Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3999/23.5T8VNF.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: PEAP
APROVAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO
RECUSA
CREDOR MINORITÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O PEAP tem uma função estritamente preventiva: evitar, na medida do possível, que o devedor passe, irremediavelmente, a uma situação de insolvência, potenciando o azzeramento da sua posição passiva.
II- Pelos efeitos materiais que acarreta, compreende-se que esteja sujeito a controlo jurisdicional, designadamente através da sentença homologatória, que é condição da sua eficácia.
III- Assim, o juiz pode recusar a homologação do acordo aprovado pela maioria dos credores quando ocorra a violação de normas legais injuntivas.
IV- Sem prejuízo, os credores minoritários podem deduzir oposição à homologação do plano quando este os prejudique ou leve ao favorecimento indevido de outro credor.
V- Para aferir da demonstração ou não desta causa de recusa de homologação do acordo, impõe-se ao juiz uma apreciação casuística assente na comparação entre a situação em que o credor ficará com o acordo e a situação em que ele previsivelmente ficaria sem o acordo - ou seja, se pudesse recorrer aos meios coercivos para obter a cobrança coerciva do seu crédito ou, consumando-se a situação de insolvência do devedor, requerer a respetiva declaração, levando à liquidação universal do património deste.
VI- Verifica-se uma situação em que se justifica a recusa de homologação do acordo quando o acordo prevê o perdão de juros e a redução a metade do crédito que está garantido por hipoteca sobre um prédio do devedor com valor suficiente para permitir a sua satisfação integral.
VII- A finalidade do PEAP ficaria definitivamente comprometida se o acordo apenas produzisse efeitos em relação a alguns dos credores, pelo que essa possibilidade não deve ser admitida.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) AA e BB intentaram, no dia 20 de junho de 2023, processo especial para acordo de pagamento (PEAP) alegando, em síntese, que: são casados entre si, segundo o regime da comunhão de adquiridos; têm como únicos rendimentos as respetivas reformas, nos valores de € 434,86 e € 402,49; e estão a enfrentar sérias dificuldades para cumprir as suas obrigações, todas elas de natureza pessoal, por falta de liquidez.
Requereram a nomeação da administradora judicial provisória que indicaram e o início das negociações com os credores com vista à obtenção de acordo de pagamento e a subsequente homologação deste.
Juntaram: escrito em que declararam, juntamente com um dos seus credores, a vontade de encetarem negociações com vista à celebração de acordo de pagamento; lista de todas as ações de cobrança de dívidas que se encontram pendentes contra ambos; comprovativo da declaração de rendimentos; comprovativo da situação profissional; relação por ordem alfabética de todos os credores; relação de bens de que são titulares, acompanhada dos documentos respetivos; certidão Predial e Caderneta predial; certidões de nascimento e de casamento; certidão do registo criminal.
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2) Por despacho de 29 de junho de 2023, publicado no Portal Citius, foi nomeada a administradora judicial provisória (AJP) indicada pelos Requerentes.
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3) No dia 26 de julho de 2023, a AJP apresentou a lista provisória de créditos, prevista no art. 220-D/3 do CIRE, seguinte teor:

NomeFundamentoValor reclamado taxas de juroCondições suspensivas ou
 resolutivas
Natureza
1CCIncumprimento da transação
acordada no âmbito do processo executivo n.º ...2...
180,197,70€SemGarantida (art. º47.º, n. º4, alínea a), do CIRE).
2A Banco 1..., S.A.Incumprimento dos empréstimos N.º ...84 e ...8548.746,22 €
Juros à taxa legal
SemGarantida 44.314,57€ (art. 47.º, n. º4, alínea a), do CIRE); Comum                                                                           4.431,65€
3DDIncumprimento Contrato                                                           mútuo10.000,00€SemComum
4Banco 2..., S.A.Incumprimento contrato mútuo com hipoteca n.º ...27;
Incumprimento contrato mútuo
com hipoteca n.º...24;
81.434,17€
Sem
Garantida (art. º47.º, n. º4, alínea a), do CIRE).
5EMP01...-STC, S.A.Incumprimento contrato mútuo n.º  ...90
91
18.619,48€SemComum
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4) A lista não foi objeto de qualquer impugnação nos cinco dias subsequentes à sua publicação no Portal Citius.
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5) Concluído o prazo das negociações, entretanto prorrogado por uma vez, os Requerentes comunicaram, no dia 29 de setembro de 2023, a aprovação, por maioria, de um acordo de pagamento do seguinte teor:
“(…)
O PLANO DE PAGAMENTOS:
Face ao exposto, AA e EE, devedores nos autos à margem referenciados e neles melhor identificados, vem apresentar a sua proposta de planos de pagamentos.
5.1 CRÉDITOS COMUNS E GARANTIDOS
Propõe o pagamento dos créditos reconhecidos de natureza comum e garantida, bem como os créditos sob condição, da seguinte forma:
a) Pagamento de 50% do valor do capital reconhecido;
b) Perdão de 100% dos juros;
c) Perdão de 50% do valor do capital reconhecido;
d) Período de carência de 18 meses após a data da homologação do plano de recuperação;
e) Pagamento do valor de 50% do capital reconhecido em 150 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira após o período de carência suprarreferido.
6. PRINCÍPIOS DA IGUALDADE
Nos termos do art. 194º do CIRE, “O Plano obedece ao princípio da igualdade dos credores de insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas.”
Esta norma procura evidenciar o princípio da igualdade traduzido no tratamento por igual do que é igual e do tratamento desigual do que é desigual, considerada a devida proporção da desigualdade.
Tendo em conta o plano de pagamentos ora proposto, verifica-se que todos os credores são tratados de forma igual, não havendo qualquer lugar à derrogação deste princípio – justificada ou não.
7. IMPACTO EXPECTÁVEL COM A IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO DE PAGAMENTOS EM COMPARAÇÃO COM A SUA AUSÊNCIA
Caso não fosse apresentado o plano de revitalização, apenas seria possível o pagamento aos credores, através da liquidação dos seus ativos que não garantiriam um pagamento integral da dívida.
Neste sentido, o cumprimento do Plano nos exatos termos acima indicados permite atingir os objetivos de renegociação das dívidas da devedora, plano este que, regrado nos termos do disposto nos art.192.º e seguintes do CIRE se torna útil, por exequível, uma vez que permite a satisfação de créditos.
Por conseguinte, a não aprovação do plano e a consequente insolvência, ou seja, a liquidação do ativo será obviamente mais prejudicial à generalidade dos credores, dado que com a venda forçada do ativo dos requerentes o produto da liquidação dificilmente se conseguirá obter um valor próximo do ora proposto.
8. PLANO DE PAGAMENTOS VS. INSOLVÊNCIA – Comparativo.
O cenário de revitalização é mais favorável para todos os credores do que a via da insolvência, uma vez que na insolvência apenas alguns credores receberiam parte do seu crédito e os restantes credores não receberiam qualquer valor.
9. CONCLUSÃO
Os requerentes, AA e EE, estão
fortemente empenhados em implementar o cenário de viabilização para que possa reembolsar todos os credores que têm vindo a apoiar os devedores.”
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6) Na mesma data, o referido acordo foi publicado no Portal Citius, iniciando-se o prazo de dez dias para a sua votação pelos credores reconhecidos.
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7) No dia 9 de outubro de 2023, a Banco 1..., SA, comunicou que votou contra o acordo de pagamento apresentado, conforme voto remetido à AJP, e manifestou a sua oposição, requerendo a recusa de homologação, com os seguintes fundamentos:
“O plano apresentado implica, desde logo, perdão relevante: de 50% do capital em dívida e de todos os juros e encargos.
No caso da Banco 1..., o seu empréstimo garantido, à data da reclamação de créditos, apresentava em dívida, a título de capital, € 25.726,71, € 17.394,80 de juros (vencidos entre 03.09.2010 e 04.07.2023) e, finalmente, € 1.193,06 de comissões.
Decorre, portanto, que por via do presente acordo de pagamento os Devedores pretendem obter, quanto a este concreto empréstimo, o perdão do total de € 31.451,22 (= 12.863,36 + 17.394,80 + 1.193,06)!
A acrescer, o pagamento dos restantes 50% de capital (isto é, € 12.863,36), ocorrerá somente ao cabo de 168 meses, ou seja, 14 anos, contados a partir da data da (putativa) sentença de homologação e sendo os primeiros 18 (meses) de carência (total).
No caso concreto do empréstimo de natureza garantida da Banco 1..., os Devedores, depois de estarem em incumprimento há treze anos – pois que a última prestação paga data de agosto de 2010 -, pretendem permanecer outros 18 meses sem nada pagar, para após pagarem uma ínfima parte da sua dívida ao longo de 12,5 anos!
E isto, considerando que os Devedores têm 84 e 80 anos de idade, respetivamente, pelo que o plano de pagamento por si mesmos proposto implica que efetuem pagamentos até aos seus 98 e 94 anos de idade, o que, manifestamente, é inexequível.
Por outro lado, o imóvel hipotecado a favor da Banco 1... foi avaliado, em maio último, pelo valor de € 177.435,00 (cento e setenta e sete mil quatrocentos e trinta e cinco euros) – cf. relatório que ora se junta.
Significa isto que o crédito garantido da Banco 1... representa somente cerca de 25% do valor do imóvel hipotecado.
Daqui decorre que, na ausência de qualquer plano, a Banco 1... ficaria em situação muito mais favorável, pois que, por um lado, conseguiria recuperar a totalidade do seu crédito garantido e, por outro lado, para o efeito não teria de aguardar por catorze anos.
De facto, estando – como está – o seu crédito garantido totalmente coberto pela garantia hipotecária constituída, em curto/médio prazo a Banco 1... logrará ver-se ressarcida do mesmo, e sem qualquer perdão.
E tal cenário advir-lhe-ia quer em sede de processo executivo, quer ante um possível processo de insolvência, pois que inexiste qualquer crédito que ao seu prefira (para pagamento pelo produto da venda do imóvel hipotecado).
Note-se ainda que, atento o brutal perdão previsto no acordo de pagamento, o valor total a pagar à Banco 1... no caso da sua aprovação e homologação será inferior ao valor do seu crédito garantido sem qualquer perdão – crédito este, como supra demonstrado, cuja recuperação integral está assegurada.
Posto isto, mesmo que em sede executiva ou insolvencial a Banco 1... não lograsse recuperar qualquer parte do seu crédito de natureza comum, ainda assim ver-se-ia em situação mais favorável na ausência de acordo de pagamento, pois que a liquidação do seu crédito garantido – que não se coloca em causa – determinará a recuperação de quantia superior à que no referido acordo vem proposto entregar-lhe.
Assim sendo, como de facto é, a Banco 1..., na ausência de acordo de pagamento ficará em situação mais favorável.
Mas não se ficam por aqui os motivos para a recusa da homologação do acordo de pagamento apresentado pelos devedores.
Na verdade, quando analisado o aludido acordo, ressalta que os Devedores estão em situação de insolvência atual (e já estavam, aquando da apresentação a este processo), e não em situação de insolvência iminente.
Vejamos:
Como acima mencionado, os Devedores estão em incumprimento perante a Banco 1... há mais de dez anos.
Estando há longos anos igualmente em incumprimento perante a generalidade dos seus credores – a título de exemplo, veja-se o crédito de CC, decorrente de uma letra não paga vencida no ido ano de 2017.
É, pois, patente que há vários anos os Devedores não conseguem honrar as suas obrigações.
Acresce que, tal como referido pelos próprios no seu acordo de pagamento, os rendimentos dos Devedores decorrem, exclusivamente, das pensões de reforma que auferem, as quais, notoriamente, são em absoluto insuficientes – de contrário, não teriam há vários anos cessado os pagamentos aos seus credores.
E pelo próprio acordo de pagamento vêm solicitar um acrescido período de carência – donde resulta, sem qualquer dúvida, a insuficiência dos seus rendimentos para fazer face a todos os seus compromissos.
Ademais, solicitam o perdão de mais de metade das suas dívidas e propõem um lapso temporal para pagamento do remanescente de tal forma longo que os “agarra” até serem praticamente centenários.
Nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 do CIRE, “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Os Devedores, lamentavelmente, não estão em situação de insolvência iminente, passível ainda de recuperação. Pelo contrário, a sua situação de insolvência é atual, o que já se verificava aquando da apresentação a este processo.
Também, portanto, por este motivo não poderá ser homologado o acordo de pagamento apresentado, pois que o processo especial para acordo de pagamento é dirigido ao devedor que se encontre em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, mas em que a dita situação ainda seja suscetível de recuperação.
Não pode é ser utilizado quando o devedor esteja em situação de insolvência atual, como é o caso.
Finalmente, o acordo de pagamento apresentado mostra-se perfeitamente inexequível, o que igualmente deverá importar a recusa da sua homologação.
Vejamos:
No acordo de pagamento em crise, os Devedores informam que os seus rendimentos provêm na sua totalidade das pensões de reforma que auferem, as quais, como é cristalino, são insuficientes para a satisfação das suas obrigações.
É certo que no mesmo acordo referem ter a intenção de, juntamente com um familiar, desenvolver atividade agropecuária e turística. Porém, nada a esse respeito concretizam, tudo não passando de boas intenções, sem qualquer base de sustentação que possa trazer-lhes alguma credibilidade.
Posto isto, apenas poderão ser consideradas as respetivas pensões, as quais se cifram em aproximadamente € 13.000,00/ano, o que se traduz num rendimento mensal pouco superior a € 1.000,00, o que, de todo em todo, lhes permitirá assegurar os pagamentos que propõem no acordo por si apresentado.
Acresce ainda a provecta idade dos Devedores. Não se pode olvidar que os devedores têm 84 e 80 anos de idade, pelo que o plano de pagamentos por si apresentado, ao prever pagamentos ao longo de catorze anos, é claramente inexequível.
É, pois, patente a inexequibilidade do acordo de pagamento proposto, sendo as suas previsões totalmente irrazoáveis, o que apenas poderá conduzir à recusa da sua homologação, na hipótese da respetiva aprovação.
Termos em que, atento tudo o exposto, e por força do disposto no artigo 216.º, n.º 1, al. a) e, bem assim, no artigo 215.º do CIRE, requer-se V. Ex.ª recuse a homologação do acordo de pagamento apresentado.”
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8) No dia 10 de outubro de 2023, EMP02... – STC, SA, comunicou ter votado contra o acordo e requereu a recusa da sua homologação com os seguintes fundamentos:
“O plano em discussão previa o perdão de 50% do valor de capital, com perdão total de juros e carência de 18 meses.
Conforme consta da reclamação de créditos, junta aos presentes autos, a ora Credora detém garantia real sobre o imóvel descrito na Conservatória do registo predial ... com nº. ...32, cujo valor comercial é suficiente para liquidar o valor em dívida. Pelo que, salvo merecido respeito, não pode a ora Credora aceitar um perdão de 50% do capital. O acordo é indubitavelmente mais prejudicial à ora Credora.”
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9) No dia 16 de outubro de 2023, a AJP comunicou que: os credores CC e DD, representativos de 56,11%, votaram a favor do acordo; os credores Banco 1..., SA, e EMP02... – STC, SA, votaram contra, sendo que o voto da segunda foi apresentado depois de encerrada a votação; o Banco 2..., SA, não apresentou voto.
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10) No dia 24 de outubro de 2023, os Requerentes vieram pugnar pela homologação do acordo de pagamento dizendo, em síntese, que o mesmo não enferma de qualquer ilegalidade e foi aprovado por credores que representam mais de metade da totalidade dos créditos relacionados.
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11) Por sentença de 25 de outubro de 2023, foi recusada a homologação do acordo, com a seguinte fundamentação:
“(…)
Haverá, ainda, que ter em linha de conta que foi solicitada por dois credores a não homologação do plano (sendo que apenas teremos em conta a argumentação da Banco 1... S.A., a única que não é extemporânea), nos termos do artigo 216.º do CIRE, defendendo que, com a aprovação do plano, a sua situação é manifestamente menos favorável do que a que ocorreria na ausência de qualquer plano.
Neste particular, seguiremos de perto o Ac. do TRG de 18-06-2013, (relator Rosa Tching): «(…) como salientam Carvalho Fernandes e João Labareda, por um lado, que a prova da situação a que alude a al. a) do nº1 do citado art. 216º implica que se proceda “a um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele”, o que, relativamente aos credores pode reconduzir-se “a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele”, importando, para tanto, “avaliar a priori o que a massa insolvente pode render no caso da venda universal”. E, por outro lado, que importa também atender “ao quórum deliberativo”.»
De acordo com o plano aprovado, os créditos reconhecidos de natureza comum e garantida, bem como os créditos sob condição, serão pagos todos da mesma forma.
«a) Pagamento de 50% do valor do capital reconhecido;
b) Perdão de 100% dos juros;
c) Perdão de 50% do valor do capital reconhecido;
d) Período de carência de 18 meses após a data da homologação do plano de recuperação;
e) Pagamento do valor de 50% do capital reconhecido em 150 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira após o período de carência suprarreferido.»
Os credores CC, Banco 1..., S.A., Banco 2..., S.A. detém créditos garantidos nos termos do artigo 47.º, n.º 4, alínea a), do CIRE.
Enquanto que, os credores DD e EMP02... - STC, S.A. detém créditos comuns.
Os credores CC e DD votaram favoravelmente; os credores Banco 1..., S.A., e EMP02... - STC, S.A. votaram desfavoravelmente (esta extemporaneamente); e o credor Banco 2..., S.A. não votou.
In casu, o total de créditos reclamados é de € 339.126,51, sendo o valor de € 305.946,44 respeitante a créditos garantidos e o remanescente respeitante a créditos comuns.
Donde, a maioria da dívida é constituída por créditos garantidos.
Acontece que, no caso de o plano ser aprovado todos os credores receberão 50% do valor do capital em dívida, a ser pago em 150 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira após o período de carência de 18 meses.
Já no caso do plano não ser aprovado, e de os devedores incorrerem em incumprimento que venha a suscitar a sua insolvência, responderia pelos créditos o património global dos devedores, constituído por bens móveis e imóveis tal como resulta da relação de bens junta como documento n.º ... do requerimento inicial.
O credor Banco 1..., S.A. explica que detém um crédito no valor global de € 48.746,22, sendo € 44.314,57 de natureza garantida por hipoteca voluntária, constituída em seu benefício pelos devedores, sobre o prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...82/... (...) e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art. ...35.º e rústica sob o art. 1100.º da união de freguesias ... (...) e ... (...), e o remanescente de natureza comum. Diz que o imóvel hipotecado foi avaliado, em maio último, pelo valor de € 177.435,00 pelo que o seu crédito garantido representa somente cerca de 25% do valor do imóvel hipotecado.
Argumenta que na ausência de qualquer plano ficaria em situação muito mais favorável, pois que, conseguiria recuperar a totalidade do seu crédito garantido e não teria de aguardar o período de pagamento em prestações estabelecido no plano. Conclui que, estando o seu crédito garantido totalmente coberto pela garantia hipotecária constituída, em curto/médio logrará ver-se ressarcida do mesmo, sem qualquer perdão, quer em sede de processo executivo, quer ante um possível processo de insolvência.
Conforme se decidiu no Ac. do STJ, de 22-11-2016, (relator Salreta Pereira): «O credor que requer a não homologação do plano deve alegar e demonstrar que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, conforme estabelece o art. 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE.»
O credor Banco 1..., S.A. alegou e provou que o seu crédito de €44.314,57 está garantido por hipoteca sobre prédio dos devedores, imóvel que vale €177.435,00, conforme avaliação junta aos autos. Mais alegou que o produto da venda do imóvel em causa, no caso de não homologação do plano, chegará para satisfazer a totalidade do seu crédito. Situação que é manifestamente mais favorável que a resultante do plano aprovado, pagamento de 50% do capital em dívida em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, devendo a primeira ocorrer passados 18 meses.
Em conclusão, este credor demonstra inequivocamente que a respetiva situação, perante uma liquidação imediata do imóvel hipotecado, é manifestamente mais favorável que a resultante do plano de pagamentos estabelecido.”
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12) Inconformados com o assim decidido, os Requerentes (daqui em diante, Recorrentes), interpuseram o presente recurso, composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“(…)
3.Entendem os aqui recorrentes que deve prevalecer o princípio da autonomia da vontade das partes, e bem assim ser homologado, pelo Tribunal a quo, o plano apresentado pelos devedores, plano esse que não padece de qualquer vicio formal (facto que é dado por assente na sentença recorrida), e que foi aprovado pela maioria dos credores votantes.
4. Entendem os aqui recorrentes que não pode um credor (Banco 1..., S.A.), que representa 14,37% da globalidade dos credores, decidir e condicionar um plano que foi discutido, apreciado e teve a interação de todos os credores reconhecidos.
5. Como veremos, existem diversas razões de direito, que levam os ora recorrentes a entender que tal decisão não poderá prevalecer, conforme explanaremos infra.

Destarte,

II. DAS NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS.
6. Entendem os ora recorrentes que o Tribunal a quo desrespeitou as normas constantes nos artigos 222º-f, nº3 e nº5 e 216º, nº1, al. a) CIRE, na interpretação que fez das referidas normas.

Ademais,
III. DO SENTIDO EM QUE, NO ENTENDER DOS RECORRENTES, AS NORMAS DEVIAM DE TER SIDO INERPRETADAS E APLICADAS.
7. Importa desde já entender qual é o objetivo Processo Especial de Acordo de Pagamento (doravante, designado como PEAP).
8. O PEAP é um mecanismo utilizado para uma situação de pré-insolvência do devedor que não seja empresa – como é a presente situação.
9. A insolvência, com a liquidação do património, importa amplas e dificilmente abarcáveis consequências económicas e sociais, quer para os devedores, mas também para os credores
10. Assim, tem sido entendimento jurisprudencial que se tais consequências puderem ser evitadas, e bem assim atenuadas numa fase de menor gravidade da situação económico-financeira – como é o caso da situação pré-insolvência - e, portanto, com potencial de reversibilidade, então deve dar-se primazia a essa atuação.
11. A filosofia subjacente ao PEAP é tentar evitar ou prevenir que sobrevenha a insolvência, com todas as consequências daí advenientes e evitar ou prevenir significar criar as condições para que o devedor e os credores negoceiem, de boa-fé e de forma equilibrada, um acordo de pagamento.
12. Acordo esse que, em termos amplos, pode ser através da reorganização do pagamento do passivo e/ou da reconfiguração ou reestruturação do mesmo, e que irá permitir ao devedor, com tempo, superar as dificuldades, em vez de pura e simplesmente se partir para a liquidação do património,
13. E permita aos credores a satisfação dos respetivos créditos (o que pode muito bem não suceder se houver uma pura e simples liquidação do património).
14. Neste processo, assim como em todos os PEAP – os credores desempenham o papel decisivo e fundamental: ou consentem no sacrifício dos seus direitos e viabilizam o PEAP ou mantêm-se irredutíveis, caso em que o PEAP não é aprovado e o perigo do devedor ser declarado insolvente se precipitará.
15. Aquele acordo obtém-se, ou não, conforme a declaração de vontade com relevância jurídica dos credores, que terá a configuração (aprovação ou rejeição) que tiver a maioria das declarações de voto individuais emitidas, ou seja, releva a manifestação de vontade coletiva dos credores.
16. Cumpre ainda referir que a decisão em causa viola os princípios basilares e orientadores do PEAP: princípio da autonomia e vontade das partes, o princípio da segurança e certeza jurídica e ainda o princípio da igualdade.
17. Quanto ao princípio da igualdade importa referir que devemos tratar igual aquilo que é igual, e diferente aquilo que é diferente, também é certo que tal diferença não pode colocar os credores comuns numa situação prejudicial, o que acontece com a não homologação do presente plano.
18. Ora, não pode o Tribunal a quo decidir o destino deste processo, que no fundo é contrário àquela que a maioria dos credores entendeu ser as suas vontades, atendendo de forma tão leviana ao pedido de não homologação de um credor, que sendo um credor hipotecário sempre estaria numa situação mais favorável com a liquidação do património – e consequentemente, com a não homologação do plano - do que com a homologação do dito acordo de pagamentos.
19. Não é legítimo, que apenas um credor (minoritário), coloque em causa um plano, que foi negociado e aprovado pela maioria dos credores!
Acresce que,
20. Cumpre explanar, para melhor esclarecer, que deitaram mão do presente PEAP os aqui devedores com o exato objetivo de reorganizar o pagamento do passivo, e reconfigurar e restruturar o mesmo.
21. Pese embora o PEAP seja um processo judicial, no fundo, é permitido às partes que escolham o futuro dos devedores, e bem assim renegociem os créditos de que são detentores, devendo o Tribunal ter a menor interferência possível em tal acordo (desde, claro está, estejam cumpridas todas as regras formais).
22. Ora, não foi esta a linha de pensamento do Tribunal a quo, que, no nosso entendimento, interferiu e condicionou a vontade das partes, quando decidiu não homologar o plano de pagamento.
Vejamos,
23. A liquidação do património, que consiste no fundo na venda da casa dos aqui recorrentes, colocaria os aqui devedores numa situação muito difícil, quer económica, quer social, uma vez que os aqui credores têm cerca de 75 anos e ficariam sem habitação.
24. Ademais, a liquidação e posterior venda do património não resolvia o problema da globalidade dos credores (apenas, claro está, da Banco 1... S.A, que detém um crédito hipotecário, e como tal, garantido).
25. Por esse facto, pretendem os aqui credores rentabilizar os seus imóveis, para além da retomarem a atividade agropecuária e agroflorestal, com a ajuda do seu neto, o que trará mais benefícios para os próprios devedores, mas também para a globalidade dos credores.
26. Motivo pelo qual se entende, assim como entendeu a maioria dos credores ao aprovar o plano de pagamentos, que tal rentabilização do património dos devedores seria a melhor solução para todos!
Ademais,
27. É nosso entendimento, que o Tribunal a quo não analisou a presente situação casuisticamente, pura e simplesmente, limitou-se a dar cumprimento ao pedido de não homologação por parte da Banca – Banco 1..., S.A.
28. A credora – Banco 1... S.A. – argumentou que a forma mais eficaz para obter o pagamento dos seus créditos seria através da liquidação do património.
29. Todavia, tal forma de pagamento não é compatível com o PEAP, uma vez que este processo, como já se deixou referido, é um processo pré-insolvência, que pretende evitar a liquidação do património dos devedores.
30. No caso do acordo de pagamento dos autos, é manifesto que a satisfação dos credores não é efetuada através da venda de quaisquer ativos, mas através da atividade laboral dos devedores que pretendem, como afirma o Acordo, gerar riqueza.
31. Veja-se que a credora em nenhum momento das negociações referiu tal, sendo que aquando da apresentação do plano por parte dos devedores, a credora Banco 1... S.A. nem tão pouco sugeriu alterações ao plano, limitando-se tão somente a votar contra e a requerer a não homologação.
32. Ademais, importa referir que todos os credores hipotecários estão sempre numa situação mais favorável, perante a simples liquidação do que com qualquer plano de pagamentos.
33. No fundo, nunca foi vontade da credora participar nas negociações, pois sabia ab initio que podia requerer a não homologação do plano, nos termos do artigo 216º, nº 1, al. a) do CIRE, (cf. artigo 222º-F, nº2 do CIRE),
34. E que sendo um credor hipotecário, obviamente, estaria sempre numa situação mais favorável com a ausência de qualquer plano, do que com a aprovação e consequente homologação do mesmo.
35. Ou seja, no fundo, aquilo que Tribunal a quo decidiu – na sentença ora recorrida – é beneficiar um credor minoritário, em detrimento dos restantes, e sobretudo da vontade das partes, e bem assim não homologar um plano, mesmo sabendo que foi este aprovado, pela maioria dos credores.
36. Importa então saber: pretende a lei dar luz verde aos credores hipotecários, beneficiando-os em detrimentos dos outros, e bem assim dar-lhes a oportunidade de decidir todo um processo, uma vez qualquer credor hipotecário estará sempre numa situação mais benéfica com a liquidação do património?
37. Aquilo que acontece com a linha de pensamento do Tribunal a quo, é que qualquer credor hipotecário que requeira a não homologação, verá a sua vontade ser aceite pelo tribunal, tendo no fundo o privilégio de não homologar um plano de pagamentos (apesar de ser uma vontade única e minoritários, no que à globalidade dos credores diz respeito), e bem assim de condenar diretamente qualquer pessoa para a insolvência.
38. Isto porque, para este tipo de credores apenas o pagamento imediato (ou a venda do ativo, que no fundo se assemelha à mesma situação) é a situação mais benéfica e capaz de assegurar os seus interesses.
39. Não estará, assim, o Tribunal a quo a proteger um determinado credor atribuindo-lhes um poder que não pode ter? (isto porque, a maioria dos credores hipotecários, como bem sabemos, é, como sempre foi, os Bancos).
40. Será justo comparativamente com os restantes credores, que procuraram em conjunto com os devedores, chegar a um acordo que melhor satisfaça as suas vontades?
41. Saberá o Tribunal a quo, melhor que os credores, quais as suas vontades? Pode o Tribunal a quo privilegiar um credor que representa unicamente 14,37% do universo de todos os credores?
42. Pode um credor hipotecário– decidir a não homologação de um plano, quando a maioria dos credores votou favoravelmente?
43. Questiona-se: para que serve um PEAP quando existe um credor hipotecário, pois, à partida estaria condenando ao fracasso, segundo a tese perfilhada pelo Tribunal a quo.
Ora,
44. Em suma, e atento a tudo quanto foi alegado supra, entendem os ora recorrentes, que não existem motivos para a não homologação do plano de pagamentos, pelo que o Tribunal a quo não interpretou de forma correta o disposto nos artigos 222º-f, nº3 e nº5 e 216º, nº1, al. a) CIRE.
45. Assim, deverá a ora decisão recorrida ser revogada, e substituída por outra que homologue o plano aprovado pelos credores, atenta a votação e vontade destes, o que expressamente se requer.
Sem prescindir,
46. Por mera cautela do patrocínio, e na eventualidade de não ser homologado o plano de pagamentos – o que nunca se conceberá – deverá ser declarado ineficaz o acordo, aprovado pela maioria dos credores, quanto ao credor Banco 1..., S.A., produzindo os seus efeitos quanto aos demais credores, uma vez que era a vontade destes.
47. Assim, e atenta à argumentação deduzida pelo credor Banco 1..., S.A – e sendo este um credor hipotecário - deverá o plano de pagamentos ser declarado ineficaz quanto a este exato credor, produzindo os seus efeitos quanto aos demais credores.
48. Isto porque, a declaração de ineficácia do plano de pagamentos, apenas quanto à Banco 1..., é uma solução muito menos gravosa, e que acautela (melhor) a vontade das partes, não prejudicando todos os restantes credores.
49. É entendimento dos recorrentes que
50. No fundo o pedido de ineficácia do plano quanto à Banco 1... S.A (e bem assim a homologação do plano, com produção dos efeitos quanto aos demais credores), mais não é do que uma forma de impedir um verdeiro abuso de direito.
51. Isto porque, o voto da Banco 1..., S.A, e o seu requerimento a solicitar a não homologação do plano foi um verdadeiro Direito de Veto, o qual não coaduna com os princípios orientadores do PEAP.
52. A decisão do Tribunal a quo a (ao não homologar o plano de pagamentos apresentados pelos devedores e aprovado pela maioria dos credores), foi desproporcional, uma vez que apenas seguiu a vontade e um credor minoritário.
53. Por esse motivo, e sendo o PEAP um processo onde a vontade das partes deve ter mais relevância que a vontade judicial, deverá o plano de pagamento ser homologados, e tão somente ser declarado ineficaz quanto à Banco 1..., S.A.
54. Assim sendo, requer-se, subsidiariamente, a homologação do plano, e a declaração de ineficácia em relação ao credor Banco 1..., S.A., por entenderam os aqui recorrentes que não prejudica.”
Pediram a revogação da sentença e a sua substituição da respetiva decisão por outra que “homologue o plano de pagamentos apresentado pelos devedores, que foi aprovado pela maioria dos credores” e, subsidiariamente, por outra que “homologue o plano de pagamento apresentado pelos devedores, e declarando-se a ineficácia do plano de pagamentos quanto à Banco 1..., S.A.”
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13) Respondeu a EMP02... – STC, SA, pugnando pela improcedência do recurso .......v) Por todo o acima exposto não deverá ser dado provimento ao recurso devendo manter-se a decisão de não homologação do plano.”
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14) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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15) Foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Deste modo, a questão que se coloca no presente recurso pode ser enunciada nos seguintes termos: o Tribunal a quo incorreu em violação primária das normas jurídicas indicadas pelos Recorrentes ao recusar a homologação do acordo de pagamento com fundamento na oposição que a ele foi apresenta por um credor minoritário?
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III.
1) Os factos a considerar na resposta à questão enunciada são os referidos nos pontos 1) a 9) do relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.
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2).1. O PEAP foi introduzido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (arts. 222-A a 222-J) pelo DL n.º 79/2017, de 30.06, com o objetivo, declarado pelo legislador, de “permitir ao devedor que, não sendo uma empresa (…), estabelecer (sic) negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento.” Desempenha, portanto, uma finalidade que é paralela à do processo especial de revitalização (PER) para os devedores titulares de empresa. Aliás, como é assinalado pela doutrina (inter alia, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 632; Luís Manuel Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 9.ª ed., Coimbra: Almedina 2017, p. 263, nota 3; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 535-536; Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, II, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 379-380), a criação do PEAP veio compensar a restrição legal do âmbito subjetivo de aplicação do PER aos devedores titulares de empresas. Compreende-se assim que o regime do PEAP tenha sido decalcado do que estava previsto para o PER antes das alterações introduzidas pelo referido DL n.º 79/2017. A propósito, Renato Gonçalves (“Recuperação de Empresas – um desígnio continuado”, AAVV, “IV Congresso de Direito da Insolvência”, Coimbra: Almedina, 2017, p. 384) escreve que “o principal traço de destrinça entre o PER e o PEAP traduz-se no facto de neste se manter, grosso modo, a configuração processual genética que enformou o PER na sua versão primitiva, visto que a simplicidade e a adequação do regime a todos os devedores tornou quasi desnecessária a alteração daquelas regras.” No mesmo sentido, afirma-se em RG 23.11.2017 (206/17.3T8VRL.G1), relatado por Raquel Baptista Tavares, que o legislador criou “um novo processo, pensado em termos essencialmente idênticos ao Processo Especial de Revitalização (conforme decorre da análise do seu regime previsto nos referidos artigos 222.º-A a 222.º-J), clarificando dessa forma a situação das pessoas singulares, que não devam ser consideradas empresa para este efeito, permitindo-lhes o acesso a este processo (e não apenas o recurso ao processo de insolvência).”
O PEAP é um processo judicial especial, como tal sujeito a custas (a propósito do PER, em termos que valem, por identidade de razões, para o PEAP, cf. Nuno Salazar Casanova / David Sequeira Dinis, PER – O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artigos 17-A a 17-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp. 30-31), que se rege pelas respetivas disposições, de seguida pelas regras previstas no CIRE que não sejam incompatíveis com a sua natureza, com as devidas adaptações (art. 222–A/3), e, por último, pelas disposições gerais e comuns do CPC, também com as necessárias adaptações (art. 17/1 do CIRE, conjugado com o art. 549/1 do CPC). Sem prejuízo, tem uma forte componente extrajudicial, compensada com a intervenção do juiz em momentos chave, exigida pelo seu do caráter concursal.
É também um processo pré-insolvencial, pois é aplicável a devedores que já se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente (pela positiva) e que não estejam ainda numa situação de insolvência atual (pela negativa) (art. 222-A/1). Nos termos do art. 222-B considera-se em situação económica difícil “o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.” De acordo com RP 15.11.2018 (118/18.3T8STS.P1), relatado por Mário Fernandes, está em situação de insolvência meramente iminente o devedor que está “próximo de enfrentar uma impossibilidade de cumprir as suas obrigações.” No mesmo sentido, RC 13.06.2022 (627/23.2T8CBR.C1), relatado por José Avelino Gonçalves, onde se entendeu ainda que o juiz pode verificar a situação material do devedor, designadamente quando, no momento do despacho liminar, constate, em face do alegado, que este “já se encontra em situação de insolvência efetiva.” A possibilidade de controlo jurisdicional destes requisitos foi também admitida em RC 13.11.2018 (1535/17.1T8CBR.C2), relatado por Freitas Neto, RC 1.12.2019 5494/19.8T8CBR.C1), relatado por Ferreira Lopes, RP 11.02.2020 (2752/19.5T8STS.P1), relatado por Ana Lucinda Cabral, e em RC 28.03.2023 (3005/22.7T8LRA.C1), relatado por Arlindo Oliveira. Na doutrina, este controlo é defendido por Catarina Serra (Lições cit., p. 636), nota 1206, que critica o entendimento contrário de Luís Menezes Leitão (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado cit., p. 265), Maria do Rosário Epifânio (Manual cit., p. 540), Carla Rodrigues (“O Processo Especial Para Acordo de Pagamento”, Revista de Direito da Insolvência, n.º 4, 2020, p. 45) e Marco Carvalho Gonçalves (Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra: Almedina, 2023, pp. 744-745).
É ainda um processo concursal: por um lado, podem nele participar todos os credores interessados; por outro, a sentença homologatória do plano aprovado em sede de PEAP vincula todos os credores, mesmo aqueles que não tenham reclamado os seus créditos ou participado nas negociações (art. 222-F/8).
É, finalmente, um processo urgente por força do art. 222 –A/3, o que tem importância, em especial, para efeitos de contagem de prazos (art. 138/1 do CPC ex vi do art. 17/1 do CIRE).
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2).2. O PEAP aplica-se aos devedores não titulares de uma empresa, ou seja, não titulares de qualquer organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica (nos termos previstos no art. 5.º do CIRE). Daí que em RC 18.05.2020 (760/19.5T8ACB.C1), relatado por António Barateiro Martins tenha sido entendido que não podem beneficiar de um PEAP, por serem empresários, “os devedores que exploram uma estufa de flores, organização em que, conforme referem, têm um enorme volume de faturação, com contabilidade organizada e empregados.” Não se trata, porém, de um instrumento exclusivamente aplicável às pessoas singulares; ele aplica-se também às pessoas jurídicas que não sejam titulares de empresas (Catarina Serra, Lições cit., pp. 632 e 634-635).
Isto explica que, ao contrário do que sucede no regime do PER, não se exija como pressuposto a suscetibilidade de recuperação do devedor. A propósito, Maria do Rosário Epifânio, Manual cit., p. 538; Alexandre de Soveral Martins, Um Curso cit., p. 381; Luís Menezes Leitão, Código da Insolvência da Recuperação de Empresas Anotado cit., p. 276. Tem, na verdade, uma função estritamente preventiva: visa evitar, na medida do possível, que o devedor passe, irremediavelmente, a uma situação de insolvência. Neste sentido, escreve-se em RG 31.03.2022 (805/21.9T8VNF.G2), relatado por José Carlos Pereira Duarte, que “[u]ma vez que o âmbito subjetivo do PEAP é o devedor que não seja empresa, em essência, pessoas singulares, a sua filosofia não é a recuperação, a qual só tem em vista “empresas”; a sua filosofia é tentar evitar ou prevenir a insolvência com as consequências económicas e sociais daí advenientes.” De igual modo, RE 22.02.2018 (494/18.8T8STB-A.E1), relatado por Albertina Pedroso, e RG 6.02.2020 (348/19.0T8VNL.G1), relatado por Maria João Matos. Percebe-se assim que, como se expende em RG 28.06.2018 (6825/17.0T8VNF.G2), relatado por Maria Luísa Ramos, “[t]endo já sido proferida sentença que declarou a insolvência à data da admissão do processo especial para acordo de pagamento, nos termos do art. 222-E, n.º 6, do CIRE, deverá concluir-se já não poder prosseguir o processo especial para acordo de pagamento, ocorrendo causa de impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e) CPC ex vi artigo 17.º CIRE.”
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2).3. O processo tem início com um requerimento apresentado pelo devedor no tribunal que seria competente para o processo de insolvência (art. 7.º do CIRE e art. 128/1, a), da LOSJ, ex vi do art. 222 –C/3, proémio, do CIRE).
Neste requerimento, o devedor atesta, mediante declaração por si assinada (apenas), que preenche os requisitos para a abertura de um PEAP (art. 222 –A/2). A lei não exige, portanto, qualquer certificação externa do preenchimento, bastando-se com uma espécie de “autoatestado” (Maria do Rosário Epifânio, Manual cit., p. 539). Não exige, de igual modo, a apresentação de uma proposta de plano de pagamentos.
O requerimento deve ser acompanhado ainda dos seguintes documentos: i) declaração escrita, assinada pelo devedor e, pelo menos, por um dos seus credores; ii) lista de todas as ações de cobrança de dívida que se encontrem pendentes contra o devedor; iii) documento comprovativo da declaração de rendimentos do devedor; iv) documento comprovativo da situação profissional do devedor ou, se aplicável, da situação de desemprego; e v) cópias dos documentos elencados no art. 24/1, a), d) e e).
Os documentos apresentados devem ficar disponíveis, durante todo o processo, na secretaria, para efeito de consulta dos credores.
Distribuído o processo, o juiz deve de imediato proferir despacho liminar (art. 222 –C/4). Como vimos, a jurisprudência e parte da doutrina vem entendendo que a natureza urgentíssima assim expressa não é impeditiva de um controlo mínimo dos pressupostos materiais. Assim, o requerimento deve ser indeferido liminarmente, por exemplo, se o devedor foi declarado insolvente em processo de insolvência pendente, ou beneficiou de PEAP nos dois anos anteriores. Há também espaço para um despacho de correção, por exemplo se não for apresentado algum dos mencionados documentos.
Não havendo fundamento para o indeferimento liminar, o juiz profere despacho de admissão em que nomeia sempre o administrador judicial provisório. Como adverte Maria do Rosário Epifânio (Manual cit., p. 540), a expressão legal “caso o juiz nomeie administrador judicial provisório nos termos do n.º 4 do artigo 222-C”, contida no art. 222-E/2, foi indevidamente “importada” do regime jurídico do PER (do seu art. 17-E/2), devendo ser interpretada com o seguinte sentido, apenas: “caso o juiz profira despacho de admissão do requerimento.” Esse despacho é irrecorrível, à semelhança do que geralmente sucede com as decisões de admissão liminar de autos, de que é exemplo paradigmático a oposição à execução mediante embargos de executado (art. 732 do CPC), o que se explica por terem subjacente um juízo meramente perfunctório dos requisitos processuais e uma natureza tabular, não sendo, por isso, suscetíveis de produzir efeitos de caso julgado formal quanto à não verificação dos motivos que poderiam ter conduzido ao indeferimento liminar. A propósito, RG 18.01.2024 (1731/23.2T8GMR-J.G1), do mesmo relator.
Com a prolação deste despacho, o devedor perde o poder de praticar alguns atos de especial relevo sem a autorização do AJP (art. 222-E/2).
O despacho produz ainda efeitos processuais – obsta à propositura de ações executivas contra o devedor e leva à suspensão das que já se encontrem pendentes (art. 222-E/1) – e efeitos substantivos – suspende todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pelo devedor, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações e até à prolação dos despachos de homologação ou de não homologação, caso não seja aprovado plano de pagamento até ao apuramento do resultado da votação, ou até ao encerramento das negociações nos termos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 222.º-G (art. 222-E/7 e 8).
Depois da publicação do despacho no Portal Citius, os credores têm vinte dias para a reclamação de créditos junto do AJP. Findo esse prazo, o AJP elabora, no prazo de cinco dias, a lista provisória de créditos (art. 222-D/2), que é apresentada na secretaria do tribunal e publicada no Portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis. O juiz decide, também no prazo de cinco dias, as impugnações (art. 222-D/4). Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se em definitiva (art. 222-D/4).
Conforme se escreve em RG 29.02.2024 (4841/23.2T8VNF-A.G1), relatado pela aqui 2.ª Adjunta, Juíza Desembargadora Maria João Matos, a propósito do PER, mas em termos que, dada a identidade, são transponíveis para o PEAP, esta reclamação de créditos não se destina a possibilitar o seu futuro pagamento, como sucede no processo de insolvência, por força do património apreendido ao insolvente, depois liquidado, e segundo a devida graduação legal. “Destina-se sim, e tão somente, a viabilizar a participação dos credores nas negociações (com vista à elaboração do plano de revitalização), no procedimento de aprovação do plano de revitalização e na eventual oposição ao mesmo, estabelecendo ainda a futura base de cálculo das maiorias necessárias (conforme art.ºs 17.º-D, n.ºs 1, 6, 7, 8 e 9, 17.º-F, n.ºs 1, 2, 3 e 4, e 17.º-G, n.º 1, todos do CIRE).”

Acrescenta-se no mesmo aresto:
“Compreende-se que assim seja, porque o objetivo do PER é precisamente o de permitir que a empresa continue íntegra e atuante no mercado (o que é necessariamente incompatível com qualquer apreensão e liquidação dos seus ativos).
Ora, esta radical diferença de propósito, entre uma e outra reclamação de créditos (em sede de processo de insolvência e em sede de PER), justifica a diferença de soluções legais que se verifica entre ambas, nomeadamente, e no que tange ao PER, uma maior celeridade e superficialidade da apreciação dos créditos, o efeito não preclusivo da sua falta de reclamação (face à possibilidade do seu reconhecimento posterior noutra sede), ou a não formação de caso julgado sobre o reconhecimento que nele se faça dos ditos créditos.
Precisa-se, porém, que a reclamação de créditos em sede de PER não deixa de constituir um verdadeiro ónus de reclamação (a cargo de cada credor do devedor requerente), cujo incumprimento impedirá o onerado respetivo de vir a agir do modo referido supra; e poderá o mesmo vir a ser prejudicado pela concessão de garantias especiais a alguns credores, conforme art.º 17.º-H, do CIRE.”
Ultrapassada esta fase, tem lugar a das negociações, cuja duração prevista de dois meses pode ser prorrogada por uma vez, com o limite de um mês, mediante acordo entre o AJP e o devedor (art. 222-D/5).
Concluindo-se as negociações com a aprovação unânime de acordo de pagamento em que intervenham todos os credores, este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo, para homologação ou recusa da mesma pelo juiz. Em caso de homologação, produz, de imediato, os seus efeitos (art. 222-F/1).
Se as negociações forem concluídas com a aprovação de acordo de pagamento sem unanimidade, o devedor remete-o ao tribunal para o mesmo fim (art. 222-F/2). O acordo considera-se aprovado quando: “a) sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do art. 222-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções; ou b) recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais  de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.”
Neste caso, o AJP elabora um documento com o resultado da votação e remete-o de imediato ao tribunal (art. 222-F/4, parte final).
Em qualquer dos casos de aprovação, o juiz decide se deve homologar ou recusar a homologação do acordo de pagamento nos dez dias subsequentes à receção dos documentos que comprovam a sua aprovação, aplicando-se, com as devidas adaptações, as regras previstas para a aprovação e homologação do plano de insolvência, em especial as dos arts. 215 e 216 (art. 222-F/5).
Havendo homologação judicial, o acordo de pagamento adquire, por força dela, carácter vinculativo para todos os credores, incluindo aqueles que não reclamaram os seus créditos não participaram das negociações ou votaram contra, relativamente aos créditos constituídos à data do despacho de nomeação do AJP (art. 222-F/8).
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2).4. Como facilmente se conclui, o PEAP, pelos efeitos materiais que acarreta, pode levar a um desvio ao princípio da eficácia relativa dos contratos (art. 406/ 2 do Código Civil) (Madalena Perestrelo de Oliveira, Limites da Autonomia dos Credores na Recuperação da Empresa Insolvente, Coimbra: Almedina, 2013, p. 50). Compreende-se, assim, que o modelo negocial de auto-composição dos interesses dos credores (da insolvência) e do devedor que corporiza, regido pelo princípio da liberdade contratual, fique sujeito a controlo jurisdicional através de sentença homologatória, que é condição da sua eficácia.
Neste contexto, a homologação do acordo pode ser recusada pelo juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de qualquer interessado, nos casos em que o acordo contrarie disposições legais. Mais concretamente, nos termos do art. 215, o juiz deve recusar oficiosamente a homologação do acordo que tenha sido aprovado quando se verifique uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo independentemente da respetiva natureza. É que o sucede, por exemplo, se o acordo violar o princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem que a eventual diferenciação no tratamento dos credores se mostre justificada por razões claras, inequívocas e objetivas (RL 27.11.2014, 19790/13.4T2SNT.L1-8, relatado por Catarina Arêlo Manso; RP 22.03.2021, proc. 1559/20.1T8STS-A.P1, relatado por
Fernanda Almeida), se constituir moratórias que não se encontrem legalmente autorizadas ou se tiver sido aprovado em violação das regras legalmente previstas para a sua votação (RC 28.09.2022, 4433/21.0T8LRA-A.C1, relatado por Arlindo Oliveira)).

De acordo com RL 28.01.2016 (1702-15.2T8SNT.L1-8), relatado por Ilídio Sacarrão Martins, na falta de um critério legal, deve entender-se que “são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza.” Em RG de 05.02.2015 (6193/13.0TBBRG-F.G1), relatado por Filipe Caroço, entendeu-se que são “não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretam a produção dum resultado que a lei não autoriza, assim como todas as violações de normas que interfiram com a justa salvaguarda dos interesses/posições dos credores”. Em RC 22.01.2019 (54/18.3T8SEI-A.C1), relatado por Maria Catarina Gonçalves, definiu-se a violação não negligenciável como a que corresponde a uma violação grave das normas legais aplicáveis, ou seja, “quando acarrete um resultado que a lei não permite em virtude de o conteúdo do plano violar disposições legais de carácter imperativo ou quando a violação se reporta a regras ou normas legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respetivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere e sempre que a violação seja suscetível de afetar ou prejudicar a salvaguarda dos interesses – sejam eles do devedor ou dos credores – que sejam dignos de proteção legal”. No mesmo sentido, RG de 25.02.2016 (1030/14.0T8VNF.G1), relatado por António Figueiredo de Almeida, RL 09.09.2022 (21668/21.9T8LSB.L1-1) e RL 18.10.2022 (28316/21.5T8LSB-A.L1-1), ambos relatados por Fátima Reis Silva.
No dizer do citado RL 28.01.2016 (1702/15.2T8SNT.L1-8), “[n]ormas procedimentais são (…) todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe forem presentes – incluindo, por isso, as relativas à sua própria convocatória e funcionamento – e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado. Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar.” Em termos semelhantes, o também citado ver-se RC 22.01.2019 (54/18.3T8SEI-A.C1), onde se escreve que “[a] violação de regras procedimentais corresponde a um vício de natureza formal consubstanciado na violação de uma regra ou norma que regula o formalismo que deve ser observado no processo e as formalidades a que deve obedecer o plano de recuperação/revitalização apresentado. A violação de normas aplicáveis ao conteúdo do plano corresponde a um vício de natureza substantiva ou material consubstanciado na violação de uma regra, norma ou princípio que regula diretamente o conteúdo do plano.” Ainda no mesmo sentido, RG 23.01.2020 (510/15.6T8VNF.G1), relatado por Lina Castro Baptista, no qual se entendeu que “[c]onstituem vícios não negligenciáveis ou não desculpáveis, todos aqueles que determinem, por modo inequívoco, violação de normas imperativas, cujo resultado é ilegal, e em todo o caso insuscetível de poder ser suprido com o consentimento dos tutelados, ou dito de outro modo, que consistam em violações destas normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza.” Finalmente, RG 04.02.2021 (5836/19.6T8GMR-D.G1), relatado por Jorge Santos, no qual se sustentou que “a violação não negligenciável corresponde a uma violação grave das normas legais aplicáveis.” Na doutrina, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso cit., p. 87, diz que “[u]ma violação não é negligenciável quando atinge uma certa importância. Mas isto é ainda dizer pouco. Podemos acrescentar que será não negligenciável a violação que põe em causa as finalidades da norma violada.”
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2).5. De acordo com o art. 216, como vimos aplicável ao PEAP, a homologação do plano de insolvência é ainda recusada pelo juiz, a solicitação do devedor, de algum credor, sócio, associado ou membro do devedor que tenham manifestado a sua oposição anteriormente à aprovação. Conforme RL 10.05.2018 (2026/18.9T8LSB-A.L1), relatado por Ana Paula A. Carvalho, “[s]ão realidades distintas, o voto contra e a oposição à aprovação do plano de recuperação, na perspetiva de fundamentar o pedido formulado ao juiz para que recuse a homologação do plano, devendo o pedido de recusa ser formulado logo que a proposta de plano de insolvência seja conhecida.” Em RL 30.04.2019 (1065/13.0TYLSB-O.L1-1), relatado por Rijo Ferreira, entendeu-se que “o pedido de não aprovação do plano de insolvência (que não tenha sofrido alteração no decurso da assembleia de credores em que não tenha estado presente ou representado) formulado ao abrigo do art. 216 do CIRE pressupõe que o requerente tenha, previamente à votação desse plano, comunicado aos demais interessados os motivos da sua oposição ao plano de insolvência, não se considerando preenchido esse pressuposto com a simples emissão de voto contra.” A oposição referida não se confunde com a própria solicitação de recusa de homologação (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso cit., p. 89). O pedido de não homologação deve ser feito antes da decisão de homologação, não podendo ocorrer no recurso desta. Neste sentido, STJ 22.11.2016, 785/15.0T8FND-B.C1.S1, relatado por Salreta Pereira, e RL 05.07.2018 (2915/17.8T8FNC.L1-1), relatado por Conceição Saavedra.
A lei exige que o requerente (credor, devedor, ou seu sócio, membro ou associado) demonstre, em termos plausíveis, alternativamente, que existe um prejuízo próprio (n.º 1, a)) ou um favorecimento indevido de um credor (n.º 1, b)).
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2).6. No caso, interessa-nos apenas aprofundar a hipótese da alínea a) do n.º 1 do art. 216 do CIRE, invocado na sentença recorrida para justificar a não homologação do acordo aprovado pela maioria dos credores, dando-se assim provimento à oposição que foi apresentada pela credora Banco 1....
Existe prejuízo próprio quando a situação em que o credor ficará ao abrigo do acordo é previsivelmente menos favorável que aquela em que ele ficaria na ausência de qualquer acordo, “designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas.”
Pressupõe-se aqui, à semelhança do que sucede com o plano de insolvência, “uma comparação assente num juízo de prognose que passa por uma avaliação das probabilidades” (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso cit., p. 92). De um lado, a situação em que o credor ficará com o acordo; do outro, a situação em que ele previsivelmente ficaria sem o acordo - ou seja, se pudesse recorrer aos meios coercivos para obter a cobrança coerciva do seu crédito ou, consumando-se a situação de insolvência do devedor, requerer a respetiva declaração, levando à liquidação universal do património deste. Coutinho de Abreu (Curso de Direito Comercial, I, 13.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 340, nota 878), dá, a propósito do plano de insolvência, o seguinte exemplo de um caso enquadrável na previsão da norma do art. 216/1, a): um credor tem o seu crédito garantido por uma hipoteca sobre um prédio do insolvente com valor suficiente para a satisfação do crédito se não houver plano de insolvência, mas neste é estabelecida a redução do valor de todos os créditos sobre a insolvência. Em RL 22.03.2022 (4195/21.1T8SNT.L1-1), relatado por Manuela Espadaneira Lopes, entendeu-se como justificada a recusa de homologação do acordo de pagamento aprovado do qual resulta que, no universo dos créditos em causa, o único garantido com uma garantia real (hipoteca) sobre o único bem da devedora é o do credor que solicitou a recusa de homologação, que o plano prevê o pagamento do crédito, após o período de carência de um ano e meio, em 120 prestações mensais de capital e juros, com spread de 0,5%, quando o valor do bem indicado pela devedora, bem como o valor patrimonial tributável do mesmo, é suficiente para pagamento imediato do aludido crédito.
No dizer de Catarina Serra (Lições cit., p. 333), também a propósito do plano de insolvência, “[a] possibilidade conferida aos credores de alegarem que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que aquela em que ele estaria na ausência de plano é conhecida como best interests-of-creditor’s test. A designação corresponde à usada no âmbito da lei norte-americana para o modelo inspirador do legislador português, mas a lei alemã prevê um instituto semelhante, denominado, significativamente, proteção das minorias (Minderheitenshcutz). A sua consagração permite confirmar a soberania dos interesses os credores, que prevalecem, em última análise, sobre os interesses da conservação ou sobrevivência da empresa: todo o plano de insolvência – de recuperação da empresa – pode sucumbir por causa de um credor; basta que ele alegue e prove o seu prejuízo nos termos referidos.” De acordo com Alexandre de Soveral Martins (Um curso cit., p. 92), “[a] passagem no teste contribui para legitimar a prevalência da vontade da maioria sobre a minoria: se o plano passa no teste, o requerente não fica pior do que ficaria sem aquele.” Se não passa, acrescentamos, não é aceitável que o acordo se imponha ao credor que o não aprovou e se manifestou contra a homologação, assim lhe impondo uma modificação indesejada do seu crédito em clara derrogação do princípio da autonomia da vontade e dos seus interesses patrimoniais que são constitucionalmente tutelados (art. 62/1 da CRP). Tenha-se aqui presente que como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado (inter alia, Acórdãos n.ºs 494/94, de 12.07.1994, 451/95, de 6.07.1995, e 318/99, de 26.05.1999, todos disponíveis em tribunalconstitucional.pt) da garantia constitucional do direito de propriedade privada pode extrair-se a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito. E este direito há-de, naturalmente, conglobar a possibilidade da sua realização coativa, à custa do património do devedor.
Na jurisprudência, sempre a propósito do plano de insolvência, mas em termos que, mutatis mutandis, podem ser aproveitados para o PEAP, sustentou-se em RC 25.10.2011 (329/10.0TBMGL-E.C1), relatado por Carlos Moreira, que “[o] preenchimento da previsão da al. a) do no 1 do art. 216 do CIRE importa a alegação e demonstração, pelo credor, de factos atinentes não apenas à afetação do seu crédito pelo plano de insolvência, mas, outrossim, concernentes à sua previsível situação/afetação decorrente da liquidação universal do património do devedor segundo o modelo legal supletivo.” Em RG 09.04.2013 (260/12.4TBFAF-D.G1), relatado por Paulo Duarte Barreto, entendeu-se que “[n]o âmbito do art. 216/1, al. a), do CIRE, não há que ponderar o incumprimento do plano de insolvência. A comparação, como claramente resulta do texto legal, é entre a situação ao abrigo do plano e a que teria na ausência de qualquer plano, segundo o modelo legal da liquidação universal dos bens da devedora.” Este entendimento foi também adotado em RE 22.02.2018 (841/16.7T8ELV.E1), relatado por Ana Margarida Leite.
No Acórdão desta Relação de 30.11.2022 (6028/ 21.0T8VNF.G1), relatado por Pedro Maurício, considerou-se que, “[p]ara se aferir da demonstração ou não desta causa de recusa de homologação do plano impõe-se ao Juiz uma apreciação casuística, que terá que ser realizada com base num juízo de prognose, através do qual se compara a situação que se antevê resultar da homologação e execução do plano para o interessado requerente, com a situação em que previsivelmente se encontraria no caso da ausência desse plano.”
Como se refere no mesmo aresto, a Jurisprudência tem entendido que recai sobre o requerente do pedido de não homologação o ónus de alegar e provar a verificação da situação prevista naquela alínea a).
Acrescentamos que o referido juízo tem, necessariamente, de ser substanciado em factos, não bastando, portanto, considerações gerais, meras conjeturas ou juízos valorativos. Neste sentido, o Acórdão desta Relação de 10.07.2023 (1080/22.3T8VNF-BH.G1), relatado por José Carlos Pereira Duarte.
Impõem-se, portanto, as mais das vezes, cálculos e provas complexas e exigentes (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso cit., p. 93). No mesmo sentido, Carvalho Fernandes / João Labareda (Código cit., p. 787), escrevem que “é exatamente a concretização da comparação que muitas vezes se revelará de extrema dificuldade exatamente porque importa avaliar a priori o que a massa insolvente pode render no caso de venda universal. Casos haverá, porém, em que a prova não será tão difícil. Será o que sucede quando, mesmo contra a vontade do atingido, se aprove um plano que prevê a redução de um crédito assistido de garantia real ou de privilégio incidente sobre bens que seriam suficientes para assegurar a totalidade do pagamento - ou, pelo menos, um reembolso em percentagem superior à estabelecida no plano. A este propósito, tenha-se em conta que, nos termos do art.º 197.º, se admite a afetação dos direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios se tal constar expressamente do plano, mesmo, segundo sustentámos, sem necessidade específica do assentimento do respetivo titular (…)”
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2).7. No caso vertente, quando se atente no que antecede, facilmente se conclui que a sentença recorrida apreciou corretamente a situação: a Banco 1... ficaria numa situação menos favorável com a aprovação do acordo do que aquela em que ficará sem ele. Com o acordo, o crédito da Banco 1... seria reduzido a metade do capital em dívida. O pagamento seria feito em 150 prestações, a primeira das quais se venceria após um período de carência de 18 meses. Sem o acordo, a Banco 1... poderá obter a satisfação integral do seu crédito, inclusive dos juros moratórios, beneficiando da preferência de pagamento que lhe é conferida pela hipoteca constituída sobre prédio de que são proprietários os devedores.
Trata-se, portanto, de uma situação que se aproxima do exemplo de Coutinho de Abreu que referimos no ponto anterior, em que se justifica, sem necessidade de outras considerações, a recusa de homologação do acordo.
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2).8. Sustentam ainda os Recorrentes que, de qualquer forma, o acordo deve ser homologado, restringindo-se, no entanto, a sua ineficácia aos credores que não votaram contra nem se opuseram à homologação.
Trata-se de uma solução que, salvo o devido respeito, não faz qualquer sentido.
Como resulta do que escrevemos, uma vez obtido o acordo, ainda que por mera maioria, apenas são possíveis duas decisões no termo do PEAP: a homologação ou a recusa de homologação. Tertium non datur…
Compreende-se que assim seja, quando se atente na finalidade do instituto: evitar a insolvência, mediante um acordo que vincule todos os credores e que potencie o azzeramento da posição passiva do devedor. Esta finalidade económica e social ficaria definitivamente prejudicada se o acordo apenas produzisse efeitos em relação a alguns dos credores, permitindo-se que os restantes lançassem mão dos meios de cobrança dos seus créditos sem quaisquer restrições. Não haveria então mais que um mero perdão parcial de dívidas, que sempre poderia ser obtido extrajudicialmente.
Por outro lado, um acordo de pagamento que não fosse eficaz em relação a todos os credores implicaria, pelo exposto, um tratamento diferenciado entre credores: uns teriam os seus créditos substancialmente reduzidos e sujeitos a moratória; outros manteriam a totalidade dos seus créditos e, bem assim, a possibilidade de exigir o respetivo cumprimento nos termos adrede convencionados com os devedores, inclusive por via coerciva. Essa diferenciação não estaria suficientemente justificada em razões objetivas e compagináveis com a finalidade do PEAP. Deste modo, a situação redundaria numa violação do princípio par conditio creditorum, consagrado no art. 194. A homologação de um acordo com um âmbito de eficácia parcial sempre teria de ser recusada, então com fundamento no art. 215.
Sem necessidade de outras considerações, improcedem in totum as conclusões dos Recorrentes.
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2).9. Vencidos, os Recorrentes devem suportar as custas do recurso, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso de apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas do recurso pelos Recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Notifique.
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Guimarães, 4 de abril de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Maria Gorete Morais
2.ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos