Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1068/18.9T8VCT.G2
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE DELIBERAÇÃO
ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Em acção de impugnação de deliberação de assembleia de condomínio a legitimidade passiva cabe ao condomínio.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães(1)

RELATÓRIO

Autor/apelante: A. C.
Réu/apelado: Condomínio do ..., sito na Rua ..., ..., ..., Viana do Castelo

Juízo local cível de Viana do Castelo (lugar de provimento de Juiz 4) - T. J. Comarca de Viana do Castelo.
*
Intentou o autor a presente acção comum alegando a sua qualidade de proprietário de fracção autónoma do edifício constituído em propriedade de horizontal sito na Rua ..., ..., ..., Viana do Castelo, cuja assembleia de condóminos deliberou, contra a sua vontade, dividir pelos condóminos, em partes iguais, o custo de reparação de elevadores, sendo que ele, autor, proprietário de fracção no rés-do-chão, não os usa. Mais alegou que no decurso do ano de 2018 foi pelo réu informado de que deveria contribuir, nos mesmos moldes (despesas a dividir por todos os condóminos em partes iguais), para despesas de arranjo do portão da garagem, sendo que o autor não tem garagem nem direito a uma, sendo por isso inválida qualquer deliberação tomada.

Formula os seguintes pedidos:
- se declarem inválidas e sem qualquer efeito perante si (autor), as deliberações tomadas nas assembleias de condomínio de 2018,
- se reconheça a inexistência de qualquer dívida do autor perante o réu,
- se condene o réu a abster-se de exigir encargos de manutenção e fruição relacionada com os lanços de escadas, garagens e elevadores,
- se condene o réu a restituir-lhe encargos de manutenção e fruição relacionados com os lanços de escadas, garagens e elevadores no valor que se vier a apurar no decurso da acção ou em sede de posterior liquidação,
- se declare inválida e/ou ineficaz qualquer deliberação e/ou regulamento que tenha aprovado a contribuição em partes iguais das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício, bem como ao pagamento de serviços de interesse comum,
- se condene o réu a pagar-lhe quantia não inferior a dois mil euros (2.000,00€),
- se condene o réu a pagar-lhe juros de mora vincendos desde a citação até integral pagamento das quantias peticionadas.

Contestou o réu, invocando (além do mais que à economia da presente apelação não releva, como a incompetência absoluta do tribunal e a ilegitimidade activa do autor) a sua ilegitimidade passiva, sustentando que as acções de anulação de deliberações tomadas em assembleias de condóminos devem ser instauradas contra os condóminos individualmente considerados, cabendo em tais acções o interesse directo em contradizer aos condóminos que votaram favoravelmente as deliberações impugnadas.
Cumprido o contraditório sobre as excepções, sustentou o autor a sua improcedência, mantendo a legitimidade passiva do réu condomínio.

No saneador, concluiu o tribunal caber a legitimidade passiva em acções de impugnação de deliberações de assembleia de condomínio aos condóminos e julgando procedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva do réu (insusceptível de sanação, por não estar em causa a preterição de litisconsórcio necessário) absolveu-o da instância.

Inconformado, apela o autor, pretendendo que seja a decisão revogada e declarada a legitimidade do réu para a presente acção ou se assim não for entendido, se convide o autor a provocar a intervenção dos restantes condóminos, nos termos do art. 316º e ss. do CPC, terminando as suas alegações com as seguintes (longas e prolixas) conclusões:

1- Por douta sentença, o recorrente A. C. viu ser proferido o seguinte: “Em face do exposto, julgo procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva e, em consequência, absolve-se o réu da instância, nos termos do disposto nos art.ºs 1433º, nº 6 do Cód. Civil, 278º, nº 1, al. d), 577º, al. e) e 576º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil. Condomínio …, Sito na Rua ..., nº ..., ..., da instância.”.
2 - Salvo o devido respeito, que aliás é muito, não concorda o recorrente com sentença proferida e daí o presente recurso. Com efeito,
3- O recorrente interpôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma comum, nos termos dos artigos 10.º, n.º 3, alínea b) e 546.º do Código de Processo Civil (doravante, CPC) contra o réu Condomínio do ... com a qual pretendia que o Tribunal a quo declarasse inválida uma deliberação tomada pela Assembleia de Condomínio de 2018, bem como que fosse o Réu condenado a abster-se de exigir ao autor encargos relativos à manutenção e fruição relacionadas com os lanços das escadas, garagens e ascensores, bem como a restituir os já pagos neste âmbito.
4- Veio o Tribunal a quo julgar verificar-se incompetência absoluta, tendo contudo o Tribunal ad quem, no pretérito, ordenado o seguimento dos autos, porquanto tal questão não podia, ainda, ser decidida sem que primeiro fosse produzida prova.
5- Contudo, em fase de audiência prévia, veio o Tribunal a quo a julgar, agora, verificar-se a ilegitimidade passiva da ré, não concordando os autores com tal decisão.
6- De uma forma sintética, o Processo Civil (assim como o restante direito processual) consubstancia um mecanismo, o método ou o instrumento através do qual o Estado, após ter avocado tal responsabilidade a si, procura dar solução a controvérsias, conflitos ou crises no plano do direito material sub indice, ao direito civil – vide artigos 1.º e 2.º do Código do Processo Civil e artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
7- Ora, é na obtenção deste “efeito útil da ação” que se tem vindo a verificar a flexibilização do Processo, de forma a que este cumpra com o seu objectivo final: conhecer e apreciar o mérito da causa.
8- Daí que ao longo dos tempos o Legislador atribuiu ao Juiz um poder e dever de gestão processual (vide artigos 6.º, 7.º e 590.º e seguintes do Código do Processo Civil).
9- Tudo isto com vista a que se possibilite o processo atingir suas finalidades essenciais, ou seja, a apreciação do fundo da questão trazida perante a justiça, num espaço de tempo razoável e proporcional à complexidade da questão, como, de resto, já era defendido por juristas de renome desde a 1.ª metade do século XX (pense-se, por exemplo, no Exmo. Dr. A. R.).
10- Assim, aquando a Reforma de 1995 do Código do Processo Civil, o legislador tomou vários passos nesse sentido, que no preâmbulo de tal reforma considerou que a “desburocratização e de modernização” do Processo Civil.
11- Mais tendo dito que “Estas linhas mestras assentam nos seguintes parâmetros: (…) Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio de cooperação, por uma participação mais activa das partes no processo de formação da decisão…”, visando “deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material” de forma a que os Cidadão consigam uma “rápida, mas segura, concretização dos seus direitos.”.
12- Pretendeu-se, assim, um Processo Civil “capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação”.
13- A esta mentalidade e linha de pensamento fora, mais tarde, tentada, novamente, com o DL n.º 108/2006 (Regime Processual Civil Experimental).
14- Esta continua linha de pensamento transpôs-se para o actual Código de Processo Civil, que continua, nessa esteira, a procurar que os litígios sejam resolvidos pelo mérito da questão, de forma a que seja necessário a interposição de nova acção nos Tribunais, que nada contribuirá (na verdade, apensa atrasaria, pois alem de criar uma novação acção pendente, traria morosidade à resolução, de facto, ao litígio) para o andamento célere da Justiça.
15- Mas regressando à referida reforma de 1995 do Código do Processo Civil, aquele introduziu “modificações sensíveis na sua concreta regulamentação. Assim, no que se refere à personalidade judiciária” previu-se “expressamente a personalidade judiciária do condomínio resultante da propriedade horizontal.”.
16- Tal consubstancia um desvio à regra geral, apenas justificável face às novas realidades que a organização “Condomínio” representa – vide 12.º, alínea e), do Código de Processo Civil.
17- Assim, considera-se que a razão desta extensão da personalidade judiciária é um compromisso entre o excessivo dogmatismo, conceptual e formal, e a necessidade de atender a realidades que decorrem da vida corrente e que ficariam a descoberto se não houvesse tal desvio
18- E tudo isto porque tais excepções são corolário do carácter instrumental do processo civil à lei substantiva.
19- Este é, manifestamente, o caso do Condomínio na Propriedade Horizontal.
20- O Condomínio, como um Direito Real Complexo que é, levou o Legislador a instituir uma forma própria de organização daquele complexo: a Assembleia de Condóminos e o Administrador do Condomínio.
21- São estes órgãos, pertencentes a uma organização, a uma realidade fáctica, sem personalidade jurídica, mas com capacidade de celebrar negócios (pense-se, por exemplo, na contratação de empresas de limpeza, de fornecimento de água, luz e gás, de sistemas de vigilância, de porteiros [a tempo inteiro ou parcial], etc.), que asseguram a formação da vontade da entidade “Condomínio”.
22- Assim, a Assembleia é um órgão colegial, composto por todos os condóminos, os quais pelo processo colegial de formação da declaração colectiva, deliberar acerca da administração das partes comuns do edifício, emitindo assim a vontade do Condomínio, que se sobrepõe às vontades individuais.
23- É esta vontade do grupo que cria uma realidade fáctica complexa, similar à das Sociedade Comerciais, capaz de celebrar negócios, de afectar os direitos e deveres de indivíduos, estejam ou não eles dentro daquela estrutura (ou seja, sejam eles ou não Condóminos).
24- Tendo em conta a inexistência física do “Condomínio”, este é representado, assim, pelo seu Administrador – o que, nos termos da lei, está preconizado no artigo 1437.º n.º 1 do Código Civil.
25- Assim, o Administrador é o órgão executivo da administração das partes comuns do edifício e das deliberações da assembleia de condóminos, tendo em si uma administração orgânica do Condomínio, sendo que a mesma é destituído de intuito personae – quanto a este aspecto atente-se ao disposto no artigo 1435.º-A do Código Civil.
26- Face a esta realidade de facto, veio o Legislador, em 1995, atribuir Personalidade Judiciária aos Condomínios, tendo por base que esta organização, este grupo, forma e exprime a sua vontade através de a deliberação exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos (individualmente considerados, ou dos que aprovaram a deliberação).
27- Os actos dos Condomínios são próprios desta entidade, nunca sendo assacados aos Condóminos, individualmente considerados – vide, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no BMJ n.º 450º, p. 498; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05-07-2005, Proc. n.º 1754/05.
28- Assim, os órgãos administrativos “Assembleia de Condóminos” e o “Administrador” são um instrumento para a emissão daquelas declarações de vontade comum e para a execução daquelas mesmas vontades, de modo a tornar possível a actividade da colectividade.
29- Posto isto, é-nos mais fácil perceber a razão pelas quais o Legislador, na sua Reforma de 1995, atribuiu a esta organização Capacidade Judiciária.
30- É que não só a mesma se traduz numa organização de facto que toma decisões que afecta a vida das pessoas (sejam elas singulares ou colectivas, internas ou externas àquela colectividade), como é ela a responsável pelos actos praticados. E isto porque aqueles actos são o resultado de um concatenar de declarações de vontades, formadas e expressas pelos seus órgãos administrativos.
31- ““[O] condomínio é a face processual dos condóminos […] não fazendo valer, de forma alguma, um interesse diferente daquele que pertence a estes. No fundo, quando o condomínio assume o papel de parte, os condóminos assumem esse papel em simultâneo, mas sob a “máscara” do condomínio: não estão no processo, mas tudo se passa como se estivessem, litigando do lado activo ou do lado passivo da instância.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-09-2015, Proc. n.º 218/15.6TVLSB-B.L1-2..
32- “O condomínio é a ‘capa’ processual dos condóminos, uma ‘capa’ que visa facilitar a identificação das partes, evitar que os condóminos, um por um, tenham de ser referidos na petição inicial ou na contestação […]”. “A personalidade judiciária atribuída ao condomínio é meramente formal e, no fundo, os condóminos são partes na causa, debaixo da ‘capa’ do condomínio.” […] ‘A parte permanece o conjunto dos respectivos membros’. Por isso é que o depoimento de um condómino tem de ser visto como um depoimento de parte e jamais como um depoimento testemunhal.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-09-2015, Proc. n.º 218/15.6TVLSB-B.L1-2..
33- É por estas razões que se diz que “A legitimidade processual passiva para as acções de impugnação das deliberações da AG dos condóminos pertence ao condomínio, representado em primeira linha pelo seu administrador (art. 1433/6 do CC).” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-03-2019, Proc. n.º 26294/17.4T8LSB.L1-2..
34- Mais se diz que é preciso ter em atenção que a redacção do artigo 1433.º, n.º 4 do Código Civil é anterior à reforma de 94 e que não foi objecto de actualização..
35- Pelo que a interpretação do artigos do Código Civil terão, sempre, de ser realizadas através de uma interpretação o actualista e consonante com os artigos 12.º aliena e) e 383.º, n.º3, do Código do Processo Civil.
36- Mais se diz que uma interpretação contrária traria dois grandes problemas “diabólicos”: um relativo ao elevado número de condóminos de certos edifícios sujeitos ao regime da propriedade horizontal e outro por causa, também, da impossibilidade prática, na esmagadora maioria das vezes, de identificar os condóminos (seja por não constarem da acta, seja por se desconhecerem, por desactualização das certidões prediais, matriciais, de heranças jacentes, etc.
37- Inclusive, no caso dos autos, existem 36 fracções, sendo fácil de se conceber tal número poderia, facilmente, duplicar (imagine-se, 72 interveniente num processo de impugnação de deliberação de assembleia de condomínio) face à existência de pessoas casadas, compropriedade e/ou fracções pertencerem a heranças.
38- Considera-se que obrigar um cidadão (ou, em abstracto, uma qualquer entidade), que seja afectado por um acto de um “Condomínio”, ter de interpor uma acção contra todos os Condóminos integrantes daquela organização seria, manifestamente, uma afronta à equidade, proporcionalidade e necessidade que se exige da Direito e da Justiça.
39- Em especial, seria um atropelo ao Direito Constitucional ao Acesso aos Tribunais ao Princípio Constitucional e Basilar da Tutela Jurisdicional Efectiva.
40- Com isto somos levados a questionar: é de exigir que existam, abstractamente, um total de 37 Articulados, sendo 1 a Petição Inicial e a restantes 36 Contestações, com possibilidade de outras tantas reconvenções (ainda que inadmissíveis) para mais um acto (ou vários) que consubstanciassem a Réplica a cada?
41- Assim considera-se e argúi-se que a interpretação conjugada das normas 1431.º, 1433.º, n.ºs 6 e 7, do Código Civil e dos artigos 12.º, alínea e), e 383.º n.º 3 do Código do Processo Civil, no sentido de que para a acção que vise a impugnação da validade de deliberações tomadas em Assembleia de Condomínio terá de ser, necessariamente, interposta contra os vários Condóminos e o Condomínio (ou só os primeiros) inconstitucional, por criar um entrave de tal forma elevado que impede o Acesso ao Direito e à Justiça, bem como a Tutela Jurisdicional Efectiva.
42- Por tudo o exposto, somos a considerar que V.ªs Exas. revogando a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, substituindo-a por outra que julgue não verificada a ilegitimidade passiva da ré Condomínio do ..., sito na Rua ..., nº ..., ..., farão inteira justiça.
43- Sem prescindir, caso assim não se entenda, sempre se dirá que aos autores era possível provocar a intervenção dos restantes condóminos, nos termos do artigo 316.º e seguintes do Código do Processo Civil. Note-se que tal norma, inclusive, integra-se no plano do que se tem vindo a expor: possibilitar que nos autos se conheça a questão de mérito, ultrapassando-se, sempre, quaisquer impedimentos formais/processuais.
44- Nestes termos, V.ªs Exas. revogando a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, permitindo aos autores suscitar o referido incidente, farão inteira justiça.

Contra-alegou o réu pela improcedência do recurso e em defesa da decisão recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Delimitação do objecto do recurso.

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), as questões a decidir reconduzem-se a apreciar:

- da legitimidade passiva para a presente acção que traduz impugnação de deliberação da assembleia de condóminos – se deve ser reconhecida ao condomínio, como defende o autor apelante, se aos condóminos que votaram a deliberação, como concluiu a decisão recorrida,
- caso se conclua que a legitimidade cabe aos condóminos e não ao condomínio, se se impõe convidar o autor a provocar a intervenção dos condóminos, nos termos do art. 316º do CPC.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto

O quadro factual a ponderar para conhecer do objecto do recurso resulta exposto do precedente relatório.

Fundamentação de direito

Tem sido recorrentemente dirimida e tratada a questão da legitimidade passiva nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos, mostrando-se a jurisprudência e a doutrina divididas entre a posição que defende estar a legitimidade deferida aos condóminos, individualmente considerados (todos os condóminos que não votaram contra a deliberação impugnada), representados na causa pelo administrador do condomínio ou por pessoa que a assembleia para o efeito designar (art. 1433º, nº 6 do CC) e a posição que sustenta caber tal legitimidade ao condomínio.
O elenco dos defensores (na jurisprudência e doutrina) de cada uma das posições encontra-se exposto (não sem pertinente, perspicaz e assertiva crítica da doutrina indicada) no douto acórdão da Relação do Porto de 13/02/2017 (2).
Ainda que não exaustiva, a extensa e abrangente identificação de decisões dos tribunais superiores (com especial enfoque no STJ, mas também das Relações) e da doutrina ali efectuada, com exposição dos argumentos de cada uma das bandas, torna despicienda a tarefa de aqui enumerar as decisões e doutrinadores que seguem cada uma daquelas posições.
Centraremos, pois, os esforços argumentativos na justificação da posição que temos por adequada ao ordenamento jurídico que nos rege – e que é a sustentada pelo autor apelante.
Em primeiro lugar, afigura-se-nos que a posição que defendemos (a da legitimidade passiva do condomínio nas acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos) é que melhor quadra ao conceito dogmático de deliberação – e nos leva a encontrar no lado passivo da relação jurídica controvertida o condomínio e não os condóminos.
O condomínio, enquanto ‘centro de imputação de relações jurídicas autónomas, enquanto portador de uma vontade própria e de meios patrimoniais (ainda que mínimos)’ (3), corresponde a uma individualização dum ‘interesse colectivo merecedor de tutela’ (4) e por isso está legalmente dotado de órgãos (administrador e assembleia dos condóminos – art. 1430º do CC) – órgãos que ‘são um instrumento para a emissão de declarações da vontade comum e para a execução desta mesma vontade, de modo a tornar possível a actividade da colectividade’ (5).
A deliberação (toda a deliberação de qualquer órgão plural) vale como deliberação do colégio e vincula normativamente a colectividade, projectando-se na esfera jurídica desta.

No caso do condomínio resultante da propriedade horizontal (entidade sem personalidade jurídica mas com personalidade judiciária, nos termos do art. 12º, e) do CPC, relativamente às acções inseridas no âmbito dos poderes do administrador), a deliberação projecta-se na realidade condominial – a assembleia geral é o ‘órgão através do qual a comunidade dos condóminos forma a sua vontade’, operando-se pelo processo colegial de formação da declaração colectiva ‘não apenas uma mutação quantitativa correspondente à soma dos votos maioritários, mas numa real mutação qualitativa, que reconduz as vontades individuais à vontade do próprio grupo’ (6). A ‘deliberação exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos, individualmente considerados’ (7) – representa (a deliberação assumida pela assembleia de condóminos) o ‘resultado de várias vontades distintas mas tendentes a um único escopo: a eficiente organização e gestão da vida condominial’ e, naturalmente, uma vez tomada a deliberação, a vontade que constitui o seu fundamento assume ‘uma autonomia própria a respeito dos condóminos que formaram a decisão colectiva’ (8).
Por isso que constituindo a deliberação da assembleia de condóminos (objecto da acção de impugnação) um acto unitário (9) (que não uma miríade de actos, tantos quantos os condóminos), um acto do condomínio, a legitimidade passiva para a acção que tem em vista a sua impugnação pertence ao condomínio (10).
Exprimindo a deliberação a vontade da assembleia de condóminos, ‘estruturalmente percebe-se que seja essa entidade, porque vinculada pela deliberação, a demandada em ação em que se questione a existência, a validade ou a eficácia de uma sua qualquer deliberação’ (11).
Em segundo lugar, tal é a posição a que nos conduz a hermenêutica jurídica do art. 1433º, nº 6 do CC, entendida a hermenêutica como a actividade que busca na norma o ‘critério da justa decisão do problema concreto’ (12).
Efectivamente, o preceito (art. 1433º, nº 6 do CC) não acompanhou a evolução do ordenamento jurídico, que na reforma processual de 1995/96 estabeleceu a personalidade judiciária do condomínio resultante da propriedade horizontal (art. 6º, e) do CPC/95-96), impondo-se, pois a sua interpretação actualista. A ‘norma - cuja redacção deriva do DL 267/94, de 25/10 - foi redigida numa época em que o condomínio não gozava de personalidade judiciária, ou seja, não podia, enquanto tal, ser parte activa ou passiva num processo cível. A causa dizia respeito ao condomínio? Pois bem, tornava-se indispensável a intervenção, no processo, do lado activo ou do lado passivo de todos os condóminos’, sendo que só com a reforma processual de 1995/96 a lei ‘veio estender no art. 6º, al. e) a personalidade judiciária do condomínio’, acrescentando então o art. 231º, nº 1 do CPC, cuja redacção deriva da mesma reforma, que o condomínio era ‘citado ou notificado na pessoa do seu representante legal (o administrador)’, donde resulta que ‘o condomínio é a parte, e parte legítima, assumindo o administrador o papel de representante de uma entidade desprovida de personalidade jurídica, sendo incorrecto, por isso afirmar-se que a legitimidade pertence ao administrador’, o que tudo impõe se leve ‘a cabo uma interpretação actualista do citado art. 1433º, nº 6 do CC substituindo a expressão condóminos pela palavra condomínio’ (13).
A lei, numa das objectivações do critério da diferenciação patrimonial, ao estender (alínea e) do art. 12º do CPC/2013, correspondente à alínea e) do art. 6º do CPC/95) a personalidade judiciária ao património autónomo em que se traduz o condomínio resultante da propriedade horizontal, fazendo coincidir a medida desta com a das funções do administrador, tornou tão obsoleta quão desnecessária a ficção que a anterior solução plasmada no art. 1433º, nº 6 do CC representava – atribuir a legitimidade passiva para a causa aos condóminos (todos eles, forçosamente, dotados de personalidade judiciária), impondo a sua representação em juízo ao administrador (ou a pessoa para tanto nomeada pela assembleia): a necessidade de forçar pessoas dotadas de personalidade judiciária a ser representadas numa causa advinha da impossibilidade de dirigir directamente a demanda ao condomínio, que então não dispunha de personalidade judiciária, mas traduzia o reconhecimento que o interesse a dirimir era da colectividade condominial, não o interesse particular de cada um dos condóminos. Desaparecido o espartilho que impedida essa demanda directa do condomínio (com a extensão da personalidade judiciária ao condomínio), há-de o preceito (art. 1433º, nº 6 do CC) ser interpretado a essa actualizada luz.
Por fim, um argumento de ordem prática que não pode ser desprezado – a solução que defende caber a legitimidade ao condomínio permite o exercício mais ágil do direito de acção (e os ‘pressupostos processuais não devem servir para complicar, desnecessariamente, o conhecimento do pedido e a resolução dos litígios, finalidades precípuas do processo civil’ (14)), pois a ‘necessidade de identificar todos os condóminos pode ser diabólica, por duas razões: por causa do elevado número de condóminos de certos edifícios sujeitos ao regime de propriedade horizontal; por causa também da impossibilidade prática, na esmagadora maioria das vezes de identificar, na acta da assembleia, os condóminos que votaram a favor de uma deliberação’ (e por isso que a solução que nega a legitimidade passiva do condomínio nas acções de impugnação de deliberações da assembleia constitui ‘solução pouco prática e até espinhosa’) (15).
Concluímos pois, que em acção de impugnação de deliberação de assembleia de condomínio a legitimidade passiva cabe ao condomínio, o que determina se revogue a decisão recorrida, considerando o réu condomínio parte legítima para a presente acção, ficando assim prejudicada – art. 608, nº 2, aplicável à apelação ex vi art. 663º, nº 2, ambos do CPC – a apreciação da outra questão suscitada pelo apelante.

Sumariando a decisão, pode afirmar-se:

A legitimidade passiva nas acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos cabe ao condomínio.
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, declarando o réu condomínio como parte legítima para a presente acção.
Custas pelo réu (vencido no recurso).
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Guimarães,
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico)



1. Apelação nº 1068/18.9T8VCT.G2; Relator: João Ramos Lopes; Adjuntos: Jorge Teixeira; José Fernando Cardoso Amaral
2. Relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Carlos Gil, publicado no sítio www.dgsi.pt.jtrp
3. Sandra Passinhas, A assembleia de condóminos e o administrador na propriedade horizontal, Almedina, 2000, p. 176.
4. Sandra Passinhas, obra citada e local citados.
5. Sandra Passinhas, obra citada, p. 179.
6. Sandra Passinhas, obra citada, p. 181.
7. Sandra Passinhas, obra citada, p. 337.
8. Sandra Passinhas, obra citada, p. 182.
9. Abílio Neto, Propriedade Horizontal, 2ª edição, 1992, p. 171.
10. Sandra Passinhas, obra citada, p. 337.
11. Citado acórdão da Relação do Porto de 13/02/2017.
12. O ‘problema jurídico-normativo da interpretação não é o de determinar a significação, ainda que significação jurídica, que exprimam as leis ou quaisquer normas jurídicas, mas o de obter dessas leis ou normas um critério prático normativo adequado de decisão dos casos concretos (como critério-hipótese exigido, por um lado, e a submeter, por outro lado, ao discurso normativamente problemático do juízo decisório desses casos). Uma «boa» interpretação não é aquela que, uma pura perspectiva hermenêutica-exegética, determina correctamente o sentido textual da norma: é antes aquela que numa perspectiva prático-normativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão do problema concreto’- Castanheiras Neves, apud Sandra Passinhas, obra citada, p. 337, em nota. 13. Miguel Mesquita, ‘A Personalidade Judiciária do Condomínio nas Acções de Impugnação de Deliberações da Assembleia de Condóminos’, in Cadernos de Direito Privado, nº 35 (Julho/Setembro de 2011), p 54.
14. Miguel Mesquita, obra citada, p. 56.
15. Cfr. o acórdão desta relação de 30/11/2016 (Pedro Damião da Cunha), no sítio www.dgsi.pt/jtrg.