Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2437/05-1
Relator: MIGUEZ GARCIA
Descritores: PROVA PERICIAL
INTERNAMENTO
ANOMALIA PSÍQUICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROCEDE A IMPUGNAÇÃO
Sumário: I – Como se vê da fundamentação, a prova da anomalia psíquica da internanda resultou do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica e dos esclarecimentos prestados em sessão conjunta de prova pelos peritos psiquiátricos, “os quais descreveram a anomalia psíquica de que a internanda é portadora, o seu carácter grave e o facto de se encontrarem em perigo bens jurídicos próprios e alheios”
II – Seguiu-se, na avaliação prevista no artigo 17° da Lei de Saúde Mental, o deferimento aos serviços oficiais de assistência psiquiátrica da área de residência da internanda, no caso o Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, a cargo de dois psiquiatras, como aí se determina.
III – O juízo técnico-científico em que assenta a decisão do juiz está-lhe integralmente subtraído, face ao disposto no indicado artigo 17°, n.° 5 (o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz), diferentemente do que ocorre quanto às perícias realizadas ao estado psíquico de alguém, sempre que se coloca a questão da inimputabilidade, podendo então o juiz divergir das conclusões dos peritos, desde que fundamente tal divergência, nos termos dos artigos 351°, n.° 1, e 163°, n°s 1 e 2, do Código de Processo Penal.
IV – A justificação pode resumir-se no “scientifica scientifice tratanda” (o que é científico deve ser cientificamente tratado: a solução encontra-se pericialmente).
V - Procedendo ao confronto do conteúdo do relatório dos autos com a materialidade levada à sentença, não vemos motivo para dar razão à recorrente ou para censurar a decisão que só por lapso evidente incluiu o relatório pericial como elemento da sua própria convicção, de que realmente está ausente, a par de outros documentos.
VI – Só levando em conta esta observação se compreende a valia dos esclarecimentos dos peritos em sessão conjunta de prova, com a descrição da “anomalia psíquica de que a internanda é portadora, o seu carácter grave e o facto de se encontrarem em perigo bens jurídicos próprios e alheios”
VII – As declarações prestadas pela internanda nessa sessão conjunta vieram só reforçar no espírito do julgador “o juízo emitido no relatório”.
VIII – Houve até o cuidado de referir a declaração obtida particularmente pela internanda, que de facto só diz que a mesma “não padece de qualquer doença mental”, mas sem que para tanto se acrescente a mínima a fundamentação, sendo certo que, da declaração obtida pela recorrente junto de médica especialista psiquiatra, o que se retira é que, à observação, a mesma não apresentava sintomatologia alucinatório-delirante, pelo que só vale nessa medida, não infirmando minimamente as conclusões periciais, nem a recorrente, devidamente assistida, encontrou motivo para promover que se determinasse a renovação da avaliação clínico-psiquiátrica por outros psiquiatras, como de resto permite o n° 3 do artigo 18° da Lei de Saúde Mental.
IX – Não foi, assim, foi junto nenhum elemento capaz de pôr em causa a verificação das bases de facto sobre as quais se apoia a conclusão científica, nem as razões adiantadas no recurso contribuem para que se adira à afirmação de que não resultaram provados no presente contexto os factos dados como assentes.
X - . Nomeadamente, não basta agora opinar que “a intemanda é uma pessoa autónoma que rege a sua própria pessoa e bens, apresentando-se no meio social decentemente vestida e arranjada, com plena e permanente consciência de todas as circunstâncias temporais e espaciais”, uma vez que a recorrente esteve presente, por si mesma, não só na sessão conjunta de prova, como compareceu no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental de Braga para a avaliação clínicopsiquiátrica “com vista a eventual internamento compulsivo”, como os peritos que procederam a exame na pessoa da mesma sublinhan
XI – Estes chegam mesmo a acentuar que a examinanda se [lhes] apresentou com arranjo pessoal preservado, contacto por vezes hiperpragmático e com um discurso fluente senão mesmo loquaz; mas apesar disso, no momento seguinte, os peritos referem “delírio estruturado, de teor persecutório e de prejuízo, sem qualquer permeabilidade à argumentação lógica. Humor neutro. Sem actividade alucinatória visual. Juízo crítico ausente, com total incapacidade para admitir sofrer de doença de foro psiquiátrico bem como para aceitar qualquer tipo de intervenção terapêutica”.
XII – Diz-se no recurso que os factos praticados pela recorrente não permitem concluir que se verificam os pressupostos legais para o internamento compulsivo, não se encontrando provado o risco de bens jurídicos de relevante valor, nem determinados os bens jurídicos de relevante valor que se encontrem em risco com o não internamento compulsivo da internando.
XIII – Acontece que a lei, para os portadores de anomalia psíquica grave, como é o caso, põe como condição para a privação de liberdade a existência de uma situação de potencial criação de perigo de lesão de bens jurídicos de relevante valor como decorre do artigo 12° da Lei de Saúde Mental.
XIV - No limite, admite-se que se prescinda da própria situação de potencial perigosidade, estando tais casos previstos no n.° 2 do mesmo artigo 12°, ao consignar que “pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado”.
XV – Ora, comprovadamente, a examinada não reconhece a sua doença e recusa por isso qualquer intervenção terapêutica, sendo que, por outro lado, as alterações comportamentais “têm acarretado graves repercussões no funcionamento psico-social da examinanda, bem como nos conviventes”.
XVI - Não se imagina a recorrente a tratar-se fora das condicionantes que a sentença lhe impôs, sendo os peritos firmes na afirmação do risco para bens jurídicos de relevante valor.
XVII - O quadro clínico correspondentemente descrito autoriza, mesmo a um não perito, concluir pelo risco para a vida e a integridade física da internanda, como correctamente se faz na sentença, pelo que ao contrário do que se refere na conclusão do recurso, ficariam assim, claramente em risco, bens de relevante valor, caso se não enveredasse pela solução do internamento.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Guimarães


Na comarca de Braga foi determinado o internamento compulsivo de "A" no serviço oficial de saúde mental mais próximo, por aplicação da disciplina dos artigos 8º, nºs 1, 2 e 3, e 12º, nºs 1 e 2, da Lei de Saúde Mental.
Foram dados por provados os seguintes factos: a) "A" nasceu no dia 14 de Janeiro de 1934; b) Apresenta delírio estruturado, de teor persecutório e de prejuízo, sem qualquer permeabilidade à argumentação lógica; c) Sofre de psicose delirante; d) Tem juízo crítico ausente, com total incapacidade para admitir sofrer de doença do foro psiquiátrico, bem como para aceitar qualquer tipo de intervenção terapêutica; e) Apresenta uma personalidade pré-mórbida de tipo paranóide, condicionando alterações comportamentais que têm acarretado graves repercussões no funcionamento psico-social da internanda, bem como nos conviventes; f) Sofre de anomalia psíquica grave; g) Estão em risco bens jurídicos de relevante valor, nomeadamente a vida e integridade física da própria e de terceiros.
A sentença concluiu pela existência dos legais requisitos para o internamento compulsivo, já que a internanda “é portadora de anomalia psíquica grave, não tem capacidade crítica do seu estado de saúde e a sua doença do foro psíquico origina que a internanda tenha comportamentos prejudiciais para si e para terceiros”.
No recurso interposto para esta Relação, "A" diz a concluir: (1) Não resultaram provados os factos dados como assentes e fundamentadores da decisão; (2) Os factos praticados pela recorrente não permitem concluir que se verificam os pressupostos legais do seu internamento compulsivo; (3) Não se encontra provado o risco de bens jurídicos de relevante valor; (4) Não se encontram determinados os bens jurídicos de relevante valor que se encontrem em risco com o não internamento compulsivo da internanda; (5) Não se encontram verificados os pressupostos do internamento compulsivo e estabelecidos no artigo 12º da Lei nº 36/98, de 24 de Julho. Requer que se reaprecie “a prova produzida nos autos” e se não decrete o internamento compulsivo.
É de apoio à sentença impugnada a resposta do MP. Em desenvolvido e fundamentado parecer, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto nesta Relação não vê razão para alterar o decidido.
Colhidos os “vistos” legais, procedeu-se à audiência a que se refere o artigo 423º do Código de Processo Penal, com observância do formalismo respectivo.

Como se vê da fundamentação, a prova da anomalia psíquica da internanda resultou do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica de fls. 271, 272 e 281 e dos esclarecimentos prestados em sessão conjunta de prova pelos peritos psiquiátricos Dr. Joaquim ... e Dr.ª Beatriz ..., “os quais descreveram a anomalia psíquica de que a internanda é portadora, o seu carácter grave e o facto de se encontrarem em perigo bens jurídicos próprios e alheios”. Seguiu-se na avaliação prevista no artigo 17º da Lei de Saúde Mental o deferimento aos serviços oficiais de assistência psiquiátrica da área de residência da internanda, no caso o Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, a cargo de dois psiquiatras, como aí se determina.
O juízo técnico-científico em que assenta a decisão do juiz está-lhe integralmente subtraído, face ao disposto no indicado artigo 17º, n.º 5 (o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz), diferentemente do que ocorre quanto às perícias realizadas ao estado psíquico de alguém, sempre que se coloca a questão da inimputabilidade, podendo então o juiz divergir das conclusões dos peritos, desde que fundamente tal divergência, nos termos dos artigos 351º, n.º 1, e 163º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal. A justificação pode resumir-se no “scientifica scientifice tratanda” (o que é científico deve ser cientificamente tratado: a solução encontra-se pericialmente). Procedendo ao confronto do conteúdo do relatório (fls. 271 e 272 e 281) com a materialidade levada à sentença não vemos motivo para dar razão à recorrente ou para censurar a decisão que só por lapso evidente incluiu o relatório pericial como elemento da sua própria convicção, de que realmente está ausente, a par de outros documentos. Só levando em conta esta observação se compreende a valia dos esclarecimentos dos peritos em sessão conjunta de prova, com a descrição da “anomalia psíquica de que a internanda é portadora, o seu carácter grave e o facto de se encontrarem em perigo bens jurídicos próprios e alheios”. As declarações prestadas pela internanda nessa sessão conjunta vieram só reforçar no espírito do julgador “o juízo emitido no relatório”. ( A atendibilidade de uma prova legal escapa das mãos do juiz porque essa valoração foi imposta pelo legislador. Isso todavia não exclui que, respeitada a atendibilidade, o juiz possa pronunciar-se livremente sobre outras provas que, ao lado da prova legal, concorram para confirmar ou infirmar a hipótese fáctica. Cf. L. Lombardo, La prova giudiziale. Contributo alla teoria del giudizio di fatto nel processo, Milão, 1999, pág. 554 e segs.) Houve até o cuidado de referir a declaração obtida particularmente pela internanda (fls. 352), que de facto só diz que a mesma “não padece de qualquer doença mental”, mas sem que para tanto se acrescente a mínima fundamentação. Da declaração de fls. 354, também obtida pela recorrente da médica especialista psiquiatra Isabel Costa, o que se retira é que, à observação, a mesma não apresentava sintomatologia alucinatório-delirante, pelo que só vale nessa medida, não infirmando minimamente as conclusões periciais. Nem a recorrente, devidamente assistida, encontrou motivo para promover que se determinasse a renovação da avaliação clínico-psiquiátrica por outros psiquiatras, como de resto permite o nº 3 do artigo 18º da Lei de Saúde Mental.
Não foi junto nenhum elemento capaz de pôr em causa a verificação das bases de facto sobre as quais se apoia a conclusão científica, nem as razões adiantadas no recurso contribuem para que se adira à afirmação de que não resultaram provados no presente contexto os factos dados como assentes. Nomeadamente, não basta agora opinar que “a internanda é uma pessoa autónoma que rege a sua própria pessoa e bens, apresentando-se no meio social decentemente vestida e arranjada, com plena e permanente consciência de todas as circunstâncias temporais e espaciais”, uma vez que a recorrente esteve presente, por si mesma, não só na sessão conjunta de prova, como compareceu no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental de Braga para a avaliação clínico-psiquiátrica “com vista a eventual internamento compulsivo”, como os peritos que procederam a exame na pessoa da mesma sublinham. Estes chegam mesmo a acentuar (fls. 271) que a examinanda se [lhes] apresentou com arranjo pessoal preservado, contacto por vezes hiperpragmático e com um discurso fluente senão mesmo loquaz. Apesar disso, no momento seguinte, os peritos referem “delírio estruturado, de teor persecutório e de prejuízo, sem qualquer permeabilidade à argumentação lógica. Humor neutro. Sem actividade alucinatória visual. Juízo crítico ausente, com total incapacidade para admitir sofrer de doença de foro psiquiátrico bem como para aceitar qualquer tipo de intervenção terapêutica”.
A vinculação do Tribunal ao parecer dos peritos fez-se pois sem que uma razão válida impusesse censura à lógica dos caminhos por eles seguidos, inclusivamente no contacto com a examinanda.
Diz-se no recurso que os factos praticados pela recorrente não permitem concluir que se verificam os pressupostos legais para o internamento compulsivo, não se encontrando provado o risco de bens jurídicos de relevante valor, nem determinados os bens jurídicos de relevante valor que se encontrem em risco com o não internamento compulsivo da internanda.
Acontece que a lei, para os portadores de anomalia psíquica grave, como é o caso, põe como condição para a privação de liberdade a existência de uma situação de potencial criação de perigo de lesão de bens jurídicos de relevante valor como decorre do artigo 12º da Lei de Saúde Mental. No limite, admite-se que se prescinda da própria situação de potencial perigosidade, estando tais casos previstos no n.º 2 do mesmo artigo 12º, ao consignar que “pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado”. Ora, comprovadamente, a examinanda “não reconhece a sua doença e recusa por isso qualquer intervenção terapêutica”. Por outro lado, as alterações comportamentais “têm acarretado graves repercussões no funcionamento psico-social da examinanda, bem como nos conviventes”. Não se imagina a recorrente a tratar-se fora das condicionantes que a sentença lhe impôs. Os peritos são firmes na afirmação do risco para bens jurídicos de relevante valor. O quadro clínico correspondentemente descrito autoriza, mesmo a um não perito, concluir pelo risco para a vida e a integridade física da internanda, como correctamente se faz na sentença. Daí que também se não deva atender à 4ª conclusão do recurso, justamente por assim estarem determinados bens de relevante valor, claramente em risco caso se não enveredasse pela solução do internamento.
A sentença preveniu, pois, todos os pressupostos legais e decidiu correctamente.

Nestes termos, acordam em que não procede a impugnação.

Não são devidas custas (artigo 37º da Lei de Saúde Mental).

Guimarães,