Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1744/16.0JAPRT.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
FRIEZA DE ÂNIMO
MOTIVO TORPE
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do nº 3 do citado art. 412º do CPP, o qual, no que se refere à especificação das “concretas provas”, só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova (ou de obtenção de prova) e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida.
II - Sendo certo que neste tipo de recurso (impugnação ampla da matéria de facto) o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
III - Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
IV - De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, mas essa faculdade não comporta apreciação arbitrária, não motivável nem objectivável, assente em meras impressões subjectivas incontroláveis ou em explanações ou inferências que não encontram qualquer suporte nos meios de prova produzidos, antes tem, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos.
V – E, neste âmbito, o princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida: perante a persistência de uma dúvida razoável, exige-se uma pronúncia favorável ao arguido sobre os factos relevantes para a solução da causa.
VI - Sendo o dolo um elemento da vida interior – ou, dito de outro modo, um facto do foro psicológico – do agente, por isso, impossível de apreender directamente e indemonstrável de forma naturalística, o tribunal pode considerá-lo provado por o deduzir ou inferir, fazendo uso das regras da experiência comum, de dados que, com muita probabilidade, o revelem, ou seja, de outros factos que com ele normalmente se ligam.
VII - No C. Penal português a qualificação do homicídio é feita no artigo 132º segundo a técnica dos exemplos-padrão, configurando-se no nº 1 a tipicidade da qualificativa e no nº 2 a indicação, meramente exemplificativa, de alguns índices que poderão revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que o tipo se refere. Por especialmente censuráveis deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores; e por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, o que pode reconduzir-se à atitude má, de crasso e primitivo egoísmo do agente.
VIII - No entanto, torna-se necessário que a conduta do agente, em concreto, revele uma especial censurabilidade ou perversidade que justifique, pela referida actuação, a maior severidade da punição devida. E, subjectivamente, esse juízo especial só é sustentável se o elemento subjectivo, o dolo, também abranger essa condição reveladora da especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, se o agente actuar com consciência e vontade de que a sua conduta lesa a vida de uma pessoa que se encontre numa condição de especial vulnerabilidade.
IX - Motivo “torpe” ou “fútil” significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, fundado num profundo desprezo do valor da vida humana, que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta, sendo frívolo e revelador da desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objectivou.
X - A circunstância qualificativa “frieza de ânimo” está relacionada com o processo de formação da vontade de planear e persistir na execução da morte, implicando a reflexão e um amadurecimento temporal sobre os meios e o modo de realizar o crime e, por isso, uma actuação insensível – com indiferença pela vida humana –, com a escolha e o estudo ponderados, calmos e imperturbavelmente reflectidos dos meios que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam acentuadamente as possibilidades de defesa da vítima.
XI - No caso dos autos, a acção do arguido foi desencadeada na sequência de o próprio ofendido não se ter coibido de investir na sua direcção, empunhando um objecto (cajado de 1,51m) apto a agredi-lo, quando se encontravam de relações cortadas por motivos relacionados com as extremas de um terreno, sentindo o arguido receio do mesmo, sendo o descrito comportamento da vítima, objectivamente, provocatório, desafiante e ofensivo, o que não obsta ao reconhecimento de que o resultado da reacção do arguido – a eliminação do bem mais precioso (a vida de uma outra pessoa) – foi, manifestamente, desproporcional e intensamente censurável.
XII - Todavia, essa desproporcionalidade deve ser avaliada dum ponto de vista ético-cultural e à luz de padrões comuns do meio em que o crime ocorreu: uma pequena aldeia de uma recôndita zona transmontana.
XIII - Ora, nesse enquadramento, numa comunidade rural em que a terra tem, além do valor patrimonial, uma valor simbólico primordial e é fonte de conflitos e paixões violentas, as divergências relacionadas com questões de propriedade e demarcação de terrenos não revelam um “egoísmo mesquinho e insignificante” do arguido, cujo comportamento, sob esse prisma, não pode ser reputado de fútil, no conceito exposto em IX, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida.
XIV - E o apurado estado emocional do arguido, que se sentiu amedrontado e receoso perante a vítima – apenas disparou quando esta, com uma atitude provocatória e desafiadora, estava já muito próxima de si –, também não permite concluir que o mesmo haja agido com frieza de ânimo, que tenha reflectido, ponderada e calmamente, sobre o meio empregue para matar o ofendido, nos termos que pressuporia o preenchimento da circunstância qualificativa prevista na al. al. j) do nº 2 do artigo 132, com o conceito exposto em X.
XV - Por outro lado, não se verificam os pressupostos da legítima defesa, invocada como causa de exclusão da ilicitude, porquanto, sendo certo que, como se viu, a acção do arguido foi desencadeada na sequência do analisado comportamento provocatório, desafiante e ofensivo da vítima, não pode afirmar-se que na matéria de facto provada se revele um comportamento humano que configure uma ofensa a direitos ou interesses juridicamente tutelados do arguido recorrente a que se adequasse e proporcionasse a conduta deste: no caso vertente, procedendo a uma avaliação objectiva da dinâmica do evento, não se retira de tais factos que o disparo do arguido sobre o ofendido, ainda que efectuado enquanto durava o mencionado comportamento provocatório deste, fosse o meio racionalmente necessário e idóneo a deter uma agressão e o menos gravoso para o potencial autor desta, ponderando, particularmente, a possibilidade ao dispor do arguido de, para evitar a possível agressão, dirigir o disparo para uma zona não letal do corpo do alvejado, mesmo sem desconsiderar o receio que tinha da vítima.
XVI – Sendo muito exacerbada a gravidade objectiva da conduta do arguido, já que atingiu, com dolo directo, o valor humano supremo, cuja violação suscita forte reprovação social, par de intranquilidade e insegurança, pese embora devam ser atendidas na fixação concreta da medida da pena as circunstâncias que envolveram a prática do crime e que foram sendo ponderadas, as mesmas não têm suficiente relevo para que se repute como sendo diminuída, de forma acentuada, quer a culpa do arguido, quer as exigências de prevenção e, consequentemente, a necessidade da pena, não estando, pois, preenchidos os requisitos para a sua atenuação especial.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo comum colectivo nº 1744/16.0JAPRT da Instância Central, Cível e Criminal, da Comarca de Bragança, o arguido António foi condenado, por acórdão proferido em 10/02/2017 e depositado na mesma data, como autor de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e j), agravado pela utilização de arma de fogo, nos termos do disposto no artigo 86, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (com referência à alínea c) do nº 1 do mesmo preceito legal e aos artigos 2º, nº 1, alíneas p) e s) e 3, nº 6, alínea c) do mesmo diploma legal) na pena de 18 (dezoito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Foi ainda o arguido condenado:
- a pagar às demandantes civis G. Miranda, Cecília e Hermínia, a título de compensação pela perda do direito à vida a quantia de € 55.000 (cinquenta e cinco mil euros), acrescida de juros à taxa legal em vigor sobre o capital em dívida, contabilizados desde a data da decisão até integral e efectivo pagamento;
- a pagar a cada uma das demandantes civis, G. Miranda, Cecília e Hermínia, a título de compensação pelos danos não patrimoniais próprios, a quantia de € 20.000 (vinte mil euros), acrescida de juros à taxa legal em vigor sobre o capital em dívida, contabilizados desde a data da decisão até integral e efectivo pagamento;
- a pagar à demandante civil G. Miranda, a título de indemnização pela dano patrimonial futuro, a quantia de € 47.000 (quarenta e sete mil euros), acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, sobre o capital em dívida, contabilizados desde a data da notificação a que alude o art. 78º do Código de Processo Penal até integral e efectivo pagamento.

Inconformado, o arguido interpôs recurso dessa decisão, formulando na sua motivação as conclusões a seguir enunciadas:
«Primeira - Relativamente aos factos descritos na Douta Acusação Pública e no Douto Acórdão, não existem testemunhas oculares, e toda a factualidade foi dada como provada e não provada foi fruto das declarações do arguido, como o é referido de forma reiterada no Douto Acórdão “...a convicção dos Julgadores estribou-se, mais uma vez, nas declarações do próprio.”
Segunda - Deste modo, não se compreende, nem como, nem o porquê, de terem sido dados como provados os factos constantes nos pontos 5, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 19, 20, 21, do Douto Acórdão, pois em momento algum foi feita prova em audiência de julgamento sobre tais factos,
Terceira- Nem arguido, nem qualquer testemunha alguma vez afirmaram os factos da maneira que vêem descritos nos pontos 5, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 19, 20, 21, do Douto Acórdão. E, por isso, se estranha o facto de “...a convicção dos Julgadores...” se tenha estribado apenas em algumas declarações do arguido, e não em todas.
Quarta - Foi o arguido/recorrente que voluntariamente quis prestar declarações, esclarecendo os factos exaustivamente e pormenorizadamente, e em momento algum foi detectada/provada em audiência de julgamento qualquer incongruência ou inverdade mantendo sempre a mesma versão de início ao fim, versão na qual o Tribunal “estribou” “a sua convicção”.
Quinta - Assim, o arguido/recorrente não concebe que apenas algumas das suas declarações tenham sido dado como provadas e não outras.
Sexta - Como foi referido, em audiência de julgamento, nunca foi intenção do arguido/recorrente matar a vítima, pois se fosse essa a sua vontade não teria municiado a arma com chumbo n° 6, de caça à perdiz, ou coelho, antes com bala, meio que seria idóneo para praticar o crime e que saberia ser letal.
Sétima - Para além de não se ter feito prova que o arguido tinha a intenção de tirar a vida à vítima, também não foi provado em audiência e discussão de julgamento que o arguido tinha agido contra pessoa indefesa! antes que, e como provado em audiência e discussão de julgamento, bem como pela prova documental, a fls 33 dos autos, que a vitima se encontrava armada com um cajado, e que o mesmo tentou utiliza-lo para atacar o arguido.
Oitava - O arguido/recorrente, sempre com a mesma versão, e sem contradições, sempre colaborando com a justiça, sempre afirmou que não era sua intenção matar a vítima, e muito menos por limites/confrontações de terrenos, versão corroborada pelo irmão da vítima, em audiência e discussão de julgamento.
Nona - O arguido/recorrente referiu que nunca foi sua intenção e que nunca apontou a arma conscientemente, muitos menos pensou em atingir órgãos vitais, contrariando a matéria de facto provada nos pontos 11 e 12, e assim, terá que resultar provado que o arguido/recorrente não apontou deliberadamente e intencionalmente qualquer arma à vítima.
Décima - Ora, face à prova produzida em audiência de julgamento resulta claro, que o arguido saiu da viatura, e ficou junto da mesma, a uma distância de cerca de 7 metros e nunca apontou o que quer que seja à vítima deliberadamente.
Décima-Primeira - Resulta provado que a vítima ameaçou o arguido/recorrente referindo a expressão “pois sou e fodo-te”, mantendo-se o arguido junto à viatura, e quem se dirigiu com velocidade com intenção de atacar foi a vítima e não o arguido!
Décima- Segunda - Mais, tal relatório pericial de medicina legal comprova que a vítima investiu sobre o arguido, e da forma descrita. Da forma, que os factos vêm provados, é materialmente impossível as lesões sofridas pela vítima terem sido “ligeiramente de cima para baixo”, já que o arguido encontrava-se em local ligeiramente mais baixo que a vitima.
Décima-Terceira - Uma munição chumbo n° 6 não serve para causar estragos a nada maior que uma perdiz ou coelho, quanto mais uma pessoa. E muito menos o arguido tinha a consciência que o meio utilizado era idóneo e muito menos letal.
Décima-Quarta - O arguido/recorrente não tinha intenção de matar a vítima, caso contrário teria carregado a arma com mais do que uma munição, nomeadamente balas.
Décima-Quinta - Claramente, o objectivo foi mostrar à vítima, após as ameaças que recebera a sua família, que tinha com que se defender. Se o quisesse matar, não teria perguntado coisa alguma e disparava do interior do seu carro, como aliás referiu em audiência de julgamento.
Décima-Sexta - Face ao exposto anteriormente, não pode o arguido concordar com a qualificação jurídica, nem com a pena aplicada. A culpa agravada é necessariamente incompatível com a ausência de intenção e premeditação do agente na prática do crime, frieza de ânimo com reflexão sobre os meios empregados, bem como a ausência de motivo fútil.
Décima- Sétima - Ao recorrerem à intenção e premeditação do agente na prática do crime, frieza de ânimo com reflexão sobre os meios empregados, bem como de motivo fútil para integrarem os factos provados no crime do art. 131.°, as instâncias moveram-se no plano da subsunção típica, não no da valoração das atenuantes, no caso, ter o agente actuado sob influencia de ameaça grave, para efeitos da medida da pena.
Décima-Oitava - Esse plano, o da determinação da medida concreta da pena, é o que se abre depois de a subsunção dos factos estar definida. E nele devem ser tidas em conta todas as circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a determinação da pena. O crime de homicídio compreende dois elementos essenciais: o elemento material consiste num acto positivo de natureza a dar a morte a outrem; o elemento intencional traduz-se na intenção de matar, no “animus necandi” e em momento algum ficou provado em audiência de julgamento a intenção do arguido em matar, frieza de ânimo com reflexão sobre os meios empregados ou um qualquer motivo fútil.
Vigésima - Não estão preenchidos os requisitos essenciais do art.°132 ai. e) e j) do C.P., desse modo, com o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo na determinação da qualificação jurídica do crime. O crime praticado pelo arguido preenche unicamente o crime tipificado no art.° 131º do C.P.
Vigésima-Primeira - O arguido/recorrente actuou sob influência de ameaça grave, e deve, pois, na determinação da pena, entrar, conjuntamente com todas as demais circunstâncias, na ponderação global a que se refere o n° 2 do art. 71.° do CP, ou inclusivamente na avaliação do circunstancialismo que fundamenta a atenuação especial da pena, nos termos do art.° 72.° do CP.
Vigésima- Segunda- Quanto à atenuação especial da pena, ela tem de recolher fundamento em circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude ou a culpa (cf. art. 72.°, n.° 1, do CP), e quanto ao recorrente, provou-se o facto de ser primário, a confissão, a cooperação total com a justiça para a descoberta da verdade, legitima defesa, ou seja, ter actuado sob influencia de ameaça grave e a factualidade descrita. Circunstâncias atenuam, em alguma medida, a culpa.
Vigésima-Terceira - O arguido actuou em legitima defesa, e mesma é causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 32.° do CP, não abdicando de um especial circunstancialismo factual e de um elenco de pressupostos ao nível do direito.
Vigésima-Quarta - A legítima defesa pressupõe que o facto é praticado como meio necessário para repelir a agressão ilícita ou antijurídica, enquanto ameaça de lesão de interesses ou valores; não pré-ordenada, ou seja, com o fito de, sob o manto da tutela do direito, obter a exclusão da ilicitude de facto integrante de crime; actual e necessária, ou seja, quando o agente, nas circunstâncias do caso, se limite a usar o meio de defesa, o que de facto sucedeu na presente factualidade.
Vigésima-Quinta - Essencial à legítima defesa é o animus defendendi, a intenção de, pelo contra-ataque, se suspender uma agressão ilegítima actual. Essa intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem. No caso, a acção pretendida, não era a realização da morte, mas sim, o afastamento e definitiva persuasão. Nunca o arguido/recorrente admitiu que o resultado fosse a morte.
Vigésima- Sexta- Sempre se entendeu e pretendeu afastar o perigo, repelir qualquer acção, pese embora exagerasse no modus operandi de legítima defesa, ao que legalmente se considera excesso de legítima defesa, como esperamos que Vossas Excelências Senhores Venerandos Conselheiros doutamente acolherão, ex vi o disposto no n.° 1 do artigo 33.° do C.P. e art.° 72 do C.P.
Vigésima-Sétima - Mas, como dispõe o n.°1 do art.° 33.°, a pena pode ser especialmente atenuada, desde que, obviamente, haja uma fundamentação consistente da situação objectiva de defesa, e a reacção, embora em excesso e desproporção, não seja manifestamente afastada de toda a carga própria das interacções de acção-reacção entre o ataque a um bem e as circunstâncias em que decorre. Os factos provados, a especificidade do lugar e do espaço, os antecedentes, a reacção e a verificação das intenções da vítima, que dão consistência às formulações subjectivas do arguido no contexto, são bastantes para considerar adequada a atenuação especial com fundamento no disposto no art. 33.°, n.°1, do CP.
Vigésima-Oitava - No douto tribunal ad quem ao ser analisada a medida concreta da pena, mormente que o recorrente requer que a mesma seja reduzida, salienta-se que a culpa e prevenção são as referências norteadas da determinação da pena, cfr. artigo 71.°n°1 do Cód. Penal— a qual visa a proteção dos bem jurídicos e a reintegração social do agente na sociedade -art° 40º, n.°1 do mesmo diploma legal.
Vigésima-Nona- É com base nesta disposição legal, que o recorrente centra este recurso e espera de Vossa Excelências Venerandos Conselheiros, o mínimo acolhimento. Tal acolhimento, salvo devido respeito, deverá passar por uma diminuição da pena, ainda que seja sempre superior a 8 (oito) anos, mas, inferior a 16 (dezasseis) anos.
Trigésima - O arguido/recorrente entregou-se voluntariamente às autoridades, entregou e indicou os meios utilizados, prestou declarações às autoridades judiciária, esclarecendo tudo o que foi solicitado, elaborou a reconstituição do crime com as autoridades, prestou declarações na audiência e discussão de julgamento, confessou ser o autor do disparo, concordou na reparação dos danos na medida do possível, e manifestou genuíno arrependimento durante a sessão de julgamento.
Trigésima-Primeira - Deverá ser tido em conta o respectivo relatório social, muito elucidativo sobre a personalidade do recorrente, e o impacto que a pena irá repercutir no mesmo.
Trigésima-Segunda- Nestes termos, e numa valoração global dos factos e ponderação dos fins das penas, (as exigências retributivas e de prevenção geral são grandes, já as de prevenção especial são diminutas, atendendo à idade e à primariedade do recorrente) e considerando a moldura penal em causa (8 a 16 anos de prisão), mostra-se adequada a aplicação de uma pena não superior a 13 anos de prisão, que não ultrapassa a medida da culpa, e salvaguarda, em contrapartida, as exigências da prevenção geral e especial.».

O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 635.

O Ministério Público, em 1ª instância, apresentou uma extensa resposta ao recurso deduzido pelo arguido, pugnando pela sua total improcedência, por entender que o acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal ou princípio jurídico, mostrando-se devidamente fundamentado, tendo feito um exame crítico das provas, que permite avaliar cabalmente o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, justo e adequado, com escorreito enquadramento jurídico, motivo pelo qual deverá o mesmo ser mantido integralmente.
Também a resposta da assistente Cecília foi no mesmo sentido dizendo que o acórdão proferido fez uma correcta apreciação de todos os meios de prova produzidos em audiência, não atendendo em exclusivo às declarações do arguido, limitando-se este, a reproduzir a sua versão sobre os factos, sem expor de forma objectiva em que constituiu essa errada apreciação dos factos.
E, neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, avocando toda a argumentação da 1ª instância.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.

Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo de questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, no recurso suscitam-se as seguintes questões (organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência):
1. – o erro de julgamento sobre a matéria de facto;
2. – a intenção de matar e as qualificativas do crime;
3. – a legítima defesa;
4. – a atenuação especial e a medida da pena.
*
Importa decidir, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados e não provados na decisão recorrida (sic):
«Da acusação pública
1. O arguido António residia na Rua da I., do concelho de Vinhais, e era vizinho e conhecido da vítima M. Miranda.
2. Desde data não concretamente apurada que o arguido e a vítima tinham desavenças relacionadas com o direito de propriedade e a colocação de marcos em terrenos sitos no concelho de Vinhais.
3. No dia 26 de Maio de 2016, cerca das 19h00, o arguido regressava da aldeia de Espinhoso do concelho de Vinhais (onde pelas 18.30h havia anunciado a outrem, a propósito do conflito que mantinha com a vítima, que mais ninguém poria marcos nos terrenos em questão), conduzindo o veículo (jipe) de marca Mitsubishi, modelo Pajero, com a matrícula LP, em direcção a uns terrenos sitos na freguesia de Candedo.
4. Os mencionados terrenos situam-se num local ermo e para lá chegar passa-se pelo Lugar do Lombo, onde a vítima M. Miranda se encontrava, num souto, próximo duns estábulos, a pastorear rebanho.
5. O arguido sabia que, àquela hora, muito provavelmente, encontraria a vítima no local onde a acabou por encontrar.
6. Na verdade, ao passar naquele Lugar, o arguido avistou a vítima M. Miranda, encetou com ele uma troca de palavras, de conteúdo não concretamente apurado, tendo a vítima M. Miranda, a dada altura, dirigido ao arguido a seguinte expressão: “tu vais-te foder”.
7. De imediato, o arguido inverteu a marcha do veículo que conduzia e dirigiu-se à sua residência, com vista a munir-se da sua espingarda caçadeira, de tiro a tiro, com dois canos sobrepostos, basculantes, de alma lisa e com fita de refrigeração, da marca SABATTI GARDONE.
8. Chegado à sua residência, o arguido muniu-se da sobredita espingarda caçadeira e municiou-a com um cartucho de caça de granulometria n.º 5 ou 6.
9. Após, munido da espingarda caçadeira devidamente municiada, ao volante do veículo acima referido, o arguido dirigiu-se para o local onde havia avistado a vítima M. Miranda.
10. Entre o momento em que o arguido abandonou o local onde se encontrou com a vítima M. Miranda em direcção à sua residência e o do seu regresso ao mesmo local mediaram cerca de 7 (sete) minutos.
11. Aí chegado, após avistar a vítima próximo dos estábulos, debaixo de um castanheiro, parou o veículo em que seguia e, em acto que se seguiu, saiu do seu interior com a caçadeira numa das mãos, colocando-se a cerca de 2,50 metros da vítima.
12. Logo de imediato, empunhou a espingarda caçadeira na direcção da vítima, fazendo pontaria ao seu tronco e disse-lhe: “então és tu que me queres foder?”
13. E, em acto contínuo, carregou no gatilho e disparou na direcção do peito da vítima M. Miranda, atingindo-o no lado esquerdo da zona peitoral.
14. Após o disparo, com a vítima prostrada no chão, o arguido abandonou o local na condução do veículo em que se fazia transportar, e, após breve passagem pela sua residência, entregou-se no Posto Territorial da GNR de Vinhais.
15. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a vítima M. Miranda sofreu lesões cardiopulmonares, designadamente, no terço superior da face lateral esquerda do pericárdio, fractura de costelas, infiltração sanguínea na parede auricular esquerda do coração e hemorragias pulmonares, tudo compatível com o trajecto de projéctil de arma de fogo, descrevendo um trajecto de frente para trás, ligeiramente de cima para baixo e da esquerda para a direita.
16. As lesões torácicas supra descritas, mormente o traumatismo perfuro-contundente, devido a lesão por projéctil de arma de fogo, foram causa directa e necessária da morte de M. Miranda.
17. O arguido conhecia as potencialidades letais da arma que utilizou para disparar sobre a vítima e utilizou-a por saber que a mesma era um meio idóneo para causar a morte de outrem.
18. Ao efectuar o disparo a curta distância sobre uma zona do corpo do ofendido onde se alojam órgãos vitais, contra pessoa indefesa e sem qualquer motivo, o arguido agiu com frieza de ânimo e com a intenção de lhe tirar a vida, resultado que logrou alcançar.
19. Não obstante os desentendimentos entre ambos se relacionarem apenas com limites/confrontações de terrenos, o mesmo quis matar M. Miranda por esse motivo, actuando com total desprezo pela vida humana.
20. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de tirar a vida a M. Miranda, o que efectivamente fez, dirigindo o disparo da arma de fogo que empunhava para o peito da vítima, quando se encontrava a cerca de 2,50 metros de distância da vítima, atingindo zonas do corpo que sabia conterem órgãos vitais.
21. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Do pedido cível
22. A vítima M. Miranda, nascido em 25.07.1956, faleceu com 59 anos de idade no estado de casado com a assistente G. Miranda, em primeiras e únicas núpcias de ambos e sob o regime de comunhão de adquiridos.
23. A vítima M. Miranda faleceu sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, deixando como suas sucessoras e herdeiras a sua mulher G. Miranda e as suas filhas (do casal) Hermínia e Cecília, nascidas respectivamente em 04.07.1980 e 01.04.1984.
24. À data do óbito, a vítima M. Miranda era uma pessoa saudável, trabalhadora e com gosto pela vida.
25. A vítima M. Miranda prestou serviço na Guarda Nacional Republica (GNR) entre 22.01.1979 e 17.12.2006, data em que transitou para a situação de reserva.
26. Tendo exercido as respectivas funções de forma honesta, com integridade, brio, abnegação e dedicação ao serviço, pelo que recebeu um diploma de louvor.
27. Ao momento da morte, a vítima M. Miranda encontrava-se reformado e auferia mensalmente uma pensão de reforma no valor ilíquido de €1.471,13 (mil quatrocentos e setenta e um euros e treze cêntimos), a que acrescia, €122.59 (cento e vinte e dois euros e cinquenta e nove cêntimos), a título de duodécimo de subsídio de Natal.
28. Em termos líquidos, ao momento da sua morte, a vítima M. Miranda recebia mensalmente a quantia de €1.315,72 (mil trezentos e quinze euros e setenta e dois cêntimos).
29. Além disso, a vítima M. Miranda dedicava-se à agricultura e produção animal, tendo-se colectado para o efeito.
30. Era proprietário e possuidor de 18 ovelhas e 11 cordeiros, que pastoreava, produzia azeite, tinha castanheiros e amanhava propriedades de onde retirava produtos hortícolas e frutos para seu consumo e do seu agregado familiar.
31. Era ainda proprietário e possuidor de gansos, galinhas e perus, que tratava e destinava ao seu consumo e do seu agregado familiar.
32. Com respeito ano de 2015, a vítima M. Miranda, para efeitos de IRS, declarou os seguintes os seguintes rendimentos: €20.595,77 a título de pensão de reforma; e, €3.115,00 a título de rendimentos provenientes da sua actividade agrícola e pecuária.
33. Ao momento da sua morte, a vítima M. Miranda vivia em casa própria com a sua esposa e dois netos de 15 e 10 anos de idade, respectivamente, filhos da demandante Hermínia.
34. Netos esses que criou com a sua esposa, com todo o carinho, como se filhos seus fossem, e que, após a morte, a assistente continua a sustentar.
35. A vítima M. Miranda destinava o seu rendimento para fazer face aos encargos do seu agregado familiar.
36. Em consequência directa da morte da vítima, a assistente passou a receber uma pensão de sobrevivência no valor mensal líquido de €739,20 (setecentos e trinta e nove euros e vinte cêntimos), valor este que inclui o duodécimo do subsídio de Natal.
37. É com este valor que a assistente tem de fazer face às despesas e encargos do seu agregado familiar, composto pela próprio e pelos seus dois netos acima referidos.
38. A assistente deixou de obter qualquer rendimento proveniente das actividades agrícolas e de pecuária que eram desenvolvidas pelo falecido, porquanto não teve condições para as continuar.
39. A morte da vítima M. Miranda causou um profundo choque à sua esposa e filhas, aqui demandantes, as quais sofreram um enorme desgosto e uma vazio existencial que ainda hoje perdura.
Do registo criminal do arguido
40. O arguido não possui antecedentes criminais registados.
Do processo de socialização; condições pessoais e sociais; impacto da situação jurídico-penal
41. O arguido é natural de Candedo/Vinhais e o filho mais velho de um casal de agricultores, integrando uma família de condição socioeconómica e cultural muito humilde.
42. Tinha dois irmãos consanguíneos mais velhos de uma relação mantida pelo progenitor.
43. O processo de socialização decorreu no agregado familiar de origem, tendo sido educado segundo um modelo educacional tradicional que nos foi caracterizado como adequado e harmonioso, onde o pai era a figura de autoridade no seio familiar, porém ambos os progenitores imponham regras de conduta aos filhos.
44. O arguido cresceu na privação em urbanidade com os membros da família e conterrâneos, contexto social onde os costumes e valores tradicionais sempre foram fortemente enraizados e valorizados pela população local que subsistia maioritariamente da agricultura.
45. O arguido iniciou as aprendizagens em idade própria na freguesia de Candedo, tendo ai concluído o 4º ano de escolaridade, vindo a abandonar a escola precocemente por volta dos 11 anos, não por insucesso ou mesmo problemas de integração/adaptação, mas sim pelo desinteresse que demonstrara à data pelos estudos.
46. Já em idade adulta atingiu a equivalência ao 6º ano, em Vinhais, através da frequência do programa “novas oportunidades”.
47. O arguido iniciou a sua trajectória laboral precocemente aos 11/12 anos de idade, após abandonar a escola, na colaboração com os pais na agricultura de subsistência familiar, actividade que manteve até aos 15 anos.
48. Depois trabalhou na construção civil até à data em que foi cumprir o serviço militar obrigatório (SMO), tendo prestado serviço como fiel de armazém nas unidades do Entroncamento e Póvoa do Varzim.
49. Regressou ao meio e agregado familiar de origem e, pouco tempo volvido, iniciou a actividade laboral na recauchutagem “Pneus”, a qual manteve durante quatro anos e meio, até à insolvência da empresa.
50. Aos 28 anos retomou funções em Vinhais, mas desta vez como empregado/fiel de armazém na empresa AG Lda. – Comércio a Retalho, funções que exerceu até à data em que foi preso preventivamente.
51. Mantendo a integração/vinculação à família nuclear, o arguido partilhou uma relação amorosa durante 12 anos com E. Lousada, rapariga sua conterrânea que apoiou na sua formação superior (educação de infância), tendo todavia cessado essa ligação por mútuo acordo no final da década de 2000, subsistindo uma relação de amizade entre ambos.
52.Comunitariamente o arguido sempre privou com os conterrâneos de forma adequada, não lhe sendo conhecidos comportamentos austeros ou perturbadores da paz social, mantendo forte ligação ao “hobby da caça” que partilhava com amigos e conhecidos da freguesia e localidades limítrofes.
53. À data dos factos que deram origem ao presente processo judicial penal, o arguido vivia em comunhão com a mãe (62 anos/doméstica) e os irmãos Ramiro (39 anos/desempregado) e Norberto (37 anos/desempregado).
54. Esta família, de precária condição socioeconómica, residia em casa própria, herança de família e do tipo rural, com condições mínimas de habitabilidade, existindo entre todos uma dinâmica harmoniosa, coesa e solidária.
55. O arguido assumia-se como um elemento preponderante na manutenção e organização da família, já que o progenitor havia falecido em Julho/2011, sendo ele o único elemento assalariado e a principal fonte de sustentabilidade da família.
56. O arguido exercia a sua actividade laboral como empregado de armazém no AG Lda. – Comércio a Retalho de Gás Doméstico, Adubos e Produtos Agrícolas, funções que já exercia ininterruptamente desde há cerca de 14 anos, sendo reconhecido na empresa como um colaborador assíduo, empenhado e com iniciativa, mantendo sempre conduta responsável e afável com os gerentes e clientes da empresa, onde auferia um salário líquido mensal a rondar 580,00€.
57. Paralelemente ainda se dedicava à agricultura de subsistência familiar, cultivando alguns produtos hortícolas para consumo doméstico em prédios rústicos da família.
58. Nos tempos livres o arguido privava com conterrâneos e amigos, sendo localmente conotado como um concidadão afável e de conduta proporcional, não lhe sendo associados comportamentos reactivos e/ou perturbadores da paz social.
59. Paralelamente desenvolvia actividades de lazer - hobby da caça às espécies cinegéticas - momentos em que por sua iniciativa organizava almoços de confraternização com o seu grupo de caçadores e amigos num espaço/anexo reabilitado por si num terreno da família em zona erma.
60. Após a existência do presente processo judicial penal, o arguido deu entrada em 27.05.2016 como preso preventivo no Estabelecimento Prisional de Bragança, manifestado nos primeiros meses elevados índices de ansiedade com a situação jurídico-penal em que viu envolvido e, por outro lado, preocupação acrescida com a sustentabilidade e o bem-estar de sua família.
61. Em ambiente prisional o arguido tem apresentando comportamento globalmente ajustado e sem incidentes a assinalar, destacando-se uma postura colaborante com os demais, cumprindo as regras internas e respeitando as orientações das figuras de autoridade.
62. Presentemente e com o objectivo de melhorar as suas qualificações integra o curso EFA B3, que o habilitará da equivalência ao do 9º ano de escolaridade, coopera em acções religiosas e ainda participa em outros labores de manutenção interna e jogos recreativos e de entretenimento com a restante população prisional.
63. O arguido mantém a vinculação afectiva consistente com o seu agregado familiar, que se tem automobilizado no sentido de o apoiar.
64. Tem beneficiado de visitas regulares dos seus familiares e de conterrâneos, amigos, conhecidos e responsáveis da sua entidade patronal, manifestando consideração por todos os elementos que o visitam.
65. O arguido é observado pela comunidade como um cidadão afável e educado, sendo perceptíveis manifestações de solidariedade e paralelemente de tristeza pela ocorrência dos factos que colheram de surpresa a população em geral, tornando-se um caso mediático.
66. O arguido mostrou ser uma pessoa com um estilo comunicacional coerente e organizado.
67. Denota capacidades de análise e de descentração, revelando ter conhecimento das regras e normas essenciais à vida em sociedade, bem como competências para delinear um projecto de vida futuro enquadrado socialmente.
68. É a primeira vez que se vê confrontado com o sistema judicial penal, vivenciando com ansiedade a existência do presente processo.
69. Reconhece que a sua vida está presentemente condicionada aos diferentes níveis, o que se repercutirá no apoio à sua família, que sempre procurou proteger.
70. Verbaliza interesse em colaborar com o sistema de administração da justiça penal no apuramento da verdade.
71. Em abstracto e relativamente à natureza dos factos subjacentes ao presente processo, identifica a ilicitude dos mesmos e formula um juízo de censura, reconhecendo existência de vítimas, bem como os danos nefastos sofridos por estas, desatacando “o direito à vida” como um valor supremo, fundamental e inviolável a ser defendido.
72. Os familiares exteriorizam angústia e receio face à existência do presente processo judicial, verbalizam contudo vontade em apoiar o arguido incondicionalmente como o têm feito, estando expectantes quanto à decisão final do autos, ambicionando recuperar a união, harmonia e bem-estar da família.
73. A maioria as fontes contactadas criticam a ocorrência dos factos, que contextualizam serem decorrentes questões passionais/discórdia entre os envolvidos, tendo o arguido referido a alguns amigos sentir-se importunado/ameaçado pela vítima.
74. No meio de residência, são perceptíveis alguns indicadores de desconforto face a presença do arguido por parte dos familiares da vítima.
75. Outras fontes reconhecem-no como um cidadão amigo e cooperante beneficiando de aceitação na sua rede de influência social e profissional.
***
2.2 Matéria de facto não provada, com relevância para a decisão da causa
1. No seguimento do circunstancialismo enunciado no ponto 11.º dos factos provados, o arguido, ao mesmo tempo que dirigiu a expressão enunciada no ponto 12.º dos factos provados à vítima, manteve a caçadeira junto ao corpo, do lado direito, segurando-a com mão direita, com os canos voltados para o chão.
2. Em resposta a vítima disse “pois sou e fodo-te”, e, em acto contínuo, avançou em direcção ao arguido com o pau (vulgo cajado) identificado a fls. 33, em riste, para o agredir fisicamente, momento em que, com receio de ser ofendido na sua integridade física e/ou vida, para repelir a agressão, em jeito de defesa, o arguido efectuou o disparo com a espingarda caçadeira de que estava munido e que viria a atingir a vítima.
3. Em datas não concretamente apuradas, mas anteriores ao dia 26 de Maio de 2016, a vítima M. Miranda afirmou/anunciou que ia tirar a vida ao arguido e aos seus familiares, designadamente à sua mãe, circunstância que motivou a actuação do arguido sobre a vítima, designadamente que o mesmo tivesse ido munir-se da espingarda caçadeira, com o intuito, apenas, de lhe causar medo e receio.».
3. Motivação da decisão de facto (sic):
«O tribunal colectivo fundou o sentido da sua decisão na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento de acordo com a sua livre convicção e as regras de experiência comum, como impõe o art.127.º do Código de Processo Penal.
Em tal juízo o tribunal valorou, de forma concatenada, as declarações produzidas em julgamento pelo arguido, a prova testemunhal, a reconstituição do facto realizada pelo arguido, cujo auto consta de fls. 90 e ss., o relatório exame pericial de fls. 247 e ss. (que permitiu ao tribunal perceber a natureza e as características da arma utilizada pelo arguido para provocar a morte da vítima, e, bem assim, que o cartucho examinado foi deflagrado no cano inferior da espingarda caçadeira que o arguido usou), o relatório de exame pericial de fls. 254 e ss. (que permitiu ao tribunal perceber, além do mais, o tipo de cartucho com que o arguido municiou a arma e a sua granulometria provável), o relatório de exame pericial de fls. 259 e ss (no qual se atesta da compatibilidade da composição das partículas detectadas – consistentes em resíduos de disparo de arma de fogo – no interior do veículo em que se fazia transportar o arguido, com as partículas detectadas no elemento municial deflagrado no interior da espingarda caçadeira usada pelo arguido), o relatório de autópsia médico-legal de fls. 306 e ss., e, bem assim, o acervo documental que instrui estes autos, onde se destaca o termo de entrega do cadáver de fls. 5 e ss., o auto de notícia de fls. 9, o relatório de fls. 25 e ss., os autos de apreensão de fls. 55 e 56, o auto de exame directo de fls. 57, a cópia do manifesto de arma de fls. 87, o certificado de registo criminal do arguido de fls. 449, os elementos documentais oferecidos pelas demandantes civis, e, por último, o relatório social para determinação da sanção de fls. 436 e ss., produzido pela DGRSP à luz do n.º1 do art. 370.º do Código de Processo Penal.
Mas vejamos com pormenor.
Em primeiro lugar, importa precisar que o arguido, no exercício de um direito que lhe assiste, prestou declarações em audiência de julgamento, no âmbito das quais reconheceu ter sido o responsável pela morte da vítima, na quadro espácio temporal descrito na acusação pública, contudo negou ter agido com a intenção de tirar a vida à mesma, apontando para a circunstância de ter agido num cenário de legítima defesa, ou seja, para repelir uma agressão actual e ilícita de que estava prestes a ser objecto por parte da vítima.
Com efeito, de forma livre e sem reservas, o arguido afirmou, confessou e/ou reconheceu por verdadeira a factualidade julgada como provada nos pontos 1.º, 2.º, 3.º (com excepção da parte, não constante da acusação, em que, cerca das 18.30h do dia em questão, anunciou perante outrem que nos terrenos em questão, sob conflito, ninguém poria mais marcos), 4.º, 6.º (com excepção da parte, não constante da acusação, “encetou com ele uma troca de palavras, de conteúdo não concretamente apurado”, já que nega ter entrado em diálogo com a vítima e, inclusive, ter-lhe dirigido uma qualquer palavra), 7.º (com referência a este ponto de facto, sem descurar as declarações do arguido, quanto à natureza e características da arma reconhecidamente utilizada pelo mesmo no cometimento do facto, o tribunal valorou o relatório de exame pericial de fls. 247 e ss.), 8.º (relativamente a este ponto de facto, sem descurar as declarações do arguido quanto ao mais, quanto à granulometria do cartucho e à natureza deste o tribunal valorou o teor do relatório de exame pericial de fls. 254 e ss.), 9.º, 10.º e 11.º (com excepção da parte em que se diz que se colocou logo a cerca de 2,5 metros da vítima) dos factos provados, pelo que, além do mais, com base nas suas declarações se formou a convicção dos julgadores quanto à matéria fáctica em questão.
Ainda que de forma não espontânea, do declarado pelo arguido em julgamento resultou a certeza quanto à factualidade vertida no ponto 5.º dos factos provados, pois que o mesmo demonstrou conhecer bem o quotidiano da vítima, designadamente asseverou ter observado a mesma, não raras vezes, no local onde acabou por a encontrar no dia da ocorrência dos factos a pastorear o seu rebanho, pelo que estamos em condições de concluir que o arguido sabia que, àquela hora do dia dos factos, com séria probabilidade, iria encontrar a vítima no local onde a acabou por encontrar.
Relativamente aos pontos 12.º e 13.º dos factos provados, o arguido nega ter apontado de imediato a caçadeira à vítima, fazendo pontaria ao seu tronco, antes referiu que a manteve junto ao corpo, do lado direito, segurando-a na mão direita, com os canos voltados para o chão, reconhecendo, no entanto, que nesse momento disse à vítima “estão és tu que me queres foder?”.
Acrescentou que, após proferir tal expressão, a vítima respondeu-lhe dizendo “pois sou e fodo-te”, e, em acto contínuo, avançou na sua direcção com o pau (cajado) identificado a fls. 33, em riste, para o agredir, momento em que, com receio de ser ofendido na sua integridade física e/ou vida, para repelir a agressão, em jeito de defesa, efectuou um disparo com a caçadeira de que estava munido, atingindo a vítima no seu corpo.
O arguido confessou, ademais, a factualidade vertida no ponto 14.º dos factos provados, pelo que, neste concreto ponto, a convicção dos julgadores estribou-se, mais uma vez, nas declarações do próprio, sendo certo que a apresentação/entrega voluntária às autoridades, momentos após o cometimento do facto, encontra-se atestada, também, pelo auto de notícia de fls. 9 e ss. do processo, auto esse que foi confirmado em juízo pelo agente autuante Daniel, no decurso do depoimento que prestou na qualidade de testemunha, e, bem assim, pelo militar da GNR João, que recebeu o arguido no posto territorial onde o mesmo se apresentou/entregou.
Aqui chegados, importa analisar as declarações do arguido, centrando a nossa atenção, agora, na parte não confessória das mesmas.
É de realçar que tudo se passou entre arguido e vítima, num lugar ermo (como se observa dos suportes fotográficos constantes de fls. 25 e ss.), sem testemunhas oculares do ocorrido, pelo que em face da morte da vítima, o tribunal foi confrontado com a versão única do arguido que, por via disso, neste campo, surge em posição vantajosa.
Contudo, ainda que ninguém tenha presenciado o sucedido, e, nesse sentido, inexistam testemunhas a pôr em causa a versão oferecida pelo arguido, a mesma surge, em muitos pontos (não confessórios), eivada de inverosimilhança, contrariando as regras de experiência comum e sendo posta em causa pelos comportamentos adoptados pelo arguido nos momentos que antecederam e sucederam ao facto por si praticado.
Neste enquadramento, reconstituindo o sucedido, na sua visão, o arguido afirmou ter avistado a vítima no local, quando seguia ao volante do seu jipe (veículo com a matrícula LP, identificado e fotografado a fls. 48 a 52), a reduzida velocidade e com a janela aberta, momento em que a vítima, sem mais, lhe dirigiu a expressão “tu vais-te foder”.
Ora, não obstante o próprio Ministério Público ter transposto este ponto de facto da versão oferecida pelo arguido para a acusação pública, o certo é que o tribunal não crê que as coisas tenham sucedido dessa forma. Para tanto, o tribunal valora a circunstância de o arguido, momentos antes de o sucedido (pelas 18.30h do dia dos factos) ter anunciado no Espinhoso, onde se encontrava, a propósito do conflito que mantinha com a vítima, que mais ninguém poria marcos nos terrenos em questão, sobre os quais versava o conflito, factualidade que foi relatada em julgamento pela testemunha A. Rodrigues, que depôs de forma espontânea e frontal, sem revelar qualquer interesse no desfecho da lide e sem que o por si afirmado fosse contraditado e/ou colocado em causa por qualquer outro elemento de prova (ponto 3.º dos factos provados). Tal circunstância, aliada ao facto de o arguido ter em seguida se deslocado, sozinho e no seu veículo, para local (ermo) onde sabia, com séria probabilidade, ser possível encontrar a vítima (sozinha), como efectivamente veio a suceder, demonstra que o arguido foi buscar o conflito e operar o vulgarmente designado “ajuste de contas”, em termos de colocar um ponto final na querela que o apoquentava, notoriamente relacionada com a questão dos terrenos.
Neste quadro e perante a actuação prévia do arguido, não inocente, ainda que o conflito entre ambos já fosse latente (como resultou do depoimento da testemunha A. Rodrigues), não é crível, à luz das regras de experiência comum, que a vítima, sem mais e de forma absolutamente gratuita, ao ver passar o arguido ao volante da viatura em que se fazia transportar, lhe tenha dirigido a expressão “tu vais-te foder”. Como acima se referiu, tomando em consideração o anúncio perpetrado pelo arguido nos momentos que antecederam os factos (no sentido de que mais ninguém poria marcos nos terrenos), a circunstância de ter sido ele, no seguimento de tal anúncio, a buscar ou ir ao encontro da vítima (pois que sabia que era ali que a podia encontrar, sozinha e em local ermo), e, bem assim, a própria expressão utilizada pela vítima, somos de entender pela evidência de que o arguido terá necessariamente abordado a vítima, em termos de confrontação verbal, que terá assumido alguma intensidade e crispação (embora em termos não concretamente apurados), ao ponto de a vítima dirigir ao arguido a expressão supra referida. O uso da expressão em causa, pela vítima, apenas tem cabimento, olhando à lógica das coisas e à realidade que nos envolve, num cenário de abordagem prévia do arguido e de confrontação por parte deste, e não do modo despido como arguido quis fazer passar em julgamento (ponto 6.º dos factos provados). De realçar que o tribunal acredita que a vítima tenha dirigido ao arguido a expressão “tu vais-te foder”, pois que a mesma encaixa na perfeição na forma como o arguido abordou a vítima momentos antes de disparar contra ela (“então és tu que me queres foder”?), que o tribunal tem por verdadeira, por reconhecida pelo arguido apesar de lhe ser prejudicial, pois salienta a intensidade do seu dolo homicida.
No seio da falta de verosimilhança da sua versão (que neste ponto, inexplicavelmente, foi transposta para a acusação pública), afirmou o arguido em julgamento que quando surgiu junto da vítima com a espingarda caçadeira e lhe disse “então és tu que me queres foder?”, a vítima respondeu “pois sou e fodo-te” e avançou em seguida com um pau na mão (vulgarmente designado por cajado, utilizado pela mesma no pastoreio), em riste, na sua direcção, tendo em vista agredi-lo, motivo pelo qual em último recurso efectuou um disparo com a espingarda caçadeira de que estava munido.
Ora, sem necessidade de sermos muito complexos no raciocínio, bastando para tanto seguir a lógica das coisas e conjecturar o comportamento do homem médio, se colocado na concreta posição da vítima ao momento dos factos, somos forçados a concluir que o comportamento que é apontado pelo arguido à vítima é desrazoável, descabido e ilógico. Na verdade, o homem médio (como era a vítima), confrontado com uma pessoa, em local ermo, com a qual tem um conflito e havia trocado palavas de forma acesa momentos antes, que nesse entretanto foi-se munir de uma espingarda caçadeira que empunhava ao mesmo tempo que em tom desafiador dizia “então és tu que me queres foder?”, não assumiria jamais, por imprudente e temerário, o comportamento que o arguido afirma que a vítima adoptou, antes assumiria certamente uma conduta defensiva, marcada pelo temor e pelo receio de perder a sua vida, tanto assim que a vítima não podia descurar a disparidade de meios existente, pois que o arguido empunhava uma espingarda caçadeira e ela um mero pau em madeira (vulgo cajado), com um perigosidade e uma potencialidade agressora e letal infimamente mais reduzida.
Por conseguinte, somos de concluir que a vítima não assumiu o comportamento que o arguido diz ter assumido (pelo contrário, tudo se passou do modo descrito nos pontos 11.º a 13.º dos factos provados), o que faz sucumbir a tese do arguido, no sentido de que apenas agiu em defesa da sua vida e/ou integridade física, para repelir agressão iminente da vítima, sem intenção de a matar, tanto assim que nem lhe apontou a arma (ponto 1.º e 2.º dos factos não provados).
Quanto à tese de que nem apontou a arma na direcção da vítima, a mesma é absolutamente inverosímil, de tal modo de que caso não o tivesse feito não a teria matado. Acresce que, na reconstituição do facto (vide auto de fls. 90 e ss. – mais concretamente suportes fotográficos de fls. 92) que operou o arguido demonstra a forma como se dirigiu à vítima, sendo que a mesma evidência, notoriamente, que o mesmo apontou a arma na direcção da vítima, num cenário que gestualmente repetiu em julgamento, não deixando qualquer margem para dúvidas quanto à sua concreta actuação.
Quando à alegada actuação defensiva do arguido, é de notar que a mesma surgiu ex novo em julgamento, o que, desde logo, realça o seu carácter estratégico e conveniente, pois que surgiu numa fase processual em que a defesa do arguido já estudou o processo e notou a ausência de testemunhas oculares do evento.
Na verdade, o arguido, quando se entregou às autoridades (GNR), anunciando ter provocado a morte da vítima, jamais aludiu à ausência de intenção de matar e/ou que actuou em legítima defesa, ou seja, para repelir uma agressão actual e ilícita de que ia ser objecto pela vítima, como se observa do teor do auto de notícia de fls. 9 e ss., confirmado em julgamento pelo agente autuante Daniel, e, bem assim, como foi confirmado pelo militar da GNR João, pessoa que recebeu o arguido no posto territorial, o qual asseverou que o mesmo, ainda que informalmente, aquando da sua voluntária entrega, jamais lhe aludiu à circunstância de ter agido sem intenção de provocar a morte à vítima e/ou em legítima defesa.
Acresce que, em sede de interrogatório judicial, momento primeiro para exercer o seu direito de defesa perante um magistrado judicial, até porque estava em causa a possibilidade de lhe ser aplicada a medida de coacção mais gravosa, ou seja, a prisão preventiva, o arguido optou por remeter-se ao silêncio, obviamente no exercício de um direito que lhe assiste (vide auto do 1º interrogatório judicial de arguido detido – fls. 102 e ss.).
E, posteriormente, na reconstituição dos factos que operou (vide auto de 90 e ss.), pese embora aluda ao facto de a vítima ter avançado na sua direcção na posse do pau (cajado), na sequência de lhe ter dito “então és tu que me vais foder?”, não adiantou que o mesmo ia com o pau (cajado) em riste, com a intenção de o agredir fisicamente, como se observa das imagens que integram o auto de reconstituição a que acima se aludiu, e, por conseguinte, também aí, não se refugiou numa alegada ausência de intenção de matar e/ou legítima defesa.
Ora, recorrendo às regras de experiência comum, cremos que o comportamento assumido pelo arguido, no pós crime e no processo, não se coaduna com o do homem médio se colocado na sua concreta posição. Ou seja, a ser verdade que o arguido agiu em situação de defesa e sem intenção de matar, o que por mera hipótese de raciocínio se concebe, o mesmo teria, desde o primeiro momento (quando as emoções estavam à flor da pele), aludido a tais circunstâncias, designadamente quando se entregou às autoridades, assumindo o acto, e, em primeiro interrogatório judicial, tendo em vista evitar que lhe fosse aplicada uma medida de coacção privativa da sua liberdade. Não o tendo feito, como também não o fez na reconstituição dos factos que operou no decurso do inquérito, e surgindo com esta versão apenas em julgamento, também por esta via não nos merece credibilidade a alegada actuação com animus defendendi.
Não se descura que o momento solene e maior para o arguido exercer o seu direito de defesa é o julgamento, todavia, uma pessoa que mata outra, sem intenção e/ou em legítima defesa, exerce a sua defesa nesse sentido desde o primeiro momento, isto é não se deixa acusar e prender preventivamente de ânimo leve, sem tentar fazer valer a sua versão e os seus argumentos (ponto 2.º dos factos não provados).
No que concerne ao motivo da sua actuação, o arguido, pese embora tenha negado de forma inverosímil a intenção de matar, dizendo que que constituía seu propósito, apenas, assustar a vítima, afirmou que aquilo que o motivou à sua acção foi a circunstância de a vítima o ter ameaçado de morte a si e à sua família, designadamente à sua mãe, facto este de que teve alegadamente conhecimento no dia da ocorrência dos factos.
Ora, a versão do arguido, quanto ao alegado motivo da sua acção, não foi corroborada por qualquer outro elemento prova, designadamente testemunhal, pelo que não mereceu credibilidade junto do colectivo de juízes, sendo certo que o próprio arguido foi vago e impreciso na descrição das alegadas ameaças e na sua concretização espácio-temporal (ponto 3.º dos factos não provados). Ora, em face da assinalada falta de credibilidade do arguido, não se conhecendo qualquer outra razão e/ou motivo para acção do mesmo, somos de entender que o motivo da sua acção foram as desavenças que o mesmo reconheceu ter para com a vítima relacionadas com o direito de propriedade e a demarcação de uns terrenos, tanto assim que o mesmo nisso havia falado em Espinhoso, onde se encontrava no período que precedeu a sua acção, tal qual foi confirmado em julgamento pela testemunha A. Rodrigues, no quadro do seu depoimento espontâneo, informado e desinteressado no desfecho da lide. Aliás, a este propósito, a testemunha em questão referiu que já havia aconselhado o arguido a conversar com a vítima a respeito das querelas e conflitos com a propriedade dos terrenos e a colocação de marcos, sob pena de as coisas azedarem, o que não deixa dúvidas sobre a motivação do arguido. Neste quadro, importa acrescentar que a pequenez do motivo da acção em face da reacção homicida, revela um total desprezo pela vida humana por parte do arguido (ponto 18.º dos factos provados).
Em suma, por falta de verosimilhança, na parte não confessória, as declarações do arguido não nos mereceram qualquer credibilidade, sendo evidente aos olhos dos julgadores que o arguido agiu com o propósito conseguido de tirar a vida à vítima, tendo actuado fora do quadro de legítima defesa por si inventado.
Na verdade, quanto à concreta intenção do arguido na acção que desenvolveu sobre a vítima, analisando a sua actuação à luz das regras de experiência comum e do critério de normalidade das coisas, salvo o devido respeito por melhor opinião, não é conjecturável qualquer outra conclusão senão a de que o arguido quis matar a vítima.
Se bem virmos, o arguido, após se ter deslocado ao local onde a vítima se encontrava e com ela ter desenvolvido uma troca de palavras, num espaço temporal de cerca de 7 minutos, abandonou o local, deslocou-se à sua residência, muniu-se da sua espingarda caçadeira, municiou-a, voltou ao local onde a vítima se encontrava, provocou-a e/ou desafiou-a dizendo “então és tu que me queres foder?”, e, em acto contínuo, disparou na sua direcção, à “queima-roupa” (cerca de 2,5 metros) - vide auto de reconstituição do facto, mais concretamente fls. 92 -, atingindo-o na zona peitoral, para a qual fez pontaria, zona corporal essa que sabia alojar órgãos vitais, pois que se trata de circunstância conhecida pela generalidade dos membros da comunidade.
Todo os passos da acção do arguido são reveladores que o mesmo, na sequência da troca de palavras que desenvolveu com a vítima, tomou a resolução de o matar, só assim se justificando que se tenha deslocado à sua residência, munido da espingarda caçadeira, municiado a mesma, regressado ao local que viria a ser o do crime, provocado e/ou desafiado a vítima e disparado na sua direcção a uma curtíssima distância. Perante este quadro não se vislumbra qualquer outra intenção do arguido senão a de matar a vítima, como infelizmente veio a suceder (ponto 20.º dos factos provados).
Diz o arguido, na versão por si ensaiada, que a sua intenção, ao ir buscar a espingarda caçadeira, era tão só a de assustar e amedrontar a vítima. Ora, se assim fosse, o que não se concebe de todo, o arguido não teria a necessidade de municiar a arma, pois que a simples exibição da espingarda caçadeira à vítima seria certamente mais do que suficiente para lhe causar medo e temor, como nos demonstram as regras de experiência comum, tanto assim que não há notícia de que a vítima não se enquadrasse no padrão de homem médio (ponto 3.º dos factos não provados).
Aliás, a resolução criminosa do arguido estava de tal modo formada que o mesmo carregou a sua arma apenas com uma munição, ou seja, partiu confiante que o modo como havia pensado a execução do crime não iria falhar, sendo o projéctil utilizado mais do que apto a provocar a morte de uma pessoa, como se viu pelo resultado da acção perpetrada pelo arguido e pelas lesões provocadas na vítima.
A factualidade vertida nos pontos 15.º e 16.º dos factos provados mostra-se atestada pelo relatório de autópsia médico-legal, o qual consta de fls. 306 e ss. dos autos.
A espingarda caçadeira utilizada pelo arguido tinha potencialidade letal, tanto assim que produziu a morte da vítima, afigurando-se, por via disso, como meio idóneo para tanto, sendo certo que a potencialidade letal da arma e a idoneidade da mesma para produzir a morte de outrem não podiam ser desconhecidas do arguido, enquanto cidadão imputável, socialmente inserido e caçador, que reflectiu, inclusive, sobre o meio que resolveu empregar no cometimento do facto, por si escolhido para o acto (ponto 17.º dos factos provados).
Observando toda a acção do arguido, com especial ênfase para a factualidade julgada provada nos pontos 7.º a 10.º dos factos provados, somos de entender que o arguido reflectiu sobre o acto que praticou e sobre os meios que resolveu empregar no cometimento do facto, pois que teve cerca de sete minutos para pensar, ponderar e reponderar sobre o que ia fazer, ou seja, sobre a sua resolução criminosa.
Não obstante ter gozado do sobredito período de tempo para reflectir sobre o acto que resolveu praticar, o arguido manteve o seu desígnio, acabando por tirar a vida à vítima mediante um disparo de espingarda caçadeira (dirigido à zona peitoral) efectuado a uma curtíssima distância da mesma, isto após a ter desafiado com a expressão “então és tu que me queres foder?”, circunstancialismo fáctico que, concatenado entre si, é revelador de uma manifesta frieza de ânimo e de um total desrespeito e desvalor pela vida humana, ainda para mais quando o motivo da acção se prendeu com uma mera querela relacionada com o direito de propriedade e a demarcação de terrenos (ponto 19.º dos factos provados).
Em tudo o que se vem expondo alicerçou o tribunal colectivo a sua convicção quanto à factualidade vertida nos pontos 1.º a 20.º dos factos provados, assim se justificando o sentido da decisão dos julgadores quanto a tais pontos de factos, e, bem assim, a contrario, quanto a toda a factualidade julgada não provada.
Acresce que o arguido, enquanto homem médio, imputável e socialmente integrado, não podia desconhecer o carácter proibido e penalmente censurável do seu comportamento, já que é do conhecimento da generalidade dos membros da comunidade que a circunstância de matar outra pessoa constitui ilícito criminalmente punido. (ponto 21º.dos factos provados)
A factualidade vertida no ponto 22.º dos factos provados mostra-se atestada pelo assento óbito da vítima, constante de fls. 351 e ss., pelo relatório de autópsia médico-legal (quanto à data de nascimento da vítima) e, bem assim, pela escritura de habilitação de herdeiros, cuja cópia certificada consta de fls. 354 e ss. dos autos.
Do mesmo modo, a factualidade vertida no ponto 23.º dos factos provados mostra-se documentalmente atestada nos autos, designadamente pela escritura de habilitação de herdeiros, cuja cópia certificada consta de fls. 354 e ss, sem descurar os cartões de cidadão cujas cópias constam de fls. 216, 348 e 350.
No documento constante de fls. 358 dos autos estribaram os julgadores a sua convicção quanto à factualidade vertida no ponto 25.º dos factos provados, já que tal elemento documento atesta esse pedaço de realidade.
Já a factualidade vertida no ponto 26.º dos factos provados mostra-se atestada pelo teor do documento constante de fls. 359, pelo que nele se baseou o sentido da decisão dos julgadores quanto a tal ponto de facto.
Relativamente à factualidade vertida nos pontos 27.º e 28.º dos factos provados, a mesma mostra-se documentalmente atestada a fls. 360, pelo que em tal documento basearam os julgadores a sua convicção em ordem ao sentido da decisão que tomaram.
Para além de ter sido testemunhalmente atestada (pelo grosso das testemunham que as demandantes civis arrolaram), a factualidade vertida no ponto 29.º dos factos provados foi documentalmente provada, designadamente através do documento comprovativo de declaração de início de actividade constante de fls. fls. 361 e ss. dos autos.
As circunstâncias fácticas enunciadas no ponto 32.º dos factos provados mostram-se documentalmente atestada, designadamente pelo elemento documental constante de 363 e ss., pelo que nele se basearam os julgadores para formarem a sua convicção quanto à factualidade em questão.
Por seu turno, a factualidade vertida no ponto 36.º dos factos mostra-se atestada pelo documento junto aos autos pela assistente no decurso da audiência de julgamento, produzido pela “Caixa Geral de Aposentações”.
No que respeita à demais factualidade atinente ao pedido cível, designadamente a vertida nos pontos 24.º, 30.º, 31.º, 33º a 35.º e 37.º a 39.º dos factos provados, a mesma foi massivamente confirmada em julgamento pelas testemunhas arroladas pelas demandantes para esse efeito (Cipriano, Nicolau, Márcia, Fernando, Jorge e Armindo), na medida do seu exacto conhecimento, as quais depuseram de forma espontânea, informada e coerente, não tendo os seus respectivos depoimentos sido contraditados por qualquer outro elemento de prova.
A circunstância de o arguido não possuir antecedentes criminais registados mostra-se atestada pelo teor do certificado de registo criminal do mesmo, o qual consta dos autos a fls. 449. (ponto 40.º dos factos provados)
A convicção dos julgadores relativamente aos dados relevantes do processo de socialização do arguido, às suas condições pessoais e sociais, e, bem assim, ao impacto da situação jurídico-penal em que se mostra envolvido, formou-se primordialmente à custa do teor do relatório social para determinação da sanção, o qual consta de fls.436 e ss. dos autos e foi elaborado por entidade pública isenta e competente (DGRSP) e, por via disso, merecedora de credibilidade, não tendo o teor de tal relatório sido contraditado por qualquer outro elemento de prova, pelo contrário, foi sendo corroborado pelas testemunhas arroladas pela defesa (a saber: Eduardo, Baltasar, Hélder, António F., Manuel, Guilherme, Dionísio, Jerónimo, Eduardo M., Moisés , Noémia e Aurélio), porquanto as mesmas, de modo coincidente e de forma espontânea, qualificaram o arguido como uma pessoa educada, respeitada, respeitadora e trabalhadora, que sempre apoiou a sua família, em suma, atestaram da sua boa inserção social, familiar e profissional. (ponto 41.º a 75.º dos factos provados).».
*
1. O erro de julgamento.
O recorrente defende que ocorreu erro de julgamento quanto a parte da matéria de facto tida por assente na decisão de 1ª instância enunciada nos pontos 5, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 19, 20 e 21, e não provada nos pontos 1 a 3 (embora quanto a esta apenas o tenha feito no corpo da respectiva motivação) porquanto, em seu entender, no essencial, não foi feita prova suficiente de que tenha tido intenção de matar a vítima, por ter agido num quadro de legítima defesa e por motivo diferente do que ficou a constar da decisão recorrida.
Sustentou, assim, que: voluntariamente, prestou declarações em audiência, mantendo sempre a mesma versão sobre os factos desde o primeiro momento em que se entregou às autoridades; apenas municiou a arma com um chumbo nº 6, próprio para caça da perdiz e coelho, tendo disparado porque a vítima investiu na sua direcção com o «cajado» apreendido nos autos e que ninguém assistiu ao sucedido, não existindo elementos de prova que suportem os factos tais como foram considerados.
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: pelo âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), do CPP, ou através da chamada impugnação ampla, nos termos previstos no art. 412º, nº 3, alíneas a), b) e c), do mesmo código.
Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
É certo que a possibilidade de a Relação modificar a decisão da 1ª instância, sem que se imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada – ainda que, quanto à prova gravada, com a consciência dos condicionamentos postos pela limitação da acção do princípio da imediação –, é inteiramente congruente com o objectivo de garantir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, claramente prosseguido pela lei de processo (1). Todavia, uma vez invocado o erro de julgamento, embora a sua apreciação se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, a mesma é balizada pelos concretos pontos impugnados e meios de prova indicados, ou seja pelos limites fornecidos pelo recorrente, a quem se impõe o estrito cumprimento dos ónus de especificação previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP (2). É esta a doutrina recomendada pelo STJ, p. ex., nos sumários dos seus Acs. de 10-01-2007 e 15-10-2008 (3).
Destinando-se a obviar a eventuais erros ou incorreções na forma como foi apreciada a prova, na perspetiva do, o que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorretamente julgados.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objeto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do nº 3 do citado art. 412º.
A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Note-se que, o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.
Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3). Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do nº 4 do citado art. 412º.
E daí que se reconheça não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alternativa, já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (4).
E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
Contudo, no âmbito penal, o princípio in dubio pro reo estabelece a imposição de que, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável: exige-se uma pronúncia favorável ao arguido quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Neste conspecto, esse princípio constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos, quando o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes.
Normalmente, a actuação desse princípio suscita a necessidade de ser demonstrado o erro na apreciação da prova produzida, com vista a evidenciar no recurso a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.
É certo que a prova não pressupõe uma certeza absoluta, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (5). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (6).
É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que na fundamentação da matéria de facto, como já se salientou, se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP) é necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos está de acordo com as regras da experiência e, por isso, é credível; é preciso esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência, tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras.
Com efeito, não podemos olvidar que de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta. Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (7).
Realmente, como se sabe, os meios de prova nem sempre reproduzem por si directamente a imagem da verdade. Conforme refere G. Marques da Silva (8), é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável.
Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica da entidade que a afere. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos a inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
Segundo expõe André Marieta (9), a prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações: «Em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento. A lógica tratará de explicar o correcto da inferência e será a mesma que irá outorgar à prova capacidade de convicção.».
A associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objectivos e regras objectivas até leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente a testemunhal, pois que nesta também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade, sendo, por isso, muito mais difícil de determinar a respectiva credibilidade (10).
Na ausência de referência na nossa lei a quaisquer requisitos especiais da prova indiciária, dependem da convicção do julgador os respectivos funcionamento e creditação, a qual, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.
Conforme menciona G. Marques da Silva, o juízo sobre a valoração da prova suscita, num primeiro nível, a credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova, depende substancialmente da imediação e nele intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (11).
Nada impedirá, pois, que devidamente valorada, a prova indiciária, por si, na conjunção dos indícios, permita fundamentar a condenação.
Num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, antes é livremente apreciada, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha (12), seja ou não vítima, de maior ou menor idade, ainda que opostas, em maior ou menor medida, ao depoimento do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.

Analisemos, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões de recurso sobre os pontos da impugnação deduzida.
À luz do que acima expendemos, o recorrente cumpriu esse ónus de especificação, quer o primário, quer o secundário, remetendo para os depoimentos produzidos em audiência e indicando as respectivas passagens concretas da gravação, para sustentar que o Tribunal não deu como provada a versão que apresentou sobre os factos – e com que, em suma, defendeu não ter tido a intenção de matar –, por não valorar na totalidade o seu próprio depoimento, já que não existem testemunhas presenciais, do qual teria resultado que apenas disparou porque a vítima se lhe dirigiu com um «cajado» e apenas tinha municiado a arma com um chumbo nº 6, próprio para perdizes e coelhos, como acabaram por reconhecer as testemunhas Cipriano, cunhado da vítima e Daniel, militar da GNR.
Contudo, sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não pode impedir o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo, como se disse, com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
Após exame do resultado da audição de todos os depoimentos produzidos, e não apenas dos segmentos referenciados pelo recorrente, conjugada com os elementos documentais juntos aos autos, podemos, desde já, adiantar que esses meios de prova não são suficientes para permitirem, com a segurança necessária, extrair todas as ilações que o Tribunal recorrido acabou por acolher.
Concretizando.
Os factos ocorreram em local ermo e sem que alguém os tenha presenciado. Assim, primordialmente, para além dos vestígios que prontamente foram recolhidos pelos elementos de autoridade e que parte deles se encontram fotografados nos autos, conta-se, ainda, com o auto de reconstituição dos factos, com as declarações da testemunha João, militar da GNR, a quem o recorrente se dirigiu e acabou por entregar a arma e com as declarações do próprio arguido.
Realmente, o arguido prestou declarações em audiência de julgamento, reconhecendo que matou a vítima e tendo respondido, à primeira pergunta que lhe foi dirigida pelo Sr. Juiz presidente do colectivo acerca da ideia que tinha do falecido, que «era uma pessoa má», asseverando que o mesmo o ameaçava, bem como à sua mãe, dizendo que os ia matar a todos. Referiu que os desentendimentos entre ambos se prendiam com um valado de um terreno no qual, dois ou três anos antes dos factos, o falecido tinha colocado uns paus que o arguido acabou por retirar, sendo, a partir daí, que deixaram de falar um com o outro e começaram as ditas ameaças, tendo sucedido que, dois a três meses antes de tais factos, aquele, mais um vez, o ameaçara, enquanto levava uma das mãos ao bolso.
O arguido acrescentou, ainda: no dia mencionado nos factos tinha ido à festa de Espinhoso e lá lhe foi dito (pela testemunha A. Rodrigues, seu primo) que o falecido M. Miranda queria matar a sua mãe; quando regressou da festa, dirigiu-se, ao volante do seu veículo, para uma terra, onde ia frequentemente, porque tem lá uma casa que foi assaltada, tendo tomado o caminho mais curto para quem vem da festa; quando seguia no caminho, a pouca velocidade e com os vidros abertos passou pelo M. Miranda, que andava com um rebanho de ovelhas, que bateu com o cajado no chão e lhe disse «vais-te foder»; como andava com medo dele e se constava que o mesmo [que tinha sido militar da GNR, como dos autos se retira] andava sempre armado, fez inversão de marcha e foi a sua casa buscar a arma caçadeira que municiou com um chumbo nº 6, próprio para a caça de perdizes e coelhos; chegado novamente ao local onde se encontrava o M. Miranda, saiu do veículo, com a arma na mão e, dirigindo-se-lhe, perguntou «então és tu que me queres foder?», tendo este respondido «pois sou e fodo-te», ao mesmo tempo que arrancou em sua direcção com o cajado, altura em que apertou o gatilho e disparou. Saiu do local e foi-se entregar na GNR; não sabia que o M. Miranda nesse dia andava naquele local a pastorear as ovelhas; se fosse hoje preferia deixar-se matar, está muito arrependido, tendo pedido desculpa aos familiares da vítima e dito não ter disponibilidades financeiras para reparar o mal causado.
Por sua vez, a testemunha João, militar da GNR, que atendeu o arguido no Posto da GNR, confirmou que o mesmo se lhe dirigiu e disse «tenho um caso grave, acabei de matar um homem, venho entregar-me», «foi agora, tenho arma no carro», «não tenho a certeza se o matei», «dei-lhe um tiro e ele caiu de imediato ao chão».
Para além destes meios de prova foram ouvidas em audiência várias testemunhas que nada sabiam sobre o modo como os factos terão ocorrido, mas todas elas se reportaram a um problema existente entre o falecido M. Miranda e a família do arguido por questões ligadas a um terreno e acabaram por assegurar a existência de uma conversa mais acesa entre aquele M. Miranda e a mãe do arguido.
Nesse trilho, a testemunha A. Rodrigues, amigo do falecido e primo do arguido, confirmou que tinha tido uma conversa com o arguido na festa de Espinhoso e lhe terá dado conselhos para comporem as coisas a bem e a quem o arguido disse que «ali não iria ser posto marco nenhum».
Estranhamente, as testemunhas arroladas pela acusação pública e que, segundo tudo aponta, poderiam ter esclarecido mais detalhadamente o contexto dos problemas existentes foram prescindidas pelo Ministério Público.
Por sua vez, as testemunhas Eduardo, Baltazar, António P., Manuel, Guilherme, Dionísio, Gerónimo, Eduardo, Moisés, Noémia e Aurélio também prestaram depoimentos, elogiando o caracter e as boas qualidades pessoais do arguido, dizendo que é afável, nunca tendo tido problemas com alguém e é um trabalhador exemplar, enquanto, sobre o M. Miranda, não obstante falecido, aqueles dois primeiros chegaram a considerá-lo como uma pessoa quezilenta e muito ciosa dos seus bens, exemplificando essa reputação com relatos de episódios relacionados com as questões sobre as suas propriedades.
Perante tais meios de prova, que dizer da discordância do arguido/recorrente quanto à redacção conferida aos pontos 5, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 19, 20 e 21 da matéria de facto assente?
Como resulta expressamente da motivação da decisão de facto, o Tribunal de 1ª instância estribou-se, fundamentalmente, no depoimento do arguido que, de forma livre e sem reserva, confessou os factos, atribuindo-lhe total credibilidade, excepto nos detalhes da narração favoráveis à sua versão, que os senhores Juízes reputaram de contrários ao que lhes pareceu advir da lógica e das regras da experiência comum, razão pela qual afirmaram como verificada uma realidade que, em tais detalhes, é bem mais adversa para o arguido do que a que constava da própria acusação. Ora, o argumentado pelo Tribunal colectivo assenta em explanações ou inferências que não encontram qualquer suporte nos meios de prova produzidos em audiência, designadamente os já colhidos dos elementos constantes do processo no âmbito da reconstituição feita sobre os factos e do exame objectivo feito no local aos respectivos vestígios. Vejamos.
A propósito do ponto 5, escreveu-se na decisão recorrida: «ainda que de forma não espontânea, do declarado pelo arguido em julgamento resultou a certeza quanto à factualidade vertida no ponto 5.º dos factos provados, pois que o mesmo demonstrou conhecer bem o quotidiano da vítima, designadamente asseverou ter observado a mesma, não raras vezes, no local onde acabou por a encontrar no dia da ocorrência dos factos a pastorear o seu rebanho, pelo que estamos em condições de concluir que o arguido sabia que, àquela hora do dia dos factos, com séria probabilidade, iria encontrar a vítima no local onde a acabou por encontrar».
Esta afirmação, para além de não encontrar qualquer suporte nas declarações prestadas pelo arguido – que, em momento algum, disse que tinha observado o falecido no local onde ocorreram os factos ou em qualquer outro, e muito menos que fosse conhecedor do seu quotidiano –, não se coaduna com os comuns hábitos de um pastor de um rebanho de ovelhas, que, sem local certo para as pastorear, tem de calcorrear vários locais para as alimentar, andando por aqui e por ali. Ademais, existe um dado objectivo que contraria tal afirmação: se, efectivamente, o arguido tivesse ido procurar o falecido com a intenção de o desafiar, não se compreenderia a razão de não ir logo munido da arma de fogo, o que, como se sabe, só fez em momento posterior.
Na mesma linha, também não podemos deixar de assinalar que o segmento factual de que o arguido teria encetado com o falecido uma troca de palavras – que, também não constando da acusação pública, ficou inserto no ponto 6 – não encontra qualquer suporte na prova produzida, ainda que tal matéria não tivesse sido impugnada pelo arguido.
Relativamente aos pontos 11, 12, 13 e 14, contra os quais o arguido também se insurge, ficou a constar da motivação da matéria de facto o seguinte: «o arguido nega ter apontado de imediato a caçadeira à vítima, fazendo pontaria ao seu tronco, antes referiu que a manteve junto ao corpo, do lado direito, segurando-a na mão direita, com os canos voltados para o chão, reconhecendo, no entanto, que nesse momento disse à vítima “estão és tu que me queres foder?”. Acrescentou que, após proferir tal expressão, a vítima respondeu-lhe dizendo “pois sou e fodo-te”, e, em acto contínuo, avançou na sua direcção com o pau (cajado) identificado a fls. 33, em riste, para o agredir, momento em que, com receio de ser ofendido na sua integridade física e/ou vida, para repelir a agressão, em jeito de defesa, efectuou um disparo com a caçadeira de que estava munido, atingindo a vítima no seu corpo.».
Também neste conspecto, não foi acolhida pelo Tribunal a versão apresentada pelo arguido, tendo-se referido que apesar de ninguém ter presenciado o sucedido e inexistirem testemunhas a pôr em causa a versão pelo mesmo oferecida, a mesma surgiria eivada, em muitos pontos, de inverosimilhança, contrariando as regras de experiência comum e sendo posta em causa pelos comportamentos adoptados pelo arguido nos momentos que antecederam e sucederam ao facto por si praticado, dizendo-se que, não obstante o próprio Ministério Público ter transposto a versão oferecida pelo arguido para a acusação pública, a mesma não oferece credibilidade suficiente.
Porém, como se disse, a versão do arguido sobre os questionados pontos, no seu núcleo essencial, é, realmente, corroborada pelos elementos objectivos fornecidos pelo processo e daí que não possamos concordar com a análise indiciária e as inferências afirmadas pelos Srs. Juízes, com invocação das regras da experiência, por serem frontalmente contrariadas pelo auto de reconhecimento prontamente realizado pelos elementos da polícia judiciária e, por sua vez, o resultado deste – mesmo que se atenda ao facto de para o mesmo ter sido, por certo, relevante o contributo do arguido – é patentemente atestado pelo teor do auto de inspecção judiciária com recolha de imagens, também documentadas nos autos a fls. 21 a 36.
Com efeito, o que se encontra extractado nessas imagens, com particular realce para aquelas donde se extrai o local em que a vítima foi alvejada, ou seja, na extrema do souto, junto ao caminho, e que a mesma tinha então em seu poder o cajado é o que melhor se harmoniza com a versão aduzida pelo arguido em audiência de julgamento. Mesmo que assim não fosse, tais elementos objectivos seriam, pelo menos idóneos a gerar uma dúvida razoável em relação à plausibilidade de tal versão, a qual, obviamente, teria de ser solvida em prol do arguido, em obediência ao acima mencionado princípio.
Na verdade, retira-se do conjunto da reconstituição dos factos, no essencial, que o arguido depois de voltar ao local onde se encontrava o M. Miranda, cerca das 19h30, saiu do carro na posse da arma e perguntou ao mesmo «então és tu que me queres foder?», tendo este respondido «fodo-te, fodo-te mesmo», ao mesmo tempo que, na posse do cajado, avançou na direcção do arguido – e não o contrário, como presumiram os Srs. Juízes – e este, que até aí se mantivera com a espingarda junto ao corpo e os respectivos canos virados para baixo, quando aquele já se encontrava a uma distância de 2,50 metros dele, apontou-lhe a arma e efectuou um disparo na sua direcção, tendo o alvejado caído de imediato, quando foi atingido, o que sucedeu já próximo do caminho em que o arguido se encontrava. É o que se constata pela análise das mencionadas imagens, nas quais se consegue identificar a terra batida, correspondente ao estradão onde o arguido permaneceu, enquanto o falecido, que se encontrava por debaixo do castanheiro, se foi aproximando dele, até ficarem a uma distância de 2,50m, altura em que o arguido efectuou o disparo em direcção ao seu peito, ficando o corpo do mesmo prostrado já junto ao dito estradão, com a cabeça a cerca de 60 cm da berma do terreno. Dessas imagens também se colhe que o falecido empunhava um cajado com cerca de 1,51 m de cumprimento, que veio a quedar-se para a frente do corpo do mesmo, já no estradão (cf. relatório pericial, especialmente, a fls. 27 dos autos).
Os Srs. Juízes, para afastarem a versão do arguido e, aliás, acolhida pelo Ministério Público na acusação, partiram, essencialmente, do relatado pelo já mencionado amigo do falecido, a testemunha A. Rodrigues, segundo o qual o arguido lhe teria dito que no terreno em questão mais ninguém colocaria qualquer marco, e do facto de este, na sequência, se ter deslocado, sozinho e no seu veículo, para o local onde – segundo também presumiram – ele sabia, com séria probabilidade, ser possível encontrar a vítima. Os Srs. Juízes avalizaram esse encadeado de presunções como idoneamente demonstrativo, segundo afirmaram, de que o arguido foi buscar o conflito para operar o que designaram por vulgar “ajuste de contas” e colocar um ponto final na querela que o apoquentava, relacionada com a questão dos terrenos.
Ora, de modo algum se pode concordar com o argumentado pelo Tribunal colectivo: como se disse, não se pode ter por demonstrado que o arguido sabia que àquela hora encontraria o falecido e também a afirmação reportada pela testemunha A. Rodrigues como tendo sido proferida na festa pelo arguido pode comportar um sentido diferente do que lhe foi atribuído pelos senhores Juízes e igualmente plausível – designadamente, o mais compatível com o seu teor literal, de manifestação de oposição à colocação de marcos – pelo que a inferência do significado afirmado na decisão recorrida não deve ser acolhido, para além de não se ajustar às regras da experiência comum e da normalidade da vida que o arguido fosse tirar desforços, num momento em que ainda não se encontrava munido da arma, tendo o mesmo até medo do falecido, por se sentir por ele ameaçado (como se infere do facto nº 73).
Assim, estamos em crer que a explicação avançada pelo arguido não poderia ser desconsiderada pelo tribunal, como acabou por sê-lo, não só porque inexistem elementos de prova seguros que a contrariassem, assim como os que, realmente, existem apontam no seu exacto sentido e, se dúvidas subsistissem, teriam que ser ultrapassadas com apelo ao princípio in dubio pro reo, basilar do direito penal. Existindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente, a decisão deve assentar na que se mostre mais favorável ao arguido, de acordo com o aludido princípio in dubio pro reo, como corolário da apreciação da prova.
O que se estende, evidentemente, às referências – aliás, de cariz meramente conclusivo – quanto à indefesa da vítima, à futilidade do motivo, ao total desprezo pela vida humana ou à frieza de ânimo do arguido, as quais, por outro lado, não se adequariam ao comportamento adoptado por ambos os intervenientes nos factos em causa, em conformidade com o que anteriormente patenteámos.
Quanto ao demais, ressalta da decisão recorrida uma imagem lógica do que realmente aconteceu, sem que subsistam dúvidas de que o recorrente, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, cometeu os factos tidos por provados. Tendo como adquirido que o arguido disparou sobre o falecido a uma distância de 2,50 metros com a arma que se encontra documentada nos autos, que previamente municiou com o chumbo nº 6, apontando-a para a zona do peito, local onde se alojam órgãos vitais, conhecendo as suas potencialidades letais, porque é caçador, ditam as regras da experiência e da normalidade da vida que este quis tirar a vida ao falecido e daí que nenhuma censura merece, nessa parte, a decisão recorrida, ressalvadas as já aludidas referências meramente conclusivas que ficaram a constar dos itens 17 a 21.
Na verdade, todos os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as expostas ilações quanto à matéria em apreço, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que, nesta parte, pugnou o recorrente. Assim, perante a prova produzida, pensamos que, com as apontadas ressalvas, não se detecta qualquer outro pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pelos julgadores.
Com o que se quer significar que, sem embargo de não ser a circunstância de o recorrente se ter munido especificamente de arma em questão e a ter municiado com um chumbo que, por si só, revela a intenção do arguido, previamente assumida, de matar a vítima, essa intenção é patenteada, outrossim, pelo restante procedimento do recorrente, como se verá.
Com efeito, no apontado contexto, seria normalmente exigível ao arguido, se outra fosse a sua intenção, que não a de tirar a vida ao falecido, que, não obstante a investida deste e o medo que dele tinha, disparasse para uma outra zona do corpo para impedir qualquer iminente agressão por parte do mesmo. Contrariamente ao afirmado no recurso, não colhe a argumentação de que não era sua intenção a de retirar a vida ao falecido, por ter municiado a arma com um chumbo nº 6: sendo caçador, ainda que aquele chumbo se destinasse a caça de pequeno porte, o mesmo não poderia deixar de saber que, disparado a uma curta distância, o tiro teria os mesmos efeitos que uma bala, para além de ter menos hipóteses de falhar o alvo.
Extraem-se da matéria factual objectivamente apurada elementos que, devidamente conjugados, coincidem na formulação de um resultado unívoco, pois permitem inferir, com segurança e sem margem para dúvidas, o ânimo homicida do arguido (intenção de matar). Temos em vista, essencialmente, o facto de o mesmo ser caçador e conhecedor das características letais da arma que empunhava, ter disparado a uma curta distância de 2,50 m, em direcção ao peito do ofendido, zona onde se alojam órgãos vitais.
Na verdade, sendo o dolo um elemento da vida interior – ou, dito de outro modo, de um facto do foro psicológico – do agente, por isso, impossível de apreender directamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem. Tratando-se de factos, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, o tribunal pode considerá-los provados, através de outros que com eles normalmente se ligam, fazendo uso das regras da experiência comum (13).
Podemos, pois, concluir que o elemento subjectivo do tipo legal de crime infere-se, por presunções naturais, dos factos materiais correspondentes à acção objectivamente considerada.
Da factualidade objectiva apurada não decorre, com apoio em regras de experiência e de normalidade, que a intenção do arguido fosse meramente ferir o falecido M. Miranda.
Finalmente, para além do já referenciado sentimento inferido do facto nº 73, nenhuma prova foi feita que sustente uma decisão diferente da que levou a ter por não provada a factualidade inserida no respectivo item nº 3.
Por conseguinte, os enunciados elementos, devidamente ponderados segundo as regras da lógica e da experiência comum, permitem que se retire a conclusão de que o recorrente nas circunstâncias de tempo e lugar descritas nos factos disparou sobre o ofendido, querendo tirar-lhe a vida, como efectivamente sucedeu, bem como que o mesmo, agindo de forma livre e consciente, apesar de saber do caracter proibido por lei da sua conduta.

Como decorrência de tudo o que foi exposto, para além de ser desconsiderada a matéria de índole meramente conclusiva incluída nos pontos impugnados, decide-se alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto pelo modo seguinte, quanto aos factos aí tidos por provados:
5. (Eliminado).
11. Aí chegado, após avistar o M. Miranda próximo dos estábulos, debaixo de um castanheiro, o arguido parou o veículo em que seguia, saiu do seu interior e colocou-se junto ao mesmo, no caminho, com a caçadeira junto ao corpo, do lado direito, segurando-a com mão direita, com os canos voltados para o chão, e disse àquele: “então és tu que me queres foder?”
12. No seguimento, o M. Miranda respondeu “pois sou e fodo-te” e, de imediato, empunhando um cajado com 1,51m de comprimento, encaminhou-se para o local onde permaneceu o arguido e este, quando aquele se encontrava a 2,5m dele, apontou a espingarda caçadeira na direcção do mesmo.
13. E, em acto contínuo, carregou no gatilho e disparou na direcção do peito do M. Miranda, atingindo-o no lado esquerdo da zona peitoral.
14. Após o disparo, com a vítima prostrada no chão, o arguido abandonou o local na condução do veículo em que se fazia transportar, e, após breve passagem pela sua residência, entregou-se no Posto Territorial da GNR de Vinhais.
17. O arguido conhecia as potencialidades letais da arma que utilizou para disparar sobre a vítima e utilizou-a, sabendo que a mesma era um meio idóneo para causar a morte de outrem.
18. Ao efectuar o disparo a curta distância sobre uma zona do corpo do ofendido onde se alojam órgãos vitais, o arguido agiu com a intenção de lhe tirar a vida, resultado que logrou alcançar.
19. Os desentendimentos entre ambos relacionavam-se com questões referentes a limites/confrontações de um terreno.
20. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de tirar a vida a M. Miranda, o que efectivamente fez, dirigindo o disparo da arma de fogo que empunhava para o peito da vítima, quando se encontrava a cerca de 2,50 metros de distância da vítima, atingindo zonas do corpo que sabia conterem órgãos vitais.

E relativamente aos factos tidos por não provados:
1. (Eliminado).
2. Quando avançou em direcção ao arguido, o M. Miranda fê-lo para o agredir fisicamente e, nesse momento, o arguido efectuou o disparo para repelir a agressão, com receio de ser ofendido na sua integridade física e/ou vida.
3. Em datas não concretamente apuradas, mas anteriores ao dia 26 de Maio de 2016, a vítima M. Miranda afirmou/anunciou que ia tirar a vida ao arguido e aos seus familiares, designadamente à sua mãe, circunstância que motivou a actuação do arguido sobre a vítima, designadamente que o mesmo tivesse ido munir-se da espingarda caçadeira, com o intuito, apenas, de lhe causar medo e receio.

Por conseguinte, procede apenas parcialmente, nos expostos termos, a impugnação da matéria de facto.

2. A intenção de matar e as qualificativas do crime.
Apesar de as conclusões do recurso apresentado pelo arguido/recorrente se centrarem fundamentalmente na impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada, o mesmo também se insurge contra o facto de o Tribunal recorrido ter considerado que agiu com intenção de tirar a vida ao ofendido e, para a hipótese de assim se entender, sustenta que os factos preenchem somente o crime de homicídio simples do art. 131º do C. Penal, tese que o Tribunal de 1ª Instância não sufragou, considerando, outrossim, que foi cometido o crime de homicídio qualificado dos arts. 131º e 132º, nº 2, als. e) e j) do citado C. Penal, em virtude de o recorrente ter agido por motivo fútil e com frieza de ânimo.
Não obstante, o já expendido em sede de apuramento da matéria de facto, impõe-se, ainda que muito sinteticamente, acrescentar algumas considerações neste plano do enquadramento jurídico dos factos.
O bem jurídico protegido por este ilícito é a vida humana, consistindo o respectivo tipo objectivo em causar a morte de outra pessoa, a que, recorrendo ao critério da ciência médica, corresponde à morte cerebral.
Seguindo de perto a doutrina do Prof. Figueiredo Dias (14), podemos dizer que o crime de homicídio pressupõe a morte de uma outra pessoa que não o agente do crime e que a conduta do agente do crime tenha sido adequada ao resultado da morte, independentemente dos meios utilizados e do momento em que a morte ocorre – imediatamente ou em momento posterior. No que respeita ao preenchimento do tipo subjectivo de ilícito, basta-se este tipo de crime com qualquer uma das formas de dolo (15).
Assim, dúvidas não restam de que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do citado ilícito de homicídio.
Resta apurar se a descrita conduta reveste características tais que a tornem especialmente censurável ou perversa, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2, do artigo 132º do C. Penal, isto é, se o crime de homicídio praticado pelo arguido deve ser qualificado nos termos preconizados na decisão recorrida.
No C. Penal português a qualificação do homicídio é feita, segundo a técnica dos exemplos-padrão (“regelbeispieltechnik”): no nº 1 está configurada a tipicidade da qualificativa e no nº 2 faz-se uma indicação meramente exemplificativa de alguns índices que poderão revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que o tipo se refere (16).
Os exemplos-padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral que, por sua vez, corrige o conteúdo objectivo daqueles.
Segundo a decisão recorrida, a conduta do arguido integra o exemplo padrão das alíneas e) e j) do nº 2 do art. 132º.
Por especialmente censuráveis deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores; e por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, o que pode reconduzir-se à atitude má, de crasso e primitivo egoísmo do agente (17).
Ou, no dizer de F. Dias, a especial censurabilidade refere-se a condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas; e a especial perversidade refere-se àquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (18).
Tais elementos são referentes ao tipo de culpa do agente, o que determina que « (...) a [sua] verificação (...) não leva, só por si, ao agravamento da censura penal, sendo indispensável ainda apurar, no caso concreto, se o índice em causa tem a virtualidade de revelar força que justifique tal agravamento (...)» (19).
Entendeu o legislador que se a morte for perpetrada por qualquer motivo fútil ou o agente tiver actuado com frieza de ânimo, em razão de qualquer das aludidas circunstâncias, seria susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade.
No entanto, torna-se necessário que a conduta do agente, em concreto, revele uma especial censurabilidade ou perversidade que justifique, pela referida actuação, a maior severidade da punição devida. E, subjectivamente, o juízo de especial censurabilidade só é sustentável se o agente actuar com consciência e vontade de que a sua conduta lesa a vida de uma pessoa que se encontre numa condição de especial vulnerabilidade, ou seja, se o elemento subjectivo, o dolo, também abranger essa condição reveladora da especial censurabilidade ou perversidade.
Motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (20).
Ou, como recentemente se considerou no Acórdão do STJ de 02-12-2015, «A circunstância qualificativa motivo fútil – art.º 132.º n.º 2 e), do CP – estruturada com relação à motivação do agente, é a que surge fundada num profundo desprezo do valor da vida humana, acção que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta; é um motivo que de tão pouco ou imperceptível relevo é, que quase não chega a ser motivo, frívolo, revelador de inadequação e que faz avultar a desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objectivou» (21).
Relativamente à circunstância qualificativa de frieza de ânimo, a jurisprudência do mesmo Tribunal tem vindo a decidir que esta se verifica, quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana e reflecte-se sobre os meios empregados quando a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam acentuadamente as possibilidades de defesa da vítima mercê do modo frio, indiferente, calmo e imperturbavelmente reflectido como foi planeada a morte.
A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.
Reflexão sobre os meios empregados implica um amadurecimento temporal sobre o modo de praticar o crime, a congeminação serena e perdurante, no campo da consciência, da ideação de matar e dos meios a usar.
Em conclusão, não podemos deixar de evocar o que se afirma no Acórdão do STJ de 19/2/2014 (P. 168/11.0GCCUB.S1): «... Reportando-nos à síntese doutrinal constante de Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30-11-2011 acentuava Maia Gonçalves, que «…É que, diz-se, tal firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada revela uma forte intensidade da vontade criminosa. Efectivamente, a circunstância de mediar um grande intervalo de tempo entre o momento em que, definitivamente, a resolução criminosa se formou e a sua execução, ou seja a pertinácia da resolução, a mora habens, mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo que a força de vontade criminosa é de tal forma intensa que o agente sem hesitação, como mero “déclancher” da decisão tomada prévia e longinquamente».
No caso dos autos, conforme se logrou apurar, o que, mediatamente, levou a que o arguido se dirigisse à sua habitação para se munir da arma, que municiou com apenas um chumbo, foi o facto de o ofendido M. Miranda lhe ter dirigido a expressão «tu vais-te foder», conexionada com as desavenças entre ambos por problemas derivados dos limites de uma propriedade. Tendo o arguido ido de novo ao encontro do ofendido e aí o interpelado dizendo «então és tu que me queres foder?», o mesmo respondeu «sou fodo-te e fodo-te mesmo» ao mesmo tempo que se encaminhou na direcção daquele empunhado nas mãos um cajado de 1,51m.
Ora, a acção do arguido foi desencadeada na sequência de o próprio ofendido não se ter coibido de investir na sua direcção, empunhando um objecto apto a agredi-lo, quando é sabido que se encontravam de relações cortadas por motivos relacionados com as extremas de um terreno, sentindo o arguido medo e receio do mesmo. O descrito comportamento da vítima foi, objectivamente, provocatório, desafiante e ofensivo, o que não obsta ao reconhecimento de que o resultado da reacção do arguido – a eliminação do bem mais precioso (a vida de uma outra pessoa) – foi, manifestamente, desproporcional e intensamente censurável.
Entendeu o Tribunal recorrido que a conduta do arguido era censurável, pois, como se escreveu nessa decisão, o arguido agiu sobre a vítima determinado por meras divergências relacionadas com questões de propriedade e demarcação de terrenos, traduzindo um egoísmo mesquinho e insignificante do agente/arguido.
Não podemos estar de acordo com esta conclusão: o que importa averiguar é se à luz de padrões de comportamento comuns do meio em que o crime ocorreu se a atitude do arguido é fútil, devendo pois ser avaliada dum ponto de vista ético-cultural. É nesse enquadramento que a desproporcionalidade da motivação da conduta relativamente aos padrões comunitariamente aceitáveis tem de ser ponderada, não sendo do ponto de vista subjectivo do agente que a «futilidade» deve ser avaliada.
E, como diz o STJ (22), «É preciso recordar que o crime base neste domínio é o de homicídio simples, no qual o agente manifesta, quase sempre, o tal “profundo desprezo pela vida humana”, já que, por definição, age com dolo (na maioria das vezes directo, isto é, pretende e tem o desejo de matar) e fá-lo por um motivo qualquer, que quase nunca se pode avaliar positivamente, por exemplo, por vingança, por vaidade ou por afirmação de grupo. O homicídio qualificado há-de ter, por isso, algo que se deva acrescentar a essa culpa já intensa, que a torne especialmente censurável».
O crime foi cometido numa pequena aldeia de uma recôndita zona transmontana e não nos podemos esquecer que «Nas comunidades rurais, a terra tem, além do valor patrimonial, uma valor simbólico primordial, pelo que a defesa da propriedade mobiliza emocionalmente, de forma intensa, a generalidade das pessoas, sendo consequentemente fonte de conflitos extremos, despertando paixões violentas, não raro dentro das próprias famílias» (Acórdão do STJ de 12/03/2015 (23)).
Perante tal contexto factual, à luz de um homem médio, entendemos que a conduta do arguido não pode ser tida como fútil.
O Tribunal recorrido também considerou que arguido agiu com frieza de ânimo, tendo reflectido, ponderada e calmamente, sobre o meio empregue para matar o ofendido, assentando essa conclusão no facto de o arguido de ter dirigido à sua habitação para se munir da arma e regressado de novo para junto da vítima num período que não se prolongou para além dos 7 minutos.
Ora, em face dos factos provados e demais factores que deixamos enunciados, designadamente o estado emocional do arguido, que se sentiu amedrontado e receoso perante o ofendido – note-se que apenas disparou quando a vítima, com uma atitude provocatória e desafiadora, estava já muito próxima de si –,consideramos não poder concluir-se que o arguido haja agido com frieza de ânimo, que tenha reflectido, ponderada e calmamente, sobre o meio empregue para matar o ofendido, nos termos que pressuporia o preenchimento da circunstância qualificativa prevista na al. al. j) do nº 2 do artigo 132º.
Por conseguinte, entendemos ter o arguido praticado, em autoria material, um crime de homicídio simples, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 131º do C. Penal, embora agravado pela circunstância prevista no art. 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio (Regime Jurídico das Armas e Munições), a qual o recorrente não põe em causa. Assim, ao crime em causa corresponde uma moldura penal de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses.

3. A legítima defesa.
E que dizer da circunstância de o arguido ter disparado na sequência do ofendido ter ido na sua direcção com o cajado, identificado nos autos, numa das mãos e de sentir receio deste?
Num outro plano da sua defesa e com base neste pressuposto sustenta o arguido que actuou numa situação de legítima defesa.
Vejamos:
As causas de exclusão da ilicitude encontram-se estabelecidas no art. 31º do C. Penal, referindo-se no seu nº 1 que “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”.
Exemplificam-se no seu nº 2, algumas dessas situações.
Assim e de acordo com a alínea a) não é ilícito, entre outros, o facto praticado em “legítima defesa”, considerando-se como tal, segundo o disposto no artigo subsequente «o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro».
Na esteira do que é considerado pelo Prof. F. Dias, in Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, pag. 408, «uma situação de legítima defesa supõe a existência de uma agressão actual ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro; devendo a acção de legítima defesa constituir o meio necessário para repelir a agressão».
Para esse efeito, devemos entender como agressão, qualquer tipo de comportamento voluntário humano que, por acção ou omissão, represente uma ofensa para interesses juridicamente protegidos, tendo a sua origem numa atitude intencional ou meramente negligente.
Para além disso, exige-se que a agressão seja actual, o que sucede quando esta seja eminente ou esteja a efectuar-se, não sendo susceptível de se falar em legítima defesa quando não se tenha manifestado qualquer agressão ou quando esta já tenha cessado. A actualidade da agressão significa que a legítima defesa deve ter lugar depois de ela se ter iniciado e a antes de ter terminado, isto é, quando a defesa ainda pode ter êxito.
E será ilícita quando o comportamento se revestir de desvalor jurídico, o que sucede quando se infringem direitos ou interesses juridicamente tutelados do visado ou de outrem, podendo essa violação revestir natureza penal, cível ou qualquer outra.
Outro dos requisitos é a necessidade racional do meio empregue para a defesa, a qual deve ser aferido tanto em relação ao objecto como à forma como o mesmo é utilizado para repelir ou impedir uma agressão. A necessidade da defesa tem de ajuizar-se segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão e, em particular, na base da necessidade desta, da perigosidade do agressor e da sua forma de actuar, bem como dos meios de que se dispõe para a defesa, e deve aferir-se objectivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido.
Como escreve o mesmo Autor na obra citada p. 419, «o meio será necessário se for um meio idóneo para deter a agressão e, caso sejam vários os meios adequados de resposta, ele for o menos gravoso para o agressor. Só quando assim aconteça se poderá afirmar que o meio usado foi indispensável à defesa e, portanto, necessário. O juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão, tem natureza ex ante, e nele deve ser avaliada objectivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo todavia especial atenção as características pessoais do agressor (idade, compleição física, perigosidade), os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do ataque, em contraposição com as características pessoais do defendente (o porte físico, a experiência em situações de confronto) e os instrumentos de defesa de que poderia lançar mão»
Ou, como também se expendeu no acórdão da RP de 11/10/2006 (24), “Essa racionalidade não significa que deva existir uma precisão matemática entre o meio empregue e a agressão, pela simples razão de que numa situação de conflito, que está normalmente subjacente a uma legítima defesa, existe sempre uma perturbação anímica decorrente de uma agressão, que perturba a reflexão, a serenidade e tranquilidade de espírito de quem se defende.
Por isso, a aferição da racionalidade do meio empregue deve sempre revelar uma certa flexibilidade ou graduação, mediante uma ponderação objectiva e “ex ante” do conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão, designadamente a sua intensidade e o modo de actuação, e os meios de defesa disponíveis”.
Para além dos requisitos a que vimos aludindo há quem entenda que aos mesmos acresce o “animus defendendi”.
O professor Figueiredo Dias na obra citada, p. 433, escreve: «para além do requisito subjectivo que vale para a generalidade das causas de justificação – o do conhecimento da situação de legítima defesa – desde há muito se suscita e continua a suscitar-se a questão de saber se será ainda de exigir, como requisito da acção de defesa, a existência no defendente de um animus defendendi, de uma actuação com a vontade de defender os bens jurídicos ameaçados pela agressão. Uma resposta afirmativa foi outrora dominante na doutrina Portuguesa; mas, como acentua Taipa de Carvalho, tal equivalia as mais das vezes a exigir que o defendente representasse a existência de uma agressão actual e ilícita. A jurisprudência tem-se mantido fiel à exigência neste contexto de uma vontade de defesa, impondo até por vezes – o que é de todo inaceitável - que essa vontade se manifesta sobretudo a forma de dolo directo. Mas ultrapassado o entendimento puramente objectivista da ilicitude e da justificação, compreende-se que a doutrina hoje dominante corra no sentido de que, existindo o conhecimento da situação de legítima defesa, não deverá fazer-se a exigência adicional de uma consequência-motivação de defesa: tal faria depender a existência de justificação da manifestação de uma atitude interior do defendente que levaria a conotar perigosamente a legitima defesa com concepções morais próximas de um direito penal do agente.».
No mesmo sentido se pronunciou o acórdão da RC de 17/09/2003 (25) “1. O juízo sobre a adequação do meio de defesa deve ter em consideração as circunstâncias do caso concreto. 2. A lei actual apenas exige como requisito da legítima defesa a consciência da agressão e a necessidade de defesa, pelo que se mostra desprovido de sentido falar-se em animus defendendi”.
No que respeita à exigência da proporcionalidade entre a agressão e a defesa, sustenta o citado Autor, na mesma obra, p. 429 «que não pode ser legítima a defesa que se revela notoriamente excessiva face aos bens agredidos e que, nessa medida, representa um abuso de direito de legítima defesa. (…) A necessidade da defesa deve ser negada sempre que se verifique uma insuportável (do ponto de vista jurídico) relação de desproporção entre ela e a agressão: uma defesa inadmissivelmente excessiva e, nesta acepção, abusiva, não pode constituir simultaneamente defesa necessária; logo porque não pode de modo algum representar-se como uma defesa de Direito contra o ilícito na pessoa do agredido.».
Por fim, evoca-se a feliz síntese exarada no Acórdão do STJ de 16/09/2008 (26):
«X – Segundo a definição mais clássica de legítima defesa – acção necessária para repelir por si mesma um ataque actual e antijurídico, que, essencialmente, vem aceite no art. 32.º do CP, a situação de defesa pressupõe e tem de ser desencadeada por uma agressão actual e ilícita contra o agente ou terceiro, afectando bem jurídico susceptível de ser protegido através de defesa. Deve, pois, existir uma agressão – que significa toda a lesão ou a iminência de lesão (perigo imediato) – de um interesse juridicamente protegido do agente ou de terceiro, desde que o comportamento do agressor se apresente com um mínimo de causalidade de acção.
XI – Para o efeito de integração dos pressupostos da situação de legítima defesa, a agressão deve ser actual, no sentido de que está em execução ou iminente, porque o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado. A agressão está iminente quando, embora ainda não iniciada, numa aproximação analógica aos elementos da tentativa, se deva seguir imediatamente, segundo a leitura objectiva da situação de um terceiro exterior e não pela representação subjectiva do agente. Ou seja, para determinar a iminência ou a actualidade é decisivo o prognóstico objectivo de um espectador experimentado colocado na situação do agente e não a representação subjectiva deste. A mera intenção, sem ser exteriormente accionada, não constitui iminência de agressão (cf., v.g., Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo 1, 2.ª edição, págs. 411-412, e Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, ob. Cit., pág. 366). A iminência da agressão estará presente nas situações em que se saiba antecipadamente, com certeza ou com elevado grau de probabilidade, que terá lugar.
XII – Perante uma agressão actual e antijurídica pode ter lugar a defesa necessária. A legítima defesa, como defesa necessária, supõe, porém, uma vontade de defesa, não no sentido de exclusão, pois desde que exista tal vontade, podem concorrer, para além desta, outros motivos (v.g., ódio, indignação, vingança), mas com tratamento específico quando, perante o animus deffendendi, sobrelevem a necessidade de defesa. A necessidade (art. 32.º do CP: meio necessário) da acção defensiva para repelir o ataque constitui, assim, um pressuposto da situação de legítima defesa.
XIII – Mas a actuação com vontade de defesa depende dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. Existindo o conhecimento de uma situação objectiva de legítima defesa, não tem sentido a exigência adicional, como se fosse autónoma, de uma co-motivação de defesa (cf. Figueiredo Dias, ob. Cit., pág. 438, e Roxin, ob. Cit., pág. 667).
XIV – A exigência da necessidade que qualifica os meios de defesa admissíveis traduz-se na escolha do meio menos gravoso para o agressor, de acordo com o juízo do momento, mas com natureza ex ante, avaliando objectivamente toda a dinâmica do acontecimento. A necessidade da acção defensiva supõe que esta não deve passar além do que seja adequado para _úditar e repelir eficazmente a agressão – princípio da menor lesão para o agressor, avaliada segundo critérios objectivos; por isso, quem defende deve escolher de entre os meios eficazes de defesa que estejam, em concreto, à sua disposição, aquele que resulte menos perigoso e que cause menor dano.
XV – Assim, a acção defensiva necessária é a que é idónea para a defesa e constitui o meio menos prejudicial para o agressor. A avaliação da necessidade depende do conjunto de circunstâncias nas quais ocorre a agressão e a reacção – especialmente a intensidade do concreto meio ofensivo e da ofensa, as características pessoais do agressor em contraposição com as características pessoais do defendente (idade, compleição, experiência em situações de confronto, perigosidade e modo de actuação), bem como dos meios disponíveis para a defesa – e deve valorar-se sob uma perspectiva objectiva, isto é, tal como um homem médio colocado na posição do agredido teria valorado as circunstâncias da agressão.
XVI – A necessidade liga-se ao próprio fundamento teleológico da causa de exclusão da ilicitude – não ceder perante o ilícito; a acção defensiva não será necessária quando, por exem-plo, se verifique uma «crassa desproporção» entre a natureza, qualidade ou intensidade da agressão e a gravidade das consequências da reacção. Agressões irrelevantes não poderão ser repelidas causando a morte; não pode existir, analisada caso a caso, uma desproporção intolerável entre a natureza da agressão e a gravidade das consequências da reacção (cf. Figueiredo Dias, ob. Cit., pág. 430, e Claus Roxin, ob. Cit., pág. 663).
XVII – A ponderação da necessidade (menor lesividade) tem, porém, de ser compreendida nas circunstâncias do caso: a defesa pode ser intensa para fazer terminar rápida e completamente a agressão ou a eliminação do perigo, não sendo exigível que o agredido apenas utilize tímidos intentos de defesa que podem fazer correr o risco de continuação ou de intensificação da agressão.
XVIII – A interpretação da exigência de necessidade deve conduzir ao resultado político-criminalmente desejável de que os erros objectivamente insuperáveis sobre a necessidade do meio defensivo sejam tomados em prejuízo do agressor.
XIX – Na ponderação sobre a necessidade dos meios não deve, porém, entrar-se em linha de conta com a possibilidade de fuga; escapar não é repelir a agressão (cf. Figueiredo Dias, ob. Cit., pág. 419, e Claus Roxin, ob. Cit., pág. 631-633).
XX – A necessidade e o exame sobre a necessidade surgem ex ante e não supõem uma ponderação de proporcionalidade dos bens jurídicos implicados. É esta a posição maioritária na doutrina nacional, que nos últimos cinquenta anos não parece atender ou considerar a exigência de proporcionalidade dos bens, fundamentando-se, para tanto, no princípio de que «o direito não tem que ceder ao ilícito» (cf. Figueiredo Dias, ob. Cit., pág. 428, Américo A. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, 1995, págs. 423-424, e, sobre as diversas posições na questão, Teresa Quintela de Brito, Homicídio Justificado em Legítima Defesa e em Estado de Necessidade, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, pág. 185 e ss.)”.
Revertendo ao caso em análise, à luz dos expostos ensinamentos, não pode afirmar-se que na matéria de facto provada se revela um comportamento humano que configure uma ofensa a direitos ou interesses juridicamente tutelados do arguido recorrente, a que se adequasse a conduta deste.
É certo que, como se viu, a acção do arguido foi desencadeada na sequência do analisado comportamento provocatório, desafiante e ofensivo da vítima, mas também já se reconheceu a desadequação e a desproporção ou o excesso da reacção daquele como defesa em relação a tal atitude, mesmo ponderando que nesta se deve incluir tanto a expressão injuriosa ao arguido endereçada como, sobretudo, a potencial ameaça de utilização do cajado de que aquele estava munido, enquanto se aproximava do mesmo.
Realmente, não se retira de tais factos dados por assentes que o disparo do arguido sobre o ofendido, ainda que efectuado enquanto durava o mencionado comportamento provocatório deste, fosse o meio racionalmente necessário e idóneo a deter uma agressão e o menos gravoso para o potencial autor desta, ponderando, particularmente, a já aludida possibilidade, ao dispor do arguido, de dirigir o disparo para uma zona não letal do corpo do alvejado: no caso vertente, procedendo a uma avaliação objectiva da dinâmica do evento, deparamos, necessariamente, com uma atitude ofensiva e desafiante do lado do falecido, que foi com um cajado no encalço do arguido, mas este, ao efectuar o disparo, dirigiu a pontaria para a zona vital do corpo daquele, podendo tê-lo feito noutra direcção para evitar a potencial agressão, porquanto tal meio menos gravoso estava ao seu alcance, mesmo sem desconsiderar o receio que tinha da vítima.
Por outro lado, no que tange ao animus defendendi invocado no recurso, sendo certo que entendemos que um tal requisito não se mostraria necessário para a verificação da legítima defesa, sempre se dirá que, no caso, dúvidas não restam de que, com o disparo, o arguido recorrente visou, claramente, tirar a vida ao falecido.
Por conseguinte, por não se verificarem os pressupostos da invocada causa de exclusão da ilicitude, a legítima defesa, deve afirmar-se a responsabilidade penal do recorrente nos termos supra expendidos.

4. A atenuação especial e a medida da pena.
Ponderemos, agora, a medida da pena a impor ao recorrente.
Para este efeito, deverá atender-se ao disposto no artigo 40º do C. Penal, que estabelece que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, a reforçar a confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente.
Em consonância com o estipulado no nº 1, do art. 71º, do C. Penal, a medida da pena é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o art. 40º, nº 2, do mesmo Código.
Na determinação concreta da pena há, assim, que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71º, nº 2, do C. Penal).
Dito por outras palavras, na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção, quer de ordem geral – com o objectivo de confirmar os bens jurídicos violados –, quer de ordem especial – tendo em vista gerar condições para a readaptação do agente do crime, de modo a evitar que este volte a violar tais bens –, mas sem se perder de vista a culpa do agente – com atendimento das circunstâncias estranhas à tipicidade –, que a medida da pena tem como base e limite.
Como se disse, a finalidade essencial da aplicação da pena, para além da prevenção especial – encarada como a necessidade de socialização do agente, no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes – reside na prevenção geral, o que significa «que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto … alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...». «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica» (27). «Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...» (28). «Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado» (29).
Em suma, a pena concreta será limitada, no seu máximo, pela culpa do arguido. O princípio da culpa dispõe que «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa» (cfr. art. 40º, nº 2, do C. Penal).
Prevê-se ainda no art. 72º, nº 1, do C. Penal a atenuação especial da pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, exemplificando-se no nº 2 circunstâncias que se entende preencherem aqueles requisitos, incluindo o de ter o agente actuado sob influência de ameaça grave, por tentação da própria vítima e de ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, [als. a), b) e c)].
Trata-se de uma “válvula de segurança” do sistema, por razões de justiça e adequação, que determina que a moldura penal prevista seja substituída por outra menos severa, “quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva” (F. Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 302).
Resulta da matéria de facto e de todas as considerações já expendidas que o arguido colaborou activamente e de forma relevante para a descoberta da verdade, mostrou-se arrependido, evidenciou um sincero e efectivo juízo autocrítico em relação ao seu comportamento, pedindo desculpa aos familiares da vítima e apenas não encetou qualquer iniciativa para o ressarcimento dos danos causados por falta de meios económicos.
Por outro lado, também se apurou que a conduta ilícita do arguido foi desencadeada na sequência de uma atitude desafiante e provocatória da vítima, de quem aquele tinha receio. Porém, o arguido não se coibiu de se ausentar do local, imediatamente após o disparo, sem se ter certificado se a vítima estava ou não morta, o que não deixa de impressionar, embora não de omita que, ao nível pessoal e profissional, o mesmo sempre apresentou boa conduta e de acordo com as normas.
Contudo, não podemos olvidar que é muito exacerbada a gravidade objectiva da conduta do arguido, já que, com a mesma, atingiu, com dolo directo, o valor humano supremo, sendo sabido que a violação de tal bem jurídico suscita forte reprovação social, par de intranquilidade e insegurança.
Consequentemente, pese embora deverem ser atendidas na fixação concreta da medida da pena as circunstâncias que envolveram a prática do crime e que foram sendo ponderadas, as mesmas, segundo entendemos, não têm suficiente relevo para que se repute como sendo diminuída, de forma acentuada, quer a culpa do arguido, quer as exigências de prevenção e, consequentemente, a necessidade da pena, não estando, pois, preenchidos os requisitos para a sua atenuação especial.
Ora, sopesando todos os enunciados factos apurados quanto à mediana intensidade do dolo na conduta que ceifou a vida à vítima, à elevada gravidade das consequências desse facto, ao modo da sua execução e ao fim que o determinou, no contexto dos problemas relacionados com os limites de uma propriedade e da conduta provocadora da vítima, a par das expendidas considerações quanto às exigências de prevenção geral e à necessidade da pena, sem descurar as particulares condições referentes à pessoa do arguido, das quais sobreleva uma não muito acentuada necessidade de prevenção especial, entendemos que satisfaz tais necessidades uma pena situada em patamar significativamente abaixo da média da moldura aplicável, mostrando-se concretamente ajustada e adequada às particularidades do caso a pena de 13 anos de prisão.

Procede, pois, parcialmente o recurso.

Decisão:
Nos termos expostos, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido António e, por consequência, decide-se:
1º) alterar, nos termos sobreditos, a decisão proferida sobre a matéria de facto;
2º) revogar parcialmente a decisão recorrida e, consequentemente:
- absolver o arguido da imputação de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e j), do C. Penal, e 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (na redacção da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio);
- condenar o arguido, como autor de um crime de homicídio simples agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 131º, do C. Penal, e 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (na redacção da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio), na pena de 13 (treze) anos de prisão.
3º) confirmar, no demais, o acórdão recorrido.

Sem tributação, por não ser devida (cfr. artigo 513º, nº 1, do CPP).
Guimarães, 11/09/2017

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

1 O legislador pretendeu um grau de recurso que atentasse e procedesse – dentro dos limites que uma gravação, despida dos factores possibilitados pela imediação consentisse – uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto.
2 Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, relatado pelo conselheiro Cura Mariano «…o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu: “Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…».
3 Processos nºs 06P3518 e 08P2894, respectivamente, ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
4 É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
5 Como dizia Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, p. 191.
6 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
7 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob 7 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - “Direito Proc. Penal”, 1º. Vol., pp. 203/205.
8Curso de Processo Penal”, p. 82.
9La Prueba em Processo Penal”, p. 59.
10 Cfr. Mittermaier, “Tratado de la Prueba em Matéria Criminal”.
11 Ainda sobre o recurso a tal espécie de prova, o STJ em Ac. de 8/11/95 (BMJ 451/86) refere que «Um juízo de acertamento da matéria de facto pertinente para a decisão releva de um conjunto de meios de prova, que pode inclusivamente ser indiciária, contanto que os indícios sejam graves, precisos e concordantes» e acrescenta que as regras da experiência a que alude o art. 127º, têm um importante papel na convicção do Tribunal. E o Ac. da RC de 6/3/96, in CJ 2º/44, que: «A prova pode ser directa ou indiciária; A prova indiciária assenta em dois elementos: a) - o indício que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele estará relacionado; b) - a existência de presunção que é a inferência que, obtida do indício, permite demonstrar um facto distinto; Nada impede que, devidamente valorada a prova indiciária, a mesma por si, na conjugação dos indícios permita fundamentar uma condenação» – doutrina reafirmada no Ac. do mesmo Tribunal de 9/2/2000, também in CJ, 1º/51. Também sobre prova directa, prova indiciária e regras da experiência, os Acs. Do STJ de 25/2/99 (BMJ 484/288) e de 3/3/99 (BMJ 485/248).
12 O provérbio “testis unus testis nullus” não tem, pois, definitiva relevância, apesar de muito ancestral. É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, “La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo”, Pamplona, 1996, pp.181-187).
13 Como lucidamente se referiu já no Acórdão da Relação do Porto de 23/02/1983, [BMJ 324. p. 620] «dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência». No mesmo sentido pronunciou-se o Acórdão dessa Relação de 28/01/1997, proferido no Proc. nº 0001015 donde se extrai: «O apuramento da intenção do agente é, normalmente, uma conclusão que o tribunal pode e deve fazer a partir da avaliação da conduta do arguido, na medida em que seja uma consequência ou prolongamento dos factos a este imputáveis».
14 Em “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo I.
15 Cf. artigo 14º do C. Penal.
16 Cumpre salientar, antes de mais, na esteira de Maia Gonçalves (In “Código Penal Português” Anotado e Comentado - 14ª Ed. - 2001 - pp. 444 e ss) que a enumeração das circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade feita no Artº 132º não é taxativa, mas exemplificativa, e que as enunciadas no nº 2 não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa. O que significa que não são de funcionamento automático, bem podendo dar-se o caso de se verificar qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas, e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.
A propósito desta técnica legislativa, salientou Eduardo Correia, na 2.ª sessão da CRCP (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal (Parte Especial), ed. da AAFDL., Lisboa, 1979, p. 21), que «por um lado as circunstâncias enunciadas no n.º 2 não são elementos do tipo antes elementos da culpa. Portanto não são de funcionamento automático: pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. Por outro lado, como a enumeração é meramente exemplificativa, outras circunstâncias não escritas são susceptíveis de revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas no n.º 1.».
17 V. Teresa Serra, in “Homicídio qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, Almedina, 1990, pág. 63 e 64.
A censurabilidade que constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa e a perversidade que se reporta a uma atitude rejeitável face à personalidade do agente, uma concepção que propicia uma concepção emocional da culpa.
18 Citado Comentário …, I p. 29. O legislador adoptou a técnica dos exemplos-padrão, através da qual faz derivar a qualificação «(...) da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrita com recurso a conceitos indeterminados: a ‘especial censurabilidade ou perversidade’ do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2.» (Autor cit., ibidem, p. 26).
19 V. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código citado, 2º vol., p. 39.
20 É repetida afirmação da nossa jurisprudência de que motivo fútil «é o que não é ou nem sequer chega a ser motivo» – cfr., entre outros, Ac. do STJ de 06.06.90, in BMJ 398°-269), de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da integridade física ou da vida humana.
21 P. 1730/14.5 JAPRT-S1, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro. No mesmo sentido e alcance se pronunciaram, entre outros os Acórdãos do mesmo Tribunal de 23/4/2015, P. 693/13.9JDLSB.L1, de 12/03/2015, P. 145/14.0JAPRT, 12.3.2015, P. 185/13.6.GCALQ, de 27/5/2010 P. 517/08.9JACBR.C1, de 27/6/2012, P. 127/10.OJABRG.G2.S1, de 17/4/2013, P.237/11.7JASTB.L1.
22 Acórdão de 23-10-2008 (P. 08P2856 - Santos Carvalho).
23 P.185/13.6GCALQ.L1.S1 - Maia Costa.
24 P. 2945/05, 1ª Secção, relatado por Joaquim Gomes.
25 P. 2021/03, relatado por Oliveira Mendes.
26 P. 08P2491, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
27 Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, p. 570 e s.
28 Ibidem, p. 575.
29 Ibidem, p. 558.