Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
86/14.0T8AMR.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
DESNECESSIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstância próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).

II. A desnecessidade de uma servidão de passagem antes constituída por usucapião afere-se necessariamente pelo respectivo título constitutivo, isto é, terá que ter deixado de existir no prédio dominante a concreta situação de facto que justificara aquela constituição, sendo irrelevante para este efeito a existência de outras e diferentes utilidades que a dita servidão de passagem hoje proporcione (arts. 1564º e 1569º,nº 2, ambos do C.C.).

III. Tendo sido constituída uma servidão de passagem sobre uma faixa de terreno com a largura de dois metros, por forma a permitir o trânsito sobre ela a pé, em carro de bois ou em tractor, para transporte de madeira, lenha ou mato, e passando o prédio dominante a beneficiar de um outro acesso à via pública, que assegura as mesmas finalidades em idênticas condições, deverá ser declarada extinta a anterior servidão de passagem (independentemente do proprietário do prédio dominante pretender continuar a usufruir dela, para aceder à habitação que entretanto ali construi, por só ela possibilitar o trânsito em veículo automóvel, e o acesso assim garantido ser mais curto).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

I - RELATÓRIO
1.1. Decisão impugnada
1.1.1. B. e mulher, C. (aqui Recorridos), residentes na Rua …, propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra D. e mulher, E. (aqui Recorrentes), residentes em …, pedindo que
• se declarasse extinta a servidão predial de passagem, existente sobre um prédio seu em favor de um prédio dos Réus.

Alegaram para o efeito, em síntese, que sendo proprietários do prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova», e confrontando o mesmo do sul e de nascente com estrada pública, e de poente com o prédio rústico dos Réus «Monte de São Tiago», numa extensão de trezentos metros, viram aquele onerado com uma servidão de passagem a favor deste, numa faixa de largura de dois metros, para passagem esporádica de tractor ou carro de bois, com vista ao transporte de matos, madeira e lenha, conforme sentença judicial que a reconheceu constituída por usucapião.
Mais alegaram que, confrontando o prédio dos Réus de nascente com estrada municipal, os mesmos efectuaram há cerca de doze anos obas de melhoramentos do acesso àquela, quando ali construíram uma moradia, permitindo agra que se aceda ao prédio com qualquer veículo, e de forma directa à nova casa edificada.
Alegaram ainda que esse novo acesso à via pública proporciona inclusivamente melhores condições de utilidade e de comodidade, face à anterior servidão, pelo que esta se teria extinto por desnecessidade, tanto mais que os Réus deixaram de ter árvores e mato no seu terreno, encontrando-se o mesmo hoje apenas relvado.

1.1.2. Regularmente citados, os Réus (aqui Recorrentes) contestaram, pedindo que a acção fosse julgada totalmente improcedente, sendo eles próprios absolvidos do pedido; e deduzindo reconvenção, impetrando:
• a condenação dos Autores a reconhecerem o seu direito a aumentarem a largura da servidão de passagem que onera o prédio daqueles a favor do seu próprio prédio, por forma a que a mesma proporcione a passagem de veículos automóveis ligeiros e pesados, de máquinas agrícolas e de exploração florestal, e de ambulâncias ou carros de bombeiros.
Alegaram para o efeito, em síntese, e relativamente à acção deduzida contra si, não ser verdadeira a quase generalidade dos factos invocados pelos Autores, nomeadamente por o acesso do seu próprio prédio à via pública não ser o melhor relativamente à sua casa de habitação, e nem sequer à maior parte do «Monte de São Tiago» (nomeadamente, mercê da natureza e da morfologia do terreno - com inclinação que ultrapassa os 25% e menores raios de curvatura - e da distância a percorrer - superior a 150 metros), estando nomeadamente vedada a utilização de carros ligeiros.
Mais alegaram que só a realização de obras de movimento, compactação e pavimentação de terras, e a execução de um muro de suporte das mesmas, numa distância de cerca de 150 metros, com um custo superior a € 250.000,00, viabilizaria a utilização do aceso referido pelo Autores à sua própria casa.
Alegaram ainda os Réus que a servidão de passagem em causa nos autos implica um sacrifício máximo de 10 m2 para os Autores, enquanto que para si é absolutamente imprescindível para acesso à respectiva casa de habitação, e aos terrenos onde plantaram dezenas de árvores de fruto, de novas árvores para produção de madeiras, pés de videira, e de plantas ornamentais.
Defenderam, por isso, não se verificar a desnecessidade invocada pelos Autores como causa de extinção da servidão em causa, não exigindo a lei para este efeito a indispensabilidade, mas apenas que se mantenha alguma utilidade, inerente à mesma, para o prédio dominante.
Já relativamente à reconvenção que eles próprios deduziram, os Réus, reiterando o antes afirmado, alegaram que a servidão de passagem em causa - absolutamente imprescindível ao seu imóvel - seria manifestamente exígua para as finalidades do seu uso e fruição, assistindo-lhes por isso o direito de a verem alargada, por forma possibilitar a passagem de veículos automóveis ligeiros e pesados, máquinas agrícolas e de exploração florestal, e de ambulâncias e carros de bombeiros.

1.1.3. Os Autores replicaram, pedindo que a reconvenção não fosse admitida, ou, subsidiariamente, fosse julgada improcedente.
Alegaram para o efeito, novamente em síntese, não se subsumir a reconvenção deduzida a qualquer uma das situações previstas no art. 266º, nº 2 do C.P.C., antes sendo apenas o efeito contrário do direito por eles próprios aqui exercido, pelo que seria inadmissível.
Mais alegaram que a servidão em causa foi constituída a favor de um prédio rústico (para fins agrícolas), e não de um prédio urbano (para acesso a habitação); e disporem os Réus neste momento de um novo acesso à via pública, que lhes proporciona melhores condições de utilidade e de comodidade do que a servidão de passagem em causa.
Alegaram ainda que a pretensão reconvencional dos Réus ofenderia o caso julgado anterior, já que a servidão em causa foi constituída apenas para permitir a passagem, por uma faixa com a largura de dois metros, de carro de bois e/ou tractor, para transporte de matos, madeira e lenha, e não para os demais propósitos reclamados pelos Réus.

1.1.4. Em sede de audiência designada para tentativa de conciliação das partes, e frustrada a mesma, foi proferido despacho: admitindo a reconvenção deduzida (embora, nesta parte, inicialmente apenas de forma oral, sendo reduzido a escrito em sede de audiência de julgamento); certificando a validade e a regularidade da instância; e apreciando os requerimentos probatórios das partes.

1.1.5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu pela procedência total da acção e pela improcedência total da reconvenção, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
5.1.- Julgar procedente a presente ação e, em consequência, declaro extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem que onera o prédio dos autores em benefício do prédio dos RR., e que tinha como finalidade o “transporte esporádico, a pé ou de carro, de matos e lenhas ou madeiras existentes no atual prédio dos RR.”.
5.2.- Julgar improcedente a reconvenção e, em consequência, absolvo os reconvindos do pedido reconvencional deduzido nos autos contra si pelos reconvintes.
5.3.- Custas da ação pelos réus.
5.4.- Custas da reconvenção pelos reconvintes.
(…)»
*
1.2. Recurso (fundamentos)
Inconformados com esta decisão, os Réus (João de Deus de Sousa Pereira e Maria João Gonçalves Carneiro Pereira) interpuseram recurso de apelação, pedindo que fosse revogada a sentença recorrida, sendo a acção julgada improcedente e a reconvenção julgada procedente.

Concluíram as suas alegações da seguinte forma (sintetizada, sem repetições do processado, ou reproduções de textos legais ou jurisprudenciais):

1ª - Ter o Tribunal a quo feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma permitia dar como provados factos susceptíveis de caracterizarem a diferente natureza e características dos dois acesos do prédio dos Réus a via pública, manter-se a servidão em causa como o melhor acesso à dita via pública, e ser desproporcionado o encargo imposto aos Réus com a sua extinção, face ao prejuízo que a mesma importa para os Autores.

B - O Tribunal recorrido não deu por provado, como podia e devia, a existência, há muitos anos, quer do identificado caminho de servidão, quer do caminho existente a norte/poente do prédio dos RR., com entrada e saída pelo portão azul, a que se alude nos autos, tudo como resulta, quer na prova documental, quer na prova testemunhal produzidas, factos que têm absoluta importância para a decisão da manutenção do caminho de servidão atenta a dimensão do prédio dominante - 48.000 m2 -, a sua natureza e as suas utilidades.

C - Se, há longos anos, o Monte de S. Tiago tem duas – 2 – entradas/saídas, foi porque sempre delas precisou, tendo em conta o seu tamanho e a morfologia do solo, por forma a permitir o seu normal e adequado aproveitamento florestal, donde os sucessivos proprietários retiram – legitimamente e porque precisam proveito económico, tudo como reporta a prova testemunhal produzida.

D - Se assim foi, enquanto no Monte de S. Tiago não havia a casa de habitação que os RR/Recorrentes lá construíram há cerca de 12 anos, por maioria de razão se justifica, não só a existência da servidão, como a ampliação da sua extensão, tal como foi peticionado em sede de Reconvenção, TENDO EM CONTA AS necessidades normais e previsíveis, porque naturalmente decorrentes da evolução dos tempos.

E - O Tribunal Recorrido não deu por provado, como devia, porque alegada tal matéria e toda a prova produzida - inclusivé a produzida por testemunhas dos próprios Autores - assim o impunha, os seguintes factos, que inequivocamente também decorrem dos documentos, das fotografias, do Relatório Pericial e dos esclarecimentos dos Srs. Peritos:
a) A Bouça de São Tiago sempre teve duas – 2 – entradas/saídas, uma a que constitui o caminho de servidão e outra aquele que se começa/termina no portão azul.
b) O caminho a que alude o art.° 40 da P. I. apenas constitui melhor acesso à área Nascente/Norte do Monte de Santiago, já não quanto ao seu lado sul e nascente.
c) No caminho a que alude o art.° 40 da P. I. existem zonas em que a inclinação é superior a 25%, existindo também zonas de inclinação inferior.
d) O caminho a que alude o art.° 40 da P. I. não é plano e implica vencer um desnível.
e) No caminho a que alude o art.° 40 da P. I. o trânsito de veículos ligeiros é impossível.
f) A natureza, a morfologia e a utilização de tal caminho para ligação à casa de morada do casal e à parte nascente/sul do Monte de S. Tiago, implicaria trabalhos de pavimentação, movimentação, compactação de terras e drenagem, podendo haver a necessidade de construção de um muro de suporte de terras, numa distância não inferior a 150 m, com dimensões a serem determinadas em fase de estudo e projeto.
g) A servidão localiza-se sensivelmente a meio do prédio dos Autores, na sua parte mais estreita entre o imóvel dos RR e a estrada camarária, em terra batida, com uma área máxima aproximada de 10 m2.
h) As despesas a efetuar no caminho a que aludem o AA no art° 40 da Petição Inicial, a desvalorização do imóvel/habitação, assim como da perda de aproveitamento da parte nascente/sul do Monte de S. Tiago, pela pretendida extinção da servidão de passagem, é muitíssimo superior a perda de rendimento ou desvalorização do terreno dos AA, pela cedência do pequeno troço que constitui a servidão, mesmo que ampliada na sua extensão.
i) O valor actual, por metro quadrado, do terreno onde se encontra implantado o caminho de servidão no prédio dos Autores - que nunca foi cultivado ou de algum modo economicamente aproveitado - localizado numa área definida no PDM de … como "Espaços Centrais Área Central de Nível 2 é de aproximadamente 20 €/m2.
j) Com a construção da sua casa de habitação que se situa a cerca de 30 metros
do local exacto da passagem ou servidão, cujo acesso se encontra devidamente pavimentado com cimento e cubos de granito o identificado imóvel dos RR. ficou
enormemente valorizado.
k) De igual modo o aproveitamento florestal da parte nascente/sul do imóvel dos RR. ficou mais facilitado, por conseguinte, menos oneroso.
l) Mais valorizado ainda pelo facto de os RR. ali haverem plantado dezenas de árvores de fruto, dezenas de novas árvores para produção de madeiras, dezenas de pés de videiras, dezenas de plantas ornamentais.
m) A passagem, ou seja, o caminho de servidão existente, para além de ser imprescindível ao imóvel dos RR., atenta a sua natureza, designadamente o seu tamanho, tipo e morfologia do solo, potencialidades e valor económico, é, no entanto, exíguo para a melhor finalidade do seu uso e fruição pelos RR., tornando-se necessário alargá-lo apenas, por forma a permitir a passagem de carro de bombeiros, de ambulância, de tractores, etc., encurtando ainda a distância para a Estrada Nacional …, para a Igreja, Hospital, Serviços Públicos, etc.
n) O valor necessário gastar para melhorar - designadamente com calcetamento
em cubos de granito - o piso em terra batida do caminho de servidão existente, por forma a que a mesma proporcione a passagem de veículos automóveis ligeiros e pesados, máquinas agrícolas e de exploração florestal, assim como de ambulâncias ou carros de bombeiros, situação mais consentânea com os tempos actuais, é de 25,00 €/ m2.
o) A servidão constituída, de modo algum condiciona ou limita seriamente o direito de propriedade dos AA. sobre o seu identificado prédio, representando para o imóvel dos AA. um sacrifício máximo de 10 m2 e tendo um valor de apenas € 200,00.
p) A servidão constituída, mesmo exígua na sua largura, constitui enorme mais-valia também para a parte nascente e sul do Monte de São Tiago e ainda mais agora, com a construção da casa de morada dos RR. e que muito aumentaram o valor económico de toda a propriedade.
q) O caminho da servidão continua a ser – como sempre constituiu - o percurso que propicia condições de trânsito mais regulares e cómodas à parte sul e poente do imóvel dos RR./Recorrentes, onde foi edificada a sua casa de habitação e demais construções, que aumentaram substancialmente o seu valor.

F - Com base nos documentos, fotografias, relatório pericial e esclarecimentos dos Srs. Peritos e também nos depoimentos das testemunhas - arroladas pelos RR. e até pelas
dos próprios AA. - deverá:
2 - Dar-se POR (NÃO ? Lapso de escrita ?) PROVADO QUE “O caminho a que alude o art.° 40 da PI. N+ão constitui o melhor acesso à casa de habitação, pelo facto de ter o triplo do tamanho do caminho de servidão, de não permitir boas condições de circulação e de se encontrar bem mais longe da Estrada Nacional …, assim como da Vila de …, da Igreja, dos serviços públicos, hospitais, etc.”


2ª - Ter o Tribunal a quo feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma permitia dar como provados os factos que se quedarem indemonstrados («O prédio identificado em 7. tem uma inclinação que ultrapassa os 25%» e «Os trabalhos de pavimentação do caminho existente no interior do prédio identificado em 7., e que permite o acesso direito deste prédio à via pública, implicavam um gasto de 250.000,00 euros»).

F - Com base nos documentos, fotografias, relatório pericial e esclarecimentos dos Srs. Peritos e também nos depoimentos das testemunhas - arroladas pelos RR. e até pelas
dos próprios AA. - deverá:
1 - Ser retirada toda a matéria escrita em “3.2 - Factos não provados, com relevância para a decisão da causa.”

3ª - Ter de ser alterada a decisão de mérito proferida, quer face à nova decisão de facto a proferir, quer de forma independente desta, reconhecendo-se não existir a desnecessidade da servidão de passagem em causa invocada pelos Autores, e dever inclusivamente a mesma ser alargada, por forma a permitir a satisfação de necessidades normais e previsíveis pela evolução dos tempos (nomeadamente, o trânsito de veículos automóveis ligeiros e pesados, máquinas agrícolas e de exploração florestal, ambulâncias e carros de bombeiros).

A - Para o Tribunal Recorrido, não obstante a prova pericial e testemunhal produzida, a existência de uma habitação construída, há cerca de 12 anos, no prédio dominante, não tem reflexo algum na decisão sobre a (DES)necessidade da existência da servidão de passagem, TENDO EM CONTA AS necessidades normais e previsíveis, porque naturalmente decorrentes da evolução dos tempos.

G - Os AA. não lograram provar factos que demostrassem a desnecessidade da servidão, ónus que lhe competia.

H - A sentença recorrida violou o disposto nos artºs 1543º, 1544º, 1545º, 1546º, 1547º, 1565º e 1569º nº2 do Código Civil, assim como o artigo 607º do CPC, ignorando a mais abundante doutrina e jurisprudência, designadamente ao não atender aos factos de:
1 - O Monte de S. Tiago ter, desde há longos anos, duas - 2 - entradas/saídas necessária ao normal, total e adequado aproveitamento económico do Monte de S. Tiago.
2 - A servidão não deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante, antes passou a ter mais utilidade.
3 - A servidão em causa assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta graças a uma utilização, lato sensu, de prédio alheio.
4 - Há que considerar, “in casu”, um conceito de desnecessidade paralelo ao interesse que justificou a sua constituição e que a servidão constituída se constituiu não por ser indispensável.
5 - A servidão em causa - muito mais que a outra entrada/saída, garante uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente.
6 - A servidão em causa - e que apenas se pretende um pouco alargada - não constitui abuso de direito algum, destinando-se a satisfazer necessidades normais e previsíveis, porque naturalmente decorrentes da evolução dos tempos.

*
1.3. Recursos (contra-alegações)
Os Autores contra-alegam, pedindo que fosse negado provimento ao recurso, mantendo-se inalterada a sentença recorrida.

Concluíram as suas alegações da seguinte forma (sintetizada, sem repetições do processado, ou reproduções de textos legais ou jurisprudenciais):

1 - Os Réus não cumpriam o ónus de impugnação imposto pelo art. 640º, nº 1 e nº 2, al. a) do C.P.C., já que, reportando-se a prova gravada, não indicaram com exactidão as passagens da gravação onde fundaram o seu recurso, devendo por isso ser o mesmo rejeitado.

2 - A admitir-se a impugnação da matéria de facto feita, teria que reconhecer-se a inexistência de qualquer erro de julgamento, já que o Tribunal a quo utilizou no seu juízo toda a prova produzida, incluindo a pessoal, bem como a consubstanciada na inspecção ao local por si realizada.

3 - Atentas as limitadas características da servidão de passagem em causa nos autos («passagem a pé, de carro de bois ou tractor», com a finalidade de «transporte esporádico de lenhas, matos ou madeiras existentes no prédio dos Réus»), o novo acesso à via pública assegurado por obras realizadas pelos Réus no seu prédio há cera de doze anos, garante precisamente o mesmo fim daquela, tornando-a assim desnecessária.

4 - A dita servidão não autoriza o transporte de veículos automóveis, sendo por isso inútil para viabilizar o acesso dos Réus à sua habitação com esse meio de transporte.

5 - O terreno adjacente à mesma, que antes tinha árvores se mato, e cuja exploração se pretendia vitalizar, deixou de os ter, não podendo a servidão - de finalidade exclusivamente agrícola - ser agora transformada numa servidão de passagem de acesso a prédio urbano.
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR
2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do CPC).
*

2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, 02 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal:

1ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma

. permitia dar como provados factos susceptíveis de caracterizarem a diferente natureza e características dos dois acesos do prédio dos Réus à via pública, manter-se a servidão em causa como o melhor acesso à dita via pública, e ser desproporcionado o encargo imposto aos Réus com a sua extinção, face ao prejuízo que a mesma importa para os Autores;

. permitia dar como provados factos que se quedarem indemonstrados, (nomeadamente que «O prédio identificado em 7. tem uma inclinação que ultrapassa os 25%» e que «Os trabalhos de pavimentação do caminho existente no interior do prédio identificado em 7., e que permite o acesso direito deste prédio à via pública, implicavam um gasto de 250.000,00 euros») ?

2ª - Deve ser alterada a decisão de mérito proferida, por forma a que se reconheça a não extinção da servidão de passagem em causa (por não existir a respectiva desnecessidade), e se reconheça o direito dos Réus de inclusivamente a verem alargada, por forma a permitir a satisfação de necessidades normais e previsíveis pela evolução dos tempos (nomeadamente, o trânsito de veículos automóveis ligeiros e pesados, máquinas agrícolas e de exploração florestal, ambulâncias e carros de bombeiros) ?
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1ª Instância
3.1.1. Factos Provados
Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1ª Instância, foram considerados provados os seguintes factos (aqui reordenados, lógica e cronologicamente):

1 – B. e mulher, C. (aqui Autores) são donos e legítimos possuidores do prédio rústico denominado «Bouça das Leiras da Poça Nova», sito no lugar do…, inscrito na respectiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número … (conforme documentos que «Certidão Predial Permanente» que é fls. 8v a 9, e «Caderneta Predial Rústica» que é fls. 9v a 10, cujos dizeres aqui se dão por integralmente reproduzidos).
(Facto provado enunciado sob o número 1 na sentença recorrida)

2 - O prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova» (identificado no facto provado enunciado sob o número 1) está registado em nome dos Autores.
(Facto provado enunciado sob o número 3 na sentença recorrida)

3 - Há mais de 20, 30 e 50 anos que os Autores, por si e seus ante possuidores, possuem o referido prédio «Bouça das Leiras da Poça Nova» (identificado no facto provado enunciado sob o número 1), de forma ininterrupta, à vista de todos, sem a oposição de ninguém, dele retirando todas as utilidades e proveitos, nomeadamente, cultivando-o, plantando árvores de fruta e uma vinha, bem como suportando os inerentes encargos, pagando os respectivos impostos, na convicção de que são os proprietários do mesmo.
(Facto provado enunciado sob o número 4 na sentença recorrida)

4 – D. e mulher, E. (aqui Réus) são donos e legítimos possuidores do prédio rústico com uma área de cerca de 5 hectares, denominado «Monte de São Tiago», sito no lugar de …., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, inscrito na matriz sob o art.º …(conforme escritura pública de «DIVISÃO DE BENS COMUNS» que é fls. 11 a 16 dos autos, cujos dizeres aqui se dão por integralmente reproduzidos).
(Facto provado enunciado sob o número 7 na sentença recorrida)

5 - Há mais de 50 anos que os Réus, por si e ante possuidores, de forma ininterrupta, à vista de todos, sem a oposição de ninguém, estão na posse do referido prédio rústico «Monte de São Tiago» (identificado no facto provado enunciado sob o número 4), pagando os seus encargos, abatendo e vendendo as árvores que no mesmo nascem, designadamente, eucaliptos e pinheiros, recolhendo as lenhas das ditas árvores, limpando os matos que nele nascem, fazendo nele obras de construção civil, com a convicção e ânimo de que são os seus proprietários.
(Facto provado enunciado sob o número 28 na sentença recorrida)

6 - O prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova» (identificado no facto provado enunciado sob o número 1), dos Autores, confronta do norte com …, do sul e de nascente com a estrada pública, e do poente com os Réus.
(Facto provado enunciado sob o número 2 na sentença recorrida)

7 - O prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova» (identificado no facto provado enunciado sob o número 1), dos Autores, desenvolve-se no sentido paralelo à estrada municipal (Rua …), com a qual confronta pelo lado nascente (conforme relatório pericial que é fls. 117 a 130 dos autos, cujo dizeres aqui se dão por integralmente reproduzidos).
(Facto provado enunciado sob o número 5 na sentença recorrida)

8 - A faixa de terreno referida no facto provado enunciado sob o número 7 encontra-se implantada entre a referida estrada (Rua …) e o prédio dos Réus.
(Facto provado enunciado sob o número 6 na sentença recorrida)

9 - O prédio rústico «Monte de São Tiago» (identificado no facto provado enunciado sob o número 4), propriedade dos Réus, confronta do seu lado nascente com o prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova» (identificado no facto provado enunciado sob o número 1), propriedade dos Autores.
(Facto provado enunciado sob o número 8 na sentença recorrida)

10 - Entre o prédio rústico «Monte de São Tiago», propriedade dos Réus, e a estrada municipal que lhe fica a nascente, interpõe-se, em parte, o prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova», propriedade dos Autores.
(Facto provado enunciado sob o número 9 na sentença recorrida)

11 - O prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova», hoje propriedade dos Autores, encontra-se onerado com uma servidão de passagem constituída por usucapião, em benefício do prédio rústico «Monte de São Tiago», propriedade dos Réus (conforme Acórdão do STJ, de 03 de Julho de 2014, que é fls. 252 a 258 dos autos, cujos dizeres aqui se dão por integralmente reproduzidos).
(Facto provado enunciado sob o número 11 na sentença recorrida)

12 - A servidão de passagem que onera o prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova», hoje propriedade dos Autores, sensivelmente a seu meio, com um caminho de passagem para o prédio rústico «Monte de São Tiago», propriedade dos Réus, tem «uma largura não concretamente apurada, mas não inferior a 2 metros, e em cumprimento não concretamente apurado mas não inferior a 3 metros, nem superior a 5 metros, que parte da EM sita a nascente do prédio dos AA. e se desenvolve, a meio deste prédio dos AA., no sentido Nascente/Poente» (conforme Acórdão do STJ, de 03 de Julho de 2014, que é fls. 252 a 258 dos autos, cujos dizeres já se deram por integralmente reproduzidos).
(Facto provado enunciado sob o número 12 na sentença recorrida)

13 - A servidão de passagem referida nos dois factos anteriores tem como finalidade o «transporte esporádico, a pé ou de carro, de matos e lenhas ou madeiras existentes no atual prédio dos RR.» (conforme Acórdão do STJ, de 03 de Julho de 2014, que é fls. 252 a 258 dos autos, cujos dizeres já se deram por integralmente reproduzidos).
(Facto provado enunciado sob o número 13 na sentença recorrida)

14 - Parte do prédio rústico «Monte de São Tiago», propriedade dos Réus, confronta com a estrada municipal (E.M. 535-2) - Rua ….
(Facto provado enunciado sob o número 10 na sentença recorrida)

15 - O prédio rústico «Monte de São Tiago», propriedade dos Réus, confina, na parte mais a norte, com o prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova», hoje propriedade dos Autores, e com a estrada municipal 535-2 (hoje Rua …), que liga … (conforme fotografias que são fls. 127, e fls. 177 a 179, cujos elementos delas constantes aqui se dão por integralmente reproduzidos).
(Facto provado enunciado sob o número 14 na sentença recorrida)

16 - Há cerca de 12 anos, os Réus construíram uma moradia na parte nascente/sul do prédio rústico «Monte de São Tiago», de sua propriedade.
(Facto provado enunciado sob o número 15 na sentença recorrida)

17 - Há cerca de 12 anos, os Réus efectuaram obras de melhoramento no acesso à estrada municipal (E.M. 535-2), situada a norte do seu prédio rústico «Monte de São Tiago» e do prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova», hoje propriedade dos Autores, tendo ainda ali colocado um portão/cancela (conforme fotografias que são fls. 20v a 21v, 127, 177 a 179 dos autos, cujos elementos delas constantes aqui se dão por integralmente reproduzidos).
(Facto provado enunciado sob o número 17 na sentença recorrida)

18 - O acesso directo do prédio rústico «Monte de São Tiago», dos Réus à via pública (identificado nos factos provados enunciados sob os números em 15, 16 e 17) permite o acesso a pé e de tractores ao interior deste mesmo prédio.
(Facto provado enunciado sob o número 17 na sentença recorrida)

19 - Os Réus edificaram uma habitação na parte nascente/sul do «Monte de São Tiago»; e plantaram, nessa parte do seu prédio, árvores de fruto, pés de videiras e plantas ornamentais (conforme fotografias que são fls. 130, 179 e 180 dos autos, cujos elementos se dão aqui por integralmente reproduzidos).
(Facto provado enunciado sob o número 29 na sentença recorrida)

20 - A moradia que os Réus edificaram na parte nascente/sul do seu prédio rústico «Monte de São Tiago», situa-se nas proximidades do caminho de servidão identificado nos factos provados enunciados sob os números em 11, 12 e 13 (conforme fotografias do auto de inspecção ao local que são fls. 177 e seguintes).
(Facto provado enunciado sob o número 18 na sentença recorrida)

21 - A habitação que os Réus construíram no seu prédio rústico «Monte de São Tiago» (identificada no facto provado enunciado sob o número 16), situa-se a cerca de 30 metros do local exacto da passagem ou servidão, cujo acesso se encontra devidamente pavimentado com cimento e cubos de granito (conforme fotografias nºs 8 e 9, que são fls. 179 e 180 dos autos).
(Facto provado enunciado sob o número 27 na sentença recorrida)

22 - Nessa parte nascente/sul do prédio rústico «Monte de São Tiago», dos Réus - que beneficia directamente com a servidão de passagem nos termos supra identificados e fotografados a fls. 177 e seguintes - , existe agora um terreno relvado, sem árvores ou mato, com vinha e plantas ornamentais, e a habitação identificada no facto provado enunciado sob o número 16.
(Facto provado enunciado sob o número 19 na sentença recorrida)

23 - Nessa parte nascente/sul do prédio «Monte de São Tiago», os Réus ergueram ainda centenas de metros quadrados de muros de suporte de terras.
(Facto provado enunciado sob o número 30 na sentença recorrida)

24 - A servidão de passagem identificada nos factos provados enunciados sob os números 11, 12 e 13, permite aos Réus acederem ao seu prédio rústico «Monte de São Tiago», nomeadamente à sua casa de habitação (identificada no facto provado enunciado sob o número 16).
(Facto provado enunciado sob o número 20 na sentença recorrida)

25 - O prédio rústico «Monte de São Tiago», dos Réus, tem uma inclinação na morfologia do seu solo.
(Facto provado enunciado sob o número 21 na sentença recorrida)

26 - Entre a estrada municipal e a cancela/portão identificada no facto provado enunciado sob o número 17 (conforme fotografias que são fls. 20 v a 21v) e a casa de habitação dos Réus (identificada no facto provado enunciado sob o número 16), há uma distância não concretamente apurada, mas de cerca de 150 metros.
(Facto provado enunciado sob o número 22 na sentença recorrida)

27 - Nos primeiros 70 metros da distância entre estrada municipal e a cancela/portão identificada no facto provado enunciado sob o número 17 e a casa de habitação dos Réus, o caminho e respectivo solo tem uma inclinação não concretamente apurada,
(Facto provado enunciado sob o número 23 na sentença recorrida)

28 - Nos restantes metros, após os primeiros 70, entre estrada municipal e a cancela/portão identificada no facto provado enunciado sob o número 17 e a casa de habitação dos Réus, o caminho e respectivo solo tem uma inclinação média não concretamente apurada.
(Facto provado enunciado sob o número 24 na sentença recorrida)

29 - O acesso pela estrada municipal ao prédio rústico «Monte de São Tiago», dos Réus, e o respectivo caminho existente no interior deste mesmo prédio (fotografados a fls. 20v a 21v, 127, e 177 a 179 dos autos), só permite o acesso de um veículo automóvel ligeiro à habitação daqueles após a realização de trabalhos de movimento, compactação e pavimentação de terras, numa distância de cerca de 150 metros.
(Facto provado enunciado sob o número 25 na sentença recorrida)

30 - A entrada e o caminho identificados nos factos provados enunciados sob os números 15, 17, 26, 27, 28 e 29, foram feitos pelos Réus com a finalidade de permitir chegar mais facilmente às partes nascente e norte do «Monte de São Tiago», por forma a conseguirem a melhor exploração deste seu prédio.
(Facto provado enunciado sob o número 26 na sentença recorrida)

31 - O caminho de servidão identificado nos factos provados enunciados sob os números 11, 12 e 13 permite um melhor acesso à parte nascente/sul do prédio «Monte de São Tiago», dos Réus, onde estes edificaram uma habitação.
(Facto provado enunciado sob o número 31 na sentença recorrida)
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3.1.2. Factos não provados
Na mesma decisão do Tribunal de 1ª Instância, foram considerados não provados «os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes, nomeadamente, os seguintes» (identificados por algarismos):

1’ - O prédio rústico «Monte de São Tiago», dos Réus (identificado no facto provado enunciado sob o número 4), tem uma inclinação que ultrapassa os 25%.

2’ - Os trabalhos de pavimentação do caminho existente no interior do prédio rústico «Monte de São Tiago», dos Réus, e que permite o acesso directo deste prédio à via pública, implicavam um gasto de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros, e zero cêntimos).
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3.2. Modificabilidade da decisão de facto - Em geral
3.2.1.1. Poder (oficioso) do Tribunal da Relação
Lê-se no art. 607º, nº 5 do C.P.C. que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no C.C., nos seus art. 389º do C.C. (para a prova pericial), art. 391º do C.C. (para a prova por inspecção) e art. 396º (para a prova testemunhal).
Contudo, a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do nº 5 do art. 607º do C.P.C. citado, com bold apócrifo).

Mais se lê, no art. 662º, nº 1 do C.P.C., que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607º, nº 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371º, nº 1e 376º, nº 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574º, nº 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351º e 393º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).

Lê-se ainda, no nº 2, als. a) e b) do art. 662º citado, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».
«O actual art. 662º representa uma clara evolução [face ao art. 712º do anterior C.P.C.] no sentido que já antes se anunciava. Através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607º, nº 5) ou da aquisição processual (art. 413º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, nº 44, p. 29 e ss.).
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3.2.1.2. Âmbito da sindicância do Tribunal da Relação - Ónus de impugnação
Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recuso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (art. 640º, nº 2, al. a) citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c) do nº 1 do art. 640º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional e processual civil - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais sem indicação de origem).
Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).
«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise critica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, p. 595, com bold apócrifo).

Ainda que com naturais oscilações - nomeadamente, entre a 2ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça - (muito bem sumariadas no Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo nº 6617/07.5TBCSC.L1.S1, e no Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 157/12-8TVGMR.G1.S1) - , vêm sendo firmadas as seguintes orientações:

. os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.04.2014, Abrantes Geraldes, Processo nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1);


. não cumprindo o recorrente os ónus impostos pelo art. 640º, nº 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (nesse sentido, Ac. da RG, de 19.06.2014, Manuel Bargado, Processo nº 1458/10.5TBEPS.G1);

. a cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona aqui, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente, desde logo, a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação
(neste sentido, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo nº 1426/08.7CSNT.L1.S1);

. dever-se-á usar de maior rigor no apreciação cumprimento do ónus previsto no nº 1 do art. 640º (primário ou fundamental, de delimitação do objecto do recuso e de fundamentação concludente do mesmo, mantido inalterado), face ao ónus previsto no seu nº 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1);

. o ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicção com exactidão das passagens da gravação onde se funda o recurso só será idónea a fundamentar a rejeição liminar do mesmo se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (neste sentido, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, Ac. STJ de 22.09.2015, Pinto de Almeida, Processo nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, e Ac. do STJ, de 19.01.2016, Sebastião Póvoas, Processo nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, onde se lê que o ónus em causa estará cumprido desde que o recorrente se reporte à fixação electrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes, de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório);

. cumpre o ónus do art. 640º, nº 2 do C.P.C. quando não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento, como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1); ou quando o recorrente identificou as testemunhas EE, FF e GG, assim como a matéria sobre a qual foram ouvidas, referenciou as datas em que tais depoimentos foram prestados e o CD onde se encontra a respectiva gravação, indicando o seu tempo de duração, e, para além disso, transcreveu e destacou a negrito as passagens da gravação tidas por relevantes e que, em seu entender, relevavam para a alteração do decidido (neste sentido, Ac. do STJ, de 18.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 476/09.oTTVNG.P2.S1);

. a apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo nº 405/09.1TMCBR.C1.S1); nem o faz o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.05.2015, Granja da Fonseca, Processo nº 460/11.4TVLSB.L1.S1);

. servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos desde que constem de forma explícita na motivação do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, Ac. do STJ, de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 03.12.2015, Melo Lima, Processo nº 3217/12.1TTLSB.L1-S1, Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 861/13.3TTVIS.C1.S1, e Ac. do STJ, de 21.04.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 449/10.0TVVFR.P2.S1);

. não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu uma determinada orientação jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 640º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo nº 6617/07.5TBCSC.L1.S1);

. a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1).

De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).
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3.2.1.3. Carácter instrumental da impugnação da decisão de facto
Veio, porém, a jurisprudência precisar ainda que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavra, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10).
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3.2.2.1. Concretizando, e tendo em conta os critérios relativos ao cumprimento do ónus de impugnação previsto no art. 640º do C.P.C., dir-se-á que os Réus (Recorrente) não os cumpriram (conclusão ainda assim distinta de saber se, ainda que o tivesse feito, existiria fundamento para a pretendida alteração dos factos julgados como provados, e outros omissos).
Com efeito, e desde logo, só aparentemente indicaram os concretos pontos de facto que consideraram incorrectamente provados, uma vez que, como eles próprios - expressa e antecipadamente - reconheceram, ao discriminarem um elenco extenso de factos, conclusivamente os afirmaram como pretensamente alegados e impostos por toda a prova produzida.
Ora, compulsado o dito elenco, verifica-se que em parte alguma do mesmo os Réus precisaram em que articulado, e em que artigo respectivo, foi cada um daqueles factos alegados, sendo certo que só a verificação desta condição (prévia alegação nos autos) permitiria que o Tribunal a quo, e agora este Tribunal da Relação, os pudesse considerar (art. 5º do C.P.C.).
Verifica-se ainda que muitos daqueles factos pretendidos aditar nunca foram sequer alegados por si, não sendo porém justificada a sua eventual natureza de factos instrumentais, ou de facto complementares ou concretizadores de outros essenciais oportunamente alegados, bem como afirmado que resultaram da discussão da causa (com indicção do concreto meio de prova que os revelou), nem tendo ainda sido antecipadamente anunciado às partes, pelo Tribunal a quo, de que pretenderia vir a servir-se dos mesmos, dando-lhes a oportunidade de sobre eles se pronunciarem.
Por outras palavras, quando no art. 640º, nº 1, al. a) do C.P.C. se exige que o impugnante da decisão sobre a matéria de facto indique «os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados», pretende-se que o faça por remissão para o elenco de factos estabelecidos - como provados, ou como não provados - na sentença recorrida, ou por remissão para os factos oportunamente alegados e ali indevidamente desconsiderados, ou para os factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respectiva natureza.
Não o tendo os Réus feito, não cumpriram o ónus de impugnação que lhes estava cometido, de forma aqui inultrapassável (ao contrário do que se entende suceder com a mera falta de indicação das passagens concretas das gravações onde fundaram o seu recurso sobre a decisão de facto, já que identificaram as testemunhas por si eleitas para esse feito, e transcreveram a parte dos respectivos depoimentos tidas por relevantes, o que a maior flexibilidade de critérios do STJ permitea considerar como cumprimento do dito ónus).

Logo, e por falta de cumprimento do ónus de impugnação previsto no art. 640º, nº 1, al. a) do C.P.C., deverá ser rejeitado o conhecimento do recurso relativo à decisão sobre a matéria de facto, apresentado pelos Réus.
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3.2.2.2. Acresce que, ainda que assim se não entendesse, face ao concreto e taxativo título de constituição da servidão de passagem em causa nos autos - que delimita necessariamente a sua extensão e exercício - , à concreta alegação inicial dos Réus, e à falta de impugnação dos factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 14, 16, 17, 19 e 29 (cuja eliminação daquele elenco não foi por eles peticionada), o conhecimento do seu recurso de impugnação da decisão de facto é inútil para a decisão da causa.
Por outras palavras, os factos já tidos como provados na sentença recorrida, e cuja eliminação da mesma os Réus não peticionaram (limitando-se a reclamar o aditamento de outros, e a consideração dos que ali foram dados como não provados), é suficiente, face ao direito aplicável, para aqui se reiterar o juízo de mérito proferido pelo Tribunal a quo (conforme melhor se demonstrará infra).
Precisando-o perfunctoriamente, e salvo o devido respeito por opinião contrária, a matéria pretendida aditar pelos Réus prende-se, grosso modo, com a demonstração de que a servidão de passagem em causa continua a revestir-se de utilidade para si (aliás, de redobrada utilidade), face nomeadamente à construção entretanto ocorrida da sua habitação, cujo acesso por veículos automóveis só aquela assegura, sendo o prejuízo resultante para os Autores da manutenção da dita servidão manifestamente inferior ao prejuízo que para eles próprios resultaria da sua extinção (feito coincidir com o elevado custo das obras que necessariamente teriam que realizar no seu prédio, para obterem idêntico resultado).
Contudo, a afirmação da desnecessidade actual da dita servidão, invocada pelos Autores, tem que ser aferida - e só pode ser aferida - face à respectiva natureza e finalidade, por onde se delimita a sua extensão e o seu exercício; e os mesmos não se definem, nem contendem, com os novos factos pretendidos aditar pelos Réus.

Logo, e por falta de utilidade para a decisão de mérito a proferir, deverá ser rejeitado o conhecimento do recurso relativo à decisão sobre a matéria de facto, apresentado pelos Réus.

Pelo exposto, e mercê quer da falta de cumprimento do ónus de impugnação previsto no art. 640º, nº 1, al. a) do C.P.C, quer por falta de utilidade para a apreciação do mérito da causa, rejeita-se o conhecimento do recurso relativo à decisão sobre a matéria e facto, apresentado pelos Réus.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Servidão de passagem
4.1.1.1. Definição
Lê-se no art. 1543º do C.C. que servidão predial «é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente», dizendo-se «serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia».
Mais se lê, no art. 1544º seguinte, que podem «ser objecto de servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor».
Logo, compreende-se que se afirme que são «quatro as notas destacadas neste conceito legal: a) a servidão é um encargo; b) o encargo recai sobre um prédio; c) e aproveita exclusivamente a outro prédio; d) devendo os prédios pertencer a donos diferentes».
Precisando, trata-se «de um encargo que recai sobre o prédio, de um encargo imposto num prédio, de uma restrição ao gozo efectivo do dono do prédio, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão».
Incidindo «em princípio sobre o prédio, considerado como um todo», haverá «muitas vezes que distinguir ente o objecto da servidão, que é o prédio, e o local do exercício dela, que pode ser uma parte limitada do prédio. Sempre que se verifique esta última hipótese, para certos efeitos (vide, por ex., o art. 1546º e o nº 4 do art. 1567º) tudo se passa como se a servidão incidisse apenas sobe a parte do prédio sujeita ao seu exercício» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 613 a 615, com bold apócrifo).
Logo, a servidão predial constitui uma restrição ou limitação do direito de propriedade do dono do prédio onerado, ao gozo efectivo do mesmo, que assim fica inibido de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão. Esta consiste num retirar de utilidade do prédio serviente, de uma vantagem, que pode ou não aumentar o valor do prédio dominante, mas que o torna mais aprazível, mais cómodo ou mais ameno. De todo o modo, a utilidade derivada da servidão sempre terá de ser proporcionada e gozada através dos prédios serviente e dominante, traduzindo um ónus e um poder directo e imediato sobre eles, o que explica o princípio da inseparabilidade das servidões (art. 1545º do C.C.).
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4.1.1.2. Constituição
As servidões prediais, e no que ora nos interessa, podem constituir-se por usucapião, com exclusão das não aparentes, isto é, das que não se revelem por sinais visíveis e permanentes (arts. 1547º, nº 1, 1548º, nº 1 e nº 2 e 1293º, al. a), todos do C.C.).
Não basta, porém, que a servidão se revele por obras ou sinais exteriores, sendo ainda necessário que os mesmos sejam permanentes, embora não exactamente os mesmos, isto é, os sinais iniciais possam ser substituídos por outros diferentes ou transformados. Visa-se, assim, distinguir as servidões dos actos de mera tolerância, de condescendência ou obsequiosidade passageira ou acidental, reconhecendo-se outrossim que a atitude passiva do proprietário pode ser devida apenas à ignorância da prática dos actos constitutivos da servidão, face à ausência de sinais que a revelem (neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 629).
Sendo a servidão aparente, a sua aquisição por usucapião dar-se-á nos termos dos arts. 1287º e seguintes do C.C., isto é, nas condições de posse e nos prazos em que, segundo estas, a usucapião tem lugar para a aquisição de propriedade ou de qualquer outro direito real de gozo.
Assim, quando alguém actue por forma correspondente ao exercício da titularidade de uma servidão sobre um prédio de outrem, nomeadamente através da prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes a esse exercício, e o faça durante certo tempo, existindo um rasto visível e permanente dessa actuação, poderá vir a tornar-se titular da pretendida servidão, por usucapião (arts. 1287º e 1263º, al. a), ambos do C.C.).
Contudo, o lapso de tempo necessário para esse efeito depende das características da posse que é exercida, isto é, se é titulada ou não titulada, de boa ou má fé, pacífica ou violente, e pública ou oculta (arts. 1258º a 1262º, e 1294º a 1297º, todos do C.C.).
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4.1.1.3. Exercício
Lê-se no art. 1564º do C.C. que as «servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título».
Enuncia-se aqui o princípio da conformação da servidão com o respectivo título constitutivo, independentemente da natureza deste, que operará a definição dos direitos e deveres que resultam da constituição daquela, quer para o proprietário do prédio dominante, quer para terceiros, entre os quais se destaca o proprietário do prédio serviente.
A referência feita no art. 1564º citado à «extensão» da servidão, e não apenas ao seu «exercício», não deixa «margem a quaisquer dúvidas quanto à relevância do título naqueles casos em que, ao lado dos aspectos qualitativos que definem a fisionomia ou a natureza do encargo (servidão de águas, servidão e vistas, etc.), há aspectos quantitativos que interessam à concretização prática do direito e a definição dos seus limites (número de janelas do prédio dominante; quantidade de água abrangida pelo aproveitamento, etc.)» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 662-3, com bold apócrifo).
Entende-se, porém, que o «direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação» (art. 1565º, nº 1 do C.C.), reafirmando-se assim a regra de que sempre que a lei reconhece ou atribui um direito, do mesmo passo legitima os meios indispensáveis para o seu exercício.
Já em «caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente» (nº 2 do art. 1565º do C.C.).
«Referindo concretamente as necessidades normais e previsíveis, a disposição sacrifica as necessidades anormais ou que sejam imprevistamente. Assim, se tiver sido constituída uma servidão de passagem para uma casa de habitação, não poderá considerar-se obrigatória a concessão de passagem aos empregados da fábrica, aos clientes da pensão ou aos alunos da escola, que posteriormente venha a ser instalada no edifício» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 664-5, com bold apócrifo).
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4.1.2. Concretizando, e tal como resulta da sentença recorrida, verifica-se que, sendo os Autores proprietários do prédio rústico «Bouça das Leiras da Poça Nova», e os Réus proprietários do prédio rústico «Monte de São Tiago», e sendo ambos parcialmente confinantes, aquele primeiro encontra-se onerado com uma servidão de passagem, constituída por usucapião, em benefício do segundo.
Com efeito, e nos termos do art. 1550º, nº 1 do C.C., os «proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos».
Ora, e mercê de acção intentada em juízo precisamente com esse propósito (Acção Sumária nº 129/2001.TBAMR, que correu termos pela Secção Única do então Tribunal Judicial de Amares, conforme sentença cuja certidão é fls. 219 a 238 destes autos), foi o que sucedeu entre as partes, vindo a ser proferida decisão em que: se considerou como provado que, para acederem do seu prédio à via pública, «os Réus passavam, uma vez por outra, pelo prédio» dos Autores, por «uma faixa de terreno, em terra, com largura não concretamente apurada mas não inferior a 2 metros e comprimento não concretamente apurado mas não inferior a 3 metros e não superior a 5 metros», sendo que «tal caminho destinava-se ao transporte, esporádico, de matos, lenhas ou madeira» (factos provados enunciados sob as alíneas G), H) e L) ) ; e se condenou os ali - e aqui - Réus «a que se limitem à passagem pelo prédio dos Autores, a pé, carro de bois ou tractor, para transporte de madeiras, lenhas ou matos, por uma faixa com a largura de 2 metros».
A sentença assim proferida em 1ª Instância viria depois a ser integralmente confirmada por Acórdão da 2ª Secção Cível ´ do Tribunal da Relação de Guimarães (cuja certidão é fls. 239 a 251 destes autos), sem prejuízo de no mesmo já se denunciar que «as dimensões da passagem [onerada com a servidão em causa] permitiram satisfazer as necessidades de acesso ao prédio enquanto se manteve inalterado o uso do terreno, sendo óbvio quer as necessidades a satisfazer passaram a ser outras com a construção ali da casa de habitação, como se alcança da comparação entre as fotografias de fls. 529 e 530».
Do mesmo modo viria ainda a decidir o STJ, no recurso de revista para ele interposto (conforme certidão que é fls. 252 a 258 dos autos).
Logo, resulta de forma inequívoca do título constitutivo respectivo, que a servidão predial em casa: é de passagem; limita-se a possibilitar o aproveitamento para fins agrícolas do prédio rústico dos Réus, nomeadamente o transporte de madeiras, lenhas ou matos; onera apenas uma faixa com a largura de 2 metros; e apenas possibilita o trânsito por ela a pé, em carro de bois, ou em tractor.
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4.2. Extinção de servidão de passagem - Desnecessidade
4.2.1. Lê-se no art. 1569º, nº 2 do C.C. que as «servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante».
Considerou-se que, sendo as mesmas impostas por factos, «uma vez desaparecidos, ou ultrapassados a latere, os factos que lhes deram origem, nenhuma reserva se levanta contra a extinção da servidão» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 676).
Exige-se, porém, para o efeito, não só o requerimento do proprietário do prédio serviente, como uma decisão judicial.
Quanto à desnecessidade propriamente dita, a perda da utilidade para o prédio dominante «não se afere e função da conveniência ou vontade do titular da servidão, mas objectivamente em função das necessidades do prédio dominante. A desnecessidade liga-se, assim, directamente, ao tipo legal do direito de servidão.
Justamente por que o tipo legal do direito de servidão supõe a necessidade para a válida constituição do mesmo, sob pena de violação da tipicidade, a desnecessidade é sempre superveniente» (José Alberto Vieira, Direitos Reais, Almedina, Fevereiro de 2016, p. 739-740. No mesmo sentido, José de Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, 4ª edição refundida, Coimbra Editora, Limitada, 1983, p. 440).
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4.2.2. Concretizando, verifica-se que, há cerca de doze anos: os Réus construíram uma moradia na parte nascente/sul do seu prédio; na mesma ocasião efectuaram obras de melhoramento no acesso do mesmo à Estrada Municipal 535-2, situada a norte do seu prédio, colocando mesmo um portão/cancela; fizeram-no por forma a acederem mais facilmente à parte nascente e norte do seu prédio, procurando melhorar a sua exploração; e este acesso directo à via pública permite o trânsito a pé e de tractores.
Logo, uma primeira conclusão se torna desde já possível: a partir daquela data, os Réus passaram a deter um acesso directo à via pública, que lhes assegura as mesmas finalidades que a servidão de passagem em causa nos autos, isto é, a entrada no seu prédio a partir da Estrada Municipal 535-2, a pé ou de tractor (e, necessariamente, também de anacrónico carro de bois), por forma a, querendo, procederem ao transporte de madeira, lenha e mato.
Verifica-se ainda que, no terreno adjacente à sua moradia, localizada a cerca de trinta metros da servidão de passagem em causa, onde antes havia árvores e mato, existe agora um terreno relvado, vinha e plantas ornamentais.
Logo, uma segunda conclusão se torna igualmente possível: os Réus deixaram de proceder à exploração silvícola na área mais adjacente à moradia que construíram no seu prédio rústico, sem prejuízo da mesma se poder manter na demais extensão do mesmo.
Considera-se, assim, que a servidão de passagem antes constituída por usucapião, onerante do prédio dos Autores em benefício do prédio dos Réus, se extinguiu por objectiva desnecessidade, atento o concreto título constitutivo a que aqui importa atender.
Reitera-se que, reportando-se o mesmo a um exclusivo aproveitamento agrícola/silvícola de um prédio rústico (transporte de madeira, lenha e mato), por meio do acesso ao prédio dominante por uma reduzida faixa de terreno de dois metros do prédio serviente, e para um limitado trânsito a pé, em carro de bois ou em tractor, o dito aproveitamento - em tais condições - se mostra neste momento assegurado por um outro acesso à via pública.
Acresce que, face aos seus expressos finalidade e limites, o título constitutivo em causa não permite a convolação da respectiva servidão de passagem numa outra, quer possibilite o mais fácil acesso à casa de habitação entretanto construída pelos Réus, e ao terreno relvado confinante, não obstante se reconheça - sem qualquer dificuldade e mesmo enfaticamente ! - que seria aqui que radicaria a actual maior utilidade da servidão de passagem em causa.
Dito por outras palavras, os Réus mantêm, ou viram mesmo reforçado, o interesse na manutenção da servidão de passagem em causa nos autos, desde que construíram a sua moradia no respectivo pedido: é aquela, e não o outro acesso que possuem à via pública, que lhes permite aceder de forma mais rápida e cómoda à sua casa (já que o fazem por uma distância mais curta, e utilizando para o efeito um veículo automóvel ligeiro, não permitido naquele outro local).
Contudo, dir-se-á que: não existe qualquer dúvida na definição, pelo título constitutivo da servidão de passagem em causa, dos respectivos extensão e exercício, nos quais não se contém o permitir o acesso a uma moradia, ou a um terreno desprovido de aproveitamento agrícola/silvícola de transporte de madeira, lenha e mato; e a mudança de afectação de parte de um prédio rústico, para uso habitacional, não consubstancia a satisfação de necessidade normal e previsível daquele primeiro, exclusivamente afecta à sua exploração agrícola/silvícola.
A aceitar-se um tal entendimento, estar-se-ia a desrespeitar a ponderação ínsita no instituo em causa e a respectiva e conforme regulação, que pressupõe sempre o carácter excepcional das limitações impostas ao direito de propriedade, e a correspondente taxatividade das restrições tidas por admissíveis (art. 1305º do C.C.).
Compreende-se, assim, que, em hipótese idêntica à destes autos, se tenha decidido que o encargo consubstanciado numa servidão de passagem, «enquanto excepção, deve conter-se nos seus precisos limites e a actualização do seu conteúdo não pode traduzir-se num extravasamento do fim para que foi constituída», sendo «manifesto que uma servidão para fins agrícolas é substancialmente menos gravosa da que respeita à passagem de veículos automóveis para habitação, desde logo pela frequência de uso em que uma e outra se traduz»
Ora, não sendo «o trânsito automóvel (…) uma actualização dos veículos facultada pelo direito de servidão, como acontece na situação do carro de bois e do tractor, antes se configurando, realmente, como uma extensão do direito para veículos cuja finalidade é diversa - o transporte de passageiros» (Ac. da RG, de 19.01.2012, Raquel Rego, Processo nº 1053/07.6TBPTL.G1), verifica-se uma efectiva desnecessidade da servidão de passagem antes constituída para fins agrícolas, com utilização de tais meios, quando o seu propósito passa a ser o possibilitar o acesso a uma habitação, e por meio de veículo automóvel ligeiro.
O juízo exposto - de extinção a servidão «por desnecessidade», face a novo «acesso (…) bastante para satisfazer as necessidades normais e previsíveis daquele prédio» - mantém ainda que o dito novo acesso «seja mais extenso ou menos cómodo que o da servidão», desde que não exista uma desproporcionalidade, ou maior onerosidade, gritantes (Ac. da RG, de 15.02.2007, Gouveia Barros, Processo nº 2486/06-2).
No caso dos autos, essa maior e tida por inadmissível onerosidade foi alegada pelos Réus, não relativamente ao aproveitamento agrícola do seu prédio, mais sim relativamente ao acesso à sua habitação; e foi-o ainda, não relativamente ao acesso a pé, em carro de bois ou em tractor, mas sim relativamente à utilização de veículos automóveis ligeiros e pesados, máquinas agrícolas e de exploração florestal, e ambulâncias e carros de bombeiros.
Contudo, e tal como referido antes, qualquer uma destas pretensões encontra-se excluída, ab initio, do título constitutivo da servidão, sem qualquer dúvida (sendo que, ainda que fosse outro o juízo deste Tribunal da Relação, também não poderiam qualificar-se como necessidade normais e previsíveis da inicial servidão de passagem).
O exposto não obstará, naturalmente, que mantendo-se os Réus convictos dos direitos que lhes assistam, instaurem uma nova acção para os verem reconhecidos, porque de novo direito se trata (acesso à sua casa de habitação, sem excessivo incómodo ou dispêndio), e não de devida manutenção de direito anterior (aproveitamento agrícola/silvícola de prédio rústico, por meio de passagem por faixa de terreno com dois metros, para transporte de madeira, lenha e mato, com trânsito a pé, em carro de bois ou em tractor), agora extinto.

Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total improcedência do recurso de apelação interposto pelos Réus, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
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V - DECISÃO
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por D. e E., e, em consequência, em confirmar integralmente a sentença recorrida.
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Custas da apelação pelos respectivos Recorrentes (artigo 527º, nº 1 do CPC).
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Guimarães, 15 de Dezembro de 2016.


(Relatora) (Maria João Marques Pinto de Matos)
(1ª Adjunta) (Elisabete de Jesus Santos de Oliveira Valente)
(2º Adjunto) (Heitor Pereira Carvalho Gonçalves)

SUMÁRIO
(da responsabilidade da Relatora - art. 663º, n 7 do C.P.C.)

I. Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstância próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).

II. A desnecessidade de uma servidão de passagem antes constituída por usucapião afere-se necessariamente pelo respectivo título constitutivo, isto é, terá que ter deixado de existir no prédio dominante a concreta situação de facto que justificara aquela constituição, sendo irrelevante para este efeito a existência de outras e diferentes utilidades que a dita servidão de passagem hoje proporcione (arts. 1564º e 1569º,nº 2, ambos do C.C.).

III. Tendo sido constituída uma servidão de passagem sobre uma faixa de terreno com a largura de dois metros, por forma a permitir o trânsito sobre ela a pé, em carro de bois ou em tractor, para transporte de madeira, lenha ou mato, e passando o prédio dominante a beneficiar de um outro acesso à via pública, que assegura as mesmas finalidades em idênticas condições, deverá ser declarada extinta a anterior servidão de passagem (independentemente do proprietário do prédio dominante pretender continuar a usufruir dela, para aceder à habitação que entretanto ali construi, por só ela possibilitar o trânsito em veículo automóvel, e o acesso assim garantido ser mais curto).
(Maria João Marques Pinto de Matos)