Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5067/23.0T8VNF-A.G1
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO MOBILIÁRIO GERAL
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DO EXEQUENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- No crédito de IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário geral sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente, ao abrigo dos artigos 749º do CC e 111º do Código do IRS.
- Assim, os créditos do Estado por dívida de IRS não têm qualquer oponibilidade a quaisquer direitos reais, anteriores ou posteriores aos débitos garantidos, pelo que não prevalecem sobre o direito de retenção.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO (que se trancreve)

Nos presentes autos de reclamação de créditos deduzidos por apenso aos autos de execução em que é exequente AA e executados BB e CC, ao abrigo do disposto nos artigos 788º do Código Processo Civil veio requerer a verificação e graduação de créditos:

- O MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do Estado, cujo crédito ascende a 3 699,24 €, sendo:
▪ O montante de 3.429,44€, respeitante a IRS (e juros), relativo aos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023.

▪ O montante de 269,80€, relativo a IMI (e juros), relativo ao imóvel penhorado e reportado aos anos de 2021, 2022 e 2023.

Nos autos de execução encontra-se penhorado o seguinte bem (entre o mais): - Prédio urbano, destinado a armazém de rés de chão e logradouro, situado no Lugar ..., ... ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo urbano nº ...67 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...63.
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O exequente e o executado foram notificados para os termos e efeitos do disposto no artigo 789º, n.ºs 2 e 3, do Código Processo Civil.
Todavia, não deduziram qualquer impugnação.
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Em sede de saneador, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

- “Julgo procedente a reclamação de créditos apresentada nos presentes autos pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Pública e em consequência;
a) Reconheço os créditos apresentados nos presentes autos pelo pelo Ministério Público, em representação do Estado;
b) Graduo os créditos reconhecidos face à quantia exequenda, relativamente ao imóvel penhorado nos autos, do seguinte modo:
1º - Crédito devido a título de IMI ao Estado, reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Pública;
2º - Crédito devido a título de IRS, reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Pública;
3º - Crédito exequendo (garantido por penhora);

c) Condeno o reclamado/executado no pagamento das custas devidas pela reclamação de créditos, as quais saem precípuas do produto da venda do bem penhorado.”
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Inconformado cm a sentença dela veio recorrer o exequente, formulando as seguintes conclusões:

1- O presente recurso tem por objeto toda a matéria da sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos autos supra identificados, a qual graduou os créditos reconhecidos face à quantia exequenda, relativamente ao imóvel penhorado nos autos, do seguinte modo: crédito devido a título de IMI, crédito devido a título de IRS e crédito exequendo (garantido por penhora).

2- Ora, quanto à natureza do privilégio invocado a favor dos créditos referentes a IMI, entende-se não oferecer dúvida que estes créditos integram o conceito de “créditos por contribuição predial devida ao Estado ou às autarquias locais” a que alude o artigo 744.º n.º 1 do CC (ex vi artigo 122.º n.º 1 do CIMI), preceito esse que lhes confere “privilégio sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos àquela contribuição”, o que permite qualificar esse privilégio como imobiliário especial (conforme também resulta do artigo 735.º n.º 3 do CC, quando estabelece que “os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais”).

3- Em relação aos créditos referentes a IRS, rege o artigo 111.º do CIRS, segundo o qual “para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro ato equivalente” (cf. artigo 736.º do CC), o que se traduz na consagração de um privilégio imobiliário geral e que, em concreto, incide sobre o imóvel apreendido nos presentes autos.

4- Diferente do crédito devido a título de IMI e a título de IRS, é o crédito exequendo. O crédito exequendo goza da garantia dada pela penhora. Em sentido rigoroso, a penhora é apenas o meio de obter o cumprimento coercivo da obrigação e não uma garantia real do crédito.

5- Segundo a lei, o crédito garantido por uma penhora deve ser classificado como crédito comum (artigo 47.º n.º 4 alínea c) do CIRE), sendo graduado a seguir aos créditos garantidos e privilegiados, a par dos demais créditos comuns.

6- Assim, ao exequente assiste o direito a ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior – cf. artigo 822.º n.º 1 do CC.

7- Se ambos os créditos devidos ao Estado são privilegiados, o crédito exequendo não prefere perante estes. Ora, entende-se que foi este o pensamento seguido pelo tribunal de 1ª instância.

8- Acontece que, o crédito exequendo não goza somente da garantia dada pela penhora. O crédito exequendo desfruta ainda garantia conferida pelo direito de retenção, facto que o tribunal desconsiderou.

9- Conforme se extrai dos autos, a presente execução funda-se na decisão proferida no dia 11/05/2023, no processo n.º 5339/22.... (Juízo Central Cível de ... – Juiz ...), que homologou a transação efetuada entre o aqui Exequente e Executados nesse processo.

10- Resulta dessa transação que os Executados reconhecem que o Exequente “está na posse do terreno prometido vender, no qual fez obras de conservação e o destina a uso pessoal, guardar os seus veículos”.

11- Portanto, na dita transação os Executados reconheceram o direito de retenção do Exequente, mas a verdade é que não estavam inibidos de proceder à sua impugnação em sede de reclamação de créditos.

12- Chegado o momento, o crédito exequendo, garantido por direito de retenção e reclamado com essa natureza, não foi impugnado, pelo que o mesmo assim tem de ser reconhecido e graduado em conformidade.

13- Posto isto, recordando, são três os créditos reconhecidos face à quantia exequenda: o crédito referente a IMI, o crédito referente a IRS e o crédito exequendo, que se classificam do seguinte modo:

14- Em primeiro lugar, o crédito referente a IMI, o qual por gozar de privilégio imobiliário especial, classifica-se como crédito garantido.

15- Em segundo lugar, o crédito referente a IRS, que beneficiando de privilégio imobiliário geral, se classifica como crédito privilegiado.

16- Por fim, o crédito exequendo, o qual por gozar de uma garantia conferida pelo direito de retenção, classifica-se como crédito garantido.

17- Não restam dúvidas de que a sentença recorrida não atentou na circunstância de o crédito do Exequente beneficiar de direito de retenção sobre o bem penhorado, tal qual foi expressamente alegado no requerimento executivo, tendo-o, por isso, graduado em último lugar.

18- Aliás, a douta sentença recorrida não sopesou as duas garantias em presença: privilégio imobiliário especial vs direito de retenção.

19- Sobre a posição relativa da qualidade de crédito privilegiado, face a outro crédito garantido, estabelece o artigo 751.º do CC que “os privilégios imobiliários especiais (…) preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores”.

20- Neste seguimento, atento o disposto nos artigos 751.º e 759.º do CC, deve graduar-se, em primeiro lugar, o crédito devido a título de IMI ao Estado, a seguir o crédito do Exequente e, só em último, o crédito devido a título de IRS ao Estado.

21- Ao não atentar o direito de retenção de que beneficia o crédito exequendo, a sentença recorrida errou na graduação dos créditos e, consequentemente, violou, pelo menos, o disposto no artigo 111.º do CIRS, no artigo 47.º n.º 4 alínea a) do CIRE, no artigo 140.º n.º 2 do CIRE e no artigo 759.º n.º 1 do CC.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença, substituindo-a por outra que gradue, em primeiro lugar, o crédito devido a título de IMI, a seguir o crédito do Exequente e, só em último, o crédito devido a título de IRS, fazendo-se assim JUSTIÇA!
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Não houve contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – OBJECTO DO RECURSO

A – Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo Recorrente, cumpre apreciar se existe fundamento legal para revogar a decisão recorrida no sentido pugnado pela recorrente, ou seja, substituindo-a por outra que gradue, em segundo lugar, o crédito do crédito do Exequente e, só em último, o crédito devido a título de IRS ao Estado.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Para a questão a decidir há a ter em consideração a factualidade constante do relatório supra e ainda a seguinte:
- A presente execução funda-se na decisão proferida no dia 11/05/2023, no processo n.º 5339/22.... (Juízo Central Cível ... – Juiz ...), que homologou a transação efectuada entre o aqui Exequente e Executados nesse processo;
- Nessa transação os Executados reconhecem que o Exequente “está na posse do terreno prometido vender, no qual fez obras de conservação e o destina a uso pessoal, guardar os seus veículos”; os Executados reconheceram o direito de retenção do Exequente.

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A sentença recorrida graduou os créditos reclamados nos seguintes termos e ordem:
1º - Crédito devido a título de IMI ao Estado, reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Pública;
2º - Crédito devido a título de IRS, reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Pública;
3º - Crédito exequendo (garantido por penhora);
Insurge-se o Recorrente quanto ao assim decidido, alegando que o crédito exequendo não goza somente da garantia dada pela penhora. O crédito exequendo desfruta ainda garantia conferida pelo direito de retenção, facto que o tribunal desconsiderou; que conforme se extrai dos autos, a presente execução funda-se na decisão proferida no dia 11/05/2023, no processo n.º 5339/22.... (Juízo Central Cível ... – Juiz ...), que homologou a transação efetuada entre o aqui Exequente e Executados nesse processo; que resulta dessa transação que os Executados reconhecem que o Exequente “está na posse do terreno prometido vender, no qual fez obras de conservação e o destina a uso pessoal, guardar os seus veículos”; que na dita transação os Executados reconheceram o direito de retenção do Exequente, mas a verdade é que não estavam inibidos de proceder à sua impugnação em sede de reclamação de créditos; que o crédito exequendo, garantido por direito de retenção e reclamado com essa natureza, não foi impugnado, pelo que o mesmo assim tem de ser reconhecido e graduado em conformidade; e que que a sentença recorrida não atentou na circunstância de o crédito do Exequente beneficiar de direito de retenção sobre o bem penhorado, tal qual foi expressamente alegado no requerimento executivo, tendo-o, por isso, graduado em último lugar.
 Pugna, assim, o Recorrente que o crédito referente a IMI, o crédito referente a IRS e o crédito exequendo, sejam graduados do seguinte modo:
- Em primeiro lugar, o crédito referente a IMI, o qual por gozar de privilégio imobiliário especial, classifica-se como crédito garantido.
- Em segundo lugar, o crédito exequendo, o qual por gozar de uma garantia conferida pelo direito de retenção, classifica-se como crédito garantido.
- Em terceiro lugar o crédito referente a IRS, que beneficiando de privilégio imobiliário geral, se classifica como crédito privilegiado.
Em suma, pretende o Recorrente que seja revogada a sentença recorrida, substituindo-a por outra que gradue, em primeiro lugar, o crédito devido a título de IMI ao Estado, a seguir o crédito do Exequente e, só em último, o crédito devido a título de IRS ao Estado.
Vejamos.
A sentença recorrida teceu as seguintes considerações:
- “Exige o artigo 788º, do Código Processo Civil, como pressupostos materiais da reclamação de créditos, que o credor seja: a) titular de um direito de crédito; b) com garantia real ou detenha preferência de pagamento sobre os bens penhorados; e, como pressuposto formal, que o mesmo credor c) disponha de um título executivo.
São direitos reais de garantia o arresto, a penhora, o penhor, a hipoteca, os privilégios creditórios especiais e o direito de retenção.
O título executivo pode traduzir-se numa das várias espécies elencadas no artigo 703º, do Código Processo Civil. Preceitua aquele normativo que à execução apenas podem servir de base as sentenças condenatórias; os documentos exarados ou autenticados por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento, ou sejam alegados no requerimento executivo; os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva. Acresce-se que os juros de mora à taxa legal são abrangidos pelo título executivo.
No caso em apreço, compulsados os autos, é manifesto que o credor reclamante é titular de direito de crédito e detém preferência de pagamento sobre o bem imóvel penhorado (privilégio creditório imobiliário) e possui título executivo (isto é, certidão referente a receitas do Estado que possui força executiva ao abrigo do estabelecido no artigo 703º, n.º1, do Código Processo Civil).
Existe identidade entre o bem penhorado nos autos de execução e a incidência dos direitos de crédito reclamados pelo credor.
No que concerne ao prazo, a reclamação de créditos deduzida foi formulada em tempo se se considerar o preceituado no artigo 788º, n.ºs 2 e 3, do Código Processo Civil.

Assim, nos termos do disposto no n.º 4, do artigo 791º, do Código Processo Civil, julgo reconhecido o crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional a título de IMI, da responsabilidade do Reclamado bem como as respectivas preferências no pagamento.”
Esta passagem da sentença não oferece qualquer dúvida, nem a matéria aqui tratada, relativa ao reconhecimento do credito reclamado, vem questionada na apelação.
A dúvida é suscitada relativamente à fundamentação da decisão quanto à graduação dos créditos em causa, que é a seguinte:
- “Nos termos do artigo 736º, nº1, do Código Civil, os créditos relativos a impostos, quer directos, quer indirectos, gozam de privilégio mobiliário geral; os primeiros quando inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, ou nos dois anos anteriores; os últimos sem qualquer limitação temporal.
São vários os critérios usualmente apontados para distinguir impostos directos e impostos indirectos. Dos trabalhos preparatórios do Código Civil parece resultar que o critério subjacente à elaboração da norma em análise assenta na distinção entre impostos periódicos e de obrigação única. Assim, constituirão impostos directos os que se traduzam em prestações periódicas, e indirectos os que se traduzam em prestação única, i. é, que incidam sobre actos ou factos que não apresentem um carácter de periodicidade.
À luz deste critério, o IRS e o IRC traduzem a cobrança de um imposto directo.
Nos termos do artigo 111º, do Código do IRS, para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro ato equivalente.

Nos termos do artigo 116º, do Código do IRC, para pagamento do IRC relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro ato equivalente.
Tais privilégios têm plena aplicação ao caso dos autos uma vez que encontram-se penhorados bens imóveis.
São, ainda, devidos juros de mora (cfr. artigo 44º, nº2, da Lei Geral Tributária (os juros de mora aplicáveis às dívidas tributárias são devidos até à data do pagamento da dívida).
Nos termos do disposto no artigo 151º, nº2, da Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2012: “A nova redacção do nº2, do artigo 44º, da Lei Geral Tributária, tem aplicação imediata em todos os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes à data da entrada em vigor da presente lei”.
O legislador, a fim de evitar a aplicação retroactiva da lei determinou no nº4, do artigo 151º, da Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2012 que: “Os juros devidos, ao abrigo da nova redacção (…) dos nºs 2 e 3, do artigo 44º, da Lei Geral Tributária, nos processos pendentes e nas decisões judiciais transitadas em julgado, cuja execução se encontre pendente, só se aplicam ao período decorrido a partir da entrada em vigor da presente lei”.
Regendo sobre os privilégios imobiliários, dispõe o artigo 744º, nº1, do Código Civil, que os créditos por contribuição predial devida ao Estado ou às autarquias locais, inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores, têm privilégio sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos àquela contribuição.
Por sua vez, o artigo 748º, do Código Civil, preceitua que os créditos com privilégio imobiliário graduam-se pela ordem seguinte: a) Os créditos do Estado, pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre as sucessões e doações; b) Os créditos das autarquias locais, pela contribuição predial.

O Decreto-Lei nº287/2003, de 12 de Novembro, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei nº26/2003, de 30 de Julho, aprovou, entre outros, o Código do IMI e o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis.
No que concerne ao Código do IMI, estatui o nº1, do artigo 122º, sob a epígrafe garantias especiais, preceitua que o imposto municipal sobre imóveis goza das garantias especiais previstas no Código Civil para a contribuição predial, operando, assim, uma remissão para aquele artigo 744º, nº1, do Código Civil.
Atenta a data da penhora, a certidão predial junta aos autos, bem como a data a que se refere a dívida de IMI, ora reclamada pela Fazenda Nacional, verificam-se os limites temporais previstos na referida disposição legal.
Nos termos do artigo 734º, do Código Civil, o privilégio creditório abrange os juros relativos aos últimos dois anos, se forem devidos. Por sua vez, dispõe o artigo 8º, do Decreto-Lei nº73/99, de 16 de Março – com a redacção dada pelo artigo 165º, da Lei 3-B/2010, de 28 de Abril – (relativo ao regime dos juros de mora das dívidas ao Estado e outras entidades públicas), que as dívidas provenientes de juros de mora gozam dos mesmos privilégios que por lei sejam atribuídos às dívidas sobre que recaírem, não sujeitando esses privilégios a qualquer limite temporal. À semelhança do que já sucedia ao abrigo do disposto no artigo 10º, do Decreto-Lei nº49168, de 05 de Agosto de 1969, actualmente revogado, mas cuja redacção era exactamente igual ao do citado artigo 8º, do Decreto-Lei nº73/99, tem-se entendido que esta norma não se limita a afirmar que aquelas dívidas gozam destes privilégios, alterando (eliminando) também o prazo estabelecido no artigo 734º, do Código Civil. Assim, apesar de se referir apenas a juros moratórios, abrange os juros compensatórios, que já estavam compreendidos no artigo 734º, do Código Civil.
A penhora a favor do exequente
A penhora concretiza-se na apreensão jurídica de bens do devedor ou de terceiro, dando origem a um desapossamento no que respeita ao devedor ou terceiro e, cumulativamente, de empossamento quanto ao tribunal, com o escopo de satisfazer os fins da acção executiva.
A penhora consubstancia um direito real das obrigações, impondo-se erga omnes e permitindo o direito de sequela relativamente ao bem penhorado, independentemente da respectiva titularidade, sempre que o devedor não cumpra voluntariamente a obrigação que recai sobre ele, ganhando o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor (cfr. artigo 817.º do Código Civil).
A disciplina adjectiva da penhora encontra os seus trâmites legais nos artigos 821.º a 863.º-B, do Código Processo Civil.
Em termos substantivos, o artigo 819.º, do Código Civil estabelece que, sem prejuízo das regras de registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.
Ora, desde o momento em que o bem é penhorado à ordem do tribunal, em sede de acção executiva, que o exequente beneficia de um direito real de garantia, porque envolvido de sequela, que lhe permite impulsionar a venda dos bens penhorados, ainda que tenham deixado de integrar o património do executado (neste sentido, Salvador da Costa, in “O concurso de credores”, 3ª edição, 2005, Almedina, pág. 24).
Antunes Varela e Pires de Lima (in “Código Civil Anotado”, Vol.I, Coimbra Editora, 4ª Ed., pág.769) esclarecem que os direitos oponíveis ao credor exequente ou ao posterior adquirente são apenas aqueles que não possam ser atingidos pela penhora, incluindo-se aqui os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, como os próprios direitos reais de garantia que o devedor haja entretanto constituído ou aqueles não constituídos por efeito da vontade do executado. Também não são oponíveis ao exequente nem ao adquirente dos bens penhorados na acção executiva os direitos reais de gozo ou de garantia posteriores ao acto da penhora ou ao acto do seu registo que se extinguem com o acto da venda.

No que respeita à preferência resultante da penhora, menciona-se o artigo 822.º, n.º 1, do Código Civil no qual se preceitua que o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer credor que não tenha garantia real anterior. Para se conhecer se a garantia real é anterior ou não à penhora terá de se recorrer às regras do registo, se as mesmas se aplicarem (cfr. artigos 2.º, n.º1, alínea n) e 6.º, n.º1, ambos do Código de Registo Predial). Ora, tal significa que a penhora é um direito real de garantia que permite a preferência de pagamento sobre os demais credores que não disponham de garantia anterior; bem como a sequela, uma vez que permite ao exequente ou credor executar os bens penhorados já integrados no património de terceiros cuja aquisição não foi registada antes da penhora.
Pelo exposto, o crédito reclamado pelo Ministério Público, nos presentes autos, concernente a IMI, goza deste privilégio, abrangendo os juros de mora devidos, nos termos do já citado artigo 8º, do Decreto-Lei nº73/99, de 16 de Março, devendo ser graduado em primeiro lugar, e após o crédito de IRS, sendo o último o crédito exequendo.”
Discordamos aqui do sentenciado pelo Tribunal a quo, relativamente aos créditos de IRS e crédito exequendo.
É verdade que, como alega o Recorrente, a penhora dos autos, incidente sobre um bem imóvel, decorre de um direito de retenção constituído por força da sentença homologatória de transacção e que serve de base à execução. Tal direito de retenção parece não ter sido considerado na sentença, dado que nenhuma referência é feita à sua existência.
Nos termos do artigo 759.º, nº 1 e 2 do Cód. Civil, recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor.

O direito de retenção prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.
Por sua vez, o artigo 111º, do Código do IRS dispõe que para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro ato equivalente.
Nos termos do disposto no artigo 116º, do Código do IRC, para pagamento do IRC relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro ato equivalente.
No caso vertente, tais privilégios têm aqui aplicação dado que está penhorado bem imóvel.
Cumpre, no entanto, realçar o seguinte:
O Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08 de Março veio dar nova redacção ao artigo 751ºdo C.C., esclarecendo que são os privilégios imobiliários especiais que são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.
Assim, o privilégio imobiliário geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.
E entendeu-se que esta alteração teve em vista esclarecer dúvidas pois que não existiam, aquando do começo da vigência do actual C.Civil, os privilégios imobiliários gerais. Assim, ao estabelecer nova redacção ao artigo 751º, o diploma excluiu da previsão deste os privilégios imobiliários gerais, devendo considerar-se norma interpretativa, nos termos do artigo 13º nº 1 do C.Civil. (v.g. Ac. do STJ de 29-03-2012, Proc. 10655/09.5T2SNT-G.L1.S1, e Acs. da Relação do Porto de 06-05-2014, Proc. 1514/13.8YYPRT-A.P1, de 13-05-2014, Proc. 5282/12.2TBMAI-C.P1 e de13-03-2012, Proc. 1617/10.0TBSTS-A.P1, todos in www.dgsi.pt).
Assim, os créditos do Estado por dívida de IRS e de IRC gozam de privilégio imobiliário geral (cfr. arts. 111º do CIRS e 116º do CRIC) e não prevalecem sobre o direito de retenção. Trata-se pois de um privilégio imobiliário geral, já que não recai sobre nenhum imóvel em especial, mas sobre todos os bens imóveis do sujeito passivo.
No mesmo sentido se entendeu no Ac. desta Relação, 12/01/2017, proc. 2742/12.9TBBRG-K.G1: (…)
“II - Os privilégios imobiliários gerais não são oponíveis a terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente, ou seja, é-lhes aplicável o regime do art. 749 do CC e não o regime do art. 751 do CC, por se reportar apenas aos privilégios imobiliários especiais, natureza que aqueles não comportam.” (igualmente, entre outros, veja-se o Ac. do TRL de 18/06/2015, proc. 32-14.1TBALM-A.L1-6).
Beneficiando tais créditos (IRS e IRC) do regime dos privilégios mobiliários gerais, os mesmos, por consequência, não têm qualquer oponibilidade a quaisquer direitos reais, anteriores ou posteriores aos débitos garantidos (artigo 749º do Código Civil). Pois, o privilégio imobiliário geral não constitui, dada a sua generalidade - por não incidir sobre coisas corpóreas certas e determinadas - direito real de garantia nem sequer verdadeiro direito subjectivo. O privilégio apenas se constitui no momento da execução e não no momento da constituição do crédito garantido, não existindo qualquer relação entre o crédito garantido e coisa garante – ( vide Ac. da RP, de 30.05.2017, proc.1688/11.2TBOAZ-A.P1).
Decorre do exposto que, in cau, é irrelevante que a data da constituição/reconhecimento do alegado direito de retenção (11.5.2023) seja posterior à do vencimento do crédito reclamado de IRS, pois que, ainda assim, aquele credito prevalece sobre este.
Assim sendo, atentos os preceitos legais supra indicados, afigura-se-nos que o crédito exequendo deve ser graduado em segundo lugar, assistindo razão ao recorrente.
Por essa razão, procede a apelação, devendo a sentença recorrida ser revogada.
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Sumário

- No crédito de IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário geral sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente, ao abrigo dos artigos 749º do CC e 111º do Código do IRS.

- Assim, os créditos do Estado por dívida de IRS não têm qualquer oponibilidade a quaisquer direitos reais, anteriores ou posteriores aos débitos garantidos, pelo que não prevalecem sobre o direito de retenção.

DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente procedente a apelação e, em consequência, revogar em parte a sentença recorrida, mantendo-a no mais, de forma que a graduação dos créditos reclamados (agora em discussão) fique pela ordem seguinte:
2° - O crédito exequendo.
3º - O crédito por IRS reclamado pelo MP.

Sem custas
Guimarães, 14.03.2024

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Fernanda Proença
Sandra Melo