalhavam no estabelecimento ‘X’, auxiliando a vítima.
41. A aludida A. P. era sua filha única e estes assistentes contavam que aquela os apoiasse na sua velhice, designadamente, do ponto de vista económico.
42. O assistente/demandante A. F. nasceu no dia - de Abril de 1950, contando com 68 (sessenta e oito) anos de idade à data dos factos dos presentes anos.
43. A assistente/demandante M. J. nasceu no dia - de Fevereiro de 1958, contando, à data de 06 de Março de 2019, com 61 (sessenta e um) anos de idade.
44. Os assistentes/demandantes L. F. e H. F. pretendem prosseguir os seus estudos até obter uma formação profissional.

Do pedido de indemnização civil

45. No dia 11 de Julho de 2019, no âmbito do Processo de Regulação das Responsabilidades Parentais dos, aqui, assistentes/demandantes L. F. e H. F., que, sob o nº1502/19.0T8BRG-A, corre termos no Juízo de Família e Menores de Braga – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em que são requerentes os, aqui, assistentes/demandantes A. F. e M. J., e requerido o, aqui, arguido/demandado M. F., foi alcançado um acordo provisório quanto ao exercício dessas responsabilidades, que foi homologado, estipulando-se as seguintes cláusulas:

(…)
1º - O H. F. e a L. F. residirão habitualmente com os avós maternos, ficando à sua guarda e cuidados, cabendo-lhes o exercício das responsabilidades parentais relativas à educação, sustento, saúde e segurança dos netos.
2º - Não se fixa, por ora, atenta a situação do progenitor, qualquer regime de visitas.
3º - Para o sustento dos menores, o progenitor contribuirá com uma prestação mensal de alimentos no montante de 125,00€ para cada um, a liquidar por transferência bancária para a conta com o IBAN que a Il. Mandatária dos requerentes indicará nos autos.
(…)

46. No dia 20 de Fevereiro de 2020, no âmbito do processo referido em 45., foi celebrado, em termos definitivos, o seguinte acordo de regulação das responsabilidades parentais relativo aos assistentes/demandantes L. F. e H. F.:

(…)
I- RESIDÊNCIA E ACTOS DA VIDA CORRENTE
Os menores ficam à guarda e cuidados dos avós maternos, com quem ficam a residir, exercendo estes as responsabilidades parentais relativas aos actos de vida corrente dos menores.
II - QUESTÕES DE PARTICULAR IMPORTÂNCIA:
As decisões de maior relevo para a vida dos menores criança, serão tomadas pelos avós maternos, sem de estes avisarem o pai, logo que possível.
III - DIREITO DE VISITAS:
PAI:
Atenta a situação do pai, não se fixa regime de visitas.
TIOS PATERNOS:
Quando estiverem em Portugal os tios paternos poderão visitar os menores, sempre sem prejuízo das obrigações escolares e dos períodos de descanso dos mesmos, devendo para o efeito avisar com pelo menos 24 horas de antecedência e acordar os moldes da visita com os avós maternos.
IV – ALIMENTOS/DESPESAS:
a) O pai pagará, mensalmente, aos avós maternos, a quantia de 125,00€ (cento e vinte e cinco euros), por cada um dos filhos (300,00€ no total), quantia essa que será paga até ao dia 8 (oito) do mês a que disser respeito, por depósito ou transferência bancária, para a conta com constante dos autos a folhas 52.
b) Esta prestação será actualizada automaticamente em janeiro de cada ano, com início em janeiro de 2021, de acordo com o indicie de inflação publicado pelo INE, mas não inferior a 2%.
c) As despesas extraordinárias médicas (aquisição de aparelho dentário, óculos, intervenções cirúrgicas e outras), e medicamentosas, mediante apresentação de receita médica e as despesas escolares de início de ano letivo com a aquisição de livros e material escolar serão suportadas pelo pai.
(…)

47. O acordo referido em 46. foi homologado por sentença proferida no dia 20 de Fevereiro de 2020.
48. À data dos factos, a vítima A. P. geria e explorava, a tempo inteiro, o estabelecimento ‘X’, bem como a Casa de Turismo …, recebendo turistas, procedendo à limpeza e fazendo tudo o que se mostrava necessário.
49. A vítima encontrava-se identificada na base de dados da Segurança Social como sendo ‘membro de órgão estatutário’ (gerente) da sociedade comercial por quotas, denominada “…, Lda.”, o que ocorria desde 13 de Maio de 2016, declarando a remuneração mensal líquida de €600,00 (seiscentos euros).
50. A vítima era uma cidadã responsável, afeiçoada à família, muito activa, robusta, saudável, enérgica e uma profissional dedicada à sua profissão, sendo competente e exemplar no seu trabalho.
51. Sem prejuízo do referido em 36., a vítima apresentava-se como pessoa bem-disposta e alegre junto daqueles com quem contactava.
52. A aludida A. P. gostava de viver, de cultivar amizades e de interagir com todos quantos a conheciam, sendo por estes estimada.
53. A vítima, à data de 06 de Março de 2019, contava com 39 (trinta e nove) anos de idade e vivia com o arguido/demandado e com os assistentes/demandantes L. F. e H. F. – seus filhos – e A. F. e M. J. – seus pais.
54. Os rendimentos que a vítima auferia com o seu trabalho eram canalizados para o sustento deste agregado familiar, nomeadamente, entre outras despesas, com educação, alimentação, vestuário, assistência médica e medicamentosa e transportes dos seus filhos e progenitores.
55. As despesas realizadas pela vítima com os assistentes/demandantes A. F. e M. J. – seus pais –, ascendiam, em média, a uma quantia mensal que, em concreto, não foi possível apurar, mas de, pelo menos, €150,00 (cento e cinquenta euros), para cada um.
56. A morte inesperada da vítima cerceou-lhe a possibilidade de fruir e disfrutar tudo o que a caracterizava como ser humano e tudo quanto tinha e que tanto lhe custara a granjear numa vida de trabalho.
57. Além disso, impediu-a de gozar a vida, nomeadamente, de conviver com os seus pais e de ver os seus filhos crescer, tornarem-se adultos, emanciparem-se, singrarem na vida e, eventualmente, darem-lhe netos.
58. Durante o período temporal que mediou entre o momento em que o arguido/demandado M. F. começou a apertar o pescoço da aludida A. P., asfixiando-a, e o momento em que a mesma sufocou, esta teve plena consciência, durante alguns instantes, que a sua vida ia terminar, como, de facto, terminou.
59. O arguido/demandado, nesse período temporal, provocou-lhe dores fortes e intensas.
60. A compreensão, pela vítima, da iminência da sua morte, causou-lhe pânico, um medo atroz, uma angústia muito elevada e profunda e uma fortíssima ansiedade, uma vez que teve a certeza que deixava, para sempre, a vida, os seus filhos – menores de idade –, os seus pais e demais familiares, o que a amargurou bastante, pois era muito unida e chegada à sua família, mais concretamente, aos assistentes/demandantes, sendo o leme e o amor destes últimos.
61. Os mencionados L. F., H. F., A. F. e M. J. mantinham contactos diários com a vítima, a quem eram muito dedicados e chegados.
62. A morte trágica e repentina da identificada A. P., pelas mãos do, aqui, arguido/demandado M. F., seu marido, foi o maior desgosto da vida dos assistentes/demandantes, pois entre aquela e estes últimos existiam grandes laços de afecto, carinho e amor, que se estendiam por todos os que com ela conviviam, demais familiares e amigos, que a vítima sempre soube bem receber em sua casa.
63. A morte da vítima representou para os assistentes/demandantes uma perda irreparável.
64. Os assistentes/demandantes, desde o dia 06 de Março de 2019, estão irremediavelmente privados da companhia, da ajuda e do carinho daquela A. P..
65. Para além do apoio pessoal, ficaram, também, privados do apoio financeiro que esta última todos os dias lhes prestava para sobreviverem.
66. Desde a sua morte que os assistentes/demandantes sofrem diariamente uma grande e forte dor e desgosto, bem como uma angústia indescritível, o que irá manter-se para sempre, tão fortes eram os vínculos que os uniam à vítima.
67. Este rude e emocional golpe que sofreram na sua vida revela-se maior e mais agravado pelo modo como a vítima faleceu, de forma brusca e violenta, o que lhes deixou sequelas graves ao nível do foro psicológico, não sendo capazes de prosseguir, de uma forma normal, as suas actividades escolares, sociais e laborais.
68. Na verdade, com a sua morte trágica, inesperada e repentina, os assistentes/demandantes sofreram, para além de um enorme e profundo sofrimento e desgosto, uma grande e enorme angústia, tendo, ainda, ficado tristes, magoados, pesarosos e revoltados com as circunstâncias em que faleceu, o que os conduziu a sentimentos de perda total, de grande revolta, de injustiça e de tristeza absoluta, que ainda não recuperaram e que se desconhece se alguma vez recuperarão.
69. Os assistentes/demandantes sempre recordarão e terão uma imensa saudade da aludida A. P., que muito amavam e da qual muito se orgulhavam.
70. Os assistentes/demandantes A. F. e M. J., com as despesas de funeral da aludida A. P., despenderam o valor de €1.628,00 (mil seiscentos e vinte e oito euros).
71. Estes assistentes/demandantes, a título de despesas com o identificado H. F., mormente com actividades lúdicas e necessárias, despenderam o total de €207,00 (duzentos e sete euros) junto da sociedade comercial “…, Lda.”.
72. Os aludidos A. F. e M. J., a título de despesas com a identificada L. F., despenderam as seguintes quantias: [i] €280,00 (duzentos e oitenta euros), junto de C. G., a título de explicações; e [ii] €180,00 (cento e oitenta euros), junto da “H.. – Hospital Privado de …, S. A.”, a título de despesas de saúde (consultas de psiquiatria).
73. Os mesmos A. F. e M. J., a título de despesas com prestações referentes a Imposto Municipal sobre Imóveis (doravante, abreviadamente, “IMI”), despenderam a quantia global de €1.214,66 (mil duzentos e catorze euros e sessenta e seis cêntimos).
74. Estes assistentes, a título de despesas de luz, água, gás, telefone e despesas de manutenção das moradias de … – Braga, do estabelecimento comercial ‘X’ e da Casa da …, despenderam um montante total nunca inferior a €7.807,77 (sete mil, oitocentos e sete euros e setenta e sete cêntimos).
75. Os identificados A. F. e M. J., a título de despesas judiciais efectuadas no âmbito do Processo nº267/2019-JP, do Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia, mais concretamente com o pagamento das custas desse processo, despenderam o valor de €175,00 (cento e setenta e cinco euros).

Dos antecedentes criminais do arguido

76. O arguido M. F. foi já condenado no âmbito do Processo Comum Singular nº579/16.5PBBRG, do Juízo Local Criminal de Braga – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, por sentença proferida no dia 23 de Março de 2017, transitada em julgado no dia 09 de Outubro de 2017, pela prática, em 01 de Abril de 2016, de um crime coacção, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €7,00 (sete euros), num total de €700,00 (setecentos euros); posteriormente, foi tal pena de multa declarada extinta pelo pagamento.

Dos factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido

77. O processo de desenvolvimento do arguido decorreu junto do agregado de origem, pais e três irmãos, em contexto socioeconómico e cultural modesto, com uma dinâmica relacional descrita como estruturada e funcional.
78. A economia familiar esteve assente na actividade exercida pelos progenitores, agricultores em terras próprias.
79. A trajectória escolar do arguido decorreu até à conclusão do 6º ano, quando decidiu não prosseguir os estudos com o objectivo de trabalhar.
80. O arguido viveu integrado na família natural até emigrar para Inglaterra aos dezoito anos de idade, apoiado pela irmã e primos, ali radicados, fixando-se em Londres onde trabalhou na área da restauração e, em determinado período, como distribuidor em mercado de fruta.
81. Durante o cumprimento do serviço militar obrigatório em Leiria/Caldas da Rainha, o arguido deslocava-se regularmente à freguesia de origem, quando reencontrou a vítima A. P., que fora sua colega de escola, à data ainda estudante, com quem iniciou uma relação afectiva de namoro que manteve durante cerca de quatro anos.
82. Concluído o serviço militar obrigatório, o aludido M. F., sob arrendamento, explorou um Café (“…”) na sua freguesia de origem.
83. Contudo, decidiu regressar a Inglaterra e, durante uma das suas viagens a Portugal, em 1998, celebrou matrimónio com a vítima, relação na constância da qual nasceram dois filhos, os, aqui, assistentes H. F. e L. F..
84. Acompanhado pelo cônjuge, o arguido regressou a Inglaterra, mantendo residência em casa da irmã até se autonomizarem.
85. Decorrido um ano, o mencionado M. F. fixou residência em Londres, onde, juntamente com a vítima, adquiriu casa própria com recurso às suas economias, às de familiares e a um empréstimo bancário.
86. Foi, então, que o arguido acolheu os sogros, os, aqui, assistentes A. F. e M. J. no seu agregado familiar.
87. A interacção intrafamiliar foi descrita como solidária, de confiança e cumplicidade, mantendo-se o casal laboralmente activo, ele predominantemente na área da restauração, e a vítima, como empregada de limpezas.
88. A conjugalidade revelou uma dinâmica descrita como relacionalmente estável, com consistente vinculação afectiva, que perdurou no tempo até regressarem definitivamente a Portugal, no Verão de 2017, na procura de um contexto social mais calmo e seguro, segundo expressou.
89. Desde que em Portugal, o arguido e a vítima deram continuação à exploração comercial de um minimercado e de um estabelecimento de turismo rural, em …, e criaram novos investimentos, estabelecendo-se com uma escola de cabeleireiro, em Braga, que encerraram decorridos dois anos, e o restaurante/cafetaria/alojamento, designado ‘X’, já supra identificado.
90. Mantinham ainda outros imóveis, tais como dois apartamentos em Braga, um deles que arrendaram.
91. Tendo por referência o período dos factos, o arguido e respectivo agregado familiar (integrado pelo cônjuge/vítima, filhos e sogros), residiam em casa própria, em ... –....
92. Mantendo-se o casal laboralmente activo na exploração das suas empresas, designadamente, o estabelecimento ‘X’, e na perspectiva de novos investimentos empresariais, o arguido, apesar de não ter concluído o curso referido em 35. – [v], passou a trabalhar como motorista na “Transportes ...”, em Braga.
93. A conjugalidade sentida pelo arguido como afectiva e estável, com o decorrer do tempo em Portugal passou a revelar períodos marcados por dificuldades relacionais, com indicadores de constrangimento conjugal, designadamente, em consequência do relacionamento amoroso referido em 12., entre a vítima A. P. e J. F..
94. A dinâmica relacional conturbada do casal reflectiu-se igualmente de forma negativa na convivência com a família constituída, designadamente, segundo expressou, com o filho H. F., aqui assistente, o qual evitava presenciar as discussões dos pais.
95. No meio comunitário, e de uma forma geral, o arguido sempre foi considerado como pessoa trabalhadora, empreendedora e solidária.
96. À ordem do presente processo, o aludido M. F. deu entrada em situação de prisão preventiva no Estabelecimento Prisional do Braga.
97. Os factos destes autos tiveram significativa visibilidade social nos média, com impacto no meio comunitário de residência, situação comentada de forma generalizada, em virtude de o casal ser conhecido localmente, sendo que as pessoas manifestam-se incrédulas e surpreendidas.
*
II.2. Factos não provados

Não se provaram quaisquer outros factos alegados nos autos ou em audiência de julgamento com interesse para a decisão da causa, designadamente:

a) que fosse em Agosto de 2017 que o (extinto) casal formado pelo arguido M. F. e a vítima A. P. regressasse definitivamente a território nacional;
b) que o aludido J. F. fosse amigo de escola da vítima;
c) que nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas sob o nº17, dos factos provados, a presença do mencionado J. F. na cozinha do restaurante do estabelecimento comercial ‘X’ desagradasse (uma vez mais) o arguido;
d) que no decurso do telefonema referido sob o nº30, da factualidade provada, o aludido J. G. também referisse ao mencionado H. B. que o arguido estava a ver as imagens de videovigilância com os bombeiros à volta da vítima A. P. sem lhe tocar e que esta não se mexia, nem os bombeiros lhe tocavam;
e) que a vítima gerisse e explorasse o estabelecimento ‘X’ desde Maio de 2016;
f) que aquela A. P. fosse pessoa criativa;
g) que à data da morte da vítima não se lhe conhecessem doenças ou quaisquer problemas de saúde;
h) que no período temporal referido sob o nº58, da factualidade assente, a vítima A. P. se mantivesse sempre consciente;
i) que com a morte trágica, inesperada e repentina da vítima os assistentes/demandantes L. F., H. F., A. F. e M. J. perdessem, de forma irremediável, a alegria de viver;
j) que a quantia referida sob o nº73, dos factos provados, ascendesse ao total de €1.456,91 (mil quatrocentos e cinquenta e seis euros e noventa e um cêntimos);
k) que o constrangimento conjugal, referido sob o nº93, da factualidade assente, levasse o arguido M. F. a assumir junto do identificado J. F. a sua indisponibilidade para com ele continuar a conviver;
l) que o arguido, face aos factos dos presentes autos, fosse capaz de formular juízos de censura e que manifestasse consciência da gravidade, dos danos e vítimas;
m) quaisquer outros factos para além dos descritos em sede de factualidade provada, que com os mesmos estejam em contradição ou que revelem interesse para a decisão a proferir
*
II.3. Motivação

A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do CPP), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do mesmo diploma legal, que estabelece o princípio da livre apreciação da prova.
Importa, desde já, realçar que nesta apreciação não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
Com efeito, a convicção do tribunal não se funda apenas nos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, linguagem não verbal, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência dessas mesmas declarações e depoimentos (vide o Acórdão da Relação de Évora, de 24 de Maio de 2018, acessível em www.dgsi.pt/jtre, Processo nº266/14.9GAVNO.E1, relator Martinho Cardoso).
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros, mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal, que não se confunde, naturalmente, com arbitrariedade.
Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório (vide Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º Volume, 1986, p.211).
Trata-se da liberdade de decidir segundo o bom-senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou, nas palavras de Castanheira Neves da liberdade para a objectividade (vide Revista do Ministério Público, 19º-40).
Ainda a este propósito, afirma Figueiredo Dias que (…) [u]ma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo – sublinhado nosso (vide Direito Processual Penal, Volume I, Coimbra Editora, 1981, p.202).
Tecidas estas prévias considerações, o tribunal atendeu, desde logo, aos documentos que foram juntos aos autos e aos dados objectivos que dos mesmos é possível extrair – sendo certo que não foram postos em causa em sede de audiência de julgamento –, bem como aos relatórios periciais apresentados – cuja idoneidade, isenção e conhecimento técnico do(a)(s) Sr.(a)(es) Perito(a)(s) não foram questionados pelos intervenientes processuais.
Este acervo probatório concretiza-se nos seguintes elementos:

a) Perícias:

[i] o relatório de autópsia médico-legal, realizado pelo “Serviço de Clínica e Patologia Forense – Unidade Funcional de Patologia Forense – Gabinete Médico-Legal e Forense do Cávado”, a fls.651-660, onde se formulam as seguintes conclusões: (…) 1ª – Em face dos achados necrópsicos, da informação clínica (INEM) e da informação social fornecida a este Gabinete e atrás transcritas, a morte de A. P. foi devida asfixia mecânica por compressão extrínseca do pescoço – esganadura; 2ª – Esta é uma morte de causa violenta. 3ª – Os achados necrópsicos e a informação circunstancial fornecida a este Gabinete e atrás transcrita, harmonizam-se com a hipótese de homicídio. 4ª – Na hipótese de agressão a morte resultou como consequência necessária da ofensa. 5ª – O exame toxicológico à amostra de sangue periférico para pesquisa de álcool etílico, drogas de abuso e substâncias medicamentosas, cujo respectivo relatório segue em anexo ao presente relatório pericial, revelou-se negativo.
Nesse relatório identifica-se na página 1 (fls.651 dos autos) tratar-se de Autópsia com um perito médico (o destacado é nosso), realizada no dia 08 de Março de 2019, pelas 09 horas e 30 minutos, a que corresponde o nº2019/000121/BR-P-TF1.
Tal relatório mostra-se datado de 30 de Setembro de 2019 – cfr. página 9 (fls.655 dos autos) –, contendo 2 (duas) assinaturas da mesma pessoa, em concreto, da Sra. Dra. D. A., que, como reconheceu e confirmou, subscreveu-o na qualidade de perita médica e também em substituição da Sra. Dra. M. P. (cfr. fls.655).
Foram tomados esclarecimentos às Sras. Dras. D. A. e M. P., que os prestaram de forma bastante elucidativa, segura e lógica, explicando de modo linear e consistente como se desenvolveu o exame que fizeram ao cadáver da vítima A. P., sublinhando-se que responderam a todas as questões que lhes foram colocadas, sem que se manifestassem discrepâncias entre o que uma e outra elucidaram, tendo sido unívocas.
Ambas asseveraram que a autópsia foi realizada no dia 08 de Março de 2019, embora a conclusão do relatório pericial apenas tenha ocorrido a 30 de Setembro de 2019, numa altura em que a Sra. Dra. M. P. encontrava-se em gozo de férias pessoais, o que determinou que a Sra. Dra. D. A., para não atrasar o processo, assinasse em sua substituição, tratando-se de uma prática corrente, que é do conhecimento do respectivo superior hierárquico, não competindo ao tribunal apreciar da sua (ir)regularidade por tratar-se de uma questão administrativa, que não assume nenhum interesse para a respectiva relevância probatória em sede criminal, pelo motivo que infra enunciaremos.
Ambas também fizeram referência, entre o mais, às questões relacionadas com as lesões apresentadas pela vítima, a causa da sua morte e a hora da mesma, sendo inequívoca a similitude das explicações que prestaram.
Dito isto, a Lei nº45/2004, de 19 de Agosto, veio estabelecer o regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses (cfr. artigo 1º).
Tais perícias são realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal, adiante designado por Instituto, nos termos dos respectivos estatutos (cfr. artigo 2º, nº1, do mesmo diploma legal).
Aludindo à ‘autópsia médico-legal’, estabelece-se no nº1, do artigo 18º, daquela Lei nº45/2004, que tem lugar em situações de morte violenta ou de causa ignorada, salvo se existirem informações clínicas suficientes que associadas aos demais elementos permitam concluir, com segurança, pela inexistência de suspeita de crime, admitindo-se, neste caso, a possibilidade da dispensa de autópsia.
As autópsias médico-legais são realizadas por um médico perito coadjuvado por um auxiliar de perícias tanatológicas – sublinhado e destacado nossos (cfr. artigo 19º, nº1, do mesmo diploma legal).
Deste modo, a força probatória do relatório de autópsia médico-legal dos presentes autos não resulta beliscada pelo facto de mostrar-se duplamente assinado pela Sra. Dra. D. A., pois que, atento o normativo vindo de citar, a perícia é singular, sendo indubitável que tal relatório apresenta-se subscrito pelo médico perito que nela teve intervenção.
Este relatório foi conjugado com o auto de diligência efectuada pela Polícia Judiciária (doravante, abreviadamente, “PJ”), a fls.120-121, e com o relatório de exame pericial realizado pela PJ e destinado à fixação fotográfica dos ferimentos apresentados pela vítima, a fls.122-125, que acompanha aquele auto.
Ambos mostram-se datados de 08 de Março de 2019 e identificam a mesma autópsia, com o nº2019/0121/BR-P (cfr. fls.651 – página 1).
No auto de diligência vindo de referir menciona-se que na autópsia em questão estiveram presentes 2 (dois) peritos do Gabinete Médico-Legal de Braga: a Sra. Dra. D. A. e o Sr. Dr. R. M..
Esta informação revela-se imprecisa na medida em que, como se esclareceu supra: [i] apenas a Sra. Dra. D. A. interveio na qualidade de perita médica; [ii] no exame ao cadáver da aludida A. P. participou ainda a Sra. Dra. M. P.; e [iii] o Sr. Dr. R. M., como o próprio elucidou, apenas esteve presente para prestar assistência às Sras. Dras. D. A. e M. P., prestando auxílio quando solicitado.
A inexactidão vinda de apontar não afecta, porém, a eficácia probatória do auto de fls.120-121 porquanto a informação que nele se fez constar corresponde àquela que se menciona no relatório de autópsia médico-legal de fls.651-660, tendo sido prestada por perito médico que, efectivamente, interveio neste exame.
Por isso é que nesse auto se escreve: [n]o seguimento daquele exame foi possível recolher a seguinte informação.
Também por essa razão se menciona que [d]e tudo o que foi observado e dada a ausência de outras indicações (de momento) sobre a causa da morte, referiram aqueles peritos médicos, que tudo aponta para que a morte tenha resultado por asfixia – sublinhado e destacado nossos.
Deste modo, do que vem de expor-se resulta que a PJ, no dia da realização da autópsia, elaborou o auto de fls.120-121 e o relatório de fls.122-125 com base nesse exame e nas informações transmitidas pelos médicos que nele tiveram participação.
Estes elementos probatórios encontram-se identificados na acusação pública, datada de 03 de Setembro de 2019, em concreto, a fls.517 (“Auto de diligência junto GML de fls. 120 a 125”).
Uma vez que, como se apurou, o relatório de autópsia médico-legal apenas foi concluído no dia 30 de Setembro de 2019 – a sua elaboração/redacção, conclusão e remessa ao processo não se confunde (não pode confundir-se) com a realização do exame em si (a autópsia) –, menciona-se no libelo acusatório protestar-se proceder à sua junção aos autos.
O aludido M. F., em sede de instrução, sustentou que: [i] o despacho final de acusação mostra-se infundado dada a ausência de provas que o sustentem, pois que faltou o relatório de autópsia – protestado juntar – essencial à comprovação de um nexo de causalidade entre a conduta do arguido e a morte da vítima, assim consubstanciando uma nulidade por omissão de tal diligência, nos termos do artigo 120º, nº2, alínea d), do CPP; [ii] esse despacho final foi elaborado sem ter por base qualquer conhecimento médico-legal, sendo efectuadas referências genéricas e inconclusivas sem narrar os factos passíveis de integrar os elementos objectivos do crime; e [iii] a ausência do relatório de autópsia implica a ausência de indícios do nexo de causalidade entre a conduta do arguido e a morte ocorrida.
Na sequência da alteração não substancial dos factos operada em sede de audiência de julgamento (cfr. fls.1371-1376 – referência nº168503828), o arguido reiterou, em traços gerais, a posição por si já defendida na fase instrutória (cfr. fls.1377-1380 – referência nº10171223).
As questões que enunciou no requerimento para abertura da instrução – supra enunciadas – foram objecto de apreciação na decisão de pronúncia datada de 28 de Novembro de 2019 (cfr. fls.816-824 – referência nº166110661), que transitou em julgado.
Nessa decisão afirma-se, além do mais, que: (i) a autópsia foi realizada no dia 08 de Março de 2019, pelas 09 horas e 30 minutos, avançando-se como causa provável da morte da vítima a asfixia; (ii) o arguido parece confundir a realização da autópsia (exame) com a elaboração do relatório pericial; (iii) o Ministério Público ordenou a realização dessa diligência probatória (obrigatória), razão pela qual não a omitiu; (iv) no despacho de acusação foi protestado juntar o relatório de autópsia, logo que elaborado, o que veio a ocorrer; e (v) o mencionado M. F. não refere quais as expressões de natureza genérica ou conclusiva que viciam a acusação pública, sendo certo que inexistem.
Esta argumentação merece a nossa adesão, importando também não descurar o que consta do auto de fls.120-121 e do relatório de fls.122-125, que se funda na referida autópsia e que se mostram indicados no libelo acusatório.
Aliás, é com base nesses elementos – apurados aquando da realização da autópsia, no dia 08 de Março de 2019 – que se afirma no artigo 17º, da acusação pública: “Em consequência directa e necessária da actuação do arguido nos termos acima referidos, a vítima A. P. apresentava o rosto congestionado, com uma escoriação na face e hemorragias petequiais nas regiões orbitárias; ao nível do pescoço, escoriações na base anterior do pescoço e externo, todas elas lineares e superficiais, com marcas visíveis de compressão de ambos os lados; na mão direita, equimoses na zona dos nós dos dedos anelar e auricular; isófago limpo e edema pulmonar; nas calças, urina na zona próxima da vagina, sendo a sua morte devida a asfixia mecânica”.
Este facto funda-se num exame pericial – a autópsia –, que foi efectivamente realizado antes da dedução da acusação, não sendo, portanto, resultado de uma irreflexão do Ministério Público.
O suporte documental desse exame – o relatório –, apesar de ter sido concluído e remetido aos autos em data posterior, não belisca a existência desse facto, nem a sua veracidade, pois que para além de mostrar-se comprovado pelo auto de fls.120-121 e pelo relatório de fls.122-125 – indicados no libelo acusatório –, também o foi pelo próprio relatório de autópsia médico-legal (cfr. fls.651-660) e ainda pelos esclarecimentos prestados pelos Srs. Peritos em audiência de julgamento.
Por outro lado, com a prolação da decisão instrutória de pronúncia, que transitou em julgado, passou esta a balizar o objecto do processo, sendo certo que neste despacho final indica-se, como prova, entre o mais, o relatório do exame de autópsia, nos seguintes moldes: [p]rova: a constante da acusação por referência a fls. 651 e ss [corresponde ao supra identificado relatório de autópsia médico-legal].
Em face de tudo quanto se expôs supra, o tribunal, na formação da sua convicção, tomou em consideração o teor do referido relatório de autópsia, que conjugou com os esclarecimentos prestados pelas Sras. Dras. D. A. e M. P..

[ii] o relatório de criminalística biológica, a fls.661-665, que teve por objectivo a identificação de material biológico em amostras relacionadas com a vítima A. P..

[iii] o auto de visionamento do conteúdo de um DVD-R, a que se reporta o exame de fls.369 (cfr. apenso I (fls.426)), tratando-se de exame ao telemóvel da vítima (da marca “Apple”, modelo “MKQR2B/A”, IMEI ………, ligado à “…”, nº ………), apreendido a fls.277.
Do visionamento dos ficheiros constantes desse telemóvel foram encontrados aqueles que constituem o apenso I, de onde resulta, entre o mais, que: (i) a identificada A. P. mantinha um relacionamento amoroso com J. F. (identificado como “…”) – que foi inquirido como testemunha; (ii) apesar de pretenderem mantê-lo em segredo, a mãe da vítima – a assistente M. J. – sabia ou, pelo menos, desconfiava dessa relação, pelo que estava atenta ao que se passava; (iii) o relacionamento entre a vítima e a sua progenitora era tenso devido ao referido em (ii): (iv) o casamento da vítima e do arguido encontrava-se em crise; (v) o arguido queixava-se da proximidade existente entre a vítima e aquele J. F.; (vi) a relação entre o aludido M. F. e os filhos/assistentes H. F. e L. F. não era próxima; e (vii) o arguido pouco auxiliava no dia-a-dia do estabelecimento comercial ‘X’.

[iv] o auto de visionamento do conteúdo de um DVD-R, a que se reporta o exame de fls.370 (cfr. apenso I (fls.427)), tratando-se de exame ao telemóvel do arguido (da marca “Apple”, modelo “A1723”, IMEI ………, ligado à “…”, nº ………), apreendido a fls.81.
Do visionamento dos ficheiros constantes desse telemóvel foram encontrados aqueles que constituem o apenso I, de onde resulta, além do mais, que: (i) o casamento da vítima e do arguido encontrava-se em crise; (ii) aquela A. P. falava em pôr termo a esse casamento devido às discussões e desconfianças por parte do arguido e à falta de estabilidade emocional da vítima e dos filhos; (iii) o casal não dormia junto, nem mantinha relações sexuais com regularidade; (iv) o arguido manifestava que a vida sem a vítima não fazia sentido e que já havia perdido tudo; (v) a relação entre o arguido e os filhas/assistentes não era próxima; (vi) a filha/assistente L. F. encontrava-se deprimida devido às discussões entre o arguido e a vítima, que já vinham do tempo em que residiam em Londres; (vii) o arguido não gostava da atenção que a vítima prestava àquele J. F.; (viii) não era a primeira vez que o arguido desconfiava que a vítima tinha um relacionamento com outros homens; (ix) o identificado M. F., numa ocasião, puxou de faca para a vítima; e (x) a vítima acusava o arguido de ter relacionamentos com outras mulheres.

[v] o relatório de exame forense do computador portátil usado pelo arguido (da marca “Sony”, com o nº* ………*), a fls.581-582, cuja apreensão consta a fls.272.

[vi] o relatório de exame pericial destinado à observação e recolha de vestígios, realizado pela PJ nas instalações do estabelecimento comercial ‘X’ no dia 07 de Março de 2019, a fls.217-240.
Nesse relatório menciona-se, além do mais, que a vítima (…) encontrava-se na posição de decúbito dorsal, com todos os membros estendidos, sendo que os superiores afastados do tronco (…) O rosto apresentava-se congestionado (característica em fenómenos de asfixia), sendo também perceptível, na face esquerda, uma mancha (equimose). Ao nível do pescoço, para além das escoriações já referidas, também eram perceptíveis marcas de compressão (equimoses) de ambos os lados. Ao nível do globo ocular, era perceptível a presença de petéquias. Na mão direita, na região superior dos dedos anelar e auricular era visível uma equimose. Os livores cadavéricos encontravam-se em processo de fixação de acordo com a posição do cadáver. Na boca encontrava-se um dispositivo plástico que terá sido utilizado nas manobras de socorro, sendo também perceptíveis escorrências hemáticas, só sendo possível determinar a sua origem em sede de autópsia. As calças apresentavam-se com vestígios de urina, fenómeno também característico em quadros de asfixia. O espaço onde a vítima foi localizada é a lavandaria do estabelecimento, situada na garagem deste. O acesso faz-se por um portão directo para a rua ou por uma porta localizada no pátio da cozinha – sublinhado nosso.
As fotografias que fazem parte integrante deste relatório assinalam o local onde os factos sob discussão ocorreram, no estabelecimento comercial ‘X’, mais concretamente na lavandaria do mesmo, sendo visível como foi encontrado o corpo da aludido A. P. e que lesões evidenciava.
O relatório pericial em apreço e as fotos que o acompanham não divergem do que consta no relatório de autópsia de fls.651-660, no auto de diligência efectuada pela PJ a fls.120-121 e no registo fotográfico de fls.122-125.
b) Documentos:

[i] o auto de notícia da GNR, de 06 de Março de 2019, a fls.3-5, lavrado pelo militar J. P., que se deslocou ao estabelecimento supra identificado quando se encontrava em funções de patrulhamento.
Nesse documento fez-se constar, entre o mais, que (…) foi efectuada por esta patrulha uma ligeira inspecção à vítima onde foi possível verificar que nela existiam marcas na zona do pescoço, presumivelmente potenciadas por uma alegada tentativa ou consumação de asfixia, tendo a vítima também vestígios de sangue na zona do nariz e boca (…) – sublinhado nosso.

[ii] o auto de notícia da PJ, de 06 de Março de 2019, a fls.52, onde se menciona que a (…) a vítima foi encontrada caída no chão, inanimada, em decúbito dorsal, num anexo da sua residência, aparentando ter sido vítima de asfixia, presumivelmente por esganamento. Não obstante a actuação d INEM, o óbito foi constatado – sublinhado nosso.

[iii] o aditamento ao auto de notícia da GNR, de 06 de Março de 2019, a fls.244-245, lavrado pelo militar J. T., que, à data, prestava serviço no Posto Territorial da GNR de Braga, aí se escrevendo, além do mais, que (…) [p]or volta das 22H00 compareceu sozinho neste posto o Sr. M. F. (…) que me informou ter tido uma discussão com a sua esposa em ..., disse que lhe deitou as mãos ao pescoço e que desconhece como teria ficado a sua esposa tendo se ausentado do local e porque tem residência em Braga, decidiu se apresentar neste posto, e contar o que se tinha sucedido em .... Foi o mesmo questionado por mais detalhes sobre o sucedido tendo o mesmo respondido que não se recordava de mais nada, só se lembra o que já tinha contado. Perante a insistência do participante em questiona-lo sobre o sucedido o mesmo remeteu-se ao silêncio – sublinhado nosso.

[iv] o registo do “Instituto Nacional de Emergência Médica – Centro de Orientação de Doentes Urgentes”, de 06 de Março de 2019, a fls.7-8, onde se assinala que o óbito da vítima A. P. ocorreu pelas 21 horas e 10 minutos, desse mesmo dia, tendo previamente sido realizadas manobras de reanimação.

[v] o termo de entrega de cadáver (da vítima) no “Instituto Nacional de Medicina Legal”, de 07 de Março de 2019, a fls.9.

[vi] a guia de transporte da vítima, de 07 de Março de 2019, onde se assinala o óbito às 21 horas e 10 minutos do dia 06 desse mesmo mês e ano.

[vii] o assento de nascimento do arguido, a fls.46-47 e a fls.614 (este último com o pedido de indemnização civil), onde consta averbado o casamento com a aludida A. P. e a sua dissolução por óbito desta.

[viii] o assento de nascimento da vítima, a fls.612-613 (junto com o pedido de indemnização civil), onde se identificam como progenitores os, aqui, assistentes A. F. e M. J., constando averbado o casamento com o arguido e a sua dissolução por óbito daquela A. P., anotando-se que faleceu no dia 06 de Março de 2019.

[ix] a cópia do cartão de cidadão da vítima, a fls.11.

[x] o assento de nascimento do assistente H. F., a fls.615-616 (junto com o pedido de indemnização civil).

[xi] o assento de nascimento da assistente L. F., a fls.617 (junto com o pedido de indemnização civil).

[xii] o relatório de inspecção judiciária, elaborado pela PJ, de 06 de Março de 2019, a fls.64-66, onde se descrevem os factos, a data, a hora e o local da sua ocorrência, bem como se procede à identificação da vítima e se relata a posição em que se encontrava, qual o vestuário e os objectos que trazia consigo e que lesões foram detectadas.
Deste modo, escreve-se nesse relatório, entre o mais, que: (…) Cerca das 21H00 do dia 06/06/2019, a vítima, A. P., fora encontrada inanimada e aparentemente sem vida, por uma testemunha, J. F., na lavandaria o estabelecimento de que é proprietária, “X”, juntamente com o seu marido, suspeito, M. F., o qual se veio a entregar na GNR de Braga, confessando ter empregado a força física sobre a esposa. A. P. veio a falecer no local, vítima de aparente estrangulamento, ainda que intentadas sucessivas manobras de reanimação por parte do INEM (…) O cadáver apresentava-se em decúbito dorsal no chão da lavandaria do estabelecimento X com as pernas e braços estendidos aos longo do corpo e as mãos ligeiramente flectidas, encontrando-se com a cabeça mais próximo do ângulo de 90º efectuado do lado esquerdo da divisão, pelo conjunto de máquinas de lavar e secar a roupa com um sofá de cor lilás, e os pés na direcção da porta (…) O cadáver apresentava diversas escoriações na base anterior do pescoço e externo, todas elas paralelas, lineares e superficiais. Na base anterior do pescoço eram ainda visíveis marcas de compressão. Na face esquerda, uma escoriação, bem como petéquias em ambos os olhos. A mão direita apresentava equimoses na zona dos nós dos dedos, bem como no dedo anelar (…) O cadáver apresentava-se frio ao toque com rigidez cadavérica instaladas e os livores em fixação, compatíveis com a posição do corpo. A face encontrava-se congestionada, possuindo uma substância espumosa na cavidade bucal, bem como um tubo cor de laranja no mesmo orifício, utilizado nos movimentos de reanimação, com escorrências hemáticas na face direita compatíveis com os mencionados movimentos – sublinhado nosso.

[xiii] a reportagem fotográfica ao arguido M. F., efectuada pela PJ, no dia 07 de Março de 2019, a fls.83-88, destinada a fixar os ferimentos que apresentava na face, mão e perna e os estragos no seu vestuário.

[xiv] a reportagem fotográfica à vítima A. P., realizada pela PJ, a fls.100-103, quando aquela ainda se encontrava na lavandaria do estabelecimento comercial ‘X’, e que atesta o que se fez constar no já supra referido relatório de inspecção judiciária de fls.64-66 ([xii]).

[xv] a reportagem fotográfica ao veículo automóvel do arguido, da marca e modelo “Vauxhall Corsa CDTi”, com a matrícula ..., efectuada pela PJ no dia 07 de Março de 2019, a fls.114-116.

[xvi] o auto de apreensão do aparelho de videovigilância instalado no estabelecimento comercial denominado ‘X’ (“Digital Vídeo Recorder”, modelo XS-…-VS2), datado de 22 de Março de 2019, a fls.290, e o respectivo auto de recolha e gravação de imagens nele contidas, a fls.348-349 e fls.354-367.
Como se esclarece a fls.348, essa gravação respeita ao período compreendido entre as 04h08m45s e as 05h03m30s do dia 07 de Março de 2019 (hora do sistema de gravação), correspondendo ao tempo real situado entre as 20h55m45s e as 21h50m30s do dia 06 de Março de 2019, havendo, portanto, um desfasamento de +07h13m.
No seguimento do despacho proferido no dia 28 de Fevereiro de 2020 (cfr. fls.1102-1104 – referência nº167468582), procedeu-se à visualização das imagens posteriores àquele período de tempo (cfr. fls.1314 – referência nº168076687), conforme requerido pelo arguido a fls.1185 (cfr. referência nº9925345), que teve lugar no dia 06 de Maio de 2020 (cfr. fls.1314 – referência nº168076687).
Para além da sequência a que respeitam as imagens de fls.354-367 – que iniciam às 04h08m54s e findam às 05h03m29s –, verifica-se que: [a] Câmara 1: às 05h04m58s um homem desloca-se ao balcão do restaurante do estabelecimento ‘X’ onde toma café, ausentando-se às 05h06m59s; [b] Câmara 6: (i) às 05h07m40s, esse homem, que se encontrava a falar com outras pessoas junto à entrada do restaurante, sai do estabelecimento e entra no portão exibido na fotografia de fls.1318, que dá acesso à lavandaria e também a outros cómodos (cfr. fotografias de fls.1319-1320); (ii) às 05h15m05s, o mesmo homem sai desse portão e dirige-se para o restaurante do identificado estabelecimento, onde entra; (iii) às 05h18m07s, o aludido J. F. sai do referido portão a correr, dando alerta de que algo se passa.

[xvii] os prints de notícia, a fls.17-20, fls.48-49, fls.90-91 e fls.206-207, a que se alude no ponto 21., da acusação pública.

[xviii] a folha de trabalho do arguido na “Transportes ...”, a fls.441, respeitante a 06 de Março de 2019, verificando-se ter iniciado o dia de trabalho pelas 07 horas e 50 minutos e findado pelas 19 horas, em Braga.

[xix] a comunicação da falta do arguido ao trabalho no dia 07 de Março de 2019, a fls.442.

[xx] a certidão extraída do Processo nº126/19.7Y2BRG, ‘Acordo Responsabilidades Parentais – Parecer’, da Procuradoria do Juízo de Família e Menores de Braga, em que eram requerentes a vítima A. P. e o arguido M. F., a fls.191-196 (requerimento para realização de conferência).

[xxi] a cópia extraída do Processo nº1502/19.0T8BRG-A, ‘Regulação das Responsabilidades Parentais’, do Juízo de Família e Menores de Braga – Juiz 3, em que são requerentes os, aqui, assistentes A. F. e M. J., e requerido o, aqui, arguido, a fls.557-559/966-968 (acta de conferência – acordo provisório), a fls.631 (esta junto com o pedido de indemnização civil) e a fls.1356-1359 (acta de conferência – acordo definitivo).

[xxii] a consulta à base de dados da Segurança Social, relativa à vítima, a fls.618 (junto com o pedido de indemnização civil).

[xxiii] os documentos que atestam a realização de despesas: (i) com o funeral da vítima A. P. (factura emitida pela “Agência Funerária …, Lda.”, a fls.619); (ii) com o assistente H. F., a fls.620; [iii] com a assistente L. F., a fls.621-624; [iv] com IMI, a fls.625-628; [vi] com despesas judiciais, a fls.629-630; e [vii] com luz, água, gás, telefone e manutenção de moradias, a fls.692-803.
Estes documentos, juntos com o pedido de indemnização civil deduzido pelos assistentes, não foram impugnados pelo arguido, pelo que aceitou o seu teor.

[xxiv] os assentos de nascimento dos assistentes A. F. e M. J., que foram juntos em sede de audiência de julgamento, no âmbito da alteração não substancial dos factos efectuada na sessão do dia 15 de Junho de 2020 (cfr. referências nºs68478434 e 68478436).

Os elementos documentais e periciais acima enunciados foram conjugados com a apreciação crítica das declarações prestadas pelo arguido M. F. em sede de primeiro interrogatório judicial, que se realizou no dia 08 de Março de 2019 (cfr. fls.127 – referência nº162469736).
Na verdade, na audiência de julgamento dos presentes autos, o arguido usou do direito de não prestar declarações (cfr. artigos 61º, nº1, alínea d), 343º, nº1, 2ª parte, do CPP) – cfr. fls.974.
Afirma-se na exposição de motivos da Proposta de Lei nº77/XII, que culminou com a publicação da Lei nº20/2013, de 21 de Fevereiro, que alterou o CPP, nomeadamente, quanto à utilização, em sede de julgamento, das declarações prestadas pelo arguido ao abrigo do disposto nos artigos 141º, nº4, alínea b) e 357º, alínea b), ambos do CPP, que [a] quase total indisponibilidade de utilização superveniente das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento tem conduzido, em muitos casos, a situações geradoras de indignação social e incompreensão dos cidadãos quanto ao sistema de justiça. Impunha-se, portanto, uma alteração ao nível da disponibilidade, para utilização superveniente, das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento, devidamente acompanhadas de um reforço das garantias processuais. Assim, esta disponibilidade de utilização, para além de só ser possível quanto a declarações prestadas perante autoridade judiciária, é acompanhada da correspondente consolidação das garantias de defesa do arguido enquanto sujeito processual, designadamente quanto aos procedimentos de interrogatório, por forma a assegurar o efetivo exercício desses direitos, maxime o direito ao silêncio (…) Por outro lado, exige-se a assistência de defensor sempre que as declarações sejam susceptíveis de posterior utilização, e exige-se a expressa advertência do arguido de que, se não exercer o seu direito ao silêncio, as declarações que prestar podem ser futuramente utilizadas no processo embora sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova. A falta de assistência por defensor, bem como a omissão ou violação deste dever de informação determinam a impossibilidade de as declarações serem utilizadas, assegurando uma decisão esclarecida do arguido quanto a uma posterior utilização das declarações que, livremente, decide prestar. Preserva-se, assim, a liberdade de declaração do arguido que, apenas, voluntariamente pode prescindir do direito ao silêncio e, também, apenas voluntariamente, prescinde do seu controlo sobre o que disse. As declarações que, nos termos legais, possam e venham a ser utilizadas em julgamento, estão sujeitas à livre apreciação da prova, assim se autonomizando da figura da confissão prevista no artigo 344.º - sublinhado nosso (acessível em http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764 c324679595842774f6a63334e7a637664326c756157357059326c6864476c3259584d7657456c4a4c33526c6548527663793977634777334e79315953556b755a47396a&fich=ppl77-XII.doc&Inline=true).
Como se esclarece no Acórdão da Relação do Porto, de 27 de Junho de 2018 (acessível em www.dgsi.pt/jtrp, Processo nº370/16.9PEGDM.P1, relatora Maria Ermelinda Carneiro): I – As declarações do arguido prestadas no 1.º interrogatório judicial têm que ser lidas ou ouvidas em audiência de julgamento para que possam ser valoradas e utilizadas na formação da convicção do tribunal. II – A valoração de tais declarações, apesar da omissão da sua leitura ou audição, constitui prova proibida, inquinando a sentença, nos termos do artigo 122.º71 C P Penal, por violação dos artigos 355.º e 357.º do mesmo diploma legal.

No caso dos presentes autos, o arguido M. F., encontrando-se assistido por defensor, foi ouvido em primeiro interrogatório judicial por juiz de instrução e advertido para o disposto no artigo 141º, nº4, alínea b), do CPP, isto é, de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova (cfr. fls.127 e fls.129 – referência nº162469736).
Tais declarações foram reproduzidas na audiência de julgamento destes autos e serviram para o tribunal formar a sua convicção acerca dos factos ora sob discussão.
Naquela diligência, o arguido afirmou que o (extinto) casal dormia em quartos separados devido a uma (grave) crise no casamento, relacionada com questões económicas atinentes ao estabelecimento comercial ‘X’, e também por causa de um relacionamento amoroso que envolvia a vítima A. P. e o já identificado J. F., o que gerava discussões frequentes.
Na noite de 06 de Março de 2019, depois de regressar do trabalho, o arguido deslocou-se à lavandaria daquele estabelecimento, onde se encontrava a vítima, tendo iniciado uma discussão por causa de contas (cfr., com interesse, a mensagem escrita constante do apenso I, desse mesmo dia, pelas 14:38:18, a fls.84), na sequência da qual ambos se agarraram (cfr. 58m18s dessas declarações), tendo aquela A. P. começado a arranhá-lo na cara e nas mãos, deixando-lhe também marcas nas pernas (cfr. 59m10s dessas declarações e fotos de fls.83-87).
Nessa altura, como esclareceu, “fiquei cego e não sei o que é que eu fiz mais” (01h00m20s dessas declarações), até ao momento em que se apercebeu que a vítima estava caída no chão, “sem reacção” (01h00m55s dessas declarações). Ao notar que a mencionada A. P. encontrava-se inanimada, o arguido ficou em pânico e perguntou-se “o que é que eu fiz” (01h01m23s dessas declarações), porquanto “pensei que a matei” (01h01m28s dessas declarações), na medida em que “eu praticamente tive contacto físico com ela” (01h01m35s dessas declarações).
Nesse seguimento, decidiu fugir e afastar-se do local, apesar de ter tomado a decisão de entregar-se à polícia “porque eu fiz uma asneira” (01h02m21s dessas declarações) e porque “eu fiz um crime. Acho que devo pagar por ele” (01h06m20s dessas declarações).
Assim, em sede de primeiro interrogatório judicial, o arguido reconheceu ter discutido com a vítima – tratando-se de mais uma discussão entre tantas outras que já se prolongavam no tempo –, admitiu ter-se gerado uma contenda física entre ambos e que, nesse contexto, ficou “cego”, isto é, ficou desvairado e dominado pela fúria e pela raiva – nas palavras da Digna Procuradora da República, proferidas em alegações finais –, de tal modo que ripostou, o que fez de forma violenta, só parando quando se apercebeu que aquela A. P. já estava prostrada no chão e inerte, o que determinou a reacção que descreveu, ou seja, entrou em pânico e fugiu, tendo, entretanto, após ponderação, decidido entregar-se à polícia.
Para além da prova documental, da prova pericial e das declarações prestadas pelo arguido aquando do seu primeiro interrogatório judicial, o tribunal atentou nas declarações dos assistentes L. F. – filha do arguido e da vítima A. P. –, H. F. – filho do arguido e da vítima –, M. J. – sogra do arguido e mãe da vítima – e A. F. – sogro do arguido e da vítima.
Os elementos probatórios vindos de elencar foram, também, conjugados com o depoimento das testemunhas J. F. – que, à data dos factos, prestava auxílio no estabelecimento comercial ‘X’, realizando tarefas indiferenciadas –, D. H. – que, a essa data, trabalhar no referido estabelecimento –, M. V. – que, tendo sido cliente desse estabelecimento, manteve posteriormente contacto com a vítima –, J. P. – militar da GNR que, à data, exercia funções no Posto Territorial de... –, J. T. – militar da GNR que, à data, exercia funções no Posto Territorial de Braga –, H. B. – militar da GNR que, à data, exercia funções no Posto Territorial do Sameiro –, J. G. – militar da GNR e 2º primo do arguido M. F. –, M. T. – inspector da PJ –, C. F. – que foi professora da assistente L. F. –, C. M. – professora do assistente H. F. –, A. F. – psicóloga da assistente L. F. –, M. M. – que foi cliente do estabelecimento comercial ‘X’ e que aí se encontrava na noite de 06 de Março de 2019 –, J. M. – irmão do arguido –, M. C. – irmã do arguido –, A. J. – que conhece o arguido por serem naturais da mesma freguesia e terem sido colegas de escola –, S. A. – que foi colega da testemunha J. F. e que, por via deste, trabalhou no identificado estabelecimento comercial –, D. C. – que conhece o arguido e os assistentes por ser Presidente da Junta de Freguesia onde residem –, J. D. – que conhece o arguido e os assistentes desde que regressaram de Inglaterra e vieram residir para ... –, D. J. – primo do arguido –, M. H. – que conhece o arguido desde que era criança –, A. R. – que trabalhou no estabelecimento comercial ‘X’ durante 3 (três) semanas, em Julho de 2018 – e J. C. – que, à data dos factos, encontrava-se hospedado nesse estabelecimento.
A convicção do tribunal formou-se em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que transpareceram em audiência dessas mesmas declarações e depoimentos.
Os assistentes, no cômputo geral, foram espontâneos, sérios, seguros e consistentes no relato que fizeram, tendo descrito a dinâmica familiar do agregado da vítima A. P., bem como o desenrolar dos acontecimentos verificados no dia 06 de Março de 2019 de forma que se afigurou ponderada, linear, lógica e devidamente circunstanciada.
A postura dos mencionados L. F. e H. F. e A. F. e M. J. foi genuína, tendo todos, com maior ou menor desenvoltura, procurado auxiliar o tribunal na descoberta da verdade.
As declarações que produziram foram sentidas, sem que se notasse que lhes estivesse subjacente uma qualquer elaboração mental, destituída de qualquer correspondência com a realidade.
Evidenciaram possuir conhecimento pessoal e directo dos factos que descreveram porquanto residiam com o arguido M. F. e a vítima A. P., o que já sucedia desde quando viviam em Londres.
Eram, pois, observadores privilegiados da forma como se relacionava o (agora extinto) casal.
Deste modo, com base no que esclareceram, foi possível apurar que o casamento do arguido e da vítima atravessava uma crise profunda, sendo marcado por frequentes discussões entre ambos que, via de regra, respeitavam a dois assuntos centrais: [i] a difícil situação económica com que se debatiam na exploração do estabelecimento comercial ‘X’ – o que determinou mesmo que, em Fevereiro de 2019, o arguido procurasse uma fonte adicional de rendimento e passasse a trabalhar em Braga, na empresa “Transportes ...”; e [ii] o relacionamento amoroso entre aquela A. P. e a testemunha J. F., que, no Verão de 2018, passou a auxiliar o (extinto) casal nesse estabelecimento, tratando-se de algo que já era comentado na localidade – a este respeito, o arguido, nas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial, afirmou que, por esta razão, era normal discutirem, em média, entre uma a duas vezes por semana.
A par dos assuntos supra enunciados, o (extinto) casal também discutia porque: [i] o arguido tinha ciúmes da vítima, de tal forma que vigiava-a e pressionava-a psicologicamente, ao ponto de esta última chorar e expressar estar saturada dessa situação; [ii] aquela A. P. acusava o aludido M. F. de manter relacionamentos extraconjugais; [iii] a vítima atribuía ao arguido o desaparecimento de dinheiro do ‘caixa’ do estabelecimento ‘X’; [iv] o auxílio que arguido prestava nesse estabelecimento era reduzido ou quase nenhum, designadamente, no que concerne às ‘diárias’; e [v] o arguido frequentava um curso de capacidade profissional para transporte de passageiros, no Porto, mas que não concluiu.
Foi devido a estas discussões que o arguido, em data indeterminada do Verão de 2018, pegou numa faca com vista a intimidar a vítima, o que fez indiferente à presença dos assistentes H. F. e M. J..
Também em virtude do conflito existente, o (extinto) casal deixou de dormir junto na mesma cama.
Ainda pelas razões supra apontadas, o mencionado M. F., em Janeiro de 2019, apertou o pescoço daquela A. P., com o que lhe provocou uma equimose, que esta procurou disfarçar mediante a utilização de um cachecol, mas que não escapou à observação dos assistentes L. F., H. F. e M. J..
Como resultado de toda esta tensão, a vítima, apesar da oposição do arguido, conseguiu convencê-lo a divorciar-se, com a finalidade de proteger o respectivo património, atentas as dificuldades financeiras com que se debatiam, sendo que o divórcio iria concretizar-se no dia 07 de Março de 2019.
Sucede que na véspera, isto é, no dia 06 de Março de 2019, o arguido, depois de chegar do trabalho em Braga, dirigiu-se à cozinha do estabelecimento ‘X’ e perguntou pela vítima. Depois de saber que se encontrava na lavandaria, foi ter com esta, tendo ambos sido interrompidos pela assistente M. J. devido a uma falha de água (da nascente), o que aconteceu por breves instantes. Nesse seguimento, a assistente regressou à cozinha e, entretanto, porque começava a fazer-se tarde para jantar, pediu à testemunha J. F. para ir chamar o arguido e a vítima. Foi nessa ocasião que os assistentes – com excepção do mencionado H. F., que se encontrava no seu quarto – ouviram aquele J. F. a gritar para que se chamasse o INEM, vindo a deparar-se com a aludida A. P. caída no chão da lavandaria, sem respirar e sem pulsação, tendo podido verificar que o arguido ali não se encontrava, nem o veículo automóvel que habitualmente usava para se deslocar.
Sendo este, em termos globais, o teor das declarações prestadas pelos assistentes, poder-se-á argumentar – e é legítimo que se faça – que devem ser apreciadas com precaução, pois que terão um interesse natural no desfecho do processo, até porque, no caso decidendo, deduziram pedido de indemnização civil.
No entanto, sem prejuízo das necessárias cautelas que tais declarações merecem, atento o interesse (in)directo na causa, a verdade é que as mesmas constituem um meio de prova livremente valorável.
Essa valoração dependerá do modo como as declarações forem prestadas, isto é, se forem produzidas de forma que se afigure séria e dotada de verosimilhança, serão atendíveis.
Foi, precisamente, o que sucedeu com os identificados L. F., H. F., M. J. e A. F., não podendo esquecer-se, por ser relevante, que, por residirem com o casal composto pelo arguido e pela vítima, tinham um conhecimento muito próximo do que se passava na sua esfera mais privada e que não era divulgado a terceiros.
Neste contexto, porém, não foi possível ocultar nem conter o envolvimento amoroso que ligou a mencionada A. P. à testemunha J. F., pois que tratou-se de assunto que foi, inclusive, comentado na localidade – já os relacionamentos extraconjugais que a vítima imputava ao marido, aqui, arguido, mantiveram-se encobertos.
A propósito dessa ligação emocional existente entre a vítima e a indicada testemunha foi possível verificar que os assistentes M. J. e A. F. procuraram refutá-la, afirmando que a filha mantinha uma relação normal, idêntica àquela que dedicava a outras pessoas.
No entanto, a prova produzida (documental e testemunhal) militou em sentido distinto, como se alcança do elenco da factualidade provada.
O arguido, que estava ciente dessa realidade, afirmou no primeiro interrogatório judicial que a sua, então, sogra discutia com a vítima por causa desse envolvimento, manifestando a sua discordância e o seu desagrado por esta ser casada.
A descrita postura da assistente M. J., além de ser coerente com o que ditam os juízos da experiência corrente aplicáveis nesta matéria, encontra suporte nas mensagens que a identificada A. P. trocou com aquele J. F., nomeadamente, as dos dias 05 e 06 de Março de 2019 (cfr. apenso I, fls.29-36):

01h41m50s: Vítima (V) – Temos de ser felizes.
01h42m17s: V – Raios a minha mãe não nos dá tréguas
(…)
01h42m23s: Testemunha (T) – A tua Mae vai dar em brave
01h42m40s: T – Breve
(…)
01h43m48s: V – E depois de não termos sequer dado um abraço ficou de trombas quando foi fazer os quartos! Já não a suporto
01h43m54s: V - Sempre em cima.
01h44m51s: T – Mas porque ela estava la
01h44m54s: V – Que de sério devia ficar quieta tranquila pra dar tréguas
01h45m30s: V – Sim mas tinha ido aos cães enquanto eu fui às toalhas e ela lá pensou que foste comigo
(…)
01h46m10s: T – Ela não ve mais mesmo
(…)
01h47m24s: Ela não ve mais
01h47m34s: V – Eu sei.
(…)
01h48m32s: T – De manha diz ela maldita hora que sai de londres.
01h48m42s: V – Porra que nso conseguimos ter tempo nenhum sozinhos
(…)
12h56m16s: V – (…) Vai mudar sim! Tem de mudar mesmo! Ela é o demônio te garanto ainda hade crer falar e não poder! Ou eu não me chamo A. P..
12h57m17s: V – Que espere pela volta, deus não dorme! E ele esse banana e sempre o coitadinho! Puta que os pariu!
(…) – sublinhado nosso

Desta troca de mensagens resulta inegável que, como se explanou supra, a assistente M. J. sabia do relacionamento amoroso entre a filha e a testemunha J. F., tendo expressado a sua oposição, interferido e procurado contrariar os ímpetos da vítima, sendo até sensível à posição do arguido, enquanto marido.
Esse mesmo conhecimento teria, também, o assistente A. F., desde logo por ser casado e residir com aquela M. J., o arguido e a vítima, além de trabalhar juntamente com o identificado J. F..
No entanto, estes assistentes negaram os factos atinentes a tal envolvimento, mesmo quando eram comentados na localidade onde residiam, pelo que as declarações que prestaram, nesta parte, foram subjectivas e comprometidas.
A este respeito ocorre-nos citar o que se escreve no Acórdão da Relação de Guimarães, de 23 de Março de 2015 (acessível em www.dgsi.pt/jtrg, Processo nº159/11.5PAPTL.G1, relator João Lee Ferreira), quando se afirma que [a] circunstância de alguém, seja por erro de percepção ou por outro motivo, acabar por efectuar declarações inverosímeis ou contraditórias não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal não se encontra adstrito à inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios.
Neste aresto explica-se que (…) julgar é precisamente “escolher”, “optar”, “decidir”. A função do julgador não consiste em encontrar a versão que recolhe maior número de testemunhos, mas, sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum, determinar como os factos se passaram: exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade a quem compete julgar depende de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante. A circunstância de uma pessoa produzir declarações inverosímeis ou sabidamente desconformes com a realidade não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal nunca se encontra adstrito à inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios: desde que o raciocínio seja compreensível, o tribunal poderá aceitar como verdadeiros certos segmentos das declarações ou do depoimento e negar fiabilidade a outros, distinguindo o que merece credibilidade do que lhe surge como mera efabulação emocional ou, mesmo, como mero erro de percepção (sublinhado nosso).
Com efeito, mesmo de boa-fé, qualquer depoimento contém erros, podendo encontrar-se ao lado de dados verdadeiros, dados falsos ou dados inexactos.
Assim, o depoimento não pode considerar-se como um bloco indivisível (vide, neste sentido, Ricardo António da Velha, “Psicologia Judiciária, Do determinismo psicológico à liberdade de decidir”, Sub Júdice, 22/23, Julho/Dezembro de 2001, p.129).
Tal como referiu Enrico Altavilla, (…) qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras (vide Psicologia Judiciária, Volume II, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2003, p.12).
No caso de que nos ocupamos, entendemos que as declarações prestadas pelos assistentes A. F. e M. J., no que concerne ao referido envolvimento amoroso entre a vítima A. P. e a testemunha J. F., não primaram pela transparência.
Sem prejuízo do que fica dito, cremos, porém, que não pretenderam, de modo deliberado pelo menos, mentir ao tribunal.
Estamos antes convencidos que essa sua dissimulação explica-se pelo contexto cultural em que se mostram inseridos, de tradição religiosa – repare-se que a vítima e o arguido casaram-se segundo os cânones da religião católica –, que apela para o peso da família e do respeito pela fidelidade conjugal.
Nesta perspectiva, a atitude que tomaram, segundo entendemos, foi a solução que melhor encontraram para honrar a memória, o bom-nome e a dignidade da sua filha.
Assim, sem prejuízo da dissonância apontada, que, no seguimento do que exprimimos supra, se nos afigura expectável e compreensível, os aludidos A. F. e M. J., bem como os assistentes L. F. e H. F., foram honestos, coerentes e plausíveis, sobressaindo do seu discurso semelhanças e correspondências de conteúdo, não obstante terem sido ouvidos separadamente.
Acresce que tais declarações foram prestadas de modo concordante com a possibilidade de ocorrência de factos da natureza daqueles que descreveram e que se mostram alegados nos presentes autos.
O relato que produziram pautou-se por ser coeso, sequencial e devidamente enquadrado, com o que mereceu credibilidade, tanto mais que não resultaram evidenciadas flagrantes contradições acerca dos factos relevantes, nem mesmo quando sujeitos a interpelações que os poderiam induzir nesse sentido.
Com isso não queremos afirmar que tais declarações foram totalmente coincidentes, pois que assim não sucedeu.
No entanto, as inexactidões que se detectaram assumem, para o mérito da causa, um relevo secundário ou residual, de que constitui exemplo a discrepância que se verificou acerca do responsável (se a assistente M. J., se a testemunha J. F.) por abrir a água da Câmara na sequência da referida falha da água da nascente.
Do mesmo modo, a afirmação que aqueles A. F. e M. J. fizeram acerca de o arguido, no dia 06 de Março de 2019, ter faltado ao seu trabalho, não os descredibiliza porquanto, como justificaram, o que exprimiram foi-lhes transmitido por terceira pessoa, não sendo directo o seu conhecimento acerca deste concreto aspecto – com o que tal asserção foi desconsiderada (cfr., ainda, a ficha de trabalho de fls.441, que atesta o contrário do que afirmaram).
A par das características que apontamos ao discurso dos assistentes, importa sublinhar que o que explicaram mostra-se apoiado por outros elementos de prova (documental, pericial e testemunhal), o que também contribuiu para o convencimento do tribunal.
Na verdade, como se alcança das mensagens trocadas entre a vítima e o arguido, a dinâmica do (extinto) casal corresponde àquela que foi descrita pelos aludidos L. F. e H. F., A. F. e M. J..
Senão vejamos (os destacados são nossos):

Dia HoraInterveniente
23.04.201816:32:33
(fls.59)
Arguido (A)
(…) mas uma coisa eu sei a vida sem ti não faz sentido e que o amor que eu tenho por ti e verdadeiro e simsero ademirote muito tenho muito orgulho em ti por isso perder-te nem pensar não iria aguentar aí sim que a vida terminava para mim (…)
19.08.201804:39:25
(fls.60)
A
(…) se talvez me desses um pouquinho mais de amor talvez me fizeres uma pessoa diferente, agora sem ti não nada faz mais sentido fica com tudo que para mim nada mais tem valor (…)
19.11.201801:45:36
(fls.61)
A
(…) diz a minha filha que me pode odiar mas eu continua a gostar dela na mesma e estou aqui para o que ele precisar e for preciso ela que pessa que eu estou aqui, e que me desculpe por as vezes ser injusto com ela obrigado para as duas uma boa noite amo-vos muito (…)
26.11.201802:00:14
(fls.62)
Vítima (V)
(…) tu Não vez as horas e que todos estamos cansados além de estar no estado que estou! Não será demasiado egoísmo! (…)
26.11.201823:52:43
(fls.63)
A
(…) Se a meses dorme um para cada lado porque tu queres quantas vezes te procuro e to simplesmente nunca estas disposta e se fazes e quase por favor, mas é eu que não sou bom não é nem para te passar um creme nas costas fazer uma massagem não vailo para nada
27.11.201800:03:47
(fls.63)
V
(…) será que até desconfias da própria sombra. Se as coisas estão do jeito que estão e porque ajudaste a que chegassem aqui, ou já te esqueceste (…) M. F. já chega tou cansada acredita que estou esgotada, os teus filhos são a parte mais importante para mim, e neste momento estão a precisar de mim e eu não vou falhar com eles, neste caso é a L. F. se tu consegues ser egoísta a esse ponto meu anjo assim não sei viver! Não estou habituada a que puxem de faca para mim e eu chegue a cama e faça de conta que está tudo bem (…) E já agora fica a saber que quando chamei o J. F. a cozinha foi para desinfetar as feridas que tem nas pernas, e não para me esfregar as costas, ou pescoço! E já agora já o fez a minha mãe e a mim uma vez e não me comeu bocado nenhum! Tu sinceramente se não mudas de atitude não existe ninguém que aguente. Já estou cansada!
27.11.201800:05:45
(fls.63)
V
(…) Eu estou com a minha filha porque ela está com uma depressão e ela é mais importante que tudo o que tenho na vida! Tanto ela como o irmão se não aceitas, faz o que entenderes
27.11.201800:13:00
(fls.63)
A
(…) Sei que ele te passo pomada nas costas e te fez uma massagem passa por mim e fote lhe pedir a ele porque eu não era capaz (…)
27.11.201800:22:02
(fls.64)
A
(…) Sim por não me ligar nem queres fazer amor comigo
27.11.201800:24:34
(fls.64)
V
(…) Eu não sou prostituta nenhuma que vai sem ter vontade, tu desconfias, tu pões escondes e apagas tudo do telefone, tu tens fotos de vídeo chamada com gaijas, tu queres me bater, puxas de faca, que amor queres que que eu sinta para ir pra cama cheia de vontade de ir fazer amor!!!
27.11.201800:57:19
(fls.66-verso)
V
(…) Tiveste tanto ano pra provar isso é não o fizeste! Tu nso me amas tu e obsessão
27.11.201800:57:59
(fls.66-verso)
V
(…) Sempre o J. F., sempre opor-me, antes foi o P., quem será a seguir???
27.11.201801:15:09
(fls.68-verso)
V
(…) tou aqui luto todos os dias para aqui continuar mas estou cansada mentalmente das tuas chantagens emocionais
27.11.201801:18:04
(fls.69-verso)
V
(…) Sabes porquê tudo está deste jeito com a tua filha, queres mesmo???
27.11.201801:19:25
(fls.69-verso)
V
(…) Ela nso suporta mais ouvir o pai e a mãe s discutir e depois no dia seguinte o pai faça uma festa na mãe e a mãe caia na mesma asneira, tudo fica bem! Ela está cansada de viver assim
27.11.201801:20:04
(fls.70)
V
(…) Por ela a mãe já estava separada do pai a muito deste Londres
27.11.201801:20:15
(fls.70)
V
(…) Por isso ela está nos limites
27.11.201801:26:20
(fls.71-verso)
V
(…) Tu sonhas o medo que ela sentiu em me perder quando tu puxaste de faca
27.11.201801:27:27
(fls.72)
V
(…) Tu sonhas o que o J. F. lhe tenta dar a volta
27.11.201801:27:49
(fls.72)
A
(…) Por isso agora tento afastar dela
27.11.201801:29:20
(fls.72-verso)
V
(…) Só te digo tu não uses em me tocar ou gritar comigo na frente dela nem sonhes em lhe tocar
27.11.201801:29:34
(fls.72-verso)
A
(…) Mas eu só vos quero dar amor e carinho
27.11.201801:29:55
(fls.72-verso)
V
(…) Então o jeito de dar amor e carinho nso e este
27.11.201801:29:58
(fls.72-verso)
V
(…) De quebrar
27.11.201801:30:02
(fls.72-verso)
V
(…) De desconfiar
27.11.201801:32:20
(fls.73)
V
(…) Por favor eu tento o meu melhor o J. F. tenta o melhor ou aceitas ou desisto de vez
27.11.201801:32:37
(fls.73)
V
(…) Pois cobranças todos os dias nso consigo
27.11.201801:33:23
(fls.73)
V
(…) Os teus filhos precisam de estabilidade emocional tal como eu
01.03.201901:14:50
(fls.78)
A
(…) Faz o que quizer para mim e egual já perdi tudo não é a casa que vai fazer diferença
01.03.201901:15:34
(fls.79)
A
(…) Que mais me da viver ou morre para mi e igual
01.03.201901:16:24
(fls.79)
A
(…) Estou cheio desta vida
01.03.201901:17:16
(fls.79)
A
(…) Já ando aqui a mais
02.03.201902:40:26
(fls.79)
A
(…) Não acredito que não a volta a dar eu amo-te
02.03.201902:40:47
(fls.79)
A
(…) Porque tanto ódio de mim
02.03.201902:42:35
(fls.79)
A
(…) Porque me fazes sofrer tanto
02.03.201902:43:45
(fls.80)
A
(…) Porque estar sempre a lembrar o passado
02.03.201902:44:40
(fls.80)
A
(…) Se essas putas me fizeram merda que culpa tenho eu
02.03.201902:49:08
(fls.80)
A
(…) Para arranjar uma casa mais forte para te veres livre de mim, se eu já perdi tudo não tenho mais para perder estou sozinho sem ninguém a pouco e pouco fiquei só que estou aqui a fazer
02.03.201902:53:58
(fls.80)
A
(…) Se for desta para melhor pelo menos ficas com tudo pago acho que não tenho outra saída estou sem força para continuar
02.03.201903:13:30
(fls.81)
A
(…) Porque acreditar em Deus e dizer que ixiste um além se nos aqui não nos perdoamos já errei mas acho que já paguei por isso o que me estás a fazer sofrer já tira-te tudo de mim o que resta nada e não importante, mas eu amo-te muito e tu não és capaz de me dar um beijo ou como tu dizes de me fazer um favor, pois o que se passou foi a meses que Aida ias fazendo mas agora é cada vez menos, sim sei que a tua saúde está pior mas um beijo um abraço a saúde não é desculpa o que me faz acreditar que estás mesmo farta de mim e queres e vete livre de mim isso o que me faz entender desculpa se estiver errado mas eu amo-te muito não sei viver sem ti (…)
06.03.201914:38:18V
(…) Pois fui no banco porque o banco tinha me mandado mensagem o empréstimo não foi pago não havia dinheiro suficiente

A tensão vivenciada pelo (extinto) casal e as discussões que ocasionava – que as mensagens escritas documentam –, também não passou despercebida às testemunhas J. F. – aliás, visado em parte delas – e D. H., sendo certo que, como se apurou, trabalhavam no estabelecimento comercial ‘X’ e, consequentemente, contactavam diariamente com a vítima e o arguido.
O mencionado J. F., a este propósito, esclareceu ter acedido a auxiliar os aludidos A. P. e M. F. no identificado estabelecimento, sem que se estabelecesse quando e quanto lhe iriam pagar, uma vez que atravessavam uma débil situação económica, tratando-se de um dos motivos por que discutiam.
Para além dessas dificuldades constituía também motivo de discussão a pouca ajuda que o arguido prestava à vítima na exploração desse negócio e a acusação que aquele imputava a esta de manter um relacionamento amoroso com a testemunha.
O mesmo J. F. referiu, ainda, que o arguido manifestava ter ciúmes da vítima, de tal modo que houve mesmo clientes do estabelecimento ‘X’ que deixaram de frequentá-lo devido à forma como aquele M. F. se comportava sempre que a mencionada A. P. abordava ou era abordada por alguém do sexo masculino.
Apesar de nunca ter presenciado nenhuma situação de violência física e/ou verbal, o identificado J. F. descreveu que a vítima e os filhos do arguido viviam oprimidos e num clima de medo, devido à pressão psicológica exercida pelo marido/progenitor, o que, aliás, também transparece das mensagens que constam do apenso I, cujo teor citamos supra.
Esta testemunha não procurou esconder o relacionamento amoroso que manteve com a aludida A. P., antes assumindo-o, embora negando qualquer envolvimento físico.
E, na verdade, tal assunção é a que se coaduna com a realidade, pois que ficou sobejamente demonstrado esse relacionamento, sendo até alvo de comentário na localidade.
As mensagens escritas a que vimos fazendo referência revelam que a presença deste J. F. na vida da vítima e dos seus filhos L. F. e H. F. era indissimulável (cfr. apenso I: mensagens de 06 de Março de 2019, trocadas entre a vítima e a testemunha, às 00:45:38, 00:46:20, 00:47:00, 15:26:43, 15:26:54, 15:50:57, 15:51:13, 15:54:25 e 15:57:02, e mensagens de 27 de Novembro de 2018, trocadas entre a vítima e o arguido, às 01:27:27 e 01:32:20), tanto mais que a sua ligação a estes – como também aos assistentes A. F. e M. J. – permanece mesmo após a morte da identificada A. P., como disso deram conta ao tribunal e era sua vontade.
Daí que o depoimento que prestou tenha assumido um particular peso persuasivo.
Com efeito, o conhecimento que revelou acerca da dinâmica existente entre o arguido e a vítima mostrou-se quase tão aprofundado quanto o dos próprios assistentes.
De todo o modo, mesmo que se procure desvalorizar o seu contributo em razão do relacionamento amoroso que mantinha com a vítima, atribuindo-lhe parcialidade, importa afirmar que o seu relato não revestiu um carácter isolado, antes pelo contrário.
Na verdade, também a testemunha D. H. confirmou ter presenciado discussões entre o (extinto) casal, referentes não só à sua complicada situação financeira, como ainda aos ciúmes e desconfiança que o identificado M. F. tinha para com aquela A. P., tendo mesmo chegado a ouvir o arguido dizer que “ela se não for minha não será de mais ninguém”.
Outrossim, a testemunha M. M., por ser cliente do estabelecimento comercial ‘X’, corroborou o que afirmaram os assistentes, bem como os aludidos J. F. e D. H., pois que asseverou ter assistido a muitas discussões (“graves”) entre o (extinto) casal, relacionadas com as apontadas dificuldades económicas (“quase sempre foi por dinheiro”), precisando mesmo ter ouvido a vítima dizer ao arguido que “nós andamos três a trabalhar para um” e “tu andas a roubar os teus filhos”.
Ora, se, como referimos, em relação aos assistentes e àquele J. F. poder-se-iam suscitar questões acerca da sua imparcialidade, a verdade é que as mesmas revelam-se infundadas, pois que, a par das mensagens do apenso I, o seu depoimento resulta igualmente validado pelo relato das testemunhas D. H. e M. M., que foi prestado de forma desinteressada e simples, dele não transparecendo qualquer subjectividade, pois que nenhum interesse revelaram no desfecho dos presentes autos.
Mostrando-se assente que a vítima e o arguido discutiam frequentemente pelos motivos que se explicitaram supra, os identificados J. F. e D. H. serviram ainda para corroborar o que os assistentes afirmaram acerca de terem observado a vítima a usar um cachecol em Janeiro de 2019 e da estranheza que tal facto lhes causou.
Aquele D. H. confirmou, igualmente, o que foi dito a propósito do incidente ocorrido na cozinha do estabelecimento comercial ‘X’, em que o arguido fez uso de uma faca para intimidar a vítima A. P..
Aliás, esse incidente é igualmente mencionado por esta última nas mensagens que enviou ao aludido M. F. (cfr. mensagens de 27 de Novembro de 2018, às 00:03:47, 00:24:34 e 01:26:20).
No que concerne aos acontecimentos do dia 06 de Março de 2019, verificamos que, na sua globalidade, os assistentes L. F., H. F., M. J. e A. F. e as testemunhas J. F., D. H. e M. M. foram coincidentes com a descrição que fizeram acerca da hora, do local e dos movimentos de cada um nos momentos anteriores e posteriores à morte da vítima A. P., que, como se apurou, encontrava-se na lavandaria do referido estabelecimento.
Essa coincidência manteve-se também quanto à movimentação do arguido nas mesmas circunstâncias de espaço e de tempo, sendo certo que o que expressaram a este propósito encontra suporte no auto de recolha e gravação de imagens de fls.354-367 (cfr., ainda, fls.348-349).
Como se consignou supra, no dia 06 de Maio de 2020 (cfr. fls.1314 – referência nº168076687) procedeu-se à visualização das imagens posteriores à hora indicada na foto 25 desse auto de recolha e gravação (cfr. fls.366), isto é, 05:03:29, tendo sido possível observar que o homem que está ao balcão pelas 05h04m58s (cfr. câmara 1) é o mesmo que entra às 05h07m40s (cfr. câmara 6) no portão exibido na fotografia de fls.1318 – dele saindo às 05h15m05s (cfr. câmara 6) – que também foi usado pelo arguido para entrar e sair (cfr. fotos 19 e 21, às 04:21:02 e 05:02:33, a fls.363 e a fls.364, respectivamente, do mesmo auto).
Da mobilização probatória resultou apurado que esse portão dá acesso não só à lavandaria, como também a outros aposentos do estabelecimento comercial ‘X’ (cfr. fotografias de fls.1319-1320) e que o homem que se visualiza é J. C., inquirido como testemunha, que no dia 06 de Março de 2019 aí ficou alojado para iniciar trabalho na barragem de ..., na qualidade de chefe de equipa de pinturas da empresa “…, S. A.”.
Esta testemunha, para além de ter confirmado tratar-se desse homem – visível no interior do estabelecimento e identificável no exterior pela roupa que trazia vestida, pelo calçado que usava e pelo modo como se locomovia –, explicou que não era a primeira vez que aí se hospedava, conhecendo o arguido, a vítima e os assistentes M. J. e A. F., com quem mantinha uma relação cordial.
A mesma testemunha esclareceu também que o acesso ao seu quarto fazia-se pelo referido portão, desconhecendo se permitia que se acedesse à lavandaria, mais asseverando que no trajecto que fez não se deparou com nenhuma divisão destinada a essa função, nem tampouco se cruzou com o arguido e/ou com a vítima.
Elucidou igualmente o tribunal acerca dos motivos que o levaram a encaminhar-se até ao quarto onde estava hospedado.
O depoimento que prestou afigurou-se escorreito, objectivo, sólido, linear e coeso, sendo certo que não resulta desmentido pelo que exibem as imagens que foram visualizadas.
Não obstante ter-se pretendido insinuar que esta testemunha poderia ser responsável pela morte da aludida A. P., o tribunal arredou por completo tal tese na medida em que, para além de não saber sequer que ali pudesse existir uma lavandaria, não foi apresentada uma única razão para compreender/justificar por que pretendesse tirar-lhe a vida.
Além disso, o comportamento que adoptou à saída do portão exibido a fls.1318 – acendendo um cigarro e deslocando-se, novamente, de forma tranquila e serena, para a parte do restaurante do estabelecimento ‘X’ –, não se coaduna com o comportamento de alguém que mata outrem, sabendo que esse crime estaria na iminência de ser descoberto, como, aliás, o foi, pela testemunha J. F., quando eram cerca das 05h18m (cfr. câmara 6) – trata-se da hora a que o mesmo sai do referido portão, dando o alarme, havendo que esclarecer-se que deslocou-se até à lavandaria por um outro acesso, situado nas traseiras da cozinha do identificado estabelecimento, como explicaram os assistentes e que se mostra retratado nas fotografias nºs8, 39 e 41, a fls.222, fls.236 e fls.237, respectivamente, do relatório pericial elaborado pela PJ.
Como é sabido, o julgador não é um mero colector de depoimentos, impondo-se-lhe que os avalie criticamente, que os submeta ao crivo da razão e ao filtro da lógica, valendo-se das regras gerais da experiência corrente, da sua vivência social e pessoal e do conhecimento da normalidade do acontecer.
A convicção do juiz forma-se livremente, podendo, neste juízo de verosimilhança acerca dos dados processualmente adquiridos, estribar-se nas máximas da experiência e nos parâmetros de normalidade que subjazem à generalidade dos acontecimentos (cfr. artigo 127º, do CPP).
A credibilidade da prova passa pela plausibilidade da descrição factual, que, para ser tida em conta, deverá pautar-se pela lógica e coerência, aferida à luz dos juízos da experiência comum.
Ora, o relato da testemunha J. C. pautou-se indubitavelmente pela conformidade com as regras da experiência corrente e da razão, sendo fantasioso pretender imputar-se-lhe a morte da vítima A. P. quando não adoptou nenhum comportamento que pudesse sequer gerar a mínima suspeita.
Em face do exposto, o que afirmou mereceu a inteira adesão do tribunal.
Foi igualmente valorado positivamente o depoimento da testemunha J. P., que, na qualidade de militar da GNR, do Posto Territorial de..., encontrando-se em serviço de patrulha no dia 06 de Março de 2019, deslocou-se com um outro colega ao estabelecimento comercial ‘X’ devido aos acontecimentos dos presentes autos, numa altura em que os bombeiros de ...... já ali se encontravam a realizar manobras de reanimação da vítima.
Descreveu com objectividade, segurança e imparcialidade o que lhe foi dado observar, referindo a este respeito ter visto marcas no pescoço daquela A. P., bem como sangue na zona da boca e do nariz.
O que referiu mostra-se espelhado no auto de notícia de fls.3-5, que elaborou.
Esta testemunha secundou o que afirmaram os assistentes L. F., M. J. e A. F. e as testemunhas J. F. e D. H., que também estiveram na lavandaria daquele estabelecimento comercial e que, no seu conjunto, esclareceram que a vítima encontrava-se estendida no chão, de barriga para cima, “muito direitinha” (palavras deste J. F.), com “uma grande espuma no nariz” (também palavras deste J. F.) e espuma na boca, o rosto inchado e a parte da cara e dos dentes ensanguentada, “toda defeituosa” (nas palavras desta M. J.), apresentando marcas de mãos em ambos os lados do pescoço, “de ter sido apertada com muita pressão” (nas palavras deste J. F.), o que se mostra consentâneo com o que se fez constar no relatório de autópsia médico-legal (cfr. fls.651-660) e com a atribuição da causa da morte a asfixia mecânica – esganadura.
A testemunha J. T., militar da GNR, a exercer funções no Posto Territorial de Braga, confirmou que o arguido M. F., na noite de 06 de Março de 2019, apresentou-se nesse Posto e disse-lhe que tinha posto as mãos no pescoço do seu cônjuge – a, aqui, vítima – e que a tinha deixado.
Esta notícia não surpreendeu a referida testemunha porquanto havia já sido alertada para tal facto pelo comandante do Posto Territorial de Sameiro – a também testemunha H. B..
Em face desta descrição genérica procurou obter mais pormenores do arguido, que, todavia, se remeteu ao silêncio.
Confrontada com o aditamento de fls.244-245 – cujo teor, na parte que releva, se transcreveu supra – reconheceu que representa a realidade dos factos.
Esta testemunha foi ponderada, séria e isenta no seu discurso, tendo demonstrado conhecimento directo acerca da factualidade que relatou.
O identificado H. B. descreveu as informações e contactos que desenvolveu na sequência de ter sido contactado telefonicamente pelo primo do arguido – a testemunha J. G. –, que lhe contou que o aludido M. F. “teria tido uma discussão com a esposa e que teria apertado o pescoço desta, que, entretanto, ela estaria caída no chão e que muito provavelmente a mesma estaria morta e que se pretendia entregar à GNR”.
O que esta testemunha afirmou mostra-se compatível com o aditamento de fls.244-245 e, obviamente, com o depoimento do militar J. T..
Coaduna-se, ainda, com as marcas que os assistentes M. J. e A. F. e as testemunhas J. F., D. H. e J. P. observaram no pescoço da vítima A. P..
Deste modo, o depoimento do mencionado H. B. mereceu credibilidade, atenta a sua isenção e desinteresse em relação ao desfecho destes autos, sobretudo no confronto com o relato da testemunha J. G., que se mostrou implicado e tendencioso, atenta a relação familiar – ainda que distante – que tem com o arguido.
Esta testemunha esclareceu que o mencionado M. F. contou-lhe que, nesse dia 06 de Março de 2019, foi ter com a vítima à lavandaria do estabelecimento comercial ‘X’ para tentar reverter a situação em que estavam e voltar a ficar juntos (essa vontade extrai-se, também, das mensagens escritas que trocou com a identificada A. P. e que constam do apenso I). Sucede que terão “entrado em agressões recíprocas”, sendo nesse seguimento que o arguido pôs as mãos ao pescoço da vítima até esta cair ao chão.
Sem prejuízo do ocorrido, aquele J. G. procurou convencer o tribunal que o arguido jamais supôs, nem tampouco afirmou que a vítima estaria morta.
É precisamente nesta parte que o seu depoimento mostra-se debilitado, por não ser consentâneo com o que ditam os juízos da experiência comum aqui aplicáveis.
Com efeito, a asserção que produziu não se compatibiliza com o estado em que encontrou o aludido M. F., que descreveu como sendo choroso, devastado, “em sobressalto”, “completamente transtornado, alterado, desespero total”.
Ora, se o arguido não acreditasse que a vítima estava morta certamente não se teria ausentado/fugido do estabelecimento em questão e antes prestar-lhe-ia o devido auxílio ou providenciaria para que lhe fosse prestado.
A reacção que teve e o estado emocional que revelava espelham, quanto a nós, essa consciência.
Aliás, se assim não fosse, a própria testemunha seguramente teria aconselhado o arguido a regressar para junto da esposa para resolverem esse seu desentendimento.
Não o fez, porém, o que, convenhamos, é bastante revelador.
Além disso, o que descreveu resulta contrariado pelo próprio arguido, que, como se consignou supra, afirmou em sede de primeiro interrogatório judicial que no âmbito daquelas agressões “fiquei cego e não sei o que é que eu fiz mais”, “pensei que a matei (…) eu praticamente tive contacto físico com ela”, razão pela qual entrou em pânico e fugiu, apesar de, entretanto, ter tomado a decisão de entregar-se à polícia “porque eu fiz uma asneira (…) eu fiz um crime. Acho que devo pagar por ele”.
O tribunal, na formação da sua convicção, atentou no depoimento da testemunha M. T. que, na qualidade de inspector da PJ, relatou as diligências que realizou na fase investigatória e que se mostram devidamente documentadas, tendo auxiliado o tribunal na visualização das imagens que se encontravam guardadas no sistema de videovigilância do estabelecimento ‘X’, a que respeitam fls.354-366.
O seu depoimento não foi contrariado por tais elementos documentais.
No que concerne às testemunhas de defesa arroladas pelo arguido, constatou-se que os seus irmãos J. F. e M. C. revelaram um parco conhecimento da factualidade sob discussão nos autos, uma vez que, como explicaram, residem em Inglaterra.
Nessa medida, o relato de ambos contribuiu, sobretudo, para compreender a vivência do (extinto) casal no período em que residiram nesse país, o que sucedeu durante 17 (dezassete) anos, até regressarem definitivamente a Portugal, em 2017.
A testemunha A. J., como afirmou, não teve qualquer intervenção nos factos do dia 06 de Março de 2019, encontrando-se de serviço de apoio à porta do Posto Territorial da GNR de Braga quando o arguido aí se deslocou e foi atendido pela testemunha J. T., cujo depoimento foi mais precioso pois que teve um contacto mais próximo com o identificado M. F..
A testemunha S. A. apenas revelou ser conhecedora de factos atinentes ao período compreendido entre Janeiro de 2018 – quando, a convite do colega de trabalho J. F., decidiu vir passar uns dias ao Norte, a ... – e Maio desse mesmo ano – altura em que regressou definitivamente ao Algarve, onde residia.
No depoimento que prestou referiu-se à excessiva proximidade que notou entre este J. F. e a vítima, ao conhecimento desse relacionamento pelos assistentes, ao “clima pesado” que, por esse motivo, existia entre a aludida A. P. e a sua progenitora, bem como aos rumores que começaram a gerar-se na localidade.
Sem prejuízo das considerações que não evitou tecer, a verdade é que o seu relato acabou por não aportar nenhum facto inédito.
O mesmo se refira quanto à testemunha A. R. que mencionou que apesar de nunca ter observado violência entre o casal, constatou que entre ambos havia um ambiente muito instável.
As testemunhas D. C., J. D., D. J. e M. H., contrariamente aos assistentes e até aos mencionados J. F. e D. H., não tinham um contacto diário e tão próximo com o arguido e a vítima, de tal forma que somente lograram descrever a imagem que faziam passar para terceiros, tratando-se, a esse nível, de um “casal normal” (nas palavras de D. J.), nunca tendo presenciado quaisquer discussões.
Deste modo, no seu conjunto, as testemunhas de defesa ou manifestaram desconhecimento da factualidade sob apreciação ou corroboraram factos que se mostravam já adquiridos, pouco ou nada tendo aditado.
Tendo em consideração o objecto dos presentes autos, bem como os contributos probatórios vindos de aludir (de natureza documental, pericial, por declarações e testemunhal), verificamos que não há prova directa do ilícito criminal que se imputa ao arguido M. F..
A única prova que existe é indiciária.
É consabido que na formação da convicção sobre os factos haverá que apreciar, além do mais, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais utilizados e inferidos das regras da experiência corrente para a obtenção de determinada conclusão.
Como se afirma no Acórdão do STJ, de 27 de Maio de 2010 (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº86/08.0GBPRD.P1.S1, relator Soares Ramos): I – Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. II – Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC) – sublinhado e destacado nossos.
Daí que a interpretação da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal não viola qualquer parâmetro constitucional (vide o Acórdão do Tribunal Constitucional nº391/2015, de 12 de Agosto de 2015, acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150391.html, relator Cura Mariano).
Assim, para além dos meios de prova directos, são igualmente relevantes os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, isto é, as presunções, definidas no artigo 349º, do Código Civil (doravante, abreviadamente, CC), como sendo as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
A par da presunção iuris tantum, legal, prevista no artigo 350º, do mesmo diploma legal, autoriza o artigo 351º, do CC, a presunção simples, natural, judicial ou hominis.
Como esclarece Vaz Serra, (…) Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência (vide BMJ, nº112, p.190; id quod plerumque accidit (o que acontece as mais das vezes)).
E como se escreve no Acórdão da Relação do Porto, de 29 de Junho de 2011, (…) na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir (…) juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. A presunção intervém (…) quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros (acessível em www.dgsi.pt/jtrp, Processo nº233/08.1PBGDM.P3, relatora Eduarda Lobo).
A prova indiciária é uma prova indirecta de suma importância no processo penal, pois são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta do que aqueles em que se mostra possível uma prova directa.
Como se assinala no Acórdão da Relação do Porto, de 14 de Janeiro de 2015, [e]ste é, de resto, um mecanismo recorrente na formação da convicção, de utilização necessária na prova de todos aqueles factos que pela sua própria natureza não são diretamente percepcionáveis pelos sentidos do espetador, havendo que inferi-los a partir da exteriorização da conduta. É o que sucede, por exemplo, com a prova da intenção criminosa que, constituindo acontecimento da vida psicológica, não admite prova direta, podendo no entanto ser inferido a partir de outros factos que tenham sido diretamente provados (acessível em www.dgsi.pt/jtrp, Processo nº502/12.6PJPRT.P1, relatora Eduarda Lobo).
Da prova indiciária induz-se, por meio de raciocínio alicerçado em regras de experiência comum ou da ciência ou da técnica, o facto probando. A prova deste reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova. É do facto indiciante que se infere um facto conclusivo quanto ao facto probando, juridicamente relevante no processo (vide Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, Volume I, p.288ss).
Ou seja, a particularidade da prova indiciária ou circunstancial tem a ver com a necessidade de estabelecer uma conexão inferencial por meio da qual o julgador estabelece um vínculo entre uma circunstância e o facto em discussão. Se esta inferência é possível, a circunstância servirá para sustentar uma conclusão relativa à verdade de um enunciado sobre o facto em litígio.
Embora se trate de uma prova de natureza indutiva que, como todo o conhecimento baseado em raciocínios desta natureza, só proporciona um conhecimento provável, não é, por isso, e à partida, menos fiável do que a prova directa, que também pressupõe operações de natureza indutiva.
Na avaliação desta prova importa ter em consideração 3 (três) princípios: a) o princípio da causalidade, segundo o qual a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal; b) o princípio da oportunidade, segundo o qual a análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito; c) o princípio da normalidade, de acordo com o qual só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno – sublinhado nosso (vide o já referido Acórdão da Relação do Porto, de 14 de Janeiro de 2015, acessível em www.dgsi.pt/jtrp, Processo nº502/12.6PJPRT.P1, relatora Eduarda Lobo).
A eficácia da prova indirecta ou indiciária depende da comprovação de 4 (quatro) requisitos, que se mostram enunciados no Acórdão da Relação de Guimarães, de 25 de Fevereiro de 2019 (acessível em www.dgsi.pt/jtrg, Processo nº483/14.1IDBRG.G1, relatora Ausenda Gonçalves), que se funda no Acórdão dessa Relação, de 19 de Janeiro de 2009 (acessível em www.dgsi.pt/jtrg, Processo nº2025/08-2, relator Cruz Bucho), a saber: (…) - Prova dos indícios: Os indícios devem estar plenamente provados por meio de prova directa e não serem meras conjecturas ou suspeitas, por não ser possível construir certezas sobre simples probabilidades; - Concorrência de uma pluralidade de indícios: embora a validade da regra “indicium unus indicium nullus” seja cada vez mais questionada (cfr., criticamente, Miranda Estrampes, La minima actividad probatoria en el proceso penal Barcelona, 1997, págs. 233-240), salvo em casos excepcionais, um único facto (indício) impede a formulação de uma convicção judicial com base na prova indiciária. Para além dessa pluralidade exige-se ainda que os indícios sejam periféricos relativamente ao facto a provar, assim como estejam interligados com o facto nuclear carecido de prova e que não percam força pela presença de contraindícios que neutralizem a sua eficácia probatória; - Raciocínio dedutivo: entre os indícios provados e os factos que deles se inferem deve existir um nexo preciso, directo, coerente, lógico e racional. A falta de concordância ou irracionalidade deste nexo entre o facto base e o facto deduzido tanto pode ter por fundamento a falta de lógica ou de coerência na inferência como o carácter não concludente por excessivamente aberto, débil ou indeterminado. - Motivação da sentença: o tribunal deve explicitar na sentença o raciocínio em virtude do qual partindo dos indícios provados chega à conclusão da culpabilidade do arguido. Por isso, “a sentença baseada em indícios deve ter uma extensa e abundante motivação” (Francisco Pastor Alcoy, Prueba Indiciaria y Presuncion de Inocencia, cit. pág. 63) – sublinhado nosso.
No caso decidendo, da prova produzida, que se descreveu supra, e por apelo ao que ditam as regras da experiência corrente, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros, é possível concluir, com elevado grau de segurança, que a morte da vítima foi provocada pelo arguido.
Na verdade, o casamento de ambos atravessava uma crise profunda, marcada por discussões frequentes, relacionadas com dificuldades económicas, com o envolvimento amoroso que a aludida A. P. mantinha com a testemunha J. F., com relacionamentos extraconjugais que aquela imputava ao mencionado M. F., com a falta de ajuda deste no estabelecimento comercial ‘X’ e a falta de aproveitamento do curso de capacidade profissional para transporte de passageiros que frequentava.
Essas discussões afectavam não só o (extinto) casal, como também o equilíbrio emocional dos filhos, em particular da assistente L. F.s (cfr. as mensagens escritas trocadas entre o arguido e a vítima, que constam do apenso I, em particular, do dia 27 de Novembro de 2018, pelas 01:15:09 e 01:33:23, a fls.68-verso e a fls.73, respectivamente, bem como as declarações dos demais assistentes e o depoimento da testemunha J. F.).
Devido a tais discussões, a vítima conseguiu convencer o arguido a divorciar-se, apesar da sua oposição, o que iria concretizar-se no dia 07 de Março de 2019.
Na verdade, o aludido M. F. apenas assentiu no divórcio por ter em vista salvaguardar o património do (extinto) casal, atentas as dificuldades financeiras que atravessavam.
É nestas circunstâncias que têm lugar os acontecimentos de 06 de Março de 2019.
O arguido, nesse dia, para além de ter estado com a vítima na lavandaria do estabelecimento ‘X’, sem a presença de terceiros – a assistente M. J. deslocou-se ali por breves instantes e por causa de uma falha de água –, estava bastante encrespado com aquela A. P., pois que não só iam divorciar-se no dia seguinte, como, na sua perspectiva, “… já perdi tudo não é a casa que vai fazer diferença” (cfr. apenso I: mensagem de 01 de Março de 2019, trocada com a vítima, às 01:14:50), “Porque tanto ódio de mim” (cfr. apenso I: mensagem de 01 de Março de 2019, trocada com a vítima, às 02:40:47), “Porque me fazes sofrer tanto” (cfr. apenso I: mensagem de 01 de Março de 2019, trocada com a vítima, às 02:42:35), “Para arranjar uma casa mais forte para te veres livre de mim, se eu já perdi tudo não tenho mais para perder estou sozinho sem ninguém a pouco e pouco fiquei só que estou aqui a fazer” (cfr. apenso I: mensagem de 02 de Março de 2019, trocada com a vítima, às 02:49:08), “… um beijo um abraço a saúde não é desculpa o que me faz acreditar que estás mesmo farta de mim e queres e vete livre de mim isso o que me faz entender desculpa se estiver errado mas eu amo-te muito não sei viver sem ti” (cfr. apenso I: mensagem de 02 de Março de 2019, trocada com a vítima, às 03:13:30).
Como se alcança das referidas mensagens – a que a vítima não respondeu –, o arguido considerava que nada mais tinha a perder e que se encontrava isolado, contrariamente ao que ocorria com a aludida A. P., o que o transtornava, como delas também é possível intuir.
E quando o (extinto) casal, na lavandaria do referido estabelecimento, começou a discutir e, nessa sequência, a agarrar-se, todo o contexto supra descrito contribuiu para a reacção do mencionado M. F., patente na expressão “fiquei cego e não sei o que é que eu fiz mais”, que proferiu em sede de primeiro interrogatório judicial (01h00m20s dessas declarações).
A interpretação desta expressão não deixa margem para quaisquer dúvidas: o arguido reagiu de forma excessiva, isto é, desmedidamente, movido sobretudo por impulsos primários.
Aquele M. F. só parou quando a vítima se encontrava caída no chão e “sem reacção” (01h00m55s das mesmas declarações), tendo entrado em pânico e decidido pôr-se em fuga, abandonando-a.
Fazendo, aqui, apelo ao que ditam os juízos da experiência corrente, não cremos que o arguido tenha ficado em pânico apenas por deparar-se com a vítima prostrada e sem sentidos.
Antes consideramos que, para além disso, contribuíram as lesões que lhe observou no rosto e no pescoço, por si provocadas, que foram descritas pelos assistentes L. F., M. J. e A. F. e as testemunhas J. F. e D. H. (cfr. ainda, as fotografias juntas a fls.123 (foto nº3), fls.124 (foto nº4), fls.227 (foto nº18), fls.228 (fotos nºs19 e 20), fls.229 (fotos nºs21 e 22), fls.230 (foto nº23)).
Com efeito, o período temporal que mediou entre a saída do aludido M. F. do portão que dava acesso à lavandaria em questão (05:02:33 – cfr. foto nº21, a fls.364) e o alarme dado pelo identificado J. F. (05:18:07 – câmara 6, tratando-se das imagens visualizadas no dia 06 de Maio de 2020) é curto.
Deste modo, as lesões que aqueles assistentes e as testemunhas J. F. e D. H. relataram, atenta a sua natureza, foram (tiveram de ser) também perceptíveis pelo arguido.
Tal facto, também à luz daqueles juízos da experiência, explica que este último tenha decidido pôr-se em fuga em lugar de procurar auxílio, bem como apresentar-se sobressaltado, devastado e completamente transtornado quando contactou a testemunha J. G..
Em face do sobredito, os supra enunciados dados indiciários, alcançados por prova directa, além de plurais, não perdem eficácia probatória no confronto com os demais, antes pelo contrário, apresentam-se inter-relacionados e reforçam-se mutuamente, de tal forma que, conjugados entre si, legitimam que se conclua e se afirme que o arguido M. F. foi o responsável, exclusivo, pela morte da vítima A. P..
Como se elucida no Acórdão do STJ, de 11 de Julho de 2007 (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº07P1416, relator Armindo Monteiro): (…) A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência (…) O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência – sublinhado nosso.
Ora, salvaguardando o devido respeito por entendimento diverso, consideramos que a conclusão alcançada no caso vertente apresenta-se inteiramente razoável e responde adequadamente às regras da lógica e do discernimento.
Na verdade, o próprio arguido M. F., nas declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial, não imputou a outrem a morte da vítima, nem identificou alguém que, por inimizade com esta, pudesse querer vê-la morta àquela data e tivesse contactado com a mencionada A. P. nos poucos minutos que se seguiram a ter sido por aquele abandonada na lavandaria do estabelecimento ‘X’ e assim ser encontrada pela testemunha J. F..
Repare-se, ainda, que o comentário que o arguido, na mesma sede, reconheceu ter deixado na página do Facebook do jornal ‘...’, também milita no sentido que defendemos (cfr. prints a fls.17-20, fls.48-49, fls.90-91 e fls.206-207).
Com efeito, na sequência de uma notícia postada online com os seguintes dizeres: “Mulher assassinada pelo marido em...”, “Homem entregou-se à GNR de Braga”, seguiu-se-lhe este comentário, da autoria do aludido M. F.: “Um casamento a três não funciona foi feito um pedido para além se afastar não o fez dei nisto”.
Do exposto constata-se que o arguido não negou o conteúdo da notícia, antes procurou explicar/justificar o sucedido pela interferência de um terceiro no seu casamento.
Daí que no seguimento desta explicação/justificação apareça um outro comentário – que não é da autoria do arguido – onde se afirma que o motivo apresentado não pode servir como desculpa.
Ainda a este propósito, da análise do comentário do arguido não resulta que a morte da vítima tenha sido causada pela testemunha J. F. como se procurou sugerir em julgamento.
Efectivamente, o arguido é cristalino ao afirmar nesse texto que a morte da vítima ocorreu precisamente porque a testemunha (o terceiro), apesar de avisada, não se afastou.
Dito por outras palavras, o terceiro apenas teria motivos para matar a vítima caso esse afastamento se tivesse concretizado.
Assim, a suposição supra referida, por absurda – sobretudo se considerarmos as inúmeras mensagens escritas trocadas entre a identificada A. P. e aquele J. F., inclusive no próprio dia 06 de Março de 2020 (cfr. apenso I) –, foi rejeitada pelo tribunal.
Por último, também reforçando a conclusão de que o arguido foi o causador da morte da vítima, está o facto de tê-la provocado por asfixia mecânica – esganadura, isto é, pela compressão do pescoço, quando é certo que já em Janeiro de 2019 escolheu também a mesma parte do corpo para atingi-la na sua integridade física, causando-lhe uma equimose.
Como esclarece Santos Cabral a propósito da prova indiciária, [o]s indícios devem ser concordantes, ou seja, conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural, no qual cada facto indiciário tome a sua respectiva colocação quanto ao tempo, ao lugar e demais circunstancias. Neste aspecto Devis Echandia refere que os indícios se avaliam e não se contam, motivo pelo qual não basta somente a pluralidade já que é indispensável que, examinados em conjunto, produzam a certeza sobre o facto investigado e para que isto ocorra requer-se que sejam graves que concorram harmonicamente a apontar o mesmo facto (vide “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, intervenção no Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Macau em 30 de Novembro de 2011, acessível em www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/provaindiciarianovasformascriminalidade .pdf).
No caso decidendo, estamos convictos que a conclusão que alcançamos é a única que, face aos dados indiciários globalmente conjugados, se ajusta aos juízos da experiência comum, das regras da lógica e da normalidade do acontecer, não podendo, em consequência, sustentar uma ilação de sentido diverso, designadamente, a ensaiada pelo arguido em sede de julgamento, tentando atribuí-la à testemunha J. F. ou à testemunha J. C..
No que concerne aos factos que respeitam ao foro volitivo do arguido M. F., insusceptível de percepção sensorial, importa salientar que, conforme ensina Germano Marques da Silva, na valoração da prova intervêm deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo certo que se as inferências não dependem substancialmente da imediação, terão de basear-se na correcção do raciocínio, o qual se alicerçará nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (vide Curso de Processo Penal, Volume II, p.127).
A prova do elemento subjetivo, por pertencer ao mundo interior do agente é, pois, indireta.
Como se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Maio de 2012 (acessível em www.dgsi.pt/jtrc, Processo nº630/09.5TACNT.C1, relatora Maria Pilar Oliveira): (…) tratando-se de factos de ordem subjectiva, (do mundo dos pensamentos e das representações mentais do agente: os seus conhecimentos e intenções) são insusceptíveis de prova directa, havendo que retirar a convicção da sua verificação da análise dos factos objectivos praticados à luz das regras da experiência comum.
Deste modo, em relação aos elementos subjectivos do(s) tipo(s) legal/legais de crime em apreço nos autos, os mesmos ou são revelados pelo próprio arguido, através da confissão (vide o Acórdão da Relação de Évora, de 14 de Julho de 2015 (acessível em www.dgsi.pt/jtre, Processo nº27/14.5PTEVR.E1, relator Alberto Borges), ou então têm de ser inferidos de factos objectivos que sejam suficientemente idóneos para a sua demonstração.
No caso decidendo, a convicção do tribunal formou-se em virtude da conjugação da atitude desenvolvida pelo arguido com as consequências que, segundo é adequado e esperado – atentas as regras da experiência –, dela decorrem.
Daí que tenha sido possível concluir, com bastante segurança, que o arguido M. F., não obstante estar ciente que o seu comportamento era criminalmente censurável e punível, agiu de modo livre, deliberado e consciente, sabendo, querendo e conseguindo tirar a vida à vítima A. P., sua esposa, apertando-lhe, para esse efeito, o pescoço, durante alguns instantes, de modo a que não conseguisse respirar, não ignorando que ao assim actuar esta última acabaria por morrer por asfixia, com o que revelou indiferença e falta de respeito para com o seu cônjuge.
*
A prova do pedido de indemnização civil deduzido pelos assistentes/demandantes L. F., H. F., M. J. e A. F. alicerçou-se, desde logo, no teor documentos que acompanham esse pedido (cfr. fls.612-631 e fls.692-803), não impugnados pelo arguido/demandado M. F., que foram já anteriormente enunciados.
Para além do que objectivamente se retira desses documentos, o tribunal fundou a sua convicção nas declarações prestadas pelos próprios assistentes/demandantes, que, pelas características que se lhes reconheceram, foram merecedoras de credibilidade.
Tais declarações encontram, igualmente, suporte no depoimento das testemunhas J. F., M. V. e M. M..
Este J. F., atenta a forte proximidade que tinha com a vítima, devido ao relacionamento amoroso que mantinham, mas também pelo facto de ter uma boa relação com os filhos desta (cfr., a este propósito, o apenso I e as mensagens escritas trocadas entre ambos, bem como aquelas que a mencionada A. P. trocou com o arguido/demandado), para além de trabalhar no estabelecimento comercial ‘X’, contactando diariamente com os aludidos A. F. e M. J., afirmou que a vítima era o pilar dos assistentes/demandantes, não só dos filhos, como ainda dos progenitores que confiavam na sua única filha para viver a velhice, sendo por esta auxiliados economicamente, em valor que rondaria o montante mensal total de €300,00 (trezentos euros).
Com a sua morte, “o pilar daquela casa falhou”, o que trouxe muito sofrimento para todos.
Com efeito, os filhos do (extinto) casal “fecham-se muito” e evitam falar no sucedido, tendo aquela L. F. necessitado de acompanhamento psicológico.
Os identificados A. F. e M. J., para além da dor, são quem cuida actualmente dos netos e providencia pela sua subsistência, procurando honrar a vontade da vítima.
Acresce que nos 4 (quatro) – 5 (cinco) meses posteriores à sua morte tiveram que fazer face a muitas despesas correntes (electricidade, água, gás, telefone e manutenção – cfr. fls.692-803) respeitantes, entre outras, ao estabelecimento comercial ‘X’, no que despenderam cerca de €8.000,00 (oito mil euros), sendo que uma grande parte desta quantia foi-lhes emprestada devido às dificuldades económicas com que se debatiam.
Por sua vez, a testemunha M. V., que em Fevereiro de 2019 retomou contacto com a vítima, junto de quem esta desabafou e fez confidências, esclareceu que após a sua morte passou a acompanhar de perto os assistentes/demandantes, tendo-os encontrado “muito fragilizados”, tratando-se de uma família “perdida, sem qualquer apoio financeiro, moral”.
Na verdade, tal como havia sido dito pela testemunha J. F., a vítima era o suporte dos filhos, mas também dos seus progenitores, que contavam com aquela A. P. para o seu futuro, pelo que a sua morte “foi como se lhes tirassem o chão”.
Foi por confiarem que filha os apoiaria na velhice que lhe doaram uma casa que tinham em Ponte da Barca, que a aludida M. J. apenas começou a fazer descontos aquando da exploração do estabelecimento comercial ‘X’ e que o mencionado A. F. autorizou a que a sua pensão de reforma inglesa fosse depositada na conta bancária do arguido/demandado, situação que foi regularizada apenas em Setembro de 2019.
Até aí contavam somente com a pensão de reforma portuguesa do mesmo A. F., sendo auxiliados economicamente pela testemunha J. F. e pelos pais deste.
A identificada M. J. fez referência às despesas com que os assistentes/demandantes se debateram após a morte da vítima, sendo que o que relatou corrobora tudo quanto foi afirmado por estes e pela testemunha F. J..
Na realidade, no que concerne a esta matéria, o discurso de todos é praticamente unívoco, além de dotado de seriedade e de inequívoca segurança, pelo que mereceu a adesão do tribunal, tanto mais que o que referiram a propósito não resulta desmentido, antes reforçado, pelo que ditam os juízos da experiência corrente aqui aplicáveis e da normalidade do acontecer.
Por último, a testemunha M. M., apesar de ter um conhecimento mais limitado, descreveu a vítima como sendo uma pessoa dinâmica, expansiva, “muito videira” e solidária, bem como uma mãe preocupada com os filhos, pelo que a sua morte afectou-os sobremaneira, designadamente a filha, que se mostra desinteressada por tudo o que a rodeia.
Acrescentou que os identificados A. F. e M. J., para além de não terem património, por confiarem no auxílio da vítima, com a sua morte tiveram que pagar despesas avultadas, recorrendo à ajuda de terceiros para esse efeito.
No que respeita, em particular, aos assistentes/demandantes L. F. e H. F., assumiu ainda relevância o depoimento das testemunhas C. F., A. F. e C. M., atentas as funções que desempenham e que foram já supra identificadas.
A primeira, sem prejuízo do apoio que esta assistente/demandante recebe (“temos junto dela uma teia”), descreveu-a como tratando-se de uma criança desmotivada, pois que “perdeu a força motriz” (a vítima era “um pilar naquela casa… pelo trabalho, energia, honestidade”), estando “destroçada com tudo isto”, triste, calada, introspectiva (“vive muito o mundo dela”), uma vez que “a desventura foi tanta… olhamos para ela e vemos uma criança perdida”.
A segunda, corroborando a primeira, afirmou que, efectivamente, aquela L. F. encontra-se “muito fragilizada” e revoltada com o sucedido, evidenciando comportamentos de fuga para evitar falar nesse assunto, pois que a vítima era o seu suporte.
A terceira reconheceu que a aludida A. P. estava sempre muito atenta e preocupada com a integração do filho (pois que começaram por residir em Inglaterra), bem como com o seu percurso escolar, razão pela qual, com a sua morte, o mencionado H. F. passou a estar “mais calado” e “mais metido consigo próprio”.
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No que concerne às condições pessoais, familiares, profissionais, económicas e sociais do arguido, o tribunal alicerçou-se no teor do respectivo relatório social (cfr. fls.978-980 – referência nº9718555, dos presentes autos), cujo teor foi confirmado pelo identificado M. F. e que, a este propósito, acedeu a prestar declarações.
Atentou-se, ainda, no que esclareceram a este respeito as testemunhas J. F., M. C. e J. D..
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A convicção do tribunal quanto aos antecedentes criminais do arguido sustentou-se no respectivo Certificado de Registo Criminal (cfr. fls.914-915 – referência nº166543675, dos presentes autos).
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A não demonstração dos factos não provados resultou, sempre sem prejuízo do exposto em sede de motivação dos factos provados, de, sobre os mesmos, não se ter logrado fazer prova (documental e/ou testemunhal), tendente a permitir concluir pela sua verificação, de acordo com o supra referido princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º, do CPP.
A este propósito não foram considerados os seguintes documentos, que instruem o pedido de indemnização civil deduzido pelos assistentes/demandantes L. F., H. F., M. J. e A. F.: [i] fls.717: não se trata de uma despesa, mas de uma nota de crédito; [ii] fls.718: esta factura, com o nºFT 19201/1616425, foi substituída pela factura de fls.716 (cfr. indicação no campo ‘Dicas e alertas’); [iii] fls.727: nesta factura o adquirente surge identificado como ‘consumidor final’; [iv] fls.728: esta factura foi emitida em nome do assistente A. F., pelo que se trata de uma despesa do próprio; e [v] fls.738-739: tratam-se de facturas emitidas em data anterior ao óbito da vítima A. P..”
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III - Apreciação do recurso

Como já se realçou, são as questões sumariadas nas conclusões do recurso que fixam os limites do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as relativas à nulidade da sentença, aos vícios da decisão e às nulidades não sanadas.
Assinale-se, desde já, que não se vislumbra - nem o recorrente invoca - qualquer nulidade do acórdão, na previsão do art. 379º do CPP, de que cumpra conhecer.

Já no que respeita a outras nulidades, o recorrente invoca a nulidade da acusação (com a consequente violação dos direitos de defesa do arguido previstos nos arts. 18º, nºs 2 e 3 e 32º, nº 5, ambos da CRP):
- “por insuficiência do inquérito” (art. 120º, nº 2, al. d), do CPP);
- por “notoriamente estar desprovida de qualquer elemento de prova” (art. 283º, nº 3, al. f), do CPP) e conter “meras referências genéricas e conclusivas”.

O recorrente fundamenta-se, em síntese, no seguinte:

- da acusação não constava (nem tinha sido elaborado) o relatório da autópsia, o que impediu “uma fundada narração dos factos” e que o arguido deles se defendesse;
- não havendo autópsia concluída, não há causa da morte conhecida;
- a comunicada alteração não substancial dos factos, visando integrar na factualidade imputada o teor do relatório da autópsia, é uma alteração “mais que substancial”.
Assim e independentemente da apreciação da tempestividade da arguição das nulidades – ambas sanáveis – dado que quer a decisão instrutória, quer o acórdão recorrido as apreciaram e decidiram, importa produzir um sucinto resumo do processualmente ocorrido.
Efetivamente, à data da dedução da acusação (03/09/2019) o relatório da autópsia não estava ainda elaborado, só tendo sido concluído em 30/09/2019 e remetido aos autos em 15/10/2019, junção que foi notificada ao arguido em 25/10/2019.
É o que justifica que o despacho de acusação inclua, na indicação dos meios de prova, a menção de que “protesta juntar o relatório de autópsia”. Se tal relatório já estivesse pronto e na posse do acusador, nenhuma razão existiria para que se protestasse juntá-lo posteriormente.
Isto, depois de ter acusado o arguido de ter apertado o pescoço da sua esposa, de ter descrito as escoriações e as marcas visíveis de compressão ao nível do pescoço e ainda que “agiu com o propósito concretizado de tirar a vida à sua esposa, A. P., apertando-lhe o pescoço durante vários minutos ao ponto de esta não conseguir respirar, uma vez que sabia que ao atuar desse modo a mesma acabaria por morrer por asfixia, o que efectivamente quis e veio a acontecer”, tudo com base nos elementos já disponíveis, à data, nos autos (o auto de diligência junto do GML e o relatório elaborados pela Polícia Judiciária, constantes de fls. 120 a 125 dos autos, como se menciona na fundamentação do acórdão).
Portanto, os factos imputados ao arguido não são “meras referências genéricas e conclusivas” como afirma, mas factos objectivos: o arguido, na sequência de uma discussão com a sua esposa, apertou-lhe o pescoço durante vários minutos, impedindo-a de respirar, sabendo que a mataria por asfixia, como quis e conseguiu.
Repare-se que o art. 283º, nº 3, do CPP, comina com a nulidade a acusação que não contenha, entre outros, “a narração, ainda que sintética, dos factos (…)” - al. b) – e, além das testemunhas, peritos e consultores técnicos a ouvir em julgamento, “a indicação de outras provas a produzir ou a requerer” – al. f).
Ou seja, nada impede que o meio de prova ainda não exista nos autos (ou que não esteja concluído), podendo vir a ser produzido ou junto mais tarde. Essencial é que existam os indícios que fundamentam a acusação deduzida.
Isto porque o recorrente defende que não estando elaborado o relatório da autópsia, esta não existe, nem sequer se sabe a causa da morte. Isto equivale a dizer que se desconhece a causa da morte de um cidadão colocado perante um pelotão de fuzilamento e alvejado por uma dezena ou mais de tiros!
Não temos dúvidas em afirmar que a autópsia só estará completa com a assinatura do competente relatório, ainda que seja composta por várias fases (exame do hábito externo e interno, perícias tanatológicas, exames laboratoriais, concatenação dos elementos apurados, elaboração de conclusões e do relatório). Mas isso não é sinónimo de a autópsia (no fundo, a determinação da(s) causa(s) da morte) não estar efectuada ou completa. O que falta é dactilografar o relatório, conferi-lo, assiná-lo e enviá-lo ao destinatário, o que já constitui, pelo menos em parte, matéria de âmbito administrativo.
Fazendo um paralelismo, é o mesmo que dizer que o julgamento de uma causa também só está completo com a elaboração, assinatura e depósito da sentença/acórdão. Mas a decisão a proferir está perfeita e completa (ainda que só nos apontamentos ou na cabeça do julgador) aquando do encerramento da audiência.
O recorrente confunde os factos que lhe foram imputados e de que tem direito a defender-se – os quais fixam o objeto do processo e que, no caso, se podem traduzir, de forma muito sucinta, em ter esganado a esposa, causando-lhe a morte – com os meios de prova adequados a demonstrar tal ação. Estes, devendo ser indicados na acusação – e esta fê-lo, indicando tal relatório, que protesta juntar mais tarde – podem vir a ser adicionados posteriormente – veja-se o disposto no art. 340º do CPP – desde que tais meios de prova sejam tidos como necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Em suma, não há insuficiência do inquérito, nem da acusação. Os factos imputados ao arguido foram concretos e objectivos e não podiam deixar de ser claramente percebidos por este, que, assim, teve toda a oportunidade de deles se defender.
*
E podemos entrar já na alegada alteração “mais do que substancial” dos factos, que foi comunicada ao arguido como uma alteração não substancial.
Recorde-se que esta alteração – como afirma o próprio recorrente - consistiu apenas em aditar e concretizar as lesões apresentadas pela vítima (designadamente as internas), que a acusação descrevia de forma mais resumida e atendo-se essencialmente às externas.
Recorrendo ao preceituado no art. 1º, al. f), do CPP, é de considerar como “«Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”
Todas as demais alterações – como sucedeu no caso em apreço, que não teve por efeito imputar-lhe um crime diferente, nem produziu a agravação dos limites máximos das sanções – são tidas como não substanciais, bem tendo andado o Tribunal a quo ao qualificá-la como tal, procedendo em conformidade com o disposto no art. 358º do CPP.
Ao assim proceder em conformidade com a lei e com estrito respeito pelo contraditório, não se vislumbra – e o recorrente também não concretiza – qualquer violação do preceituado nos arts.18º, nºs 2 e 3 e 32º, nº 5, da CRP.
Nestes segmentos, o recurso é improcedente.
*
Seguidamente, o recorrente afirma que “não é perceptível a linha de raciocínio adotada pelo Tribunal a Quo para dar como provados os factos que deu como provados, quando, por outro lado, dá como não provados os factos constantes das alíneas a), g), h), m), n), o), v), x), y), ai) e am) constantes da decisão recorrida.” (sic conclusão X).
Importa consignar que - como se alcança da factualidade não provada já supra transcrita – esta factualidade apenas preenche as alíneas a) até m), inexistindo as demais.
Acresce que, na explanação da sua discordância da decisão recorrida, o recorrente só questiona os factos provados sob os números 13, 14, 21 a 23 e 36, bem como os não provados sob as alíneas c), k) e m).
Por tal motivo - e admitindo tratar-se de um lapso de escrita, até porque só o teor destas três alíneas é objecto de contestação – a apreciação resumir-se-á aos pontos e alíneas referidos no parágrafo anterior.

Comecemos por recordar tal factualidade (assim como outra pertinente aí referida, esta em letra de tamanho mais reduzido), transcrevendo-a novamente:

12. Dada a proximidade e a forma como se relacionavam, o arguido começou a suspeitar que entre a sua esposa A. P. e o mencionado J. F. – que era divorciado - houvesse um relacionamento amoroso, rumor esse que se espalhou pela localidade.
13. Por essa razão e também porque a situação económica do (extinto) casal se agudizou, começaram a surgir discussões entre ambos, a ponto de no Verão de 2018, em data que, em concreto, não foi possível precisar, numa dessas discussões, o arguido M. F., encontrando-se na cozinha do estabelecimento ‘X’, pegou numa faca com vista a intimidar aquela A. P., sendo acalmado pelo filho H. F., aqui assistente, que também se encontrava presente.
14. Neste contexto, a relação entre o (extinto) casal deteriorou-se de tal modo que deixaram de dormir juntos e de manter relações sexuais.
17. No dia 06 de Março de 2019, em hora que, em concreto, não foi possível precisar, mas situada entre as 20 horas e as 21 horas, o arguido M. F. chegou ao estabelecimento comercial ‘X, vindo do trabalho referido em 10.
20. Uma vez chegado à lavandaria, o arguido encetou uma conversa com aquela A. P., que se prolongou por período temporal que, em concreto, não foi possível concretizar, mas situado entre 30 (trinta) a 40 (quarenta) minutos, sendo que nesse intervalo de tempo apenas a assistente M. J. ali se deslocou, o que fez por breves momentos e devido a uma falha de água.
21. A dada altura dessa conversa, por razões relacionadas com as desavenças que vinham mantendo, o arguido M. F., desagradado com tal situação, colocou as suas mãos no pescoço da esposa A. P., agarrou-o e apertou-o com força, exercendo uma pressão tal que a impediu de respirar.
22. O arguido, nestas circunstâncias, assim permaneceu durante alguns instantes até conseguir tirar a vida àquela A. P..
23. O aludido M. F., depois de aperceber-se que a vítima A. P. ficou prostrada no solo em decúbito ventral e que já não tinha qualquer reacção, apagou a luz da lavandaria e abandonou essa divisão, dirigindo-se ao parque de estacionamento do estabelecimento comercial ‘X onde tinha deixado o seu veículo automóvel, da marca e modelo “Vauxhall Corsa CDTi”, com a matrícula ....
36. O arguido, devido aos ciúmes que tinha da vítima, era desconfiado, pelo que, além de vigiar aquela A. P., exercia pressão psicológica, o que determinava que esta chorasse e expressasse estar saturada dessa situação.
93. A conjugalidade sentida pelo arguido como afectiva e estável, com o decorrer do tempo em Portugal passou a revelar períodos marcados por dificuldades relacionais, com indicadores de constrangimento conjugal, designadamente, em consequência do relacionamento amoroso referido em 12., entre a vítima A. P. e J. F..
(…)
c) Que nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas sob o n°17, dos factos provados, a presença do mencionado J. F. na cozinha do restaurante do estabelecimento comercial ‘X desagradasse (uma vez mais) o arguido;
k) que o constrangimento conjugal, referido sob o n°93, da factualidade assente, levasse o arguido M. F. a assumir junto do identificado J. F. a sua indisponibilidade para com ele continuar a conviver;
m) quaisquer outros factos para além dos descritos em sede de factualidade provada, que com os mesmos estejam em contradição ou que revelem interesse para a decisão a proferir.”.
A enunciação feita pelo recorrente, sendo pouco clara, deixa dúvidas sobre a sua pretensão: invocar algum vício decisório (art. 410º, nº 2, do CPP) ou impugnar (amplamente) a matéria de facto (art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP).
Começando pela apreciação da existência de vícios decisórios.

Preceitua o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, que: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.”

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorrerá - como referem Simas Santos e Leal Henriques em “Recursos em Processo Penal”, citados por Maia Gonçalves em “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª edição, pág. 871 – quando exista uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.
Ora, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorrecta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.”
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste, basicamente, na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Assim, há oposição na matéria de facto provada quando, por exemplo: se dão como provados dois ou mais factos que estão entre si em oposição (que sejam logicamente incompatíveis); há oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada quando se dá como provado e não provado o mesmo facto; há uma incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto quando se dá como provado certo facto e da motivação da convicção resulta que seria outra a decisão de facto correta; e há oposição entre a fundamentação e a decisão quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final e no dispositivo da sentença consta decisão em sentido diverso.
O erro notório na apreciação da prova constitui uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, que as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável.”.
Dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis – cfr. Simas Santos e Leal Henriques, obra citada.
Descritos, ainda que sumariamente, os apontados vícios, incontroverso é que eles têm de resultar da decisão recorrida (melhor, do texto da decisão), por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Não é, pois, admissível o recurso a elementos estranhos à sentença, como, por exemplo, quaisquer outros dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do julgamento, tratando-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que, quanto a eles, terá que ser suficiente.

As razões concretas apresentadas pelo recorrente para a discordância assentam nas conclusões X a XX do recurso e consistem, em síntese:

- pontos 13 e 14: dos depoimentos das testemunhas J. D. e D. C. resulta claro que a relação entre o casal era normal;
- pontos 21 a 23: da motivação apresentada resulta que o Tribunal não detinha elementos probatórios suficientes para decidir como decidiu;
- alíneas c) e k): os elementos documentais juntos aos autos, nomeadamente as mensagens de texto extraídas do telemóvel da vítima, conjugados com as regras da experiência, impõem que sejam dados como provados.

Ora, percorrendo o texto da decisão recorrida, conclui-se que:

- a factualidade apurada é claramente suficiente para fundamentar a solução de direito: a condenação do arguido pelo crime imputado;
- o tribunal a quo investigou toda a matéria de facto relevante para a decisão, inexistindo qualquer hiato por preencher;
- os factos dados como assentes são perfeitamente consentâneos com a motivação da convicção;
- não existe qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão;
- não se vislumbra qualquer falha grosseira na análise da prova, nem que as conclusões obtidas sejam ilógicas ou inaceitáveis.

Cremos ser útil uma pequena nota, somente para aflorar uma questão que o recorrente aborda na motivação apresentada, mas que não levou às conclusões (e, portanto, não tem que ser apreciada).
Afirma o recorrente que a investigação foi “balizada”, querendo dizer que não foi investigada a possibilidade de a morte da vítima ter sido causada por terceiro, que não o arguido (apontando para o amante da vítima, J. F., ou para a testemunha J. C., que as gravações das câmaras de vigilância mostram ter entrado na porta que dá acesso a diversos locais, entre os quais a lavandaria).
Cumpre referir que as imagens foram visionadas em audiência, como se fez constar da decisão. E a decisão recorrida espelha de forma clara os motivos por que afastou a comissão do ilícito por parte dessas pessoas, ao mesmo tempo que concatenou os meios de prova que lhe permitiram concluir, sem qualquer dúvida, que foi o arguido o seu autor.
Tornando-se fastidioso estar a reproduzir tais motivos, dir-se-á apenas que muito bem andou o Tribunal, perante os provados comportamentos de um e dos outros, as declarações prestadas pelo arguido no primeiro interrogatório judicial, a afirmação transmitida ao seu primo (militar da GNR) e quando se apresentou no posto desta Guarda, além da publicação que postou nas redes sociais.
Ora, o Tribunal a quo, analisou os meios de prova, detalhando-os e apreciando-os exaustiva e conjugadamente, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum (indicando aqueles a que atribuiu credibilidade e aqueles que não valorizou e as razões porque assim procedeu), seguindo um processo lógico e racional e sem qualquer contradição e arbitrariedade, comprovando de forma inequívoca os factos que levaram à condenação do arguido.
A conclusão a extrair é que o acórdão recorrido não padece de qualquer vício decisório, não devendo ser alterada a decisão por tal motivo.
*
O que se verifica – como já supra se mencionou – é que o recorrente não concorda com a decisão, o que faz toda a diferença quanto às respectivas consequências.
O recorrente, no fundo, não concordando com a decisão da matéria de facto, pretende impugná-la.
Nos termos do disposto no artº 428º, nº 1, do Código de Processo Penal, “as relações conhecem de facto e de direito.”
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: num âmbito mais restrito, dos vícios descritos no artº 410º, nº 2, do CPP, a chamada “revista alargada” (que já se analisou), ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o artº 412º, nº 3, 4 e 6 do mesmo código.
Na impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se cinge ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova, toda ela documentada, produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP.
É consabido que, havendo impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, sendo antes um remédio, remédio jurídico, para evitar erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como foi apreciada e ponderada a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto indicados pelo recorrente.
“O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total dos acervos dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa”.
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo - mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar - impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P. Penal:

“Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente de especificar quais os pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, quais os segmentos dos depoimentos que impõem decisão diversa da recorrida e quais os suportes técnicos em que eles se encontram, com referência às concretas passagens gravadas.

Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, in www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:

- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º].

Passando à apreciação da questão, verifica-se que o recorrente, além de não ter dado cumprimento estrito ao referido ónus de especificação (transcreveu os depoimentos, mas não indicou o ficheiro em que se contêm), limita-se a divergir da valorização da prova feita pelo Tribunal, querendo impor a sua própria convicção e substituindo-se à entidade competente para o efeito.
Em concreto, discorda da matéria de facto dada como assente nos pontos 13 e 14, entendendo que os depoimentos das testemunhas J. D. e D. C. impõem que se considere “normal” a relação mantida entre o casal constituído pela vítima e pelo arguido.
Sem prejuízo do conceito “relação normal” ser claramente conclusivo, sempre se dirá que o recorrente apenas hipervaloriza parte da prova produzida, ignorando toda a demais, nomeadamente as declarações dos assistentes (pais e filhos da vítima) e os depoimentos dos empregados do estabelecimento, todos eles lidando mais de perto (e os primeiros há bem mais tempo) com o casal, do que os vizinhos indicados, que apenas vieram transmitir a sua opinião ou o que se constava na freguesia.
De qualquer modo, considerar como “normal” a relação de um casal que, entre outros factos, dorme separado há bastante tempo e não mantém relações de sexo, em que um membro agride o outro e o ameaça com uma faca de cozinha, além das mensagens (sms) trocadas que evidenciam claramente que não existe um projecto comum de vida e que a mulher pretende terminar com a relação e iniciar um novo projecto de vida (que o marido não aceita), é notoriamente inadmissível. E tal “normalidade” teve o desfecho conhecido!
No que concerne aos pontos 21 a 23 – que já se afloraram no capítulo anterior – o recorrente limita-se a apontar dúvidas, insinuando que a autoria podia ser de terceiro.
Também neste aspeto se mencionaram já as (extensas) razões, constantes da fundamentação do acórdão, que levaram o Tribunal a quo a não aceitar tal possibilidade e a concluir pela autoria do arguido, para quem toda a prova produzida aponta, de modo a não suscitar qualquer dúvida.
Em termos meramente abstractos, admitimos que a factualidade não provada das alíneas c) e k) – o desagrado do arguido ao ver o “amante” da sua esposa na cozinha do restaurante -, possa ser a que admite mais dúvidas, face a um conceito de “normalidade”.
Mas o que está em causa não são dúvidas abstractas, o que importa é que as provas indicadas imponham uma diferente decisão. E tal não sucede.
Repete-se, em conformidade com o disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do CPP, este Tribunal só pode alterar o decidido pelo Tribunal a quo se as provas indicadas pelo recorrente impuserem – e não quando apenas admitam - decisão diversa da recorrida, ou seja, quando se esteja perante uma clamorosa e manifesta desconformidade dos factos fixados com os meios de prova produzidos e examinados.
O recorrente tenta impor o seu próprio julgamento, limitando-se a questionar a opção feita pelo Tribunal a quo.
Mas este fundamentou a decisão na totalidade da prova válida produzida (v.g., testemunhal, pericial e documental), que indicou na motivação da decisão e que analisou criticamente de forma irrepreensível e exaustiva, de acordo com as regras da lógica, da ciência e da experiência comum e em conformidade com a sua livre convicção (art. 127º do CPP), beneficiando da imediação e da oralidade só acessíveis na primeira instância.
Ora, tendo a convicção do julgador sido formada de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, de forma racionalmente objectivada, não colidindo com provas proibidas ou vinculadas e não sendo arbitrária, a decisão não merece qualquer censura.
Também neste segmento, o recurso improcede.
*
Medida concreta da pena.

O recorrente não apresenta qualquer discordância relativamente à subsunção jurídica efectuada, conformando-se com a condenação pelo crime de homicídio qualificado, questionando somente a medida concreta da pena que, na sua ótica, se afigura inadequada, excessiva e desproporcional, devendo ser reduzida ao mínimo legal de 12 anos.

Para tal efeito, alega que (conclusões XXI a XXVII):

- o Tribunal “não teve na devida consideração, como se impunha, a existência de uma relação extraconjugal entre a Vítima, A. P., e o Sr, J. F.”;
- bem como o facto de este residir e trabalhar no mesmo edifício, onde se situa o estabelecimento comercial e a residência do arguido e da vítima, conjuntamente com estes;
- esta situação causou “um acumular de situações geradoras de um conflito interior, que durava há bastante tempo”, levando a “um fenómeno de transbordamento da descarga afetiva” e o arguido a “atuar num estado de exaltação e perturbação psicológica”;
- o Tribunal não ponderou, no devido grau, o preceituado nos artigos 71º e 40º do Código Penal.

Apreciando.
O arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, na previsão dos arts. 13º, 1ª parte, 14º, nº 1, 26º, 1ª proposição, 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. b), todos do Cód. Penal, na pena de 19 anos de prisão.
A moldura penal respectiva é a de prisão de 12 anos a 25 anos.

O acórdão recorrido justificou a pena encontrada, nos seguintes termos:

“Estatui o artigo 40º, nºs1 e 2, do CP, que: 1 – A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2 – Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Este preceito constitui um repositório da doutrina defendida entre nós que entende que os fins das penas só podem ter natureza preventiva – seja de prevenção geral, positiva ou negativa, seja de prevenção especial, positiva ou negativa –, já não natureza retributiva (vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal. Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal sobre a Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2001, p.104).
A finalidade visada pela pena será, prima facie, a tutela necessária e suficiente dos bens jurídico-penais atingidos no caso concreto, traduzida pela necessidade de garantir a confiança e as expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada – a prevenção geral positiva ou de integração –, a qual decorre do princípio da necessidade da pena, consagrado no artigo 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa.
Como aponta Figueiredo Dias, a prevenção geral positiva traduz a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade, mas não fornece ao juiz um quantum exacto de pena (vide Temas Básicos da Doutrina Penal. Sobre os Fundamentos da Doutrina Penal sobre a Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2001, p.107). A prevenção geral positiva fornece, assim, uma moldura de prevenção dentro de cujos limites actuarão considerações de prevenção especial.
A prevenção especial significa, na sua função positiva, a necessidade de (res)socialização do arguido, se tal se justificar, e, na sua vertente negativa, a suficiente advertência individual ao agente pela falta cometida.
A medida da pena há-se encontrar-se de acordo com a combinação do disposto nos artigos 40º e 71º, do CP, através da conjugação da culpa, da prevenção geral e da prevenção especial, esse “triângulo mágico” de que falava Zift (apud Anabela Miranda Rodrigues, “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, nº2, Abril/Junho de 2002, p.148).
Referindo-se ao relacionamento da culpa e da prevenção, escreve Anabela Miranda Rodrigues que (…) [é] essa composição que oferece o artigo 40.º, ao condensar em três proposições fundamentais o programa político-criminal – a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos, de que a culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento, e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena – e levantando, assim, obstáculos definitivos à eventual persistência de correntes jurisprudenciais erradas e funestas (vide “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, nº2, Abril/Junho de 2002, p.155).
E prossegue dizendo que (…) a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. É este também o modelo que deve ser seguido à luz das injunções normativas avançadas pelo legislador ordinário. É o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada – que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral (vide “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, nº2, Abril/Junho de 2002, p.177-178).
Com efeito, a pena concreta será limitada, no seu máximo, pela culpa do arguido. O princípio da culpa dispõe que não há pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (cfr. artigo 40º, nº2, do CP), consistindo esta no limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas em nome do respeito pela dignidade humana, consagrado no artigo 1º, da Constituição da República Portuguesa.
Do que fica sobredito resulta, pois, em síntese, que: [i] a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção); [ii] depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais; [iii] finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas (vide, a este propósito, o elucidativo Acórdão de STJ, de 16 de Janeiro de 2008, acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº07P4565, relator Henriques Gaspar).
Dispõe o artigo 70º, do CP, que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O vertido neste normativo implica que o legislador penal tenha erigido, sem equívoco, o princípio de que, quando, no caso concreto, o juiz tenha à sua disposição uma pena de prisão e uma pena não detentiva, deve preferir a aplicação desta à aplicação daquela sempre que seja fundado supor que a primeira realizará, de forma adequada e suficiente, as já supra mencionadas finalidades da punição (vide Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p.328).
No caso vertente essa opção não se coloca uma vez que a norma incriminadora do tipo legal de crime de homicídio qualificado não oferece ao julgador qualquer possibilidade de alternativa, impondo-lhe a aplicação de uma pena detentiva.
Com efeito, neste domínio, as necessidades de prevenção geral positiva revelam-se prementes, uma vez que os crimes de homicídio constituem um dos factores que maior repúdio, perturbação e comoção social provocam, designadamente, em face da insegurança que geram e ampliam na comunidade, o que se compreende, pois constituem uma agressão ao bem mais valioso concebível: a vida humana.
Como se afirma no Acórdão do STJ, de 11 de Julho de 2007 (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº07P1583, relator Armindo Monteiro): (…) a criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária, em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes.
Ao que vem de referir-se acresce o facto – que não podemos, nem devemos ignorar – de este ilícito criminal ser praticado com alguma frequência na área desta comarca.
Daí que as exigências de prevenção geral sejam de acentuada intensidade, salientando quão imperioso é acautelar tais exigências na determinação da pena no crime em referência, como garantia da validade das normas e de confiança da comunidade.
Na verdade, a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito.
No que respeita às exigências de prevenção especial positiva ou de ressocialização, assume primordial importância que o arguido M. F. compreenda o desvalor do seu comportamento nos acontecimentos que aqui se apreciam, de forma a prevenir a prática de futuros actos delinquentes.
Estas exigências adensam-se na medida em que, antes da prática dos factos sob discussão nos presentes autos, o arguido havia já tido contacto com o sistema de justiça penal, no âmbito do qual foi condenado, sem que tal condenação – ainda que por crime de diferente natureza –, lamentavelmente, tivesse servido de suficiente advertência e surtido o efeito dissuasor pretendido.
*
Cumpre, agora, determinar a medida concreta da pena de prisão dentro da moldura penal abstracta que cabe ao ilícito criminal em apreço nos autos.
Conforme ficou sobredito, as finalidades de aplicação de uma pena assentam, em primeira linha, na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade. Contudo, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. artigos 40º, nºs1 e 2 e 71º, nº1, ambos do CP).
Na determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, o tribunal atenderá à culpa do agente e às exigências de prevenção bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Na verdade, estabelece o artigo 71º, nº2, do mesmo diploma legal, que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Assim, depõe contra o aludido M. F. o grau de ilicitude do facto, que se afigura muito acentuado, seja do ponto de vista da acção, seja do ponto de vista das suas consequências (cfr. artigo 71º, nº2, alínea a), do CP).
A este propósito, haverá que considerar todo o contexto fáctico em que a sua conduta se inseriu e o modo de execução [do facto].
O arguido tirou a vida à vítima A. P. mediante asfixia mecânica por compressão extrínseca do pescoço (esganadura), o que é indubitavelmente intenso, pois que estamos perante uma morte de causa violenta, a impor uma pena com efeito dissuasor, em nome de fortes e sentidas necessidades de prevenção geral.
Aquele M. F., com este seu comportamento, revelou indiferença, insensibilidade e absoluto desprezo pela vida humana – o bem jurídico mais valioso – e pela dignidade da sua esposa.
Acresce que a sua actuação revela uma assinalável energia criminosa manifestada no uso das próprias mãos e da necessidade de haver, além de “sangue frio”, um contacto directo, persistente e duradouro com a vítima, bem como de contrariar e anular a sua resistência até sucumbir e não dar mais sinais de vida.
Importa, ainda, atentar nas circunstâncias em que esta morte foi provocada: quando o arguido se encontrava sozinho com a vítima, numa divisão (lavandaria) onde dificilmente seria ouvida caso necessitasse de ajuda, por situar-se no andar inferior e no extremo oposto do edifício, nomeadamente, do local onde se encontravam os assistentes A. F., M. J., L. F., e as testemunhas J. F. e D. H..
As consequências do crime são também altamente negativas.
A vítima tinha 39 (trinta e nove) anos de idade, pelo que foi privada de uma significativa parte da sua esperança média de vida.
Além do resultado morte – que não pode ser valorado –, importa atentar numa certa frieza de actuação, que se revela quando aquele M. F. teve o cuidado de apagar a luz dessa lavandaria, antes de abandoná-la, para assim dar a entender que não havia ninguém nessa divisão.
Da mobilização probatória resultou demonstrado que a motivação primária do arguido está relacionada com a falta de aceitação do fim do casamento e com a vontade da vítima em desvincular-se do matrimónio por entender que nele já não se realizava pessoalmente, nem era feliz, pretendendo investir numa outra relação amorosa.
O arguido agiu, portanto, movido por ciúme, por egoísmo e por ressentimento pessoal, com o que revelou uma concepção absolutamente errada do amor, já que coisificou a pessoa que dizia amar, tratando-a como um objecto (cfr. artigo 71º, nº2, alínea c), do CP).
Deste modo, o grau de ilicitude da conduta do arguido, já por si intenso, atinge um patamar significativo, pois que para fazer cessar o elevado estado de tensão que atingia o seu matrimónio e que ditou o seu fim, optou por uma solução manifesta e categoricamente desajustada, desproporcional e inaceitável, reveladora do seu acentuado ressentimento pessoal e do seu desprezo por valores básicos em que assenta o matrimónio, como seja o respeito pela autonomia individual e pela liberdade de escolha de um projecto de vida por parte de cada pessoa, a demandar um forte repúdio social (cfr. artigo 71º, nº2, alínea c), do CP).
Esta imagem global da ilicitude resulta agravada por a conduta do arguido M. F. ter causado efeitos colaterais, pois que foi indiferente ao facto de ter 2 (dois) filhos, menores de idade, e da forte ligação afectiva que tinham com a vítima, que era responsável pela sua educação e formação e por assegurar o seu são desenvolvimento e maturação (cfr. artigo 71º, nº2, alínea a), do CP).
Afectou, ainda, os progenitores da vítima, que era filha única, com quem contavam para auxiliá-los na sua velhice, designadamente, do ponto de vista económico.
O arguido agiu em circunstâncias que fizeram com que a tensão ou pulsão dos seus instintos primários não tivesse sido vencida por uma solidez de personalidade, o que revela um sentimento de acentuada desconformidade com valores essenciais a impor acrescidas exigências de reinserção e recomposição valorativa.
Depõe contra o mencionado M. F. a intensidade do dolo no crime que praticou, consubstanciada na sua modalidade mais grave – o dolo directo –, projectando a sua actuação e as suas imediatas consequências e conformando-se com a sua actuação ilícita (cfr. artigos 14º, nº1 e 71º, nº2, alínea b), do CP), facto que, fazendo elevar a ilicitude inerente à sua conduta (é menor a sensibilidade à pena que lhe venha a ser aplicada), acentua o grau de premência das referidas exigências de prevenção, ao mesmo tempo que acentua o juízo de censurabilidade penal a fazer impender sobre o arguido.
Os factores relativos à sensibilidade à pena e susceptibilidade de por ela ser influenciado também desfavorecem a responsabilidade criminal do arguido, pois que à data dos factos que se discutem não era delinquente primário (artigo 71º, nº2, alínea e), do CP).
Na verdade, por sentença proferida no dia 23 de Março de 2017, no âmbito do Processo Comum Singular nº579/16.5PBBRG, do Juízo Local Criminal de Braga – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, transitada em julgado no dia 09 de Outubro de 2017, foi condenado em pena de multa, já extinta, pela prática de um crime de coacção.
Esta circunstância acentua as exigências de prevenção especial a fazer impender sobre o arguido, sendo acrescidas as necessidades de ressocialização, uma vez que foi já anteriormente censurado pela prática de crime.
No contraponto, porém, importa considerar que o crime dos presentes autos é de natureza diversa daquele em que foi condenado e em que lhe foi aplicada ma pena patrimonial.
A conduta posterior aos factos também é relevante atenta a ausência de qualquer demonstração de remorso ou de arrependimento por parte do arguido, nem de rejeição do comportamento adoptado, nem tampouco de consciência da sua gravidade, sobretudo quando confrontado com as declarações dos assistentes L. F. e H. F.s, seus filhos, e M. J. e A. F., seus sogros (cfr. artigo 71º, nº2, alínea e), do CP).
Esta asserção não compreende uma valoração negativa do direito do arguido ao silêncio – de que aquele M. F. fez uso em julgamento –, mas apenas significa (…) uma não possibilidade de valoração positiva de um elemento, com relevância para o conhecimento da personalidade e para a culpa, que o tribunal teria de considerar na determinação concreta da pena (artigo 71.º do Código Penal), se tivesse ocorrido, o que se situa num âmbito distinto da relevância do direito ao silêncio para a decisão da questão da culpabilidade (cfr., a este propósito, o disposto nos artigos 368.º e 369.º do CPP, que tornam evidente a separação das questões da culpabilidade e da determinação da pena). O direito ao silêncio constitui um direito fundamental do arguido, integrante da protecção contra a autoincriminação e compreendido no núcleo essencial das garantias de defesa (artigos 32.º, n.º 1, da Constituição, 6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e 61.º, n.º 1, al. d), e 343.º, n.º 1, do CPP) – vide o Acórdão do STJ, de 02 de Outubro de 2010 (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº3622/17.7JAPRT.P1.S1, relator Lopes da Mota).
Como avulta do relatório social dos autos, o arguido cresceu num agregado familiar com uma dinâmica relacional estruturada e funcional, beneficiando do apoio da família, designadamente dos seus irmãos J. M. e M. C., que foram ouvidos em julgamento (cfr. artigo 71º, nº2, alínea d), do CP).
Além disso, aquando da sua detenção, exercia uma actividade profissional e dispunha de património imobiliário, sem prejuízo das dificuldades económicas com que se debatia (cfr. artigo 71º, nº2, alínea d), do CP).
Acresce que no meio social sempre foi considerado pessoa trabalhadora, empreendedora e solidária, pelo que os factos dos presentes autos causaram surpresa e incredulidade na sua comunidade (cfr. artigo 71º, nº2, alínea d), do CP).
Esta integração profissional e social, porém, mitiga apenas de forma relativa a responsabilidade do arguido pelo comportamento que assumiu na prática dos factos dos autos, sendo certo que não podemos deixar de ter aqui presente a sua personalidade ciumenta e desconfiada, com que exercia pressão psicológica sobre a vítima A. P., levando-a a um estado de saturação emocional (cfr. artigo 71º, nº2, alínea d), do CP)
Deste modo, não obstante a conduta do arguido M. F. merecer um juízo ético-jurídico de censura, considera-se que retomará uma atitude fiel ao Direito, pelo que se julga justo, adequado e equitativo concluir que merece uma censura penal concreta que, não ultrapassando a medida da culpa e observando as finalidades e limites da prevenção geral e as necessidades de prevenção especial, se deve situar na pena de 19 (dezanove) anos de prisão.”
Da transcrição antecedente, resulta que, no que toca à determinação da medida concreta da pena e tendo em conta as finalidades desta, o Tribunal a quo enunciou todos os motivos determinantes da opção realizada, de acordo com o preceituado nos artigos 40 e 71º do Cód. Penal, isto é, em função da culpa do agente e das concretas exigências de prevenção (geral e especial) e atendendo às circunstâncias relevantes extrínsecas (a favor ou contra o agente) aos elementos típicos.
O recorrente alega que a pena concreta é excessiva, inadequada e desproporcional - pugnando pela sua redução para o mínimo legal de 12 anos de prisão – por o Tribunal não ter ponderado devidamente as circunstâncias concretas do caso, designadamente a relação extraconjugal estabelecida entre a vítima e o empregado do estabelecimento comercial que aquela geria, o facto de todos (arguido, vítima e “amante”) residirem no mesmo edifício, o que “sem sombra de dúvida, causou um conflito interior duradouro que culminou num fenómeno de transbordamento de descarga afectiva, levando o arguido a atuar num estado de exaltação e perturbação psicológica”, o que constitui “facto notório”.
Apreciando.
O Acórdão recorrido deu como assente a existência de tal relação amorosa da vítima com terceiro, assim como o “convívio” de todos debaixo do mesmo teto.
Só que não retirou de tal situação de facto qualquer atenuante para a acção desenvolvida pelo arguido.
Que tal situação não era “bem vista” pelo arguido não resta qualquer dúvida, bastando para isso ver o teor das mensagens por ele enviadas à vítima. Demais, quando tal relacionamento ocorria debaixo do mesmo teto, ou seja, na mesma residência em que todos habitavam. Facto que, aliás, também incomodava a mãe da vítima (cfr. “lamentos” da vítima ao “amante”, constantes das mensagens trocadas entre eles).
É certo que tal situação não justifica a ação empreendida. Ademais, quando o casal tinha chegado a acordo quanto ao divórcio, que se consumaria no dia seguinte. E não se diga que tal divórcio se justificava somente por razões de conveniência económica ou financeira, pois as mensagens trocadas entre os membros do extinto casal são bem elucidativas acerca da motivação, pelo menos, da vítima (a pretensão de iniciar um novo projecto de vida).
O Tribunal concluiu - e bem - que o arguido agiu por ciúme, o qual não pode ser tido como atenuante, dada a intolerância e desprezo que revela pelo direito à autodeterminação da vítima.
O que o Acórdão não dá como provado - por nenhuma prova se ter feito nesse sentido - foi o invocado conflito interior que culminou na descarga afectiva, em estado de exaltação e perturbação psicológica.
Além de nada se ter provado quanto à existência do conflito e do estado de perturbação, o certo é que, de forma alguma, eles se podem ter como “facto notório”. Nem tais conflito e estado se concebem, quando, repete-se, estava acordado o divórcio para o dia seguinte. Aliás, tal conflito interior, a existir, apenas seria consequência do modo de o arguido encarar o seu casamento com a vítima, considerando-a como sua propriedade pessoal, de que não se quer desfazer (como também resulta dos já citados sms trocados). Facto que o acórdão ponderou (a “coisificação da pessoa que dizia amar, tratando-a como um objecto”).
O acórdão recorrido ponderou as circunstâncias concretas do caso, de forma exaustiva e de acordo com o preceituado nos referidos artigos do Código Penal, fixando a pena concreta, sensivelmente, no ponto médio da respectiva moldura (muito ligeiramente acima).
Contudo e ainda que se considere não ocorrer a atuação num “estado de exaltação e perturbação psicológica”, entendemos que a existência do relacionamento amoroso com terceiro, sob o mesmo teto, deve ser tida como um fator atenuativo da acção do arguido.
Por outro lado, o antecedente criminal do arguido – respeitando a um crime de natureza diversa, punido com pena de multa já extinta – assume uma muito diminuta relevância nas exigências de prevenção especial.
Nestes termos, tendo em conta as exigências de prevenção e a culpa do arguido, bem como todas as demais circunstâncias do caso, afigura-se mais justo, adequado e proporcional, fixar a pena concreta um pouco abaixo do ponto médio da respectiva moldura, mais concretamente em 17 (dezassete) anos de prisão.
Neste segmento, o recurso do arguido é procedente.
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IV – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido M. F., condenando-o na pena concreta de 17 (dezassete) anos de prisão;
- na parte restante, julgar o recurso improcedente, confirmando o acórdão recorrido.
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Sem custas.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 26 de Outubro de 2020

(Mário Silva - Relator)
(Maria Teresa Coimbra - Adjunta)