Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1854/07-2
Relator: FILIPE MELO
Descritores: LENOCÍNIO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
DANOS MORAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I – Pratica o crime de lenocínio aquele que, com intuito lucrativo, ameaça seriamente a mulher com quem vive, dizendo-lhe que a abandonaria, bem como ao filho menor de ambos, se não fosse ganhar dinheiro mantendo relações sexuais a troco de retribuição monetária, conseguindo que essa mulher, acreditando nas ameaças proferidas pelo mesmo, acedesse aos seus propósitos, passando a manter diariamente, durante cerca de cinco anos, relações sexuais de cópula completa e/ou coito oral, com indivíduos de sexo masculino que nisso se mostravam interessados, a troco de retribuição monetária.
II – De igual modo, é vítima de lenocínio uma outra mulher que o arguido encontrou a dormir debaixo de uma ponte, por ter sido posta fora de casa, aproveitando-se da situação em que tal mulher se encontrava e pondo-a a trabalhar para si nos mesmos termos em que então já o fazia com a mulher com quem vivia, ou seja, passando ela a manter relações sexuais de cópula completa e/ou coito oral com indivíduos do sexo masculino que nisso estivessem interessados, a troco de quantias monetárias, actividade que seria levada a cabo segundo a sua direcção.
III – Nenhuma contradição existe em não se conseguir apurar o concreto montante gasto pelo recorrente no sustento da assistente, do seu filho e de I nem quanto ao remanescente que para si guardava, e ter-se dado em simultâneo como provado quer a existência de remanescente com que se locupletava o arguido, quer com o facto de suportar quase integralmente as despesas com o seu próprio sustento e recreação com os valores que arrecadava com a prostituição das vítimas.
IV – Com efeito, o Tribunal a quo averiguou e deu como provado que «o arguido apoderava-se das quantias monetárias auferidas pela C e pela I na actividade aqui descrita, as quais atingiam, relativamente a cada uma delas, pelo menos € 1.500,00 mensais; desta importância o arguido pagava a renda da casa onde residiam a I e a C, a alimentação de ambas, as despesas essenciais com o seu filho menor, também filho da C; o restante, guardava-o para si (na totalidade no que respeita à assistente e em parte quanto à I), gastando-o em proveito próprio conforme entendia».
V – É claramente insuficiente a suspensão da pena, por não satisfazer as exigências inultrapassáveis de reprovação e de prevenção do crime, se o arguido, ao longo do processo, não admitiu por qualquer forma a prática dos factos, nem demonstrou qualquer arrependimento e, pelo contrário, demonstra insensibilidade para com os bens jurídicos que a norma violada procura proteger, mais parecendo pretender que o lenocínio só seja punível em situações limite, com episódios constantes de violência física, próximas do sequestro e mesmo da escravidão.
VI – Considerando, desde logo, a limitação da liberdade sexual da vítima ao longo de cinco anos, perpetrada por um homem com quem mantinha uma relação afectiva e de quem tinha um filho; depois, o clima de medo que o arguido criava com as ameaças que lhe fazia, e que trazem uma insegurança e um sofrimento psicológico assinaláveis, provando-se que a assistente se sentia humilhada e explorada pelo arguido, e ainda hoje tem reflexos desse sofrimento, tem-se por ajustado, por recurso à equidade, o valor de € 25.000,00, a título de danos morais da assistente.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Guimarães:
No Processo Comum Singular 135/01.2TAPTL do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, foi o arguido M condenado pela prática, como autor material, de um crime de lenocínio, p. e p. pelo art. 170º, nº1 e nº2, Cód. Penal, na pena de 4 anos de prisão, e de um crime de lenocínio, p. e p. pelo art. 170º, nº1, do citado Código, na pena de 18 meses de prisão; em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;
Foi ainda julgado parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido, condenando o arguido a pagar à assistente C, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de € 35.590,00 (trinta e cinco mil quinhentos e noventa euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal aplicável às obrigações civis, sobre € 10.590,00 desde a notificação do pedido e desde a presente data sobre o restante, até integral pagamento;
Inconformado veio o arguido recorrer da sentença concluindo na sua motivação (transcrição):
1ª Comete o crime de lenocínio quem, profissiona1mente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou actos sexuais de relevo: 170º,nº1, do Cód. Penal.
2ª Para o preenchimento do tipo legal de crime é necessário que o agente actue de forma profissional ou com intenção lucrativa.
3ª· Não resultou provado, nem tal é dito na decisão recorrida, que o Recorrente fizesse profissão da actividade que lhe é imputada:
4ª Existe, quanto a este elemento objectivo do tipo legal de crime manifesta contradição entre a matéria de facto dada como provada, a matéria de facto não provada e a fundamentação da decisão em relação à matéria de facto.
5ª- Na fundamentação das respostas à matéria de facto o tribunal "a quo" escreveu: "Nenhuma prova se fez quanto ao concreto montante gasto pelo arguido no sustento da assistente, do seu filho e de I, nem quanto ao valor do remanescente que para si guardava o arguido".
6ª Se assim é, como é que o Tribunal pôde dar como provado que exista remanescente e, principalmente, que o mesmo era suficiente para assegurar a subsistência e a recreação do Recorrente;
7ª- Em relação à I resulta ainda que o Tribunal não sabe qual o montante das despesas suportadas pelo Recorrente, o Tribunal sabe que ela levantou cerca de € 2 500,00 e mesmo assim, afirma que existia remanescente e que o Recorrente se apropriava dele;
8ª Em relação à Assistente o Tribunal não sabe quanto era o montante das despesas (não foi feita qualquer prova) mas sabe que ela adquiriu metade de um apartamento com os ganhos da prostituição;
9ª- O montante das despesas, apesar de não concretamente apurado, era bastante elevado, pois incluía a renda da casa, as necessidades básicas da Assistente e do filho e o custo de uma ama para o filho durante a semana;
10ª - Apesar de não saber o montante dessas despesas, o Tribunal "a quo" dá como provado que existia remanescente e que o Recorrente se apoderava dele.
11ª- É fácil dizer-se que o Recorrente teria tido intenção lucrativa. Mas os factos constantes dos autos, designadamente os alicerçados em documentos, levam precisamente a solução contrária.
12ª- Finalmente, uma última questão: se efectivamente o Recorrente tivesse intenção lucrativa, por que motivo efectuaria os depósitos que efectuou na conta bancária de ambas as ofendidas, porque motivo teria facultado à I a caderneta para levantamento do dinheiro que estava depositado em nome dela e, finalmente, porque motivo compraria um apartamento juntamente com a ofendida C.
13ª- Pelo contrário e face ao acima exposto, deverá este Tribunal de recurso alterar a matéria de facto dada como provada, designadamente na parte em que tem como assente que existia remanescente e que o Recorrente beneficiava dele em proveito próprio.
14ª - Para a alteração dessa matéria de facto o Tribunal de recurso terá de analisar os documentos juntos aos autos, designadamente os documentos juntos pela Caixa Geral de Depósitos, as declarações da C acima transcritas e (ainda a escritura de compra do apartamento.
Sem prescindir, DA MEDIDA DA PENA
15ª- Não resulta da matéria de facto dada como provada que o Recorrente tenha ameaçado a I para a o brigar à prática da prostituição
16ª- A matéria de facto referente à J, deve ser alterada designadamente quando lhe diz que a I permaneceu nessa casa desde princípios de Janeiro de 2001 a finais de Junho do mesmo ano, altura em que conseguiu ir-se embora... "
17ª- Na verdade, o que aconteceu, segundo o depoimento da C (4ª cassete, de 0000 a 2492 no lado A e 0Cl00 a 1710 do lado B) é que a I foi mandada embora pela própria C:
18a- Assim, deve ser alterada a matéria de facto dada como provada, substituindo-se a expressão “altura em que conseguiu ir-se embora” por uma outra que retrate a realidade, designadamente, "altura em que foi mandada embora pela C.
19ª- Do depoimento da I, transcrito na parte expositiva destas alegações e que aqui se dá por reproduzido, resulta que o encontro entre a I e o Recorrente não foi debaixo da ponte como parece resultar da matéria de facto dada como provada, mas sim num café de Ponte de Lima.
20º- No mínimo, a matéria de facto dada como provada terá de ser alterada no sentido de que o Recorrente conheceu a J por intermédio de um tal D e nunca que a conheceu quando estava debaixo da ponte.
21ª- Mas deste depoimento pode também concluir-se que a I tinha consciência do que ia fazer.
22ª- A J começa por dizer que "...e depois (da conversa) meti-me dentro do carro...", o que parece indiciar que foi de livre vontade.
23ª- Resulta também que ela estaria disposta a exercer aquela actividade, desde que o dinheiro fosse para ela.
24ª- A matéria de facto deve se alterada, designadamente quanto às circunstâncias em que a mesma se iniciou na prostituição, nos pressupostos que a levaram a prostituir-se e, finalmente, quanto à forma como essa actividade terminou.
25ª-A alteração da matéria de facto nos termos acima sugeridos diminui, em muito, o eventual dolo que possa ser atribuído ao Recorrente pela sua actuação.
26ª- Devendo ser-lhe aplicada se for entendido que existe prática de crime, uma pena mínima ou próxima do mínimo legal.
27ª- A pena de prisão de quatro anos aplicada pelo crime previsto no artº 170º, nºs 1 e 2, também é manifestamente exagerada;
28ª- É unicamente a C que diz que o Recorrente a obrigou a prostituir-se, ameaçando-a que a abandonava mais ao filho.
O Recorrente, por seu lado, nega essa ameaça.
29º -Com base unicamente no depoimento da assistente, o tribunal dá como provado que em 1998 o Recorrente a ameaçou e a cerceou na sua autodeterminação sexual;
30º- Neste ponto, o Recorrente deveria ter beneficiado do principio "in dubio pro reo" e, a ser condenado, deveria ter sido condenado apenas ao abrigo do disposto no artigo 170, nº1 do Código Penal.
31º- Nesse sentido, aliás, chama-se a atenção do Tribunal de recurso para o facto de conforme consta da matéria de facto dada como provada, entre 1998 e 2003 não haver referência a qualquer outra ameaça ou agressão e apenas se referir que, a partir de finais de 2003, o arguido passou a ameaçar a C.
32a- Mas da leitura das declarações da C percebe-se que essas ameaças têm a sua origem no fim da relação entre os dois e o começo da relação da C com outra pessoa;
33ª- A pena aplicada, de 4 anos de prisão, transmite a ideia que o Recorrente era impiedoso; que só via o lucro fácil, que tudo queria para si.
34ª- Será o comportamento normal de um proxeneta colocar metade de um apartamento em nome da mulher que domina, de quem se aproveita?
35ª- Será o comportamento normal de um proxeneta abrir uma conta bancária em nome da mulher que culmina e utilizar esse dinheiro para adquirir um apartamento para ela?
36ª- Ainda se fosse para ele...
37ª- O Tribunal "a quo" deveria ter ponderado porque motivo a C não se dispôs a largar a vida que levava. É tão fraca a alegação de que tinha medo do Recorrente. Então se o Tribunal nem deu como provado que ele lhe batesse frequentemente.
38ª- O Tribunal "a quo deveria também ter ponderado que não existem provas, sequer indícios… que o Recorrente, antes de viver com a C se tivesse dedicado alguma vez que fosse, a práticas criminosas e, muito menos àquela a que se referem os presentes autos.
39ª- O Tribunal "a quo" deveria também ter ponderado que não existem provas, nem sequer indícios, que depois de romper com a C o arguido continuasse a manter a mesma actividade criminosa;
40ª- O Tribunal"a quo" deveria ter ponderado que o Recorrente sempre continuou a exercer a sua actividade de pescador.
41º - O Tribunal a quo" deveria ter ponderado que o Recorrente é trabalhador.
Que tem a seu cargo a exploração de um barco de pesca.
Que tem trabalhadores a seu cargo.
Que não tem antecedentes criminais
42ª- Face a tudo quanto acima se alegou, face a todas as questões que deveriam ter sido ponderadas pelo Tribunal "a quo" e que o não foram, face à falta de antecedentes criminais por parte do Recorrente, face à não existência de quaisquer provas ou indícios de que quer antes quer depois o Recorrente se dedicasse a actividades criminosas, quer ainda devido ao facto de se ter provado que ele sempre continuou a trabalhar, que tem trabalhadores a seu cargo e que, aceite-se ou não, está inserido na sociedade, sempre a pena de prisão fixada o deveria ter sido próximo do mínimo legal.
43ª- E, consequentemente, deveria a pena de prisão fixada ao arguido ter sido suspensa nos termos do artigo 50º do Código Penal, pois a simples ameaça da efectivação da pena de prisão será suficiente para afastar da prática de novas actividades criminosas, quem nunca o fez antes e quem nunca o fez depois da era C.
44ª - Por último e salvo melhor opinião, sempre o Recorrente deveria ter beneficiado da Lei de Amnistia 29/99, de 12 de Maio.
45ª- Em termos de pedido cível o Tribunal “a quo” recorreu a critérios de equidade para apurar o remanescente.
46ª- Nesse critério, o Tribunal “a quo” referiu que considerou apenas a renda da casa e as despesas básicas da Assistente e do filho, ou seja a alimentação, o vestuário, o calçado, a educação e a assistência médica e medicamentosa.
47ª- Ora no mínimo faltou ao tribunal considerar as despesas com a ama da criança, pois como referiu a C (depoimento acima transcrito), à semana, a criança ficava na ama,
48ª- Deverá., assim, por razões de equidade e a dar-se corno provado que o Recorrente cometeu os crimes que lhe são imputados, aumentar-se o montante das despesas suportadas pelo Recorrente com a C e o filho para a quantia de € 900.00 mensais e, seguindo o mesmo raciocínio expendido na fundamentação da sentença, sobrariam € 600,00 mensais (não se aceitando, no entanto, que fossem lucro do arguido), vezes 60 meses, daria € 36 000,00.
49ª- Quanto à indemnização pelos danos de natureza não patrimonial, chama à colação a frase: "sacrificados aos mesquinhos interesses monetários do arguido",
50a- Que se traduzem, nas próprias contas do tribunal, em (10 590,00 : 60) € 176,50 euros mensais...
51ª- Pelo que, a ser devida, também o montante fixado é manifestamente exagerado.
52ª- A decisão recorrida enferma de nulidade ao não conhecer da aplicação da Lei da Amnistia e enferma ainda dos vícios constantes no artigo 410°, nº 2, do Cód. Proc. Penal e uma incorrecta aplicação do disposto nos artigos J 70º, nºs 1 e 2, 70º,71º e 50º, todos do Código Penal.
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O recurso foi regularmente admitido por despacho de fls.648.
Na 1ª instância o Ministério Público e a assistente responderam, ambos concluindo pela manutenção da decisão recorrida e nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual conclui igualmente pela improcedência do recurso.
Foi dado cumprimento ao disposto no artº417º nº2 do CPP.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos prosseguiram os autos para audiência, na qual foram observados todos os formalismos legais.
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Cumpre decidir:
Decisão fáctica constante da sentença recorrida:
Factos provados:
O arguido e a C conheceram-se em Castelo, onde ambos residiam, e, não obstante serem ambos casados e viverem com os respectivos cônjuges, encetaram um relacionamento amoroso de que resultou no nascimento de um filho em Outubro de 1995.
Em 1998, a assistente separou-se do marido e mudou-se para uma casa no lugar da A, onde o arguido prometera ir viver consigo.
Nessa casa passou o arguido a pernoitar ocasionalmente, embora tivesse continuado a residir em Castelo.
Pouco tempo depois, o arguido, vislumbrando uma hipótese de ganho fácil, começou a sugerir à assistente que mantivesse relações sexuais com outros indivíduos a troco de dinheiro, dizendo-lhe que tal era necessário para fazer face às despesas domésticas dado que ela não conseguia arranjar emprego.
Essa proposta foi rejeitada pela C, uma vez que o arguido lhe havia prometido suportar as referidas despesas com os rendimentos provenientes do seu barco de pesca.
Face à recusa daquela, o arguido decidiu enveredar por métodos mais hostis, tendo começado a ameaçá-la, dizendo-lhe que a abandonaria, bem como ao filho menor de ambos, se não fosse ganhar dinheiro mantendo relações sexuais a troco de retribuição monetária.
Ainda no ano de 1998, em data não concretamente apurada, o arguido levou a assistente até à praia de P, dizendo-lhe que iam dar um passeio.
Aí chegados, num local onde se encontravam algumas prostitutas, o arguido ordenou a C que mantivesse relações sexuais com homens que nisso mostrassem interesse, a troco de compensação monetária, dizendo-lhe que lhe bateria e que a abandonaria, juntamente com o filho menor de ambos, se não lhe obedecesse.
Desta forma conseguiu o arguido que a assistente, acreditando nas ameaças proferidas pelo mesmo, acedesse aos seus propósitos, passando a manter diariamente, durante cerca de cinco anos, relações sexuais de cópula completa e/ou coito oral, com indivíduos de sexo masculino que nisso se mostravam interessados, a troco de retribuição monetária.
O arguido passou a tomar todas as decisões relativas ao “trabalho” da C, como se de um verdadeiro empresário se tratasse, entre o mais fixando os locais onde aquela esperaria pelos clientes e os horários em que levaria a cabo a actividade.
Em princípios de Janeiro de 2001, em dia não concretamente apurado, o arguido encontrou I, que havia sido posta fora de casa, a dormir debaixo da ponte romana, em Ponte de Lima.
Nesse momento, resolveu o arguido aproveitar-se da situação em que se encontrava a I, pondo-a a trabalhar para si no mesmo “ramo” em que então já o fazia a assistente, esperando aumentar os lucros que assim vinha obtendo.
Desta forma, levou o arguido a I para a casa onde habitava a C, posto o que lhe propôs que, nos mesmos moldes que já propusera a esta, passasse a manter relações sexuais de cópula completa e/ou coito oral com indivíduos do sexo masculino que nisso estivessem interessados, a troco de quantias monetárias, actividade que seria levada a cabo segundo a sua direcção.
A I, encontrando-se em situação de grande desespero, viu aqui a única oportunidade de conseguir tecto e alimento e permaneceu nessa casa desde princípios de Janeiro de 2001 a finais de Junho do mesmo ano, altura em que conseguiu ir-se embora, tendo mantido, diariamente durante esse período de tempo, relações sexuais de cópula completa e/ou coito oral, com indivíduos de sexo masculino que nisso se mostravam interessados, a troco de retribuição monetária.
Durante o referido período de tempo, o arguido tomou todas as decisões relativas ao “trabalho” de I, tal como o fazia relativamente ao da C.
Assim, o arguido fixou a ambas o seguinte regime, que muitas vezes foi adaptando consoante julgou mais conveniente:
- entre as 8h30m e as 19h30m, de segunda-feira a sexta-feira, ao longo da Estrada Nacional nº201, no troço conhecido como estrada das Pedras Finas, em particular num local denominado por “Gigante”, situado na freguesia de Labruja, Ponte de Lima; a C chegou a fazer este horário, conforme determinado pelo arguido, na zona de Carreço e/ou Afife;
- entre as 8h30m e as 19h30m de sábado, na praia de Paçô em Carreço ou em Afife;
- ao domingo de manhã, em Anha ou na Amorosa.
O arguido transportava-as, habitualmente, quer no veículo de marca Volvo, de matrícula X, quer no veículo de marca Ford, de matrícula Y, desde o lugar da A, para os locais por ele escolhidos, daí para os restaurantes onde lhes dava as refeições e, ao fim da tarde, novamente para o lugar da.
O arguido entregava à C e à I os preservativos, por ele comprados previamente, que estas deviam utilizar durante a prática de relações sexuais com os vários indivíduos, sistema que usava para controlar o número de clientes e os montantes ganhos pelas mesmas garantindo, dessa forma, que elas não ficavam com dinheiro para si.
O arguido deixava a C e a I nos locais supra indicados, na berma da estrada, onde elas esperavam, durante todo o dia, em pé ou sentadas em latas, mostrando-se para os potenciais clientes que passavam naqueles locais.
Geralmente, o arguido aguardava nas imediações desses locais, a fim de reforçar o controlo relativamente à actividade da C e da I – colhendo, nestas alturas, os proventos que iam auferindo – e de lhes oferecer protecção caso tal se revelasse necessário, escondendo o seu veículo automóvel em caminhos aí existentes.
Quando eram abordadas por homens que se revelavam interessados em com elas manter relações sexuais, a C e a I diziam-lhes os preços previamente determinados pelo arguido: cerca de 2 000$00 ou 3 000$00 (cerca de € 10,00 ou € 15,00) por cópula completa e 3 000$00 (cerca de € 15,00) por coito oral.
Depois de combinado o preço, a C e a I afastavam-se da estrada com os clientes, enveredando pelo meio da vegetação, e aí, no chão, em velhos colchões ou dentro dos automóveis dos clientes, mantinham com estes relações sexuais de cópula completa e/ou coito oral.
Sempre que o arguido entendesse que C se estava a demorar de mais com um cliente, aquele não a deixava comer todo o dia.
As quantias monetárias entregues à C e à I como contrapartida das relações sexuais mantidas eram por estas entregues, imediatamente ou ao fim do dia, ao arguido.
Quando recebia o dinheiro da assistente, o arguido dizia em público: “com putas lida-se assim”, “tenho aqui 46 contos e vem mais 5 contos”.
Durante o ano de 2003, ano em que a C se mudou para uma casa na Amorosa, aquele deixou de a acompanhar diariamente, fazendo-o apenas ocasionalmente.
O arguido apoderava-se das quantias monetárias auferidas pela C e pela I na actividade aqui descrita, as quais atingiam, relativamente a cada uma delas, pelo menos € 1.500,00 mensais; desta importância o arguido pagava a renda da casa onde residiam a I e a C, a alimentação de ambas, as despesas essenciais com o seu filho menor, também filho da C; o restante, guardava-o para si (na totalidade no que respeita à assistente e em parte quanto à I), gastando-o em proveito próprio conforme entendia.
Entre Novembro e Dezembro de 2003, época em que a assistente começou a dizer que o ia deixar, o arguido passou a ameaçá-la constantemente, dizendo-lhe que, se não mantivesse relações sexuais a troco de dinheiro e lho trouxesse, a matava “com um tiro”, alturas em que lhe mostrava a pistola que trazia consigo, tendo chegado ainda a encostar-lhe uma faca ao pescoço.
Estas condutas foram levadas a cabo na presença do filho menor de ambos e fizeram-na temer pela sua vida, já que o comportamento anterior do arguido, que lhe havia infligido várias agressões físicas, de que resultaram sofrimentos e lesões, a fez acreditar que ele seria capaz de levar a cabo tais ameaças se não assentisse nos seus propósitos.
A assistente conseguiu deixar o arguido em Dezembro de 2003, mas durante os primeiros meses de 2004 este continuou a proferir as mesmas ameaças de morte, esperando conseguir amedrontá-la o suficiente para que voltasse a manter relações sexuais a troco de retribuição monetária e a dar-lhe o dinheiro que assim conseguisse ganhar.
Durante os períodos de tempo atrás mencionados, o arguido suportou quase integralmente as despesas com o seu sustento e recreação com o dinheiro proveniente da prática, pela C e pela I, de relações sexuais a troco de retribuição monetária, com indivíduos de sexo masculino que a tal se dispuseram.
O arguido, ao agir como agiu, quis e sabia que, mediante a exploração da manutenção de relações sexuais por outrem a troco de retribuição monetária num quadro de desprotecção social e carência económica, atentava contra a liberdade sexual daquelas mulheres e, em última instância, contra a dignidade das mesmas enquanto pessoas humanas, praticando condutas proibidas e punidas por lei.
Não obstante, não deixou de actuar da forma descrita, agindo livre e conscientemente.
O arguido não tem antecedentes criminais e é pescador; em 2003 e 2004, declarou vendas de pescado de, respectivamente, € 29.149,58 e de € 17.295,00.
A assistente sentia-se humilhada e explorada pelo arguido, e ainda hoje tem reflexos desse sofrimento.
Por escritura pública de 23 de Junho de 2003, o arguido e a assistente adquiriram, em comum e partes iguais, e pelo preço de € 74.820,00, a fracção autónoma “E”, correspondente ao 1º andar direito do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ---, sito no lugar da Amorosa. O dinheiro usado para a parte da assistente nesta compra proveio dos seus ganhos na prostituição.
Factos não provados:
- Que, por vezes, o arguido se aproximasse dos homens que procuravam C e I, e com eles estipulasse o preço naquele momento, em funções das posses e dos interesses daqueles;
- que, em 2003, o arguido estipulasse à assistente um montante mínimo diário, primeiro de cerca de € 75,00 e mais tarde em cerca de € 100,00, e que lhe dissesse que lhe bateria e que a abandonaria, juntamente com o filho menor de ambos, caso ela não lhe trouxesse aqueles montantes;
- que as despesas com renda de casa e com a alimentação de C, do filho e de I, não importasse, para o arguido, em montante superior a € 1.000,00;
- que o arguido guardasse para si a totalidade do dinheiro ganho por I, depois de deduzidas as despesas desta;
- que o arguido tenha deixado de trabalhar durante pelo menos dois anos;
- que as agressões físicas do arguido à assistente ocorressem desde o início da vivência em comum, quer no interior da residência de ambos, quer fora da mesma;
- que o arguido se dirigisse à companheira chamando-lhe, frequentemente, “puta”, quer em privado, quer em público;
- que, quando a quantia obtida por C era pouca, o arguido lhe batesse, à bofetada, ao pontapé e com paus de eucalipto;
- que o tempo limite fixado pelo arguido a C para cada cliente fosse de dez minutos;
- que o arguido dissesse publicamente, quando recebia dinheiro da C, “este já cá canta” e “isto é uma máquina de fazer dinheiro”;
- que, quando agredida pelo arguido, C não recebesse tratamento hospitalar por o arguido não o permitir;
- que, entre 1998 e 2003, o arguido tenha ficado com € 440.000,00 provenientes da actividade de prostituição da assistente;
- que o arguido nunca tenha obrigado C a dedicar-se à prostituição;
- que o dinheiro que C aí auferia não ficasse na posse do arguido nem fosse por ele usado em proveito próprio.
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Como é jurisprudência pacífica (cfr entre outros, Ac. do STJ de 20/03/96, segundo o qual “a delimitação do recurso é feita pelas conclusões da motivação do recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matéria neles não inserida”), o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso (artº412º nº1 do C.P.P.).
Vendo-se as apodadas conclusões que, como é por demais consabido, deveriam delimitar o objecto do recurso, logo se divisa que elas não são, na realidade, verdadeiras conclusões. Confira-se, a propósito, o Prof. J. Alberto dos Reis: "A palavra conclusões é expressiva. No contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: Que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, no final da minuta. É claro que, para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação" - in "Código de Processo Civil Anotado", Vol. V, pág. 359.
Ou seja, as conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no de direito – elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso (Acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
No caso em apreço, no lugar das apelidadas conclusões, e ao contrário do que dispõe e obriga o artº 412º, nº 1 do CPP, optou o recorrentes por reproduzir quase exaustivamente o acabado de expor nas motivações, sem cuidar minimamente de resumir e sintetizar o anteriormente alegado.
Contudo para evitar mais delongas e como as pretensões do recorrente não são totalmente ininteligíveis, sendo possível determinar quais as questões a decidir, opta-se por não o convidar a reformula-las e assim se atenderá às mesmas, como se de verdadeiras conclusões se tratassem.
Operando então essa espinhosa tarefa de sintetização que o arguido não quis ou não soube levar a cabo, do conjunto das ditas 52 conclusões é possível retirar que, afinal e com algum interesse, são apenas as seguintes as questões levantadas pelo arguido que aqui cumpre apreciar e decidir:
I- Saber se foi incorrectamente julgada a matéria de facto provada e não provada;
II - Saber se a sentença padece do vicio de contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada e a fundamentação.
III - Saber se foi violado p principio do in dubio pro reo
IV - Saber se os factos provados integram todos os elementos subjectivos e objectivos dos crimes por que vem condenado.
V - Apreciar da medida das penas .
VI - Saber se a Lei da amnistia ( Lei 29/99 de 12.05) tem aplicação ao caso concreto).
VII - Pedido de indemnização civil
a)- saber se não é devida qualquer indemnização à assistente
b)- e caso assim se não entenda , se o montante fixado peca por excesso.
*
I- Saber se foi incorrectamente julgada a matéria de facto provada e não provada:
As declarações prestadas oralmente, em julgamento, na 1ª instância, foram documentadas na acta, podendo, por isso, este Tribunal conhecer de facto e de direito (artºs 364º e 428º nº1, ambos do C.P.P.).
Versando o recurso sobre matéria de facto, o recorrente tem que especificar, nos termos do nº3 do artº412º do C.P.P.:
a)Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)As provas que devem ser renovadas.

Para além disso, quando, como no caso, as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição (nº4 do citado artº412º).
Todavia o recorrente não obedece a tais requisitos porquanto não concretiza a matéria (pontos de facto) provada e não provada cuja alteração pretende, limitando-se a fazer meras conjecturas sobre se ficaram ou não provados os elementos do tipo.
Por outro lado fica-se pela transcrição de algumas passagens das declarações e depoimentos e só ad latere, apenas quando se refere à medida da pena que pretende ver alterada.
O arguido não revelou as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. O que concretiza é fazer alusão ao que algumas testemunhas terão dito em julgamento para, a partir daí, concluir que outra deveria ter sido a matéria de facto dada como provada. Não uma qualquer matéria de facto, mas a que ele, em seu critério, entende que se deve dar como assente, não obstante não ter, sequer, feito uma contestação onde apontasse factos que importasse conhecer no decurso da audiência.
Ou seja, o que o arguido pretende – um preciso acréscimo da matéria de facto -, não pode ser concretizado pelo Tribunal de recurso porque não cumpriu o disposto no mencionado preceito, porque foi matéria que não resultou da discussão da causa e porque não foi alegada pelo mesmo na sua contestação.
Com efeito, é o seguinte o teor da contestação: 1.É falso e não corresponde à verdade o alegado na acusação pública; 2. O arguido nunca obrigou a C a dedicar-se à prostituição; 3. O dinheiro que C auferia pela actividade a que se dedicava não ficava na posse do arguido nem este o usou em proveito próprio.
A pretendida alteração dos factos, surge, então, como a revelação da pessoal leitura da prova feita pelo recorrente, não o resultado do disposto no art. 127 do CPPenal.
Assim e como nem nas conclusões, nem mesmo na motivação o recurso cumpre minimamente os requisitos do nº 3 do artº 412º do CPP, não pode este tribunal conhecer da matéria de facto, a não ser no âmbito do artº410º, 2 do CPP.
Consigna-se que não há lugar ao convite de aperfeiçoamento quer ao abrigo da actual redacção do 417,nº3 do CPP quer na redacção anterior a Lei nº48/2007 de 29.09 (veja-se a tal respeito Acs do TC de 10.03.2004 in http://www.tribunalconstitucional.pt/ e do STJ de 28.06.2006 in http://www.dgsi.pt /jstj/.

II- Saber se a sentença padece do vicio de contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada e a fundamentação:
Quanto à invocada violação da alínea b)- "Por contradição entende-se o facto de afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas preposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade ou na qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n° 2 constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresenta como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras de experiência". - M. Simas Santos e Leal Henriques, "Código de Processo Penal", 2a ed., II vai., pág. 379.
Este vício ocorre em três situações distintas:
-a contradição insanável da fundamentação - "quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados";
-a contradição entre os fundamentos e a decisão – quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada;
-contradição entre os factos - quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente (Cfr de novo Simas Santos e Leal Henriques, desta feita em Recursos em Processo Penal, 5ª ed, pág. 64.
Portanto, este vício tanto pode respeitar à fundamentação da matéria de facto como à contradição na própria matéria de direito, (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, pag. 340) ou seja, tanto se verifica quando são dados como provados factos incompatíveis entre si como quando a conclusão a que se chega acerca de um facto não tem suporte na fundamentação.
Não vemos, porém, que qualquer uma dessas contradições afecte a sentença recorrida.
Com efeito nenhuma contradição existe não se conseguir apurar o concreto montante gasto pelo recorrente no sustento da assistente, do seu filho e de I nem quanto ao remanescente que para si guardava, e ter-se dado em simultâneo como provado quer a existência de remanescente com que se locupletava o arguido, quer com o facto de suportar quase integralmente as despesas com o seu próprio sustento e recreação com os valores que arrecadava com a prostituição das vítimas.
Ou seja, fique claro que o tribunal a quo averiguou e deu como provado com base nas declarações «desassombradas, longas e detalhadas» da assistente, «corroboradas pelo depoimento, também pormenorizado e emotivo, de I» que «O arguido apoderava-se das quantias monetárias auferidas pela C e pela I na actividade aqui descrita, as quais atingiam, relativamente a cada uma delas, pelo menos € 1.500,00 mensais; desta importância o arguido pagava a renda da casa onde residiam a I e a C, a alimentação de ambas, as despesas essenciais com o seu filho menor, também filho da C; o restante, guardava-o para si (na totalidade no que respeita à assistente e em parte quanto à I), gastando-o em proveito próprio conforme entendia.»
De igual modo averiguou mas já não conseguiu apurar em concreto com quanto o arguido ficou para si. Isso saberá o arguido, se souber, tanto mais que de tal indústria (ou comércio?) não se encontrou escrita organizada.
Ou seja, também por tais razões, manter-se-á intangível a matéria de facto tal como foi fixada na 1ª instância.
E como também não se verifica qualquer dos outros vícios do nº2 do artº410º do C.P.P., o que, aliás, nem sequer foi alegado, a matéria de facto a considerar é, assim, a fixada na 1ª Instância.

III- Saber se foi violado o princípio in dubio pro reo:
Para que se impusesse ao tribunal a sua aplicação era necessário que perante a prova produzida restasse no espírito do julgador (e não no das partes) alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão. E não basta uma qualquer dúvida. Tem que ser uma dúvida razoável, invencível.
No caso, o Tribunal a quo não manifestou a existência de qualquer dúvida razoável acerca dos factos provados e muito menos que perante alguma dúvida tenha escolhido a tese desfavorável ao arguido. Pelo contrário, o Tribunal a quo convenceu-se que os factos se passaram pela forma descrita pelas diversos intervenientes (com excepção do arguido).
Na fundamentação da decisão não se descortina qualquer necessidade de deitar mão a este princípio nem da decisão resulta que o seu não uso seja censurável.

IV - Saber se os factos provados integram tolos os elementos subjectivos e objectivos dos crimes por que vem condenado.
Mantendo-se, pelas razões supra expostas, inalterada toda a matéria de facto, e uma vez que o recorrente pugnava pela “falta de intenção lucrativa com a prática dos factos”, e pela existência de “reduzido dolo”, perde sentido toda a argumentação do arguido a este respeito, já que provado ficou quer a intenção lucrativa, quer o dolo directo.

V - Apreciar da medida das penas.
Quanto à medida da pena regem os artºs40º nº2 e 71º do Código Penal.
Decorre destas disposições que o limite máximo da pena é definido pela culpa, enquanto que o seu limite mínimo é definido pelas exigências de prevenção geral (positiva), isto é, pela necessidade de punição sentida pela comunidade e que varia conforme o sentimento que o crime causa.
Dentro deste limite máximo e mínimo irão funcionar as exigências de prevenção especial, dirigidas ao próprio agente, à sua ressocialização, entendendo-se esta como o dever de ajuda e solidariedade devido para com aquele, de forma a proporcionar-lhe condições que previnam a reincidência e lhe proporcionem um futuro sem delinquir. (Cfr. Figueiredo Dias – Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, §58, pág.74). Nos casos em que não haja carência de socialização, «tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência, o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da “moldura de prevenção” ou mesmo que com ele coincida» (Cfr. autor citado – Temas Básicos da Doutrina Penal, pág.108)
Para sintetizar e continuando a citar Figueiredo Dias (Temas Básicos, pág.110/111), dir-se-á que «1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais».
No caso a pena aplicada ao arguido mostra-se em conformidade com as circunstâncias agravantes e atenuantes, tendo sido devidamente ponderadas pelo Tribunal a quo, o grau de ilicitude do facto, a gravidade das suas consequências e modo de execução, a intensidade do dolo e as condições pessoais do agente.
E assim também nós, considerando a moldura penal abstracta de cada um dos crimes (6 meses a 5 anos e 1 a 8 anos de prisão, respectivamente para o lenocínio simples e o agravado), atento o dolo directo, aos fins que determinaram o agente e os demais elementos considerados na 1ª instância, temos por inteiramente correcta em termos de dosiometria penal, a medida concreta encontrada para cada um dos crimes e bem assim para o cúmulo fixado.

Não obstante tal questão não ter sido aflorada nem na decisão, nem nas alegações de recurso, a entrada em vigor dos novos Código Penal e Código de Processo Penal, em 15 de Setembro obriga a ponderar a eventual aplicação da lei penal mais favorável (art. 2º, nº 4 do Código Penal) com vista à ponderação e determinação do regime penal concretamente mais favorável ao arguido, no que toca à eventual possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dispõe o artº50º do C.P., na redacção anterior à introduzida pela Lei nº59/07 de 4 de Setembro:
1.O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. (...)
3. (...)
4. (...)
5. O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.

Actualmente, o mesmo artigo preceitua:
1. O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. (...)
3. (...)
4. (...)
5. O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a 1 ano, a contar do trânsito em julgado da decisão".
Do confronto das duas disposições legais resulta que enquanto na redacção anterior a suspensão da execução da pena só era possível para penas concretas não superiores a 3 anos, actualmente é-o para penas concretas como a dos autos, não superiores a 5 anos, pelo que em abstracto poderia beneficiar de tal instituto.
Contudo ao longo do processo, o arguido não admitiu por qualquer forma a prática dos factos, nem demonstrou qualquer arrependimento. Pelo contrário demonstra insensibilidade para com os bens jurídicos que a norma violada procura proteger, mais parecendo pretender que o lenocínio só seja punível em situações limite, com episódios constantes de violência física, próximas do sequestro e mesmo da escravidão (em conformidade com o que invoca mais tarde a fls 634v-“ ..é tão fraca a alegação de que tinha medo do recorrente. Então se o Tribunal nem deu como provado que lhe batesse frequentemente”).
É, por conseguinte, manifesto que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não se mostram suficientes para realizar de forma adequada as finalidades da punição (cfr. artigo 50º do Código Penal), pelo que será impensável a suspensão da execução da pena, à qual sempre se oporiam considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
É assim adequada e necessária a opção por uma medida detentiva efectiva sendo claramente insuficiente a sua suspensão para satisfazer as exigências inultrapassáveis de reprovação e de prevenção do crime.
Pelo que se decide manter quer a medida concreta de cada uma das penas parcelares, quer o cúmulo que se mostra correctamente encontrado (se pecar é por defeito) quer ainda a decisão de não suspender a execução da pena de prisão (art. 50° do Código Penal, a contrario).

VI - Saber se a Lei da amnistia ( Lei29/99 de 12.05) tem aplicação ao caso concreto.
A tal respeito, quedemo-nos com a singela transcrição do que o Ministério Público na 1ª instância escreveu na sua resposta de fls 657/659:
“Só em desespero de causa se pode invocar este argumento.
Na verdade, nos termos do artigo 1° da referida lei, nas infracções praticadas até 25 de Março de 1999, é perdoado um ano de todas as penas de prisão, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resulte mais favorável ao condenado.
A conduta do arguido, relativamente à C, em causa nestes autos, iniciou-se em 1998 e cessou em 2003.
O crime de lenocínio que praticou revestiu todas as características de uma infracção permanente.
Nos termos do disposto no artigo 3º do Cód1go Penal, o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou, sendo que nos crimes permanentes a data relevante para aferir da consumação é a data da cessação da execução -cfr. o que o Código Penal dispõe no artigo 1190 nº2, alínea a).
Esta data, relativamente à infracção de lenocínio em causa, é o ano de 2003. Só então se considera consumada a infracção.
O arguido não beneficia do regime da citada lei da amnistia.”
E cremos estar tudo dito no que concerne a impossibilidade de aplicar a lei de amnistia 29/99 de 12.05 ao arguido.

VII - Pedido de indemnização civil
Saber se não é devida qualquer indemnização à assistente e, caso assim se não entenda, se o montante fixado peca por excesso.
Voltemos as transcrições da 1ª instância, agora da parte final do acórdão posto em crise:
“Resta apreciar o pedido de indemnização civil, de acordo com as normas geradoras de obrigação de indemnização por parte do arguido (arts. 483º e seguintes e 563º e seguintes do Cód. Civil).
Verificada que está, em relação à assistente, a prática de um crime doloso, estão já preenchidos os requisitos da ilicitude e da culpa. Há, portanto, que avaliar dos danos sofridos pela assistente que decorreram da actuação do arguido.
Começando pelos danos patrimoniais, são os mesmos decorrentes da perda, pela assistente, dos proventos relativos à actividade de prostituição, que eram entregues por aquela ao arguido, e que a mesma estima em € 440.000,00, ao longo daqueles cinco anos.
Não há dúvida de que uma apreciação desta matéria se deve desinteressar por completo da fonte destes proventos: apenas interessa a circunstância de os mesmos terem ingressado no património da assistente e de o arguido, sem que lhe assistisse qualquer direito a eles, os ter guardado para si.
No caso, não logrou a assistente fazer prova concreta do valor com o que o arguido se terá locupletado à sua custa; no entanto, compete ao tribunal, nos termos do art. 566º, nº3, Cód. Civil, julgar “equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
Ora, ficou apurado que os proventos mensais da assistente eram na ordem dos € 1.500,00 por mês, dos quais o arguido retirava o suficiente para a renda da casa e para outras despesas básicas da assistente e do filho de ambos, guardando o restante para si. Tais despesas, tratando-se de uma casa num meio rural e de uma criança pequena, não seriam superiores a € 700,00 mensais, pelo que o lucro do arguido se cifrava, no mesmo período, em € 800,00. Se se multiplicar este valor pelos 60 meses durante os quais a situação se manteve, verifica-se o arguido ficou com € 48.000,00 pertença da assistente; no entanto, destes há a deduzir a parte que coube à assistente no apartamento que ambos adquiriram, traduzida em metade do preço pago, uma vez que o bem se encontra também em seu nome, ou seja € 37.410,00.
Portanto, os danos patrimoniais que devem ser ressarcidos pelo arguido à assistente resultam da diferença daqueles dois valores, ou seja, € 10.590,00. A esta quantia acrescerão juros de mora, à taxa legal aplicável às obrigações civis, desde a notificação do pedido até integral pagamento (art. 805º, nº1, Cód. Civil).
Quanto aos danos morais, a respectiva compensação obedece aos critérios do art. 496º do Cód. Civil: têm de ser danos de tal forma relevantes que mereçam a tutela jurisdicional. A este propósito, a matéria da acusação que resultou provada seria já suficiente para concluir pela existência de danos morais na esfera jurídica da assistente: desde logo, a limitação da sua liberdade sexual ao longo de cinco anos, perpetrada por um homem com quem mantinha uma relação afectiva e de quem tinha um filho; depois, o clima de medo que o arguido criava com as ameaças que lhe fazia, e que trazem uma insegurança e um sofrimento psicológico assinaláveis. No entanto, resultou ainda provado que a assistente se sentia humilhada e explorada pelo arguido, e ainda hoje tem reflexos desse sofrimento.
Para fixação da compensação, por recurso à equidade, sempre haveria de ter em conta um limite superior: a quantia de € 50.000,00, que a generalidade da jurisprudência vem estabelecendo para ressarcir o direito à vida. Assim, tendo em conta os cinco anos de vida da assistente, sacrificados aos mesquinhos interesses monetários do arguido, e a circunstância deste ser um pescador cujo rendimento mensal, nos últimos dois anos, ultrapassa os € 1.900,00 (o que lhe dá uma situação financeira confortável, para a média nacional), julga-se adequado o valor de € 25.000,00, fixado por referência à data deste acórdão e, por isso, apenas desde este momento vencendo juros de mora (art. 566º, nº2, Cód. Civil), à taxa legal aplicável às obrigações civis.”
Como em tal matéria a nossa concordância é total, resta aplaudir a concisão e precisão do acima transcrito, pelo que também nesta parte o recurso tem que improceder, demonstrada que está à saciedade a bondade da decisão recorrida.
*
DECISÃO
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes deste Tribunal, em julgar improcedente o recurso, confirmando in integrum a sentença recorrida.
Fixa-se em 8 Ucs a taxa de justiça a cargo do recorrente.

Guimarães, 11 de Junho de 2008