Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
274/23.9T8EPS-A.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INVENTÁRIO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
RECLAMAÇÃO DE BENS
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A nulidade por omissão de pronúncia pressupõe a não apreciação de questões jurídicas de que o tribunal devia conhecer e o tribunal deve conhecer as questões que são submetidas à sua decisão, balizadas pelos pedidos formulados em conformidade com as causas de pedir invocadas, e cujo conhecimento não haja ficado preterido por prejudicialidade. Mas tal nulidade verifica-se apenas nos casos em que há omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão não prejudicada, e não de todas as razões ou argumentos invocados pelas partes. Não ocorre essa nulidade quando, embora de forma indirecta ou tácita, a decisão acaba por apreciar a questão em causa.
2. Em caso de reclamação contra a relação de bens, pode o cabeça de casal responder em, em 30 dias, não havendo em princípio mais articulados. O legislador teve o claro objectivo de concentração da suscitação de todos os meios de defesa.
3. Em certas situações, em que o cabeça de casal invoque um facto novo no articulado de resposta, e esteja de boa-fé, há que garantir o contraditório dos demais interessados, cabendo ao Juiz, através dos poderes de gestão processual e de adequação formal, admitir um articulado de resposta, ou, por analogia com o disposto no art. 3º, nº 4, deferir esse contraditório para a audiência prévia ou para a conferência de interessados.
4. O processo de inventário não se destina a fazer investigação sobre as despesas e liberalidades feitas pelo de cuius ainda em vida, e ainda atentas as regras da alegação de factos constitutivos do direito e do ónus da prova. A investigação tem de ser feita extra-judicialmente pelo interessado para recolher os factos e as provas que lhe permita intentar uma acção.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Competência Genérica de Esposende – Juiz ... corre termos processo de inventário em que é Cabeça de Casal AA, e lnventariada BB, falecida a ../../2019.
Apresentada a relação de bens, citados os interessados, os interessados CC e esposa DD vieram reclamar da relação de bens.
Primeiro, como questão prévia, dizem que o cabeça de casal, violando o disposto no art. 1097º,3 CPC, com excepção do imóvel da verba 3 da relação de bens, não juntou aos autos nenhuma certidão comprovativa das não descrições quanto a cada um dos referidos 9 prédios, devendo assim fazê-lo, para que se torne segura e demonstrada legalmente a situação registral de cada um desses prédios, nos termos legais.
Depois, dizem que não aceitam o montante de € 25.268,76, relacionado na verba 1, correspondente ao saldo em 25/03/2022 da conta bancária de que a inventariada era titular no Banco 1..., e explicam porquê. Requerem que o Banco seja notificado para vir prestar todos os esclarecimentos pretendidos.
De seguida, dizem que as benfeitorias que o cabeça-de-casal alega terem sido realizadas no prédio que lhe foi doado pela inventariada, claramente voluptuárias, não integram qualquer passivo da inventariada nem são responsabilidade da sua herança, não cabendo na previsão do art. 2068º do Cód. Civil, pelo que não aceitam que as mesmas integrem a relação de bens como passivo, devendo essa verba ser excluída da relação de bens.

O cabeça de casal respondeu.

Em sede de despacho saneador, o Tribunal proferiu decisão na qual julgou a reclamação parcialmente procedente e, em consequência:

a) determinou que o Banco 1... informe qual o saldo existente na conta bancária da inventariada à data do óbito desta;
b) julgou improcedente o demais peticionado;

Os interessados reclamantes, inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente e em separado dos autos principais, à qual se atribuiu efeito suspensivo do processo, considerando o relevo do que vier a ser decidido nos ulteriores termos do processo, nomeadamente para a conferência de interessados, tudo nos termos do disposto nos artigos 629º, nº 1, 631º, 1123º, nº 2, al. b) e no 3, todos do Código de Processo Civil.

Terminam a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1ª. O cabeça-de-casal não juntou à relação de bens as certidões actuais comprovativas de que os prédios relacionados sob as verbas 5 a 13 são prédios não descritos na Conservatória do Registo Predial, conforme previsto no artº 1097º, nº 3, al. c) do CPC, sendo que a situação registal dos prédios se prova por meio de certidão, cuja validade é de seis meses, nos termos previstos no artº 110º, nºs 1 e 2 do Cód. Registo Predial, o que foi objecto de reclamação pelos apelantes, que pugnaram pela sanação dessa falta documental.
2ª. No douto despacho recorrido, a Mmª. Sra. Juiz a quo, em vez de determinar o cumprimento daquele dispositivo legal, omitiu pronúncia sobre esta questão de que devia conhecer, o que constitui uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos previstos nos arts. 615º, nº 1, al. d), ex vi art. 613º, nº 3, ambos do CPC., que aqui se invoca e deve ser conhecida para os devidos efeitos legais.
3ª. No despacho inicial sob recurso, a Mmª. Sra. Juiz a quo, pronunciando-se sobre os requerimentos de 12/09/2023, 14/09/2023 e 15/09/2023, apresentados pelas partes, com o argumento de que, após a resposta à reclamação contra a relação de bens não são admissíveis novos articulados, decidiu atender “apenas ao teor dos articulados juntos apenas e só quando se pronunciem quanto ao teor de documentos, desconsiderando-os quanto ao demais, por serem processualmente inadmissíveis.”
4ª. Porém, os apelantes não apresentaram um articulado anómalo no seu requerimento de 12/09/2023, tão-só exerceram o direito ao contraditório previsto no artº 3º, nº 3 do CPC e aí se pronunciaram sobre as questões novas, inexistentes antes nos autos e na relação de bens impugnada, trazidas pelo cabeça-de-casal na sua resposta de 31/08/2023, cuja pronúncia pelos apelantes e os meios de prova aí requeridos, se mostram da maior relevância para o apuramento do real património hereditário, incluindo as liberalidades que venham a apurar-se ter sido feitas em vida da autora da herança, o que tudo terá influência na definição das legítimas dos interessados.
5ª. Tendo sido exarado no despacho recorrido que “a decisão quanto à reclamação à relação de bens não comporta no caso concreto produção de prova testemunhal, mas apenas a análise de documentos (escrituras e certidões matricial e predial), cuja veracidade e valor probatório não foi posto em causa, pelo que se encontra o Tribunal habilitado a conhecer da mesma, o que se fará de seguida”, tal conclusão é desajustada à factualidade invocada na reclamação à relação de bens apresentada pelos apelantes, designadamente, nos artºs 4º a 15º, que comporta, para além da prova documental requerida, a produção da prova testemunhal aí indicada, direito à prova que o despacho recorrido rejeitou e não reconheceu, o que tudo deve ser admitido.
6ª. O cabeça-de-casal confessou, no artº 9º do seu requerimento de 31/08/2023, ter a inventariada, em vida, feito alienações gratuitas de dinheiros, que não estão relacionadas, pelo que se torna imprescindível relacionar essas liberalidades e proceder às diligências probatórias que se mostrem necessárias para que se apure a real composição do pecúlio hereditário, o que releva para a liquidação dos bens da herança e para o apuramento da legítima e dos quinhões dos interessados.
7ª. Os apelantes alegaram, nos artºs 4º a 15º da sua reclamação contra a relação de bens, que, relativamente à Verba 1 da relação de bens, não aceitavam como correcto o montante aí indicado, pelos argumentos e fundamentos aí invocados, relacionados com o estilo de vida poupada e modesta que a inventariada levou durante muitos anos, bastando-se com os recursos de que dispunha para a sua subsistência, bem como face à substancial diferença do saldo relacionado em comparação com o existente alguns anos antes, que evidenciava a existência de aplicações a prazo, fundos de investimento, planos de poupança, aplicações de capitalização e carteira de títulos, o que não se justifica, a menos que a inventariada tenha disposto de grande parte desses valores fazendo doações em vida, que não foram relacionadas, caso em que o deverão ser e o cabeça-de-casal justificar como foi gasto esse dinheiro e qual o seu destino.
8ª. Em resposta, o cabeça-de-casal veio confessar, no seu requerimento de 31/08/2023, que “a inventariada partilhou dinheiros entre os filhos” – artº 9º -, ao que os apelantes responderam, por requerimento de 12/09/2023, pugnando pela necessidade e justeza de ser produzida a prova aí requerida, a fim de ser averiguado que doações foram feitas e não relacionadas, desde logo atenta a discrepância dos saldos bancários entre o valor existente em 24/07/2007 e o valor existente em 25/03/2022, este último já posterior à data do óbito da inventariada.
9ª. Mais alegaram aí os apelantes que, face à confissão do cabeça-de-casal de que a inventariada partilhou em vida dinheiros entre os filhos, deverá o mesmo especificar as datas em que tal sucedeu e os valores alegadamente “partilhados”, bem como referir a proveniência e destino desses dinheiros, acompanhada da respectiva prova documental, para que tudo fique devidamente clarificado, uma vez que a única ocasião em que o aqui interessado recebeu dinheiro da sua mãe foi aquando da partilha por óbito de seu pai, ocorrido em 9 de Fevereiro de 1991, já lá vão longos 32 anos.
10ª. Quanto à confissão do cabeça-de-casal de que a inventariada dispôs em vida, gratuitamente, de importâncias em dinheiro entre os filhos, importa que as mesmas sejam devidamente identificadas e discriminadas pelo cabeça-de-casal, respectivas datas e montantes, bem como a quem foram feitas essas doações, atenta a impugnação do apelante marido de ter sido beneficiado por essa via, para que essas doações, após a devida prova, integrem o pecúlio hereditário, sejam relacionadas como bens doados e se apure se as mesmas se devem presumir ou não dispensadas de colação.
11ª. Todavia, o despacho recorrido, perante a confissão expressa pelo cabeça-de-casal de liberalidades em dinheiro, em vida da inventariada, conclui que “os reclamantes não alegam qualquer específica omissão na relacionação, pelo que, não havendo alegação concretizada de qualquer omissão, salvo o devido respeito, não há que produzir prova.”, o que, com o devido respeito, se trata de uma conclusão incorrecta.
12ª. O assim decidido viola os deveres de gestão processual, já que, tendo o cabeça-de-casal alegado factos relevantes para ser objecto de relacionação e cálculo das legítimas, eventual redução por inoficiosidade, ou mera igualação da partilha, deveriam ter sido ordenadas as diligências necessárias à prova dessas liberalidades, não só por força da matéria de facto alegada pelos apelantes mas também dos factos já confessados pelo cabeça-de-casal, determinando os esclarecimentos sobre essa matéria de facto que se afiguram pertinentes, com vista à justa composição do litígio, ofendendo também o princípio da cooperação que é imposto ao tribunal e às partes, com vista a ser obtida a justa composição do litígio.
13ª. E ofende também um dos fundamentais objectivos do inventário, de se apurar as liberalidades feitas em vida pela inventariada e confessadas pelo cabeça-de-casal, que devem ser relacionadas, cerceando aos apelantes o direito a que essa factualidade seja devidamente esclarecida, apurada e comprovada, não só pelo cabeça-de-casal como pelos meios de prova requeridos pelos apelantes, o que, por isso, se traduz também numa nulidade desse despacho, por omissão de pronúncia sobre essa matéria, nos termos previstos nos artºs 615º, nº 1, al. d), ex vi artº 613º, nº 3, ambos do CPC., que igualmente aqui se invoca e deve ser conhecida para os devidos efeitos legais.
14ª. A matéria de facto invocada pelos apelantes no legítimo exercício de reclamar contra a relação de bens, impõe que seja admitida a produção da prova testemunhal, sendo que o cabeça-de-casal até confessou que a sua mãe, que consigo vivia, “partilhou dinheiros entre os filhos”, o que mais reforça a necessidade de se apurar o tipo de vida e de gastos que a inventariada fazia e também de se apurar quando, que montantes e a quem beneficiou em vida a inventariada, se foi ao cabeça-de-casal e também ao apelante marido – que negou ter sido beneficiado por essa via – ou se foi a terceiros, não presuntivos herdeiros legitimários.
15ª. Face às conclusões anteriores, justifica-se que permaneçam nos autos os requerimentos de ambas as partes, de 12/09/2023, 14/09/2023 e 15/09/2023, que seja admitida e produzida a prova testemunhal indicada pelos apelantes, bem como a prova documental pelos mesmos requerida e seja notificado o cabeça-de-casal para especificar que liberalidades em dinheiro foram feitas em vida pela inventariada, respectivos montantes e quem delas foram beneficiários, apresentando a atinente prova.
16ª. O cabeça-de-casal relacionou, como passivo, obras que alegou ter o seu filho realizado no rés-do-chão do prédio da verba nº 3, àquele doado, transformando o espaço amplo desse piso numa clínica de fisioterapia, com alteração de toda a sua área, colocação de nova instalação eléctrica, instalação de águas e saneamento e diversos equipamentos, para o que terão sido apresentados os projectos de arquitectura e especialidades de engenharia para o respectivo licenciamento camarário, que tudo computou no valor de € 114.575,00.
17ª. Essas pretensas obras no bem doado ao cabeça-de-casal, a existirem, não integram passivo da inventariada nem são responsabilidade da sua herança, não cabendo na previsão do artº 2068º do Cód. Civil, pelo que deverão figurar na relação de bens, sendo que o seu valor não será havido como efectiva dívida da herança, mas sim como valor dedutível ao valor do bem em que tenham sido incorporadas, a determinar por avaliação e atento o benefício que tenham trazido ao prédio em causa, segundo as regras do enriquecimento sem causa.
18ª. Atendendo a que essas obras terão sido alegadamente realizadas após prévio licenciamento camarário, os apelantes requereram que, para a devida identificação e prova das benfeitorias, o cabeça-de-casal fosse notificado para juntar aos autos todos os documentos, designadamente, a memória descritiva do projecto de arquitectura e respectivo projecto aprovado, o alvará de licença de construção, o livro de obra com a completa descrição dos trabalhos realizados, os orçamentos e facturas descritivos dos trabalhos realizados e os comprovativos dos meios de pagamento dos custos suportados, por serem documentos essenciais para a devida identificação dos trabalhos licenciados e alegadamente executados e para que seja realizada a cabal avaliação do bem doado, deduzido das benfeitorias que nele tenham sido incorporadas, prova essa que, aliás, deveria ter sido junta aos autos, como determina o artº 1098º, nº 4 do CPC e deve ser doutamente ordenado.
19ª. A essa matéria da conclusão anterior, o cabeça-de-casal veio responder por requerimento de 31/08/2023, trazendo aí, mais uma vez, matéria de facto nova, no artº 17º, concretamente, que, para além das pretensas obras feitas pelo seu filho no rés-do-chão, também a sua mãe, em 2017, realizou obras no ... andar do prédio doado ao cabeça-de-casal, onde este e a inventariada habitavam, as quais terão sido pagas por esta última e que, por isso, teriam que ser consideradas na avaliação a ser levada a efeito.
20ª. A resposta dos apelantes a essa matéria nova, feita pelo requerimento de 12/09/2023, pugnando pela necessidade e relevância de ser produzida a prova requerida na reclamação à relação de bens, a fim de ser averiguado se foram algumas dessas alegadas benfeitorias pagas pela inventariada e, por essa via, feitas doações não relacionadas, atenta a discrepância dos saldos bancários entre o valor existente em 24/07/2007 e o valor existente em 25/03/2022, deve ser admitida e ficar nos autos, face ao legítimo exercício do contraditório e ser admitida a prova aí requerida.
21ª. Relativamente às obras invocadas no artº 17º do requerimento de 31/08/2023, foi alegado o desconhecimento dessa matéria, bem como a dimensão e custos das mesmas, pugnando os apelantes por que o cabeça-de-casal as especificasse, bem como juntasse os comprovativos dos pagamentos efectuados, até para que se possa concluir se houve ou não retirada de quaisquer quantias da conta bancária da inventariada, o que igualmente se mostra relevante e deve ser admitido.
22ª. Quer na relação de bens, quer na resposta de 31/08/2023, o cabeça-de-casal evidenciou uma postura de alegar matéria que tem relevo e pertinência para o apuramento dos bens a partilhar e para os fins deste Inventário, mas sem juntar aos autos os atinentes meios de prova e os elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da sua situação jurídica, esquivando-se a fazer a devida especificação e prova, em desrespeito do imposto pelo artº 1098º, nº 4 do CPC, posição esta contra a qual os apelantes se insurgiram, mas a que o despacho recorrido não deu acolhimento, como era legalmente devido.
23ª. O despacho recorrido não só não ordenou ao cabeça-de-casal que especificasse quais as pretensas obras feitas em vida da inventariada, pela mesma, no bem doado, o respectivo custo e os meios de pagamento, como não ordenou que o mesmo documentasse as alegadas benfeitorias feitas por terceiro em toda a área do rés-do-chão do prédio doado, alegadamente licenciadas, ficando-se sem saber em que data estas terão sido realizadas, se o foram ou não em vida da inventariada, se todas ou apenas algumas das alegadas obras foram licenciadas, o que tudo releva para o correcto apuramento do valor dos bens a partilhar, em concreto, para a avaliação do bem doado e apuramento da sua eventual redução por inoficiosidade.
24ª. Tutelando a falta de concretização e prova das pretensas obras alegadas pelo cabeça-de-casal, o segmento do despacho recorrido em que refere que, “Quanto à avaliação, se vier a ser requerida, aí será o momento próprio para se verificar que obras foram feitas e qual a sua natureza jurídica.”, com a devida vénia, não faz sentido, antes viola o determinado no artº 1097º, nº 3, al. d) e 1098º, nºs 4, 6 e 7, ambos do CPC., pelo que também neste segmento se impõe a sua revogação e a sua substituição por decisão que determine o cumprimento do legalmente previsto a esse respeito.
Nestes termos, nos melhores de Direito aplicáveis e sempre com o mui douto suprimento de V. Excias., deve o presente recurso merecer provimento, em consequência do que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por douta decisão que se pronuncie e admita, por relevantes para os fins do Inventário, o esclarecimento e prova das questões contempladas no presente recurso, bem como os atinentes meios de prova requeridos pelos apelantes, tudo com as demais consequências legais.

O recorrido (e Cabeça-de-Casal) contra-alegou, defendendo a confirmação integral da decisão recorrida.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir são as seguintes:
a) saber se ocorreu nulidade por omissão de pronúncia;
b) saber se os requerimentos de 12/09/2023, 14/09/2023 e 15/09/2023, apresentados pelos reclamantes, eram admissíveis, devendo ficar nos autos, sendo considerada a prova testemunhal e documental aí indicada.
c) saber se, quanto à verba 1, o Tribunal devia ter averiguado que doações foram feitas e não relacionadas;
d) saber se o cabeça-de-casal fez bem em relacionar, como passivo, obras que alegou ter o seu filho realizado no rés-do-chão do prédio da verba nº 3, àquele doado;

III
O despacho recorrido tem o seguinte teor:

“Analisados os autos em ordem a proferir decisão quanto à reclamação à relação de bens, verifica-se que após os articulados de reclamação e resposta, outros se sucederam.
Nos termos do disposto no artigo 1104º e 1105º ambos do CPC, à reclamação à relação de bens e impugnação das declarações de cabeça de casal, segue-se a resposta dos interessados.
A esta resposta não se segue nova resposta, não sendo processualmente admissíveis novos articulados com novas respostas.
Assim sendo, o Tribunal atenderá apenas ao teor dos articulados juntos apenas e só quando se pronunciem quanto ao teor de documentos, desconsiderando-os quanto ao demais, por serem processualmente inadmissíveis.
Conforme melhor se verá, a decisão quanto à reclamação à relação de bens não comporta no caso concreto produção de prova testemunhal, mas apenas a análise de documentos (escrituras e certidões matricial e predial), cuja veracidade e valor probatório não foi posto em causa, pelo que se encontra o Tribunal habilitado a conhecer da mesma, o que se fará de seguida.

=DECISÃO=
I. Relatório
Procede-se nos presentes autos a inventário por óbito de BB, falecida a ../../2019.
Apresentada a relação de bens, citados os interessados, os interessados CC e esposa DD vieram reclamar da relação de bens.
Em primeiro lugar, alegam que está relacionada sob a Verba 1 da relação de bens a importância de € 25.268,76, correspondente ao saldo em 25/03/2022 da conta bancária nº ...01 de que a inventariada era titular no Banco 1..., todavia não aceitam o valor invocado.
Sustentam que a inventariada sempre foi durante toda a sua vida uma pessoa muito poupada nas despesas que fazia, sempre levou uma vida muito modesta, de muito poucos gastos e que, para além do normal depósito à ordem, tinha bom pecúlio de aplicações a prazo, fundos de investimento, planos de poupança, aplicações de capitalização e carteira de títulos, cujos activos atingiam, por exemplo em 27/04/2007, a soma de € 89.767,39.
Defende, assim, que era expectável que a inventariada tivesse uma quantia monetária nessa ordem, a menos que tenha disposto de grande parte desses valores fazendo doações em vida, que não foram relacionadas, defendendo que deverá o cabeça-de-casal justificar como foi gasto esse dinheiro e qual o seu destino.
Requer que o Banco 1... junte aos autos os extractos integrados da conta bancária da inventariada, relativamente aos meses de Janeiro de 2013, Janeiro de 2014, Janeiro de 2015, Janeiro de 2016 e Janeiro de 2017; junte aos autos os extractos integrados daquela conta bancária, relativamente ao período entre as datas de 01/01/2018 e 24/02/2019; e informar em que datas foram resgatadas as aplicações de prazo fixo, os fundos de investimento, os planos de poupança e a carteira de títulos, de que a inventariada era titular, associadas à mesma conta bancária, com informação dos respectivos montantes às datas dos resgates e de qual foi o destino dos respectivos montantes, isto é, se foram levantados ao balcão ou se foram transferidos e, neste caso, para onde os mesmos transitaram.
Em segundo lugar, quanto ao passivo relacionado, sustentam que as eventuais benfeitorias realizadas no bem doado com dispensa de colação, pelo donatário ou pelo filho deste, com sua autorização, não integram qualquer passivo da inventariada nem são responsabilidade da sua herança, não cabendo na previsão do artº 2068º do Cód. Civil, pelo que não se aceita que as mesmas integrem a relação de bens como passivo, devendo essa verba ser excluída da relação de bens.
Defende ainda que as obras descritas no passivo, a terem ocorrido ainda em vida da inventariada, apenas terão relevância para efeitos de avaliação do bem doado, a qual deve ser efectuada com exclusão dessas benfeitorias.
Argumenta ainda que as benfeitorias feitas por terceiros, ou mesmo por um herdeiro, em bens da herança, que não possam ser por eles levantadas deverão figurar na relação de bens, sendo que o seu valor não será havido como efectiva dívida da herança, mas sim como valor dedutível ao valor do bem em que tenham sido incorporadas, a determinar por avaliação e atento o benefício que tenham trazido ao prédio em causa, segundo as regras do enriquecimento sem causa.
Finalmente, quanto ao bem doado, Verba 3, defende que existem discrepância e incongruências na sua relacionação.
Argumenta que esse imóvel está identificado na escritura de doação de 27/06/2013 como estando inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...53 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...01 da freguesia ....
Defende, porém, que o imóvel é identificado na relação de bens como estando inscrito na matriz sob o artigo ...97, o qual, pela leitura do doc. ... junto, resulta ter provindo do anterior artigo ...02.
O cabeça de casal respondeu.
Sustentou, quanto à conta bancária, que o saldo relacionado é o existente à data do óbito.
Quanto ao passivo, defendeu que a única forma que tem de relacionar as obras que fez no rés-do-chão é fazê-lo como passivo, para que o bem doado seja avaliado como se as mesmas não existissem ou, se porventura e academicamente, o imóvel fosse reposto à herança e entregue a outro herdeiro, o valor das mesmas teria de sair para quem as fez.
Aceita que o conceito de passivo não será o mais adequado para classificar a descrição das obras que foram feitas no imóvel doado, mas, declara, não vê outra forma de dar cumprimento ao disposto no art. 2115º do CC.
Finalmente, quanto à descrição do bem doado alega que à data da doação, ao imóvel doado da verba 3 correspondia o artigo ...53 Urbano da extinta freguesia ..., tal como se pode verificar do teor da verba 31 da escritura de partilha; esse artigo ...53 Urbano, por sua vez, deu lugar ao artigo ...02 Urbano da mesma freguesia ..., tal como se pode verificar da consulta da caderneta predial, e, por sua vez, o art. ...02 Urbano da freguesia ..., deu lugar ao artigo ...97 Urbano da ... e ....

II. O Direito

Contas bancárias.
Quanto a este ponto da reclamação, impugna o reclamante o saldo relacionado pelo cabeça de casal e pretende que se verifique qual o destino que a inventariada deu às quantias bancárias de que foi proprietária.
Vejamos.
O artigo 2024º Código Civil define sucessão como o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das situações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.
Nas palavras de Lopes Cardoso, Partilha Judiciais, Almedina, vol. I, pgs. 426-7, «no acervo hereditário compreendem-se todos os bens, direitos e obrigações que não sejam considerados intransmissíveis por sua natureza, por força da lei ou por vontade do autor da sucessão».
Ora, o momento para atender às relações jurídicas vigentes é o momento da abertura da sucessão, ou seja, da morte do seu autor, nos termos do disposto no artigo 2031º do Código Civil.
Isto posto, há que ter em consideração que, destinando-se o processo de inventário à partilha do acervo hereditário, portanto dos bens, direitos e obrigações deixados pelo inventariado, o momento de referência para o processo de inventário é o momento do falecimento do inventariado.
O processo de inventário destina-se a partilhar dos bens, direitos e obrigações do inventariado à data da sua morte.
No caso concreto, a inventariada faleceu a ../../2019, pelo que, salvo o devido respeito, é esta a data relevante para atender no processo de inventário.
É, por isso, entendimento deste Tribunal ser inadmissível, por extrapolar o objecto do processo, a pesquisa, ao longo de vários anos, dos gastos ou pagamentos que a inventariada haja feito em vida.
Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 1104º do CPC, aos interessados cabe apresentar reclamação à relação de bens, cabendo-lhes, atento o disposto no artigo 5º, nº 1 do CPC, alegar os bens incorrectamente relacionados ou omitidos.
No caso concreto, os reclamantes não alegam qualquer específica omissão na relacionação, pelo que, não havendo alegação concretizada de qualquer omissão, salvo o devido respeito, não há que produzir prova.
Assim sendo, será de improceder a reclamação nesta parte, determinando-se apenas e só (e uma vez que a informação bancária junta se reporta a 2022) que o Banco 1... informe de quais os saldos bancários existentes em nome da inventariada, à data do óbito.

Da relacionação do passivo
Quanto ao passivo, conjugada a reclamação e a resposta, parece-nos que não existe qualquer litígio que mereça discussão nesta fase processual.
Com efeito, quer os reclamantes quer o cabeça de casal reconhecem que o passivo relacionado não é passivo da herança.
O cabeça de casal justifica a sua relacionação, apenas para efeitos de futura avaliação, relacionando-o como passivo, à falta de melhor classificação, já que a lei não a prevê.
Ora, assim sendo e não havendo dúvida, como não há, de que não se trata de verdadeiro passivo da herança, mas de valor a ser deduzido ao valor do bem em que foi incorporado (bem este doado), inexiste, qualquer litígio quanto à relação de bens.
Com efeito, a reclamação à relação de bens tem como objecto a indicação de bens omitidos ou de bens indevidamente relacionados.
No caso, o “passivo” indicado foi-o apenas para efeitos de avaliação, sendo que a avaliação é um outro momento (eventual) do processo de inventário e não contende com a relação de bens.
Assim sendo, determino que se mantenha a relacionação do “passivo indicado”, nos termos em que o foi, isto é, não como passivo da herança, mas como valor a ser deduzido ao valor do bem em que foi incorporado para efeitos de eventual avaliação, se vier a ser requerida.
Quanto à avaliação, se vier a ser requerida, aí será o momento próprio para se verificar que obras foram feitas e qual a sua natureza jurídica.

Da descrição do bem doado
Finalmente, quanto à descrição do bem doado, mostra-se provado por documento com força probatória bastante que:
-à data da doação, ao imóvel doado da verba 3, correspondia o artigo ...53º Urbano da extinta freguesia ..., conforme documentos de fls. 53 e 8, respectivamente escritura pública de partilha outorgada entre a inventariada e os ora interessados e de doação da inventariada ao cabeça de casal;
-o artigo ...53º Urbano deu lugar ao artigo ...02º Urbano da mesma freguesia ..., conforme resulta da caderneta predial junta aos autos a fls. 56, cujo teor aqui se dá por fiel reproduzido;
-por sua vez, o art. ...02º Urbano da freguesia ..., deu lugar ao artigo ...97 Urbano da ... e ..., conforme certidão da descrição predial do imóvel relacionado.
Assim sendo, salvo o devido respeito, é manifesto que o bem se encontra devidamente descrito, não se suscitando quaisquer dúvidas quanto ao mesmo.

III. Decisão
Pelo exposto, julgo a reclamação parcialmente procedente e, em consequência:
Determino que o Banco 1... informe qual o saldo existente na conta bancária da inventariada à data do óbito desta.
Oficie-se em conformidade.
Julgo improcedente o demais peticionado.
Considerando o decaimento, fixam-se as custas pelos reclamantes, artigo 527º, nº 1 e 2 do CPC.
Notifique e registe”.

IV
Conhecendo do recurso.

A- Nulidades

Afirma o recorrente que ocorre omissão de pronúncia: em síntese, a questão tem a ver com o facto de não terem sido apresentadas as certidões comprovativas de que os prédios relacionados sob as verbas 5 a 13 são prédios não descritos na CRP, conforme previsto no artº 1097º, nº 3, al. c) do CPC, e afirma o recorrente, o Tribunal nada disse sobre isto.

Vejamos.
No despacho que admitiu o recurso, o Tribunal a quo, nos termos do art. 641º,1 CPC, pronunciou-se sobre esta alegada nulidade, dizendo: “sobre esta matéria, entendeu o Tribunal que as certidões matriciais conjugadas com a alegação, não contestada, de trato sucessivo, são suficientes para que se conheça da situação dos prédios descritos, pelo que, salvo o devido respeito, entendemos não existir qualquer nulidade”.
No mesmo sentido se pronunciou o recorrido, dizendo que, salvo melhor opinião, determinando o Tribunal “a quo” que a prova se faça apenas com recurso às escrituras e descrições/cadernetas prediais juntas aos autos, pronunciou-se, ainda que tacitamente, quanto à questão prévia invocada pelos Apelantes, considerando que a escritura de partilha junta aos autos, aliada ao princípio do trato sucessivo, eram suficientes para fazer prova da situação registral dos prédios descritos nas verbas ns.º 5 a 13 da Relação de Bens apresentada.
Dispõe o art. 615º,1,d CPC – aplicável aos acórdãos da 2ª instância por força do disposto no art. 666º – que a sentença é nula quando, além do mais, o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia).
Esta nulidade por omissão de pronúncia é a sanção pela violação do disposto no art. 608º,2 do mesmo diploma, preceito que impôs ao julgador o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
Pressupõe a não apreciação de questões jurídicas de que o tribunal devia conhecer e o tribunal deve conhecer as questões que são submetidas à sua decisão, balizadas pelos pedidos formulados em conformidade com as causas de pedir invocadas, e cujo conhecimento não haja ficado preterido por prejudicialidade.
Além do mais, tal nulidade verifica-se apenas nos casos em que há omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão não prejudicada, e não de todas as razões ou argumentos invocados pelas partes.”
Também o Professor Alberto dos Reis, no seu Código de Processo Civil anotado, Volume V, a páginas 143, a propósito do artigo 668º nº 4 do Código de Processo Civil de 1939, que referia que “é nula a sentença quando o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento” refere que “não enferma da nulidade da 1ª parte do nº 4º o acórdão que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito (Acórdão do STJ de 7-7-950, Boletim nº 20, página 324). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.
Ora, no caso concreto, como refere o Juiz a quo e o recorrido, no despacho sub judice pode ler-se: “conforme melhor se verá, a decisão quanto à reclamação à relação de bens não comporta no caso concreto produção de prova testemunhal, mas apenas a análise de documentos (escrituras e certidões matricial e predial), cuja veracidade e valor probatório não foi posto em causa, pelo que se encontra o Tribunal habilitado a conhecer da mesma, o que se fará de seguida”.
E, embora de forma indirecta, este segmento acaba por apreciar a questão a que os recorrentes se referem, indeferindo a mesma. Saber se está ou não correcta a decisão já é actividade intelectual que sai fora do perímetro da arguição de nulidade.
O que interessava aqui sublinhar era que o Tribunal não deixou de apreciar a questão, embora de forma tácita.
É quanto basta para podermos concluir pela ausência da nulidade apontada

B- Julgamento da matéria de direito

B1. A questão de saber se os requerimentos de 12/09/2023, 14/09/2023 e 15/09/2023, apresentados pelos reclamantes, eram admissíveis, devendo ficar nos autos, e nomeadamente, se devia ser considerada a prova testemunhal e documental aí indicada.
Na resposta, o recorrido vem dizer que vigora aqui o princípio da concentração da defesa e da preclusão, sendo que, posteriormente à resposta do cabeça-de-casal à reclamação da relação de bens apresentada, não está previsto na lei qualquer outro articulado. Mais, chama a atenção para que se o Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário, previsto nos arts. 1082º e ss. do CPC, se encontra sujeito aos demais princípios do processo declarativo, nomeadamente ao do contraditório, previsto no art. 3º, nº 3 do CPC, não será menos verdade que o mesmo se encontra também submetido ao preceito legal do seu nº 4, segundo o qual, às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final. O que, in casu, mutatis mutandis, corresponderia à audiência prévia prevista no art. 1109º ou, não havendo lugar à mesma, à conferência de interessados do art. 1111º do CPC. Cita jurisprudência.
Ora bem.
Aproveitando o que se escreve no Acórdão desta Relação de 30 de Março de 2023 (Anizabel Sousa Pereira), “também Lopes do Rego, in Julgar on line, Dezembro de 2019, refere “Este novo modelo procedimental parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte; e assim, o modelo procedimental instituído para o inventário na Lei n.º 117/19 comporta:
I) Uma fase de articulados – abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo;
II) Uma fase de saneamento, em que o juiz, após realização das diligências necessárias, e com a possibilidade de realizar uma audiência/conferência prévia, deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar, proferindo também, nesse momento processual – e após contraditório das partes – despacho contendo a forma à partilha (antes de convocar a conferência de interessados);
III) Um procedimento específico para a verificação e redução de eventuais inoficiosidades, através de um incidente com a estrutura de uma acção enxertada no inventário;
IV) A fase da partilha, consubstanciada, desde logo, nas diligências e actos que integram a conferência de interessados…;
Só depois de encerradas estas diligências se passa à elaboração do mapa da partilha, concretizando, na sequência do resultado dessas várias diligências anteriores, os bens que integram o quinhão hereditário de cada interessado – e encerrando-se naturalmente o processo com a prolação de sentença homologatória”.
Concluiu aquele mesmo autor “ com este regime de antecipação/concentração na suscitação de questões prévias à partilha ou de meios de defesa, associado ao estabelecimento de cominações e preclusões, pretende evitar-se que a colocação tardia de questões – que podiam perfeitamente ter sido suscitadas em anterior momento ou fase processual – ponha em causa o regular e célere andamento do processo, acabando por inquinar irremediavelmente o resultado de actos e diligências já aparentemente sedimentados, tendentes nomeadamente à concretização da partilha, obrigando o processo a recuar várias casas, com os consequentes prejuízos ao nível da celeridade e eficácia na realização do seu fim último.
Vejamos. Os interessados directos na partilha podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação, apresentar reclamação à relação de bens (art. 1104º,1,d CPC).
Se for deduzida reclamação, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada, sendo que as provas são indicadas com os requerimentos e respostas (art. 1105º,1,2 CPC). E a questão é decidida depois de efectuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz (art. 1105º,3).
Existe ainda a possibilidade (art. 1109º) de o Juiz convocar uma audiência prévia se o considerar conveniente, nomeadamente por se lhe afigurar possível a obtenção de acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas, ou quando entenda útil ouvir pessoalmente os interessados sobre alguma questão.
Finalmente, nos termos do art. 1110º,1,a CPC o juiz profere despacho de saneamento do processo em que, entre outras coisas, resolve todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, e convoca a conferência de interessados.
Para nos ajudar a determinar o regime concreto que daqui emerge, vejamos o que escreve Domingos Silva Carvalho de Sá (Do inventário, 8ª edição, fls. 141 e ss): “a falta de relacionação de bens é arguida através de requerimento. Nesse requerimento devem ser especificados os bens em falta. (…) O cabeça de casal ou o seu mandatário têm, depois, o prazo de 30 dias para responder, podendo tomar as seguintes atitudes:
a) confessa expressamente a existência de bens a relacionar e a obrigação de o fazer, alegando paralelamente que não os inclui na relação de bens por mero lapso ou por desconhecimento.
b) não se pronuncia, nega expressamente a existência dos bens ou responde de molde a concluir-se que desconhece a sua existência.
Neste último caso o juiz procederá à recolha da prova indicada pelos interessados nos seus requerimentos e mandará proceder às diligências que julgue necessárias.
c) confirma a existência dos bens mas declara-se impossibilitado de os relacionar por estarem em poder de outra pessoa, de um terceiro. Neste caso seguir-se-ão os termos do incidente já analisado supra e previsto no art. 1101”.
Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres (O Novo Regime do Processo de Inventário, fls. 81) chamam também a atenção para que o legislador teve aqui o claro objectivo de concentração da suscitação de todos os meios de defesa, e por isso obrigou os interessados a, no mesmo articulado, cumular as seguintes questões: oposição ao inventário, impugnação da legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros, competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações, reclamação à relação de bens e impugnação dos créditos e dívidas da herança.
E acrescentam: “este ónus de concentração das reclamações contra a relação de bens no âmbito da oposição ao inventário é consequência de a fase inicial do processo se não encerrar sem que se mostre apresentada pelo cabeça de casal a relação de bens (cf. art. 1097º,3,c e 1102º,1,b)”.
E, mais adiante, acrescentam: “no articulado de contestação, qualquer interessado não requerente do inventário pode alegar factos novos (cf. art. 1104º). Estes factos podem ser contestados no articulado de resposta (nº 1). O problema da alegação de factos novos no próprio articulado de resposta não se coloca exactamente nos mesmos termos, nomeadamente porque a tramitação do processo de inventário não comporta qualquer tréplica ao articulado de resposta. Isto justifica as seguintes soluções:
a) Antes de mais, importa verificar se o interessado que invoca um facto novo no articulado de resposta se encontra de boa-fé, isto é, se a esse interessado não teria sido exigível que tivesse alegado o facto em momento anterior (que pode ser o do requerimento inicial ou o do articulado de contestação). Não há justificação para um requerente de inventário alegar um facto novo (não superveniente) no articulado de resposta, a não ser que a sua alegação resulte de algum facto que tenha sido invocado, pela primeira vez, no articulado de contestação. Por exemplo: no articulado de contestação, um interessado alega a existência de um sucessor testamentário; qualquer outro interessado pode alegar no articulado de resposta a invalidade do respectivo testamento.
b) Se o interessado puder ser considerado como agindo de boa-fé, então o juiz deve admitir a alegação do facto novo no articulado de resposta. Nesta hipótese, há que garantir o contraditório dos demais interessados, cabendo ao Juiz, através dos poderes de gestão processual (art. 6º,1) e de adequação formal (art. 547º), admitir um articulado de resposta, ou, por analogia com o disposto no art. 3º, nº 4, deferir esse contraditório para a audiência prévia (art. 1109º) ou para a conferência de interessados (art. 1111º)”.
Voltando agora ao caso concreto, o Tribunal recorrido decidiu que apresentada a resposta à reclamação de bens, não se podia seguir uma resposta à resposta, por não ser processualmente admissível.
E com efeito, como acabámos de ver na citação anterior, não é processualmente admissível um terceiro ou quarto articulado. A lei só prevê o articulado de contestação ou oposição, depois prevê a resposta a esse articulado, e pára por aí.
É porém verdade que, em certos casos, nomeadamente os indicados pelos autores acabados de citar, pode haver necessidade de permitir uma resposta à resposta. Só em concreto é possível saber se é esse o caso.
E fazendo essa análise neste caso concreto, o que vemos ?
Na reclamação contra a relação de bens, os interessados colocam as seguintes questões: a) a questão prévia dos documentos comprovativos da situação no registo predial dos imóveis; b) discordância quanto à verba nº 1; c) discordância quanto ao passivo / benfeitorias; d) discrepância quanto à inscrição matricial da verba nº 3; e) valor dos imóveis relacionados.
Por requerimento de 31/8 o cabeça de casal respondeu às questões suscitadas: a) quanto ao registo predial dos imóveis; b) quanto à verba nº 1 faz a afirmação genérica de que “não pode deixar de referir que, em vida, a inventariada partilhou dinheiros entre os filhos”, e “não se aceita a reclamação deduzida, nem há quaisquer diligências a efectuar para o efeito”; c) quanto ao passivo, dizendo em síntese que o conceito de passivo não será o mais adequado para classificar a descrição das obras que foram feitas no imóvel doado, mas não vemos outra forma de dar cumprimento ao disposto no art. 2115º do CC. E afirma que o imóvel deverá ser avaliado com exclusão dessas benfeitorias, no interesse de todos; d) quanto à verba nº 3; e) quanto ao valor dos imóveis relacionados, dizendo que oportunamente e se for necessário, será requerida a avaliação de todos os imóveis.
Por requerimento de 12/9 vieram os reclamantes responder à resposta, dizendo que reiteravam todos e cada um dos factos alegados no seu anterior requerimento, e pronunciaram-se sobre a alegada partilha em vida de dinheiros entre os filhos, e pronunciando-se ainda sobre outras passagens da resposta inicial. Nomeadamente, e indo ao que aqui mais interessa, dizem: “e se o cabeça-de-casal alega que a inventariada partilhou em vida dinheiros entre os filhos, deverá o mesmo especificar as datas em que tal sucedeu e os valores alegadamente partilhados, bem como referir a proveniência desses dinheiros, acompanhada da respectiva documentação disso demonstrativa, para que tudo fique devidamente clarificado. Pois que a única vez em que o aqui interessado recebeu dinheiro da mão da sua mãe foi por ocasião da partilha por óbito de seu pai, ocorrida em 9 de Fevereiro de 1991, já lá vão longos 32 anos”. Requer pois a notificação do cabeça-de-casal para prestar essas informações.
A 14/9 veio o cabeça de casal dizer que este articulado não tem enquadramento legal, pelo que deve ser ordenado o seu desentranhamento.
Finalmente, a 15/9 vieram os reclamantes dizer que o seu anterior requerimento foi apresentado ao abrigo do disposto no art. 3º, nº 3 do CPC, exercendo o direito de pronúncia sobre questões factuais antes inexistentes nos autos, ou seja, questões novas, bem como sobre os documentos aí juntos.

Quid iuris, quanto a este crescimento quase “tumoral” de articulados ?
Para responder, e recordando o que diz Carvalho de Sá, podemos afirmar que na reclamação inicial foi expressa discordância quanto à verba nº 1, mas não foram indicadas quais as verbas que no entender dos reclamantes deveriam ser acrescentadas. Porém, sucedeu que o cabeça de casal acrescentou na sua resposta um facto que é relevante, e que não tinha alegado na relação de bens: a referência a que em vida, a inventariada partilhou dinheiros entre os filhos. E esta alegação de um facto novo e relevante, quer-nos parecer, nesta parte, justifica o exercício do contraditório por parte dos reclamantes. Trata-se, repetimos, de facto que devia ter sido alegado na relação de bens, por poder ser relevante para efeitos de igualização da partilha através do instituto da colação.
Sem concretizar valores e datas, não obstante a afirmação é clara e incontroversa. E estando em causa a igualação da partilha, não podia tal afirmação ter passado em claro. Daí que entendamos legítimo que os recorrentes tenham vindo responder a essa afirmação, sobretudo porque afirmam desconhecer essa partilha.
Claro que nesta fase nada mais se sabe, a não ser a declaração em si mesma. Como os herdeiros são apenas o cabeça de casal e o reclamante, e este declara desconhecer essa partilha, a mesma só pode ser facto pessoal do cabeça de casal, e, logo, terá de ser ele a esclarecer que valores foram partilhados.
Pode dar-se o caso de ele se querer referir à entrega de pequenas quantias, que entretanto caíram no esquecimento.
Ou não.
Na dúvida, tendo tal afirmação sido proferida, deve a questão ser esclarecida pela única pessoa que, aparentemente, o poderá fazer.
Assim, tal resposta, nessa parte, é admissível, devendo o Tribunal recorrido pronunciar-se sobre a questão suscitada pelos reclamantes, através da prévia notificação do cabeça-de-casal para especificar as datas em que a inventariada partilhou em vida dinheiros entre os filhos, indicando os respectivos valores, bem como a proveniência desses dinheiros, acompanhada da respectiva documentação demonstrativa disso mesmo.
No mais, a decisão mantém-se.

B.2. Quanto à conta bancária relacionada na verba 1.
Aqui consideramos que bem andou o Tribunal recorrido.
Com efeito, o processo de inventário não se destina a fazer investigação sobre as despesas e liberalidades feitas pelo de cuius ainda em vida, e ainda atentas as regras da alegação de factos constitutivos do direito e do ónus da prova. A relação de bens é apresentada, e se algum interessado souber que falta relacionar algum bem, vem alegar essa omissão, e apresentar prova disso mesmo. E recai sobre si o ónus de provar o que alegou (art. 342º,1 CC). No caso dos autos os recorrentes não produziram nenhuma afirmação concreta sobre dinheiros que tenham sido levantados da conta bancária, mas apenas levantaram dúvidas e suspeições, ao que tudo indica, pretendendo que o Tribunal iniciasse uma investigação. O processo de inventário, como capítulo ou parte do Processo Civil, obedece ao princípio do dispositivo e da substanciação: não basta às partes formular o pedido, e esperar que o Tribunal investigue todas as possíveis vias para lá chegar: têm o ónus de alegar os factos concretos em que assentam a sua pretensão, o que, como é óbvio, supõe ou implica que já tenham feito extrajudicialmente a sua investigação privada e recolhido os elementos necessários, factuais e probatórios, para estruturar uma demanda e vir a Juízo. Dispõe o art. 5º,1 CPC que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.
E há ainda uma outra razão para que seja a parte interessada a ter de trazer aos autos uma alegação estruturada, composta por factos, em vez de vir dizer ao Tribunal que “tem dúvidas”, “pode suceder que”, “há suspeitas de”, etc. Tem a ver com o princípio da auto-responsabilização das partes, que leva, além do mais, ao instituto da litigância de má-fé. Só perante uma afirmação ou alegação de factos concretos é que é possível, após a produção de toda a prova, aferir se ocorreu ou não um abuso do direito de acção. Se a parte se pudesse limitar a pedir ao Tribunal que investigue, nunca assumiria o ónus, melhor, o dever, de proferir uma afirmação factual que possa vir a ser confirmada ou infirmada.
Os reclamantes não o fizeram, neste caso concreto. Como tal, a decisão recorrida, nesta parte, não merece censura.

B.3. A questão de ter o cabeça de casal relacionado, como passivo da herança, obras que alegou ter o seu filho realizado no rés-do-chão do prédio da verba nº 3, àquele doado.
Aqui, muito pouco há a dizer, pois também assiste inteira razão ao Tribunal recorrido, quando refere que não existe um verdadeiro litígio sobre a questão. As partes estão de acordo quanto ao facto de (o valor de) tais obras não constituir passivo da inventariada.
Basta remeter aqui para a decisão recorrida, supra transcrita. Aí se explica e bem que não existe qualquer litígio que mereça discussão nesta fase processual, pois quer os reclamantes quer o cabeça de casal reconhecem que o passivo relacionado não é passivo da herança. O cabeça de casal justifica a sua relacionação, apenas para efeitos de futura avaliação, relacionando-o como passivo, à falta de melhor classificação, já que a lei não a prevê. Ergo, não se trata de verdadeiro passivo da herança, mas de valor a ser deduzido ao valor do bem em que foi incorporado (bem este doado).
Repetindo, não há aqui um verdadeiro litígio quanto ao que deve integrar a relação de bens. Há apenas uma questão de avaliação, como disse o Tribunal recorrido.
No Acórdão do TRC de 20.09.2016, proferido no Proc. 748/06, escreve-se: “considerando o relevo que apresenta o valor dos bens da herança para a realização dos objectivos da partilha (…), a discussão em torno desse aspecto pode ser impulsionada logo após a citação dos interessados….também nada obsta a que a avaliação seja requerida em momento anterior ao da conferência de interessados, designadamente para facilitar a composição consensual dos interesses na audiência prévia. Seja como for, a abertura das licitações constitui o termo final para a dedução do requerimento de avaliação de bens”.
Situação, pois, a ser regulada pelo disposto no art. 1114º CPC (aditado pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2020), sendo que, como refere o cabeça de casal recorrido, o Tribunal tem toda a legitimidade em fazê-lo, segundo o princípio da gestão processual e da adequação formal, previstos nos art. 6º e 547º do CPC, respectivamente.
Também aqui o recurso improcede.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide:
a) julgar o recurso parcialmente procedente, e em consequência, após baixa dos autos, determina a notificação do cabeça-de-casal para especificar as datas em que a inventariada partilhou em vida dinheiros entre os filhos, indicando os respectivos valores, bem como a proveniência desses dinheiros, acompanhada da respectiva documentação demonstrativa disso mesmo.
b) no mais, confirma-se a decisão recorrida.

Custas por recorrentes e recorrido, na proporção de 1/3 para este e 2/3 para aqueles (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 21.3.2024

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (José Carlos Dias Cravo)
2º Adjunto (Alexandra Rolim Mendes)