Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2308/21.2T8GMR.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: RECURSO
LEGITIMIDADE
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DIREITO DE REGRESSO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DEVEDOR/INSOLVENTE
TAXA DE ALCOOLÉMIA
CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- Para se aferir da legitimidade para recorrer tem que se atender à parte dispositiva da decisão, interpretando-a por referência aos fundamentos de facto e de direito nela avocados pelo juiz para alicerçar a decisão constante dessa parte dispositivo, a fim de se aferir se o recorrente foi (ou não) prejudicado pelo decidido.
2- Tendo, em sede de pedido de deferimento liminar da exoneração do passivo restante, uma credora pedido, a título principal, que se julgasse extinto o incidente de exoneração por inutilidade, com fundamento de que o crédito que reclamou e que lhe foi reconhecido pelo administrador de insolvência integra a exclusão da exoneração prevista na al. a), do n.º 2 do art. 245º do CIRE e é o único crédito que foi reclamado e reconhecido pelo administrador de insolvência, ou, subsidiariamente, a deferir-se liminarmente a exoneração do passivo restante, se consignasse, nessa decisão, que esse seu crédito estava excluído da exoneração, tendo, no despacho de deferimento liminar da exoneração do passivo restante, no âmbito da subsunção jurídica nele operada, o tribunal indeferido ambas essas pretensões da credora e deferido, na parte dispositiva da decisão, liminarmente a exoneração do passivo restante, aquela credora dispõe de legitimidade para recorrer da decisão liminar que deferiu liminarmente o pedido de exoneração formulado pelo devedor/insolvente, quando se conforma com esse deferimento liminar da exoneração, pretendendo apenas que, na decisão recorrida, se consigne que a exoneração liminarmente deferida não abrange o seu crédito.
3- O direito de regresso da al. c), do n.º 1 do art. 27º do DL n.º 291/2007, assenta no instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, na medida em que assenta numa causa de pedir complexa, que se traduz: a) na satisfação pela seguradora de indemnização devida aos lesados em acidente de viação em que foi interveniente o veículo por si segurado; b) esse acidente é de imputar culposamente ao condutor desse veículo; e c) esse condutor, no momento do acidente, conduzia aquele veículo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.
4- Como tal, embora o direito de regresso seja um direito novo, que nasce na esfera jurídico-patrimonial da seguradora, com o pagamento da indemnização devida aos lesados no acidente, esse direito de regresso, não abstrai da conduta do condutor do veículo segurado, mas antes assenta na conduta deste, que culposamente causou o acidente, quando seguia ao volante do veículo segurado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.
5- Tendo o devedor/insolvente causado culposamente o acidente quando conduzia o veículo segurado pela recorrente com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida, apesar de à seguradora assistir o direito de regresso sobre o condutor do veículo por si segurado em relação às quantias indemnizatórias que pagou aos lesados nesse acidente, esse direito indemnizatório que assiste à seguradora não integra a previsão da exclusão da exoneração prevista na al. b), do n.º 2 do art. 245º do CIRE, quando se verifica que, esse condutor, foi condenado, por sentença penal transitada em julgado, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário com dolo de conduta mas com negligência consciente de perigo.
6- O dolo de perigo não se confunde com o dolo de dano.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

I. RELATÓRIO.

P. J., residente na Praceta …, freguesia de …, Vizela, instaurou a presente ação de insolvência, requerendo que fosse declarado insolvente e que fosse exonerado do passivo restante.
Para tanto alega, em síntese, ter nascido em 08/11/1982; que quando tinha 20 anos de idade, o seu pai faleceu, num acidente por electrocução, o que lhe causou um profundo trauma e alterações comportamentais que afetaram o seu estado psicológico, começando a apresentar sintomatologia psicótica;
Em 08/09/2012, sofreu um acidente de viação, do qual resultou um ferido grave e danos materiais;
Por sentença proferida em 14/12/2016, no Proc. n.º 1825/12.0TAGMR, do Juízo Local Criminal de Guimarães, Juiz 3, transitada em julgado, foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente, um crime de ofensa à integridade física por negligência e por um crime de condução perigosa de veículo rodoviário;
Nesse processo, a Companhia X Seguros, S.A., foi condenada a pagar aos diversos lesados e à interveniente Y – Companhia de Seguros, S.A., diversas quantias a título indemnizatório, num total de 388.796,72 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal;
Em 27/11/2020, a X Seguros instaurou contra o requerente, ação de processo comum, com vista a exercer o seu direito de regresso, em que foi proferida sentença, transitada em julgado, condenando o requerente a pagar à X a quantia de 401.202,69 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação;
Acontece que, entre 2013 e 2017, o requerente tem estado em situação de desemprego, com exceção de um ou outro período de tempo;
No início de 2008, em virtude de doença do foro psiquiátrico que o afetou e se agravou, o requerente foi sujeito à medida de tratamento compulsivo, em regime ambulatório, com sucessivas reavaliações;
O requerente vive com a mãe e a cargo desta, que é reformada e que recebe uma pensão mensal global de 697,58 euros;
Está desempregado, não tem quaisquer rendimentos, nem é proprietário de quaisquer bens móveis ou imóveis, encontrando-se numa situação de insolvência, não dispondo de meios para pagar à X o montante em que foi condenado.
Por sentença proferida em 14/05/2021, entretanto transitada em julgado, declarou-se a insolvência do requerente, P. J. e, além do mais, nomeou-se administrador de insolvência e dispensou-se a realização da assembleia de credores a que alude o art. 156º do CIRE.
O administrador de insolvência apresentou o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, em que se lê que: “O ora insolvente apresenta problemas económicos e financeiros que inviabiliza o pagamento das suas obrigações assumidas com os credores, não auferindo, na atualidade, quaisquer rendimentos, pelo que, em bom rigor e honrando a verdade, é economicamente dependente de terceiros (progenitora/mãe)”.
Propõe o encerramento do processo, uma vez que, “não foi apurado a existência de quaisquer bens, direitos e/ou valores suscetíveis de serem apreendidos”.
Quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, declara nada ter a opor à concessão desse benefício.
Notificada desse relatório, a X Seguros, S.A., veio pronunciar-se quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, opondo-se ao deferimento desse benefício, alegando que reclamou o seu crédito sobre o insolvente e que este foi reconhecido pelo AI, tratando-se, aliás, do único crédito reclamado e reconhecido;
Trata-se de um crédito indemnizatório por facto ilícito e culposo praticado pelo devedor/insolvente, não estando abrangido pela exoneração do passivo restante, nos termos da al. b), do n.º 2 do art. 245º do CIRE, e que tem por base uma indemnização, que este foi condenado a pagar-lhe, no âmbito de uma ação declarativa, mediante a qual exerceu o seu direito de regresso.
Conclui pedindo que se declare a inutilidade do incidente de exoneração do passivo restante e, subsidiariamente, a entender-se que esse benefício deve ser concedido ao devedor/insolvente, que se consigne que a exoneração liminarmente admitida não deverá abranger o crédito reclamado pela ora credora.
O devedor/insolvente, P. J., respondeu à oposição deduzida pela X Seguros, S.A., concluindo pela improcedência dessa oposição, alegando que, no âmbito do processo penal acima identificado, foi absolvido do crime de condução em estado de embriaguez pelo qual vinha acusado e, bem assim, que todos os ilícitos penais pelos quais foi condenado no âmbito desse processo, foram por factos por ele praticados a título de negligência;
Acresce que a facticidade julgada provada nos pontos 1º a 35º da sentença proferida no âmbito da ação intentada pela X contra si, exercendo o direito de regresso, não permite àquela “fazer as afirmações e retirar as conclusões por si pretendidas no requerimento a que agora se responde, nomeadamente, que o crédito que reclama nos presentes autos provêm de “facto ilícito culposo”, uma vez que, nessa ação, a X “teve em vista exercer o seu direito de regresso contra o insolvente, sem ter por base qualquer facto ilícito doloso”;
Mais advoga que a previsão da al. b), do n.º 2 do art. 245º do CIRE, nunca poderá ser interpretada no sentido de abranger as relações contratuais entre o insolvente e o credor/requerente.
Por decisão proferida em 06/09/2021, determinou-se o encerramento do processo de insolvência e declarou-se o caráter fortuito da insolvência.
Junto aos autos o certificado do registo criminal atualizado do devedor/insolvente, em 29/10/2021, conheceu-se da pretensão deduzida pela X Seguros, S.A., nos termos que se seguem (em sede de subsunção jurídica da facticidade apurada).
“A dúvida que se coloca é a de saber, tal como defende a única credora do Insolvente, se o único crédito reclamado e reconhecido não se encontra abrangido pela exoneração do passivo restante.
Invoca a Credora Oponente que a sentença proferida no âmbito do processo 5976/20.9T8GMR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 4, considerou que assistia à seguradora o direito de regresso, ao abrigo da alínea c), n.º 1, do artigo 27º do DL 291/2007, de 21 de agosto, conforme certidão de sentença já transitada em julgado, junta com a reclamação de créditos. A conduta do devedor, constitui um facto ilícito doloso, pois conduzia o veículo sob influência de álcool, o que não podia desconhecer e mesmo assim quis conduzi-lo com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida, atuação que foi causal do acidente, assim o provocando dolosamente, pelo que o seu crédito não se encontra abrangido pela exoneração do passivo restante, por o crédito desta resultar de uma indemnização devida por factos ilícitos dolosos praticadas pelo devedor, neste caso, pelo Insolvente. Com efeito, o ora Insolvente no dia do acidente e antes da sua ocorrência, voluntariamente e propositadamente ingeriu bebidas alcoólicas, bem sabendo que iria conduzir, mas mesmo assim, decidiu de forma livre e voluntária ingerir bebidas alcoólicas, bem sabendo que lhe era vedado por lei conduzir sob o feito do álcool, pelo que, este consumo de álcool de forma voluntária consubstancia um facto ilícito doloso praticado pelo Insolvente. Invoca ainda a Credora que, na sua Reclamação de Créditos, reclamou o seu crédito na qualidade de indemnização por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, assim, o crédito não se extingue com a concessão da exoneração do passivo restante, além do mais, o único crédito reclamado e reconhecido nos presentes autos é o seu crédito decorrente de indeminização pela prática de facto ilícito e doloso praticado pelo devedor, pelo que inexistindo outros créditos, atento o disposto no artigo 245º, n.º 2 alínea b) do CIRE, deverá o tribunal, salvo melhor opinião em contrário, declarar a inutilidade do incidente de exoneração do passivo restante e, caso assim não se entenda, a entender-se que deva ser concedida ao Insolvente a exoneração do passivo restante, a exoneração liminarmente admitida não deverá abranger o crédito reclamado pela ora Credora.
Em resposta a tal posição, invoca o Insolvente que no seguimento do que já referiu no requerimento apresentado no dia 11.05.2021, remetendo para a douta sentença junta ao requerimento inicial sob o documento número quatro e que foi proferida no âmbito do processo n.º 1825/12.0TAGMR, que correu termos no Juízo Local Criminal de Guimarães, verifica-se que que no seu dispositivo, a páginas 90 e seguintes, que a mesma julgou a “(…) acusação pública parcialmente procedente por provada e, consequentemente (…)” decidiu, na sua alínea a) “Absolver o arguido P. J. da prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n 1, do Código Penal”, sendo que todos os demais factos ilícitos pelos quais a douta sentença decidiu condenar o aqui insolvente e constam das alíneas b), c), d) e f) reportam-se, todos eles, a factos praticados a título de negligência. Além disso, com todo o respeito, a factualidade dada como provada nos pontos 1 a 35 da douta sentença proferida no âmbito do processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 4, sob o processo n.º 5976/20.9T8GMR – junta ao requerimento inicial de insolvência sob o documento número cinco – não permite ao credor reclamante X SEGUROS, S.A., fazer as afirmações e retirar as conclusões por si pretendidas no requerimento a que agora se responde, nomeadamente, que o crédito que reclama nos presentes autos provém de “facto ilícito doloso”. De facto, na ação de processo comum o credor X SEGUROS, S.A. teve em vista a exercer o seu direito de regresso contra o insolvente, sem ter por base qualquer facto ilícito doloso que, insiste-se, não resulta de qualquer das doutas sentenças atrás referidas. Sem prescindir, por mera cautela, sempre se dirá que nunca a previsão do disposto na al.ª b), do n.º 2, do art.º 245.º, do CIRE, poderia ser interpretada no sentido de abranger as relações contratuais entre insolvente e credor requerente. Conclui o Insolvente em concordância com o Ex.mº Senhor Administrador de Insolvência, nomeadamente, no que respeita ao encerramento do processo por insuficiência da massa e, também, no que respeita à admissão do pedido de exoneração do passivo restante formulado nos autos, tudo com as legais consequências.
Ora, o direito de regresso da empresa de seguros ocorre quando satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos (atual redação da al. c) do nº 1 do art. 27º do DL nº 291/2007, de 21 de agosto, aplicável ao caso em apreço).
Decorre do elenco dos factos provados da Ação de Processo Comum registada sob o nº 5976/20.9T8GMR, e que correu termos no Juízo Central Cível de Guimarães - Juiz 4 que foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos: “16. Nessas circunstâncias de tempo e de lugar surgiu a circular o veículo DD, conduzido pelo réu, no sentido oposto e em invasão da hemifaixa por onde seguia o TU, no qual embateu. 17. No momento do acidente, o réu conduzia com uma taxa de alcoolémia de, pelo menos, 1,62 g/l. 18. Nos instantes que antecederam o acidente, o réu imprimia ao DD uma velocidade superior a 70 km/hora, vindo a perder o controlo do veículo na curva acima referida, enviesando à esquerda e passando a circular de forma descontrolada. 19. Passou assim a progredir e ocupar a metade esquerda da variante G. P., atento o sentido rotunda Lidl/rotunda dos BV, na já referida trajetória diagonal, num momento em que o TU, que seguia no sentido oposto, se encontrava a menos de 15 metros de distância. (…) 28. Na área da curva onde ocorreu o acidente e mercê da existência de sinalização vertical, a velocidade dos veículos estava limitada a 50 km/h, em ambos os sentidos. 29. A influência do álcool limitou a capacidade de perceção e alterou a atenção, concentração, tempo de reação e capacidade neuro-motora, determinando um comportamento eufórico do réu, manifestado na velocidade que imprimia ao veículo.”.
No âmbito do processo n.º 1825/12.0TAGMR, que correu termos no Juízo Local Criminal de Guimarães – J3, donde resultou a condenação da Seguradora a pagar, no total, a quantia de € 388.796,72 acrescida de juros à taxa legal, em consequência da procedência dos pedidos cíveis, o ali arguido, e aqui insolvente, foi absolvido da prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n 1, do Código Penal e de que foi acusado e foi condenado em concurso real, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 e 2, do Código Penal, um crime de ofensa à integridade física negligente grave, p. e p. pelo artigo 148º, nº 1 e 3, do Código Penal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal.
Neste último processo foram dados como provados, entre muitos outros, os seguintes factos “1) Na noite de 07 para 08 de setembro de 2012, o arguido esteve um bar em ..., Santo Tirso, onde ingeriu bebidas alcoólicas em quantidades elevadas que o colocaram em estado de completa embriaguez, com o consequente entorpecimento e perturbação das suas capacidades mentais, sensoriais e percetivas, que lhe diminuiu substancialmente os reflexos, as faculdades visuais, o poder de vigilância relativamente ao meio envolvente, com o consequente aumento dos tempos de reação e perceção errada da velocidade imprimida ao veículo, bem como a capacidade de concentração e o discernimento necessários para poder tomar os cuidados, a atenção mínimos e cumprir os sinais, as regras e demais obrigações previstas nas normas estradais exigíveis para manter o veículo automóvel na sua trajetória normal e exercer a condução com o mínimo de segurança. 2) Mas, apesar de ciente da falta desta falta de condições físicas e psicológicas, no dia 08 de setembro de 2012, alguns minutos depois das 05,00 horas, o arguido iniciou marcha com o seu veículo automóvel, ligeiro de passageiros, matrícula DD, conduzindo-o desde ... até Vizela, onde chegou pelas 05,50 horas, passando então a circular pela Variante G. P., na freguesia de ..., Vizela, no sentido Vizela-Guimarães, com destino à sua residência, imprimindo-lhe uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 70 quilómetros por hora. (…) 10) Quando, já próximo das instalações da B., depois de descrever uma curva para a direita, acabava de descrever a contracurva à esquerda, o arguido, em consequência da velocidade em que seguida, da falta da capacidade de reflexos, da concentração e do discernimento mínimos que o exercício da condução exige, provocada pela quantidade de álcool no sangue, sem qualquer outro motivo que justificasse a realização de uma qualquer manobra de emergência a alterar a trajetória normal, por não existir na altura na hemifaixa direita, atento o seu sentido de marcha, qualquer tipo de trânsito ou de obstáculo que o impedisse de nela prosseguir em segurança, perdeu de forma inesperada e repentinamente o controlo do veículo que conduzia e invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem. 11) E foi embater com a parte da frente na parte frontal do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, matrícula TU, conduzido por J. F.. 12) O J. F., quando se apercebeu da presença do veículo automóvel conduzido pelo arguido à sua frente ainda realizou uma manobra de evasão ativa, desviando o seu veículo totalmente para a sua direita e travando. 13) Mas, apesar de tais manobras, o J. F. não conseguiu evitar o embate frontal e por força da violência do impacto, o seu veículo, matrícula TU, foi projetado para cima das chapas das guardas metálicas do passeio do seu lado direito, ficando imobilizado em cima de tais chapas com a parte traseira e a dianteira voltada para o sentido inverso ao da sua circulação. 14) Por sua vez, o veículo DD, conduzido pelo arguido, ficou imobilizado na hemifaixa contrária, atento o seu sentido de marcha e com a frente voltada para o eixo da via. 15) O arguido apresentou então uma taxa de 1,62 g/l de álcool no sangue, conforme exame efetuado ao sangue recolhido na altura. 16) O choque ocorreu na hemifaixa esquerda, atento o sentido de marcha seguido pelo arguido. 19) O arguido agiu de vontade livre e consciente, com o propósito de conduzir na via pública o seu veículo automóvel apesar de saber que, por força da quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições físicas e psicológicas para o exercício da condução com segurança para os demais utentes e que, deste modo, se colocava na iminência da ocorrência de colisão por despiste, quer sozinho, quer com outros veículos automóveis que transitassem ou se encontrassem nas mesmas artérias por onde ele seguia, criando, assim, um sério perigo para a integridade de tais veículos e para a integridade física e a própria vida dos respetivos ocupantes e dos demais utentes da via, dada a situação de forte probabilidade em que foram colocados de virem a sofrer danos materiais, e ofensas e lesões corporais graves. 20) Ferimentos que efetivamente vieram a ocorrer com gravidade na pessoa do J. F., que lhe determinaram a morte, e na pessoa da J. R., que a obrigaram a internamento hospitalar e a um longo período de recuperação com total incapacidade, depois, com as mencionadas sequelas de carácter permanente, para além dos danos provocados nos dois veículos. 21) No decurso do exercício da condução, o arguido atuou ainda em desrespeito ao preceituado nos artigos 13º, nº 1, 81º, nº 1, 27º, nº 1 e 2, al a), 2º, do CE, 61º, nº 1, M1, do RCE, e sem as cautelas e cuidados exigíveis a um condutor medianamente diligente e prudente, e, embora tendo representado como possível que, conduzindo naquelas circunstâncias e naquele estado, iria criar perigo para a integridade física e a vida de terceiras pessoas, como veio a acontecer, não se conformou com essa realização e ocorrência. 22) O arguido estava ciente de que de que a sua conduta não era permitida.”.
Defende o insolvente que ao ter sido absolvido do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, todos os demais ilícitos em que foi condenado o foram a título negligente, pelo que nada obsta à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Não existem quaisquer dúvidas quanto ao crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 e 2, do código Penal e quanto ao crime de ofensa à integridade física negligente grave, p. e p. pelo artigo 148º, nº 1 e 3, do Código Penal.
A questão poderia colocar-se em relação ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal em que foi igualmente condenado.
O art.º 291º, do C. Penal, que prevê e pune o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, no n.º 1, prevê dolo de ação e dolo de perigo, admitindo-se aqui - e nos dois segmentos - qualquer uma das modalidades de dolo (direto, necessário e eventual) - ou seja, a ação do agente e a criação de perigo são intencionais. No n.º 3, prevê dolo de ação e negligência - consciente ou inconsciente - quanto ao evento do perigo (ou seja, o dolo do agente não compreende o perigo concreto criado, afirmando-se, quanto a este, negligência do condutor) - neste n.º 3, o agente sabe e tem plena consciência da sua desenfreada condução, mas não representa (negligência inconsciente) ou representa e afasta a possibilidade (negligência consciente) da criação de um perigo para os bens jurídicos em apreço. E, no n.º 4, prevê a atuação do agente com negligência de ação e de criação de perigo.
Tal como se fez inscrever no douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães de 15/12/2016, consultável em www.dgsi.pt “Com efeito, tem sido unânime na doutrina e na jurisprudência a configuração do ilícito tipificado no preceito como crime de perigo concreto, a cujo preenchimento «não basta a violação grosseira das regras da circulação rodoviária, pois se torna igualmente necessário que, no circunstancialismo do caso concreto, se deduza a ocorrência de um perigo concreto para a vida ou a integridade física, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado» ( Ac. da RP de 9/4/2014, in CJ 2º/244 (Fátima Furtado).). Muito significante é, p. ex., o Ac. da RC de 19/10/2011: «Não basta a existência do estado de embriaguez para o preenchimento do tipo de crime em causa (condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pela al. a), do n.º 1, do art.º 291º, do C. Penal), sendo ainda necessário que exista substrato factual do qual se extraia que a condução em estado de embriaguez foi causadora (na expressão da lei "criou") de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado» ( p. 537/09.6GBPBL.C1-Pilar Oliveira.), «o que valerá por dizer que se caracteriza pela exigência de verificação de um concreto pôr-em-perigo» ( Ac. da RC de 11/2/2009 (p. 137/06.2GBSRT.C1-Fernando Ventura).), «em que a atuação do agente cria perigo efetivo» ( Ac. da RC de 22/5/2013 (257/11.1GAANS.C1- Belmiro Andrade).). Subjetivamente, o tipo de ilícito previsto no normativo comporta diversas cambiantes, como se afirma na doutrina: a) dolo de ação e dolo de perigo quanto ao evento de perigo; b) dolo de ação e negligência quanto ao evento de perigo; c) negligência da ação e negligência quanto ao evento de perigo (Cfr. Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, p. 20.). No primeiro caso, rege o nº 1; no segundo, o nº 2 do preceito; o nº 3 disciplina a última forma de imputação subjetiva possível. Na verdade, também haverá que resultar dos factos provados que, quanto ao exercício da condução, na forma que se apure, o agente atuou livre e conscientemente, sem qualquer circunstância que afastasse a intenção de conduzir daquele modo, e, quanto ao perigo, que o mesmo atuou sabendo que da forma em que o fazia colocava em perigo qualquer dos mencionados bens jurídicos. É justamente isto o que caracteriza a imputação dolosa neste tipo de infração de perigo (no primeiro caso, o do nº 1 do preceito): como este se traduz na probabilidade do dano, o agente atua com dolo de perigo quando representa a possibilidade de o resultado desvalioso ocorrer como consequência necessária da sua conduta. Nesse contexto, e uma vez que não emirja qualquer circunstância que exclua a ilicitude dos factos ou afaste o juízo de censura que deve ser dirigido contra a atitude do agente, por ter atuado contra a norma jurídica, deve o mesmo ser punido pelo analisado crime.”.
No caso concreto, o ora Insolvente foi condenado por um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal.
O perigo concreto para os bens visados proteger pelo normativo em causa foi imputado ao arguido a título negligente, veja-se o facto elencado sob o número 21 do acervo factual tido por provado na sentença que foi proferida no âmbito do processo nº 1825/12.0TAGMR.
Atentando na demais factualidade tida por provada no âmbito do supra identificado processo crime, não obstante o dolo de ação que ali se imputa ao arguido, ora insolvente, traduzido na ingestão de bebidas alcoólicas em momento prévio ao início da condução que decidiu realizar, o referido dolo não compreendeu/não abrangeu o perigo concreto criado, afirmando-se, quanto a este, negligência do condutor, não obstante o arguido ora Insolvente poder saber e ter plena consciência da sua desenfreada condução, não representou (negligência inconsciente) ou representa e afasta a possibilidade (negligência consciente) da criação de um perigo para os bens jurídicos em apreço.
Diz-se expressamente no ponto 21 do elenco dos factos provados do processo crime a que nos temos vindo a referir que no decurso do exercício da condução, o arguido atuou ainda em desrespeito ao preceituado nos artigos 13º, nº 1, 81º, nº 1, 27º, nº 1 e 2, al a), 2º, do CE, 61º, nº 1, M1, do RCE, e sem as cautelas e cuidados exigíveis a um condutor medianamente diligente e prudente, e, embora tendo representado como possível que, conduzindo naquelas circunstâncias e naquele estado, iria criar perigo para a integridade física e a vida de terceiras pessoas, como veio a acontecer, não se conformou com essa realização e ocorrência.
Ora trata-se de um ilícito de perigo concreto e tendo o mesmo sido imputado ao arguido a título negligente, afigura-se-nos, salvo melhor e douta opinião, que não podemos concluir estar perante uma situação de exclusão do artigo 245º nº2 als. b) e c) do CIRE.
Para além de tudo o que vai dito, afigura-se-nos que não menos importante é apurar em que se traduz o direito de regresso no qual radica o direito de crédito da única Credora do Insolvente, ou seja, aferir daquela que é a natureza do direito de regresso.
A causa que subjaz ao direito de regresso é a condução por parte do ora Insolvente com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida e ter dado causa ao acidente e depois de satisfeita a indemnização por parte da Seguradora.
A causa de tal direito de regresso não se traduz em qualquer indemnização devida por facto ilícito doloso praticado pelo Devedor e que haja sido reclamado nessa qualidade, tal como previsto no nº. 2 al. b) do art. 245º do CIRE.
O direito de regresso, trata-se dum direito de crédito que surge “ex novo” por força da extinção da anterior relação creditória e sempre desacompanhado das garantias e acessórios da dívida extinta (Cfr. Acs. da Relação do Porto de 22/05/2019, 16/06/2020 e 12/01/2021, consultáveis em www.dgsi.pt.).
Também no mesmo sentido veja-se ainda o douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra datado de 24/01/2012, disponível igualmente em www.dgsi.pt, segundo o qual “…No tocante à indemnização suportada pela seguradora da responsabilidade civil automóvel por danos causados a terceiros pelo condutor do veículo automóvel que tiver agido sob a influência do álcool, a lei é terminante em qualificar o direito de reembolso da indemnização que satisfez que lhe assiste, como direito de regresso. Ainda que no plano teórico parecesse mais ajustado o enquadramento da situação na categoria técnica da sub-rogação, o caso deve ter-se, ex vi legis, como de verdadeiro direito de regresso. Por força desta qualificação, é patente que o direito de regresso da seguradora se não confunde, de todo, com o direito de indemnização que contra ela foi feito valer pelos lesados: com a satisfação desta indemnização – e só com essa satisfação – surge na esfera jurídico-patrimonial da seguradora um direito de crédito verdadeiramente novo, embora consequente à extinção da relação creditícia de indemnização anterior… .”.
Ora, tratando-se o direito de regresso de um direito de crédito que surge ex novo que não se confunde, de todo, com o direito de indemnização que contra a Seguradora, sua titular, foi feito valer pelos lesados, conclui-se não estar aqui em causa nenhuma das situações a que aludem as alíneas b) e c) do nº 2 do art. 245º do CIRE, não assistindo razão à Credora X Seguros S.A..
De igual modo, e tal como já supra se referiu, não estando preenchida a previsão de qualquer das alíneas do artigo 238º nº 1 do CIRE, conclui-se que não há qualquer elemento que impeça a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo.
De seguida, nessa mesma decisão, admitiu-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, constando essa decisão da seguinte parte dispositiva:
“Não havendo pois motivos para o indeferimento liminar de tal pretensão e afigurando-se-nos razoável a pretensão manifestada, o Tribunal através deste despacho inicial faculta a possibilidade de recurso ao mecanismo em causa ao requerente, na condição de, nos termos do art.º 237º al. b) do CIRE, o devedor, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo satisfaça as condições previstas no art.º 239º do mesmo código, ou seja, que durante esse período de cessão o respetivo rendimento disponível seja cedido a pessoa, que de seguida seja designada, como fiduciário, rendimento esse que será todo o auferido pelo mesmo com ressalva de uma quantia equivalente a uma retribuição mínima mensal garantida, quantia que fica reservada para o devedor (art.º 239º nº 3 al. b) do CIRE).
Determina-se ainda que durante esse período o devedor fique sujeito ao cumprimento das obrigações previstas no n.º 4 do art.º 239º do CIRE.
Para fiduciário nomeio o Sr(ª). Administrador(a) de Insolvência já nomeado nos autos.
Notifique.
Registe e publicite nos termos do art.º 240º e 247º do CIRE”.

Inconformada com o assim decidido, a X Seguros, S.A., interpôs o presente recurso de apelação, em que apresenta as seguintes conclusões:

I) Por decisão datada de 29/10/2021, proferiu o tribunal “a quo” despacho inicial de exoneração do passivo restante e nomeação de fiduciário.
II) Nesse despacho, decidiu o tribunal “a quo” que o único crédito reclamado e reconhecido, isto é, a da única credora, ora Recorrente, estaria abrangido pela exoneração do passivo restante.
III) Sustentou o tribunal “a quo” a sua decisão com os seguintes motivos:
1. O Insolvente foi condenado por um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal, a título negligente e não doloso
2. O direito de regresso da Recorrente não se traduz em qualquer indemnização devida por facto ilícito doloso praticado pelo Recorrido e que haja sido reclamado nessa qualidade, sendo que o direito de regresso trata-se de um direito de crédito “ex novo” por força da extinção da anterior relação creditória e que não se confunde, com a indemnização que contra a Recorrente, sua titular, foi feito valer pelos lesados.
IV) Decisão com a qual não pode a ora Recorrente concordar.
V) Com efeito, o crédito da Recorrente conforme resulta da sua reclamação de créditos constitui indemnização por facto ilícito doloso, não abrangida pala exoneração do passivo restante nos termos do artigo 245º, n.º 2, alínea b) do CIRE.
VI) Na verdade, o crédito reclamado tem por base uma indemnização que o Insolvente, ora Recorrido, foi condenado a pagar no âmbito de uma ação declarativa, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 4, sob o nº de processo n.º 5976/20.9T8GMR, mediante a qual a credora, ora Recorrente, exerceu o seu direito de regresso.
VII) Nessa ação declarativa com vista a obter a condenação do Insolvente no pagamento da quantia de 401.202,69€, acrescida de juros de mora, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento, a credora, ora Recorrente, alegou que celebrou contrato de seguro do ramo automóvel com o ora Insolvente e que este interveio num acidente de viação que correu por sua culpa exclusiva, quando conduzia esse veículo sob influência do álcool, com uma taxa de alcoolémia, de pelo menos, 1,62 G/L.
VIII) Em consequência direta e necessária do acidente resultaram danos para terceiros, sendo que a Reclamante, ora Recorrente, procedeu ao pagamento de indemnizações a terceiros por força do contrato de seguro, exercendo assim na ação o seu direito de regresso ao abrigo do artigo 27º, n.º 1, alínea c) do DL 291/2007, de 21 de agosto.
IX) Prevê o artigo 27º, n.º 1 alínea c) do DL 291/2007, de 21 de agosto que: “1- Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: …
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;”
X) Do acidente resultou a morte de J. F., danos a terceiros, nomeadamente na J. R., viúva que à data dos factos seguia como ocupante no veículo conduzido pelo falecido.
XI) Além do mais, na sequência do acidente de viação em que foi interveniente o Recorrido e do qual resultou um morto, um ferido grave e danos materiais, correu termos processo sob n.º 1825/12.0TAGMR, no juízo Local Criminal de Guimarães – J3.
XII) Neste processo foi proferida sentença já transitada em julgada e na sequência desta, a ora recorrente pagou as indemnizações aos lesados, e instaurou ação declarativa de condenação, mediante a qual exerceu o direito de regresso ao abrigo da alínea c), n.º 1, do artigo 27º do DL 291/2007, de 21 de agosto, contra o Recorrido.
XIII) A sentença proferida no âmbito do processo 5976/20.9T8GMR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 4, considerou que assistia à seguradora o direito de regresso, ao abrigo da alínea c), n.º 1, do artigo 27º do DL 291/2007, de 21 de agosto, conforme certidão de sentença já transitada em julgado, junta com a reclamação de créditos.
XIV) Assim, a conduta do devedor, constitui um facto ilícito doloso, pois conduzia o veículo sob influência de álcool, o que não podia desconhecer e mesmo assim quis conduzi-lo com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida, atuação que foi causal do acidente, assim o provocando dolosamente.
XV) Com efeito, o Insolvente, ora Recorrido, no dia do acidente e antes da sua ocorrência, voluntaria e propositadamente ingeriu bebidas alcoólicas.
XVI) Bem sabendo que iria conduzir, mas mesmo assim, decidiu de forma livre e voluntaria ingerir bebidas alcoólicas, bem sabendo que lhe era vedado por lei conduzir sob o feito do álcool.
XVII) Pelo que, este consumo de álcool de forma voluntária consubstancia um facto ilícito doloso praticado pelo Recorrido.
XVIII) Ora, atendendo a tudo o acima alegado o crédito da ora Reclamante não se encontra abrangido pela exoneração do passivo restante, por o crédito desta resultar de uma indemnização devida por factos ilícitos dolosos praticadas pelo devedor, neste caso, pelo Insolvente, ora Recorrido.
XIX) Além do mais, a ora Recorrente na sua Reclamação de Créditos reclamou o seu crédito na qualidade de indemnização por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor.
XX) Por outro lado, conforme já alegado, na sequencia do acidente de viação em que foi interveniente o Recorrido e do qual resultou um morto, um ferido grave e danos materiais, correu termos processo sob n.º 1825/12.0TAGMR, no juízo Local Criminal de Guimarães – J3.
XXI) No referido processo crime o Recorrido foi absolvido da prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n 1, do Código Penal e de que foi acusado e foi condenado em concurso real, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 e 2, do Código Penal, um crime de ofensa à integridade física negligente grave, p. e p. pelo artigo 148º, nº 1 e 3, do Código Penal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal.
XXII) Pelo que, o Insolvente, ora Recorrido, foi condenado pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal e absolvido da prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p., pelo artigo 292º, n.º 1, CP.
XXIII) Entendeu o tribunal que face à factualidade provada, ser inegável que se encontravam preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivo que permitiam enquadrar a conduta do arguido, ora Recorrido, no artigo 291º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código Penal.
XXIV) No entanto, será de referir que existe uma relação de subsidiariedade expressa entre o crime previsto no artigo 292º, do Código Penal e o crime previsto no artigo 291º, do citado código, ou seja, só terá aplicação a punição prevista naquele artigo na medida em que com o seu comportamento o agente não coloque em perigo concreto os bem jurídicos referidos no nº 1 deste artigo (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, página 1098 e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, p. 741).
XXV) Ora, no caso em concreto, o arguido, ora Recorrido, com a sua conduta, não só pôs em perigo a vida e a integridade física de outrem como efetivamente levou à lesão de tais bens jurídicos.
XXVI) Com efeito, como resulta da comparação entre os dois tipos de ilícito, uma só ação de condução de veículo em estado de embriaguez que crie perigo para a vida ou integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, preenche os dois tipos de ilícito.
XXVII) Contudo, também resulta da mera leitura do artigo 291º, 1, a) e b) do Código Penal que este tipo de ilícito visa proteger os mesmos bens jurídicos que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, sendo que a reação penal é mais intensa, pois no caso do art. 291º, 1, a) e b) do C.P o agente cria ainda um perigo concreto para vida, integridade física ou bens patrimoniais.
XXVIII) De resto, do próprio texto do artigo 292º, 1 do C. Penal resulta claramente que o legislador admite que este crime seja consumido por outros, quando expressa e literalmente refere que o crime é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias “… se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
XXIX) A última parte do preceito tem precisamente o sentido de o crime em causa poder ser consumido por outro que integre a mesma ação (conduta) no seu tipo e a puna mais gravosamente.
XXX) É assim claro que o crime de condução em estado de embriaguez, p. p. pelo art. 292º, 1 do C.P é consumido pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, 1, als a) e b) do C.P, ou seja, os aludidos crimes estão entre si numa relação de concurso aparente, devendo o arguido ser condenado apenas pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. art. 291º, 1, als. a) e b) do C. Penal.
XXXI) Assim, decidiu o douto Acórdão da Relação de Guimarães de 14/12/17, Juiz Relator Élia São Pedro, em www.dgsi.pt e ainda Acórdão da Relação de Lisboa de 05-11-2019, de Juiz Relator Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt
XXXII) Ora, conforme já alegado a conduta do Recorrido, constitui um facto ilícito doloso, pois conduzia o veículo sob influência de álcool, o que não podia desconhecer e mesmo assim quis conduzi-lo com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida, atuação que foi causal do acidente, assim o provocando dolosamente.
XXXIII) Com efeito, o Insolvente, ora Recorrido, no dia do acidente e antes da sua ocorrência, voluntária e propositadamente ingeriu bebidas alcoólicas.
XXXIV) Bem sabendo que iria conduzir, mas mesmo assim, decidiu de forma livre e voluntaria ingerir bebidas alcoólicas, bem sabendo que lhe era vedado por lei conduzir sob o feito do álcool.
XXXV) Pelo que, este consumo de álcool de forma voluntária consubstancia um facto ilícito doloso praticado pelo Recorrido.
XXXVI) Assim, em face do exposto estamos perante a prática de um crime doloso.
XXXVII) Quanto à segunda questão, diga-se que o direito da Recorrente é um direito de regresso que nasce com a satisfação da indemnização aos lesados.
XXXVIII) Contudo, este direito da Recorrente emerge do facto ilícito, culposo e doloso praticado pelo Insolvente, ora Recorrido, que foi o causador do acidente e conduzia sob o efeito do álcool.
XXXIX) Ou seja, o fundamento do direito de regresso exercido pela Recorrente é precisamente devido a uma atuação ilícita, culposa e dolosa do Insolvente, ora Recorrido.
XL) Estando assim, reunidos os pressupostos para o Recorrente exercer o seu direito de regresso.
XLI) Assim, decidiu o douto Ac. da Relação de Guimarães de 08-05-2014, juiz relator Helena Melo, proc. 3360/13.0TBGMR-B.G1, disponível em www.dgsi.pt.
XLII) Veja-se as situações em que temos um crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel que resulta do pagamento feito por este no âmbito de um acidente de viação em que foi responsável o insolvente.
XLIII) Nestes casos a intervenção do FGA decorre também de atuação dolosa do insolvente, que não providenciou pela transferência da responsabilidade civil pelos danos decorrentes da circulação do seu veículo automóvel (inexistência de seguro automóvel válido e eficaz, à data do sinistro).
XLIV) A sub-rogação do FGA radica na circunstância de o veículo interveniente no acidente de viação não ter, na altura do evento, seguro válido e eficaz, sendo que a omissão deste seguro sempre constituirá facto ilícito doloso; tal falta de seguro (imputável ao insolvente) é causa adequada da intervenção do FGA
XLV) Daí que se conclua estarmos perante uma indemnização que cabe na previsão do art.º 245º, n.º 2, na medida em que está em causa uma indemnização devida por facto ilícito doloso praticado pelo devedor.
XLVI) Assim, tem sido decidido conforme acórdão da Relação de Coimbra, de 28-06-2016, Juiz Relator Fonte Ramos, disponível em ww.dgsi.pt
XLVII) O acimo alegado aplica-se à ora Recorrente com as devidas adaptações.
XLVIII) Com efeito, a credora, ora Recorrente, intentou contra o Insolvente, ora Recorrido ação declarativa com vista a obter a condenação do Insolvente no pagamento da quantia de 401.202,69€, acrescida de juros de mora, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento.
XLIX) Nessa ação a credora, ora Recorrente, alegou que celebrou contrato de seguro do ramo automóvel com o ora Insolvente e que este interveio num acidente de viação que correu por sua culpa exclusiva, quando conduzia esse veículo sob influência do álcool, com uma taxa de alcoolémia, de pelo menos, 1,62 G/L.
L) A sentença proferida no âmbito do processo 5976/20.9T8GMR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 4, considerou que assistia à seguradora o direito de regresso, ao abrigo da alínea c), n.º 1, do artigo 27º do DL 291/2007, de 21 de agosto, conforme certidão de sentença já transitada em julgado, junta com a reclamação de créditos.
LI) Assim, a conduta do devedor, ora Recorrido, constitui um facto ilícito doloso, pois conduzia o veículo sob influência de álcool, o que não podia desconhecer e mesmo assim quis conduzi-lo com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida, atuação que foi causal do acidente, assim o provocando dolosamente.
LII) A conduta do Recorrido constitui um facto ilícito – condução sob o efeito do álcool, o que não podia desconhecer e mesmo assim quis conduzir nessas circunstâncias, atuação que foi causal do acidente, assim o provocando dolosamente.
LIII) A indemnização que deu origem ao crédito decorre do acidente de viação em que o Insolvente, ora Recorrido, foi interveniente e responsável, estando a conduzir um veículo sob o efeito do álcool.
LIV) O crédito da Recorrente subsume-se à previsão legal constante no artigo 245º, n.º 2, alínea b) do CIRE, porquanto o mesmo emerge de um facto negligente e de um facto doloso.
LV) Sendo o facto negligente o acidente de viação, o facto doloso é a condução sob o efeito do álcool.
LVI) O condutor que conduz sob o efeito do álcool, sabendo que a sua conduta não é permitida e que é punida por lei, mesmo assim, decide conduzir sob influência do álcool procede assim, com dolo.
LVII) Assim, em face do exposto, deve o crédito da ora Recorrente ser considerado não abrangido pela exoneração do passivo restante, pois que cabe na previsão do artigo 245º, n.º 2, alínea b), do CIRE.
LVIII) Pelo que, a exoneração liminarmente admitida não deve abranger o crédito reclamado pela credora, ora Recorrente.
LIX) O tribunal “a quo” ao decidir como decidiu violou o disposto no artigo 245º, n.º 2, alínea b), do CIRE.
Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado nos moldes acima apontados, nomeadamente que fique consignado que a exoneração do passivo restante não abrange a dívida do insolvente à Recorrente, por se entender que a mesma é abrangida pela exceção prevista no artigo 245º, n.º 2, alínea b) do CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, a única questão que se encontra submetida pela apelante à apreciação desta Relação resume-se em saber se, em sede de subsunção jurídica da facticidade apurada, ao desatender à pretensão formulada pela apelante, em que esta, na oposição que deduziu ao relatório apresentado pelo administrador de insolvência, requereu que se declarasse a inutilidade do incidente de exoneração do passivo restante deduzido pelo devedor/insolvente, ou, subsidiariamente, que se declarasse, no despacho de deferimento liminar desse incidente, que a exoneração não abrangia o crédito por ela reclamado, aí decidindo que tendo, no âmbito do processo n.º 1825/12.0TAGMR, que correu termos no Juízo Local Criminal de Guimarães, Juiz 3, o insolvente sido absolvido do crime de condução em estado de embriaguez, e tendo este aí sido condenado, entre outros, pela comissão de um crime de condução perigoso de veículo rodoviário, e tratando-se este “de um crime de perigo concreto e tendo o mesmo sido imputado ao arguido a título de negligência, (…) não podemos concluir estar perante uma situação de exclusão do artigo 245º, n.º 2, als b) e c) do CIRE” e, bem assim, que fundando-se o direito de crédito da apelante no exercício do direito de regresso desta contra o devedor/insolvente, “tratando-se o direito de regresso de um direito de crédito que surge ex novo, que não se confunde, de todo, com o direito de indemnização que contra a seguradora, sua titular, foi feito valer pelos lesados, concluir-se não estar aqui em causa nenhuma das situações a que aludem as alíneas b) e c) do n.º 2 do art. 245º do CIRE, não assistindo razão à credora X Seguros, S.A.”, indeferindo, assim, ambas as pretensões da apelante (pedido principal e pedido subsidiário), a 1ª Instância incorreu em erro de direito e se, em consequência, se impõe revogar o assim decidido e declarar, na decisão recorrida, que deferiu liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante formulado pelo devedor/insolvente, que a exoneração do passivo restante não abrange a dívida do insolvente à recorrente, por se entender que a mesma é abrangida no art. 245º, n.º 2, alínea b) do CIRE”.
Note-se que conformando-se a apelante com a decisão recorrida, quando nesta se defere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelo devedor/insolvente, pretendendo apenas que se deixe consignado, nessa decisão, que esse deferimento liminar da exoneração do passivo restante não abrange o crédito que reclamou junto do administrador de insolvência e que este lhe reconheceu, suscita-se a questão prévia de se saber se a apelante tem, em relação à decisão recorrida, a qualidade jurídico-processual de “vencida” para efeitos do disposto no n.º 1 do art. 631º do CPC, e se, consequentemente, a mesma dispõe de legitimidade ad recursum.
*
A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na decisão recorrida, a 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade:

1. O insolvente nasceu em -.11.1982 e é natural da freguesia de …, concelho de Guimarães, tendo sido registado como filho de F. S. e M. I..
2. No dia 08.09.2012, o requerente sofreu um acidente de viação, do qual, resultou um morto, um ferido grave e danos materiais.
3. Na sequência do acidente de viação referido no número artigo anterior, correu termos no Juízo Local Criminal de Guimarães – J3, o processo n.º 1825/12.0TAGMR, no qual, em 14.12.2016, foi proferida sentença que, além do mais e em síntese: a) Condenou o requerente, pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º, n.º 1 e 3, com referência ao art.º 144.º, alíneas b) e c) do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.e p. pelo art.º 291.º, n.º 1, al.ª a) e n.º 3, do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão; sendo que, em cúmulo jurídico, condenou o requerente na pena única de 3 (três) anos e 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de o mesmo entregar, no prazo de 6 (seis) meses, a contar do trânsito em julgado da sentença, a quantia de € 600,00 (seiscentos euros), à Associação de Cidadãos Automobilizados; b) Condenou a companhia de seguros X Seguros, S.A. (anteriormente denominada Companhia de Seguros W, S.A.) a pagar aos diversos lesados e à interveniente Y – Companhia de Seguros, S.A., uma quantia que perfazia o montante global de € 388.796,72 (trezentos e oitenta e oito mil setecentos e noventa e seis euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até efetivo e integral pagamento, conforme resulta do documento n.º 4 junto com a petição inicial e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
4. O requerente foi arguido no processo supra referido e interveniente acessório quanto aos pedidos cíveis formulados no mesmo.
5. No dia 27.11.2020, a X Seguros, S.A. (anteriormente denominada Companhia de Seguros W, S.A.) instaurou contra o Insolvente uma ação de processo comum, com vista a exercer o seu direito de regresso contra o mesmo, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 4, sob o processo n.º 5976/20.9T8GMR.
6. No dia 23.04.2021, no âmbito do suprarreferido processo foi proferida sentença que, em síntese, condenou o requerente “(…) a pagar à autora “X Seguros, S.A. a quantia de € 401.202,69 (quatrocentos e um mil, duzentos e dois euros e sessenta e nove cêntimos, acrescida de juros civis à taxa legal, vencidos desde a citação até integral pagamento), conforme resulta do documento nº 5 junto com a petição inicial e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
7. Entre o ano de 2013 e 2017, o Insolvente tem estado quase sempre na situação de desempregado, com a exceção de um ou outro período de tempo em que trabalhou ao abrigo de contratos de trabalho a termo certo, mantendo-se inscrito no Centro de Emprego do Médio Ave, Serviço de Emprego de Guimarães no referido período de tempo, conforme resulta dos documentos juntos sob os números 6 a 9 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
8. No início do ano de 2018, em virtude de doença do foro psiquiátrico que o afetou e se agravou, no âmbito da Lei de Saúde Mental, o Insolvente foi sujeito a um processo para Internamento Compulsivo, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 3, sob o processo n.º 637/18.1T8GMR, e no qual o requerente se mantém sujeito à medida de tratamento compulsivo em regime ambulatório, com sucessivas reavaliações, conforme resulta do documento nº 10 junto com a petição inicial e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
9. O Insolvente vive em casa da sua Mãe, M. I..
10. Um dos medicamentos que o Insolvente tem que tomar, de forma trimestral, tem o custo de € 71,93 (setenta e um euros e noventa e três cêntimos), conforme resulta dos documentos nºs 10 e 11 juntos com a petição inicial e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido, sendo que tem sido a sua Mãe a suportar esse valor.
11. Na presente data, o requerente encontra-se na situação de desempregado à procura de novo emprego e inscrito no Centro de Emprego do Médio Ave, Serviço de Emprego de Guimarães, conforme resulta do documento nº 13 junto com a petição inicial e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
12. O Insolvente não aufere qualquer rendimento, nem é proprietário de quaisquer bens móveis ou imóveis, conforme resulta do documento nº 14 junto com a petição inicial e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. Do Certificado do Registo Criminal do Insolvente apenas consta a condenação no âmbito do processo crime referido em 3 (cfr. CRC junto aos autos a 17/09/2021).
14. Por despacho proferido a 06/09/2021 nos autos principais foi declarado o encerramento do processo com fundamento na insuficiência de bens para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, assim como foi declarado o carácter fortuito da presente insolvência.
15. Por despachos proferidos a 21/02/2019 e 13/10/2020 no âmbito do processo de natureza criminal supra identificado, foi julgada “(…) extinta, pelo cumprimento, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados (…)”, bem como considerada “(…) cumprida a condição inerente à suspensão da execução da pena de prisão (…)” e, a final, declarada “(…) extinta a respetiva pena (…)”, conforme resulta dos documentos juntos a estes autos através de requerimento datado de 11/05/2021 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
*
B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

B.1- Questão prévia: legitimidade da apelante ad recursum.

Conforme acima se enunciou, a apelante conforma-se com a decisão recorrida, que deferiu liminarmente a pretensão do devedor/insolvente em ser exonerado do passivo restante, mas pretende que nela “fique consignado que a exoneração do passivo restante não abrange a dívida do insolvente à recorrente, por se entender que a mesma é abrangida pela exceção à exoneração prevista no artigo 245º, n.º 2, alínea b) do CIRE”, pelo que se suscita a questão prévia de se saber se a apelante dispõe de legitimidade para recorrer dessa decisão.

Lê-se no art. 631º que:
“1- Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
2- As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
3- O recurso previsto na alínea g) do artigo 696º pode ser interposto por qualquer terceiro que tenha sido prejudicado com a sentença, considerando-se como terceiro o incapaz que interveio no processo como parte, mas por intermédio de representante legal”.

Debruçando-se sobre este dispositivo legal, sustenta Alberto dos Reis que: “A legitimidade para recorrer é um aspeto particular da legitimidade das partes. O interesse direto é o requisito essencial da legitimidade” e apenas dispõe de interesse direto em recorrer, impugnando a decisão judicial por via do recurso, a parte prejudicada pela decisão, concluindo, que: “Parte vencida e parte prejudicada são conceitos equivalentes”, mas logo advertindo que, “não basta enunciar esta noção; importa desenvolvê-la e precisá-la. (…), o prejuízo deve pôr-se em equação com as posições que as partes tomaram no processo, com os pedidos, requerimentos ou pretensões que formularam perante o tribunal. Vencida é a parte cuja pretensão foi repelida ou rejeitada; vencedora é a parte cuja pretensão foi desatendida, mas casos existem em que, de acordo com a parte dispositiva da decisão, esta aparentemente (…) foi favorável à parte que recorre e, contudo, não pode considerar-se o recorrente parte ilegítima para impugnar a decisão. (…). Imagine-se que, proposta determinada ação, o réu alega determinado facto, do qual infere que a ação tem de ser julgada improcedente; o juiz considera provado o facto, mas entende que a consequência lógica dele é ser o réu julgado parte ilegítima e por isso, assim o declara, absolvendo-o da instância. É óbvio que, nesta hipótese, a decisão pode ser impugnada por via de recurso, quer pelo autor, quer pelo réu. O autor tem o direito de recorrer, porque a absolvição do réu lhe é desfavorável; o réu tem o direito de recorrer, porque foi vencido quanto ao efeito jurídico que o juiz fez derivar do facto. O réu pretendia que a ação fosse julgada improcedente e ele absolvido do pedido; a absolvição da instância, proferida pelo juiz corresponde a menos do que o réu pedira” (1).
Note-se que a legitimidade para recorrer está intimamente ligada com a extensão dos efeitos do caso julgado que cobre a decisão judicial e que, mesmo aqueles que aderem à doutrina clássica ou tradicional da eficácia do caso julgado, segundo a qual o caso julgado apenas se estende à parte dispositiva da sentença, mas já não aos fundamentos de facto e de direito em que essa parte dispositiva da sentença (a decisão nela proferida) se alicerça e assenta, como é o caso de Alberto dos Reis, defendem que, a fim de se aferir dessa força vinculativa do caso julgado que cobre a decisão emanada e consignada na parte dispositiva da sentença, terá de se interpretar essa parte dispositiva à luz dos fundamentos de facto ou de direito em que o julgador fez ancorar essa decisão final, podendo dessa interpretação decorrer que, na sentença, o juiz resolveu determinadas questões, que se encontram, portanto, cobertas pelo caso julgado, que não resultam terem sido resolvidas nos termos amplos em que se encontra elaborada a parte dispositiva da sentença.
Nesta mesma linha de pensamento pronunciam-se Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ao escreverem que: “em regra, só a parte principal que tenha ficado vencida na causa pode recorrer, importando verificar em que medida a decisão lhe é ou não objetivamente e diretamente desfavorável (critério material) (STJ de 24/10/2019, Proc. 1152/15). É parte vencida aquela que é objetivamente afetada pela decisão, ou seja, a que não haja obtido a decisão mais favorável aos seus interesses, independentemente da posição assumida nos autos (salvo se tal corresponder a renúncia ao recurso ou aceitação tácita da decisão, nos termos do art. 632º) (2).
E pronuncia-se também Lebre de Freitas, ao ponderar que: “Em regra, a legitimidade material coincide com a legitimidade formal, dado que a parte prejudicada pela decisão é aquela que não obteve em juízo aquilo que pediu ou requereu. O art. 680º, n.º 1 (atual art. 631º, n.º 1), ao referir-se à parte vencida, inculca que a legitimidade ad recursum é aferida pela improcedência do pedido ou requerimento da parte. (…). Nem sempre, contudo, a legitimidade formal coincide com a legitimidade processual. Em certas hipóteses a legitimidade ad recursum é apreciada exclusivamente pela legitimidade material, o que significa que é irrelevante se a parte possui legitimidade para recorrer segundo o critério formal. Em alguns casos, o critério material atribui legitimidade à parte que a não possui segundo o critério formal; noutros, o critério material retira legitimidade à parte formalmente legitimada. A primeira situação - aquela em que o critério material concede legitimidade à parte que a não possui segundo o critério formal – abarca as hipóteses em que importa abstrair da formulação de qualquer pedido pela parte e em que a legitimidade para recorrer deve ser aferida pela falta de correspondência da decisão proferida com aquela que melhor tutelaria os interesses da parte. Esta legitimidade material releva nos casos em que há que reconhecer que a parte pode recorrer ainda que não tenha formulado qualquer pedido e, por maioria de razão, na hipótese em que o pedido formulado pode ser substituído por um outro mais favorável à parte. Como o autor não pode deixar de formular um pedido na petição inicial (…), essa legitimidade material só pode ser reconhecida ao réu. Assim, por exemplo, o réu revel pode recorrer da decisão de absolvição da instância, argumentando que devia ter sido absolvido do pedido; a fortiori, o réu que pediu a absolvição da instância pode recorrer com fundamento em que os elementos fornecidos pelo processo impõem uma absolvição do pedido” (3).
Na mesma linha, Pais de Amaral, que após ponderar que: “a parte principal considera-se vencida quando seja prejudicada pela decisão. Significa que, tendo a parte formulado um certo pedido, a decisão não o atendeu ou não o atendeu integralmente. A porção do pedido não atendida, isto é, a porção em que a parte decaiu denomina-se sucumbência”, mas logo acrescenta: “considera-se vencido o réu, que tendo invocado uma exceção perentória e, consequentemente, requerido a sua absolvição do pedido, se depara com uma decisão que, com fundamento em exceção dilatória, o absolveu da instância. Pode, portanto, interpor recurso” (4).
Finalmente, no sentido da doutrina que se vem expondo, também se tem pronunciado a jurisprudência nacional, conforme decorre dos acórdãos do STJ de 03/03/2021, Proc. 28500/15.0T8PRT-B.P2.S1; de 15/02/2017, Proc. 118/13.0TBSTR.E1.S1; RP de 08/02/2021, Proc. 2066.9TJPRT-D.P1, todos publicados na base de dados da DGSI, que aqui se indicam a título meramente exemplificativo.
Deriva do que se vem dizendo que, a fim de se aferir se da legitimidade ad recursum das partes ou dos terceiros efetivamente prejudicados pela decisão (e, bem assim, da extensão do caso julgado que cobre a parte dispositiva de determinada decisão judicial de mérito, transitada em julgado), o tribunal não se pode cingir a uma interpretação meramente literal dessa parte dispositiva, mas antes tem necessariamente de interpretar essa parte dispositiva por referência os fundamentos de facto e de direito nela avocados pelo juiz e que servem de alicerce à decisão contida nessa parte dispositiva.
Com efeito, se a ação foi julgada improcedente, não por via da procedência das exceções invocadas pelo réu (por exemplo: nulidade do contrato por vício de forma ou invalidade deste por falta ou vício de vontade), que o tribunal apreciou e decidiu na sentença, concluindo pela improcedência de tais exceções, mas porque o autor não logrou fazer prova do incumprimento contratual que invoca como fundamento (causa de pedir) da sua pretensão de tutela judiciária (pedido), apesar de, na parte dispositiva da sentença, o juiz ter decidido pela improcedência da ação e pela consequente absolvição do réu do pedido e deste, formalmente, não ser vencido, é-o materialmente, pelo que, dispõe de legitimidade para recorrer dessa sentença.
Caso não o faça, esta transita em julgado quanto àquelas exceções, não podendo, em posterior ação que contra ele venha a ser interposta pelo autor com fundamento no mesmo contrato, ou que ele próprio instaure contra o autor com fundamente nesse mesmo contrato, vir invocar que este último é nulo, por vício de forma, ou que é inválido por falta ou vício de vontade, porquanto, essas questões já se encontram, em definitivo, decididas na primeira ação, por decisão de mérito, transitada em julgado, não podendo, por isso, serem reapreciadas, sob pena de postergação da autoridade do caso julgado que cobre a primeira sentença, transitada em julgado.
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, revertendo ao caso dos autos, nele o devedor/insolvente, P. J., apresentou-se à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante, pondo o acento tónico do seu estado de insolvência na circunstância de, por decisão penal condenatória, transitada em julgado, proferida no âmbito do Processo n.º 1825/12.0TAGMR, do Juízo Local Criminal de Guimarães, Juiz 3, ter sido condenado pela comissão, em autoria material e em concurso real, de um crime de homicídio negligente, um crime de ofensa à integridade física por negligência e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, em que a apelante foi condenada, na qualidade de seguradora do veículo por ele conduzido, a satisfazer aos aí lesados, uma indemnização global de 388.796,72 euros, acrescida de juros de mora; de uma vez satisfeita essa indemnização, a seguradora ter instaurado contra o mesmo a ação n.º 5976/20.9T8GMR, que correu termos no Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz 4, em que exerceu o direito de regresso, em que, por decisão de mérito, transitada em julgado, foi condenado a pagar a essa seguradora a quantia de 401.202,69 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, quando o mesmo não tem condições para satisfazer esse crédito vencido, dado ser pessoa doente, desempregada e não ter quaisquer bens ou rendimento, vivendo a cargo da sua progenitora.
Declarada a insolvência do requerente, P. J., em que se nomeou administrador de insolvência, se fixou em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos, mas em que se dispensou a realização da assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, o administrador de insolvência apresentou esse relatório, em que declara nada ter a opor à pretensão do devedor/insolvente em ser exonerado do passivo restante.
Em anexo a esse relatório, o administrador de insolvência, junta aos autos a lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos a que alude o art. 129º do CIRE, em que se vê que o único crédito que lhe foi reclamado e que reconheceu, respeita ao crédito reclamado pela apelante, no montante de 401.202,69 euros de capital em dívida, e de 7.914,14 de juros de mora já vencidos, reconhecido ao último por “sentença condenatória em sede do Processo n.º 5976/20.9T8GMR”.
Notificado desse relatório, a apelante veio opor-se à concessão do benefício da exoneração, alegando que, conforme resulta da sua reclamação de créditos, o crédito que reclamou constitui um crédito indemnizatório por facto ilícito doloso cometido pelo devedor/insolvente e, como tal, não abrangido pela exoneração, nos termos do art. 245º, n.º 2 do CIRE, porquanto, trata-se de um crédito que lhe foi reconhecido no âmbito da ação declarativa n.º 5976/20.9T8GMR, transitada em julgado, em que exerceu o seu direito de regresso contra o devedor/insolvente, em que alegou que, celebrou contrato de seguro do ramo automóvel com o ora insolvente; que este interveio num acidente de viação, que esse acidente ocorreu por culpa exclusiva daquele, porquanto conduzia o veículo seguro pela opoente sob influência do álcool, com uma taxa de alcoolémia de, pelo menos, 1,62g/l” e, bem assim, que, “em consequência direta e necessária do acidente, resultaram danos para terceiros, sendo que, a ora reclamante procedeu ao pagamento de indemnizações a terceiros por força do contrato de seguro”.
Conclui pedindo, a título principal que, sendo o único crédito reclamado e reconhecido nos presentes autos o seu, o tribunal declare a inutilidade do incidente de exoneração do passivo restante e, subsidiariamente, a entender-se deferir o incidente em causa ao devedor/insolvente, que se declare, no despacho de deferimento liminar do incidente em causa que, a exoneração não abrange o crédito reclamado pela apelante.
O devedor/insolvente opôs-se a esses pedidos da apelante, o que mereceu a adesão da 1ª Instância, que, em sede de “subsunção jurídica da facticidade apurada”, em que apreciou e decidiu o diferendo a contento do devedor/insolvente, concluindo que, o crédito da ora apelante, não se integra em nenhuma das situações das alíneas b) e c), do n.º 2 do art. 245º do CIRE, “não assistindo razão à credora X Seguros, S.A.”, indeferiu ambos os pedidos (principal e subsidiário) da apelante e deferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Flui do que se vem dizendo que, perante a pretensão da apelante que, a título principal, pediu que o tribunal julgasse extinto, por inutilidade, o incidente de exoneração do passivo restante deduzido pelo devedor/insolvente e, subsidiariamente, em caso de deferimento liminar desse incidente, se declarasse que a exoneração não abrangia o crédito reclamado e reconhecido àquela, e a oposição do devedor/insolvente a tais pretensões, a 1ª Instância teve necessidade de decidir esse diferendo como antecedente lógico-jurídico da decisão de deferimento liminar do pedido de exoneração deduzido pelo devedor/insolvente.
Como já se assinalou, a 1ª Instância decidiu esse diferendo em sentido desfavorável à apelante, quer quanto ao pedido principal, quer quanto ao pedido subsidiário, pelo que é indiscutível que a apelante ficou vencida quanto a esses dois pedidos.
O fundamento desses pedidos, isto é, a respetiva causa de pedir, em função da alegação da apelante na reclamação que apresentou junto do administrador de insolvência, assenta na circunstância do devedor/insolvente ter conduzido, no dia 08/09/2012, cerca das 06 horas, o veículo automóvel por si seguro, com uma taxa de alcoolémia de, pelo menos 1,62 g/l, altura em que sofreu um acidente, que vitimou mortalmente o condutor de um outro veículo e que feriu a passageira deste último veículo, e de, por via do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório por danos causados a terceiros, a apelante ter sido condenada a pagar judicialmente, no âmbito do processo crime n.º 1825/12, a indemnização aí fixada aos aí lesados, por decisão de mérito proferida nesse processo, transitada em julgado e, bem assim, no facto de ter satisfeito/pago essa indemnização, assistindo-lhe, por vida disso, direito de regresso sobre o devedor/insolvente, conforme lhe foi reconhecido no âmbito da ação n.º 637/18.1T8GMR, em que, por sentença, transitada em julgado, este foi condenado a pagar-lhe a quantia de 401.202,69 euros, acrescida de juros de mora, desde a citação.
Trata-se de facticidade que tem indiscutivelmente natureza de exceção em relação à pretensão do devedor/insolvente em lhe ser concedido pelo tribunal o benefício da exoneração e que nessa exoneração seja abrangido aquele crédito indemnizatório que foi reconhecido à apelante no âmbito da mencionada ação n.º 637/18, por sentença transitada em julgado.
Ora, tendo a 1ª Instância decidido aquela matéria de exceção em termos desfavoráveis à apelante, desatendendo, quer ao pedido principal por ela formulado, em que pretendia que se declarasse extinto o incidente de exoneração por inutilidade da lide, quer o pedido subsidiário, em que pretendia que, a deferir-se liminarmente o incidente em causa, se declarasse que o seu crédito estava excluído da exoneração, é inegável que a apelante dispõe de legitimidade para recorrer dessa decisão, nos termos do n.º 1 do art. 631º do CPC, porquanto nela ficou vencida.
Acresce que, na decisão recorrida, a 1ª Instância dirimiu o conflito que opunha apelante e devedor/insolvente, decidindo-o desfavoravelmente à apelante, pelo que se trata de decisão que, nos termos do disposto no art. 630º do CPC, a contrario, é recorrível, sendo, aliás, uma decisão de mérito.
Resulta do exposto, que tal como já tinha sido ponderado e decidido pelo aqui relator no despacho liminar de admissão da presente apelação, nada obsta ao conhecimento desta.

B.2- Mérito

Apesar do processo de insolvência ser um processo de execução universal, que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quanto tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º do CIRE), em que o interesse primordial que o legislador visa acautelar, e que acautela, é o dos credores, nos arts. 235º e segs., o CIRE consagrou o denominado instituto da exoneração do passivo restante, permitindo que os insolventes, pessoas singulares, mediante o cumprimento de determinados requisitos, se libertem das dívidas que os onerem e que permaneçam por liquidar findo o denominado período de cessão e recomecem de novo a sua vida económica, libertos desse passivo, e onde, consequentemente, o interesse primordial acautelado pelo legislador, no âmbito do instituto em causa, é o interesse do devedor/insolvente, pessoa singular.
O instituto em causa é um mecanismo específico das insolvências de pessoas singulares e que, por isso, é exclusivamente aplicável aos devedores pessoas singulares, sejam ou não titulares de empresas e sendo-o, independentemente dessas pessoas singulares serem titulares de pequenas, médias ou grandes empresas (5).
O princípio básico do instituto da exoneração é o denominado “start fresh”, visando permitir ao devedor, pessoa singular, que tenha sido declarado insolvente e cuja insolvência cumpra determinados pressupostos e que no decurso do processo de insolvência e, bem assim durante o denominado período de cessão, cumpra com determinadas obrigações, exonerar-se, isto é, libertar-se dos seus débitos que não forem integralmente saldados no processo de insolvência ou durante o período de cessão e que, portanto, em caso de lhe sobrevir melhor fortuna, ainda lhe pudessem ser cobrados pelos respetivos credores, atenta a consideração que no âmbito do sistema jurídico civil nacional, o prazo geral da prescrição é de vinte anos.
Trata-se de uma inovação no sistema jurídico nacional, que visa conjugar os interesses do insolvente, pessoa singular, com os interesses dos respetivos credores, ao permitir que durante o período de cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – o designado período da cessão – o devedor/insolvente ainda fique adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos através do produto da liquidação da massa insolvente, mediante a cedência do denominado rendimento disponível a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores, e permitindo ao devedor que, uma vez findo o período de cessão, tendo cumprido para com os credores todos os deveres que sobre ele impendiam e que lhe foram fixados no despacho de deferimento liminar do incidente, se liberte dos eventuais débitos que permaneçam por solver, possibilitando-lhe a reintegração plena na vida económica, sem o peso desse passivo (6).
O instituto da exoneração constitui, assim, “uma medida de proteção cujo objetivo primordial é reabilitar e dar uma segunda oportunidade ao devedor, pessoa singular, para que possa recomeçar a sua vida, evitando a indigência que nada beneficia a sociedade” (7).
É assim que se lê no n.º 1 do art. 245º do CIRE (a que se referem todas as disposições legais infra indicadas, sem menção em contrário) que: “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217º”.
No entanto, o n.º 2 do mesmo normativo estabelece que: “A exoneração não abrange, porém: a) Os créditos por alimentos; b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade; c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contraordenações; d) Os créditos tributários”.
A discordância da apelante em relação ao decidido pela 1ª Instância prende-se com a circunstância de a seu ver, o crédito que reclamou e que lhe foi reconhecido pelo administrador de insolvência, relativo ao exercício do direito de regresso relativo à indemnização que satisfez aos lesados no acidente, em que foi interveniente o veículo automóvel por si seguro, cuja eclosão, na sua perspetiva, é de imputar, única e exclusivamente, ao devedor/insolvente, por conduzir esse veículo sob influência do álcool, insere-se na previsão da exclusão da exoneração prevista na al. b) do art. 245º.
Se bem entendemos a posição sufragada pela 1ª Instância em sede de decisão recorrida e, bem assim, aquela que é a posição do devedor/insolvente, na resposta ao requerimento apresentado pela apelante, em que esta requeria que se julgasse extinto o presente incidente de exoneração por inutilidade (pedido principal este que a apelante deixou cair no âmbito da presente apelação) ou, subsidiariamente, caso se viesse a deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, que se declarasse que a exoneração não abrangia o crédito por ela reclamado e reconhecido pelo administrador, considerou-se que, tendo o devedor/insolvente, no âmbito do processo criminal n.º 1825/12.9T8GMR, sido condenado pela comissão, em autoria material e em concurso real, de um crime um crime de homicídio negligente, um crime de ofensa à integridade física por negligência e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, em que a aqui apelante foi condenada, na qualidade de seguradora do veículo por este conduzido, a satisfazer aos aí lesados, uma indemnização global de 388.796,72 euros, acrescida dos respetivos juros de mora, mas tendo, nessa mesma decisão criminal, o aqui devedor/insolvente sido absolvido do crime de condução em estado de embriaguez, tendo a apelante, entretanto, satisfeito aos aí lesados a indemnização em que foi, no âmbito dessa sentença criminal, condenada, e tendo esta instaurada ação contra o devedor/insolvente com vista ao exercício do seu direito de regresso, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz 4, sob o n.º 5976/20.9T8GMR, onde, por decisão de mérito, transitada em julgado, o aqui devedor/insolvente foi condenado a pagar à apelante a quantia global de 401.2020,69 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, esse crédito não cai no âmbito de previsão das normas contidas nas als. b) e c) do n.º 2 do art. 245º do CIRE, não estando, por isso, excluído da exoneração do passivo restante deferido liminarmente ao devedor/insolvente, por três ordens de razões, a saber: a) no âmbito daquele processo criminal o devedor/insolvente foi absolvido da prática do crime de condução em estado de embriaguez e todos os crimes pelos quais foi aí condenado, foram-no a título de negligência; b) o crédito reclamado pela apelante e reconhecido pelo administrador judicial, e que foi reconhecido à primeira sobre o insolvente no âmbito da ação cível n.º 5976/20, decorre do exercício pela apelante do direito de regresso contra o devedor/insolvente, o qual consubstancia um direito que nasce ex novo na esfera jurídico-patrimonial daquela, por força da extinção da anterior relação creditória e sempre desacompanhado das garantias e acessórios da dívida extinta, tratando-se, por isso, de um direito que não se confunde, de todo, com o direito indemnizatório que a apelante foi condenada a satisfazer aos lesados no âmbito do identificado processo criminal; e c) esse direito de regresso tem raiz contratual, e daí que, no seguimento da posição perfilhada por Carvalho Fernandes e João Labareda, esse direito de crédito não se encontra abrangido pela exclusão da exoneração do passivo restante da al. b), do n.º 2 do art. 245º do CIRE, posições jurídicas essas com as quais não se conforma a apelante, imputando-lhes erro de direito.
Enuncie-se que perscrutados os enunciados argumentos, dir-se-á que subscrevemos integralmente a posição da 1ª Instância, quando entende que o direito de crédito reclamado pela apelante sobre a insolvência e que lhe foi reconhecido pelo administrador de insolvência no âmbito dos presentes autos, não se insere no âmbito da previsão da norma contida na al. c), do n.º 2 do art. 245º do CIRE.
Com efeito, o direito de crédito detido pela apelante sobre o devedor/insolvente, é um crédito indemnizatório reconhecido àquela, por decisão de mérito, transitada em julgado, proferida na ação n.º 5976/20.9T8GMR, em que o mesmo exerceu o direito de regresso contra o devedor/insolvente, decorrente de, enquanto seguradora do veículo conduzido pelo último, ter sido condenada, no âmbito do processo criminal n.º 1825/12.9T8GMR, a satisfazer aos aí lesados uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes, em consequência direta e necessária da condução ilícita e culposa que aí se quedou provada desenvolvida pelo aqui devedor/insolvente, e de ter satisfeito esse crédito indemnizatório em que foi condenada aos aí lesados, quando os créditos que a al. c) do n.º 2 do art. 245º declara excluídos da exoneração do passivo restante reportam-se a créditos por multas, por coimas ou por outras sanções pecuniárias por crimes ou contraordenações, o que não é naturalmente o caso do crédito indemnizatório detido pela apelante sobre o devedor/insolvente.
No mais, antecipe-se desde já que, não se subscreve integralmente as restantes ilações jurídicas extraídas pela 1ª Instância e sufragadas pelo devedor/insolvente na sua pronúncia quanto à oposição apresentada pela apelante em relação à posição adotada pelo administrador de insolvência.
No entanto, estabelecendo a referida al. b), do n.º 2 do art. 245º que: “A exoneração não abrange as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade”, antes de entrarmos apreciação do decidido pela 1ª Instância, impõe-se fazer algumas precisões.
Tal como decorre linearmente da previsão da norma contida nessa alínea b), a exclusão da exoneração que estatui tem como pressuposto que o crédito excluído da exoneração preencha dois requisitos legais cumulativos, a saber: a) que se trate de um crédito indemnizatório por factos ilícitos e dolosos praticados pelo devedor/insolvente; e b) que esse direito de crédito tenha sido reclamado nessa qualidade, isto é, que o credor o tenha reclamado, no âmbito do processo de insolvência, junto do administrador de insolvência, alegando precisamente facticidade da qual decorra que se trata de um crédito indemnizatório destinado a indemnizá-lo por prejuízos sofridos em consequência direta e necessária de conduta ilícita e dolosa do devedor/insolvente.
Note-se que, este último requisito, prende-se com a circunstância do legislador impor a todos os credores da insolvência, incluindo ao Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, o ónus de reclamarem os seus créditos no âmbito do processo de insolvência, caso nele pretendam obter pagamento, ónus esse que impende, inclusivamente, sobre aqueles que tenham visto o seu direito de crédito reconhecido num outro processo, por decisão de mérito, já transitada em julgado (cfr. art. 128º, n.ºs 1 e 3 do CIRE).
Com efeito, sendo o processo de insolvência um processo de execução universal que tem por finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º, n.º1), não só todos os credores da insolvência têm de ser chamados ao processo de insolvência, para reclamarem os seus créditos e a fim de decidirem o futuro do devedor/insolvente, como apenas aqueles que reclamem os seus créditos e vejam estes reconhecidos e graduados, nesse processo, por sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado, poderão obter pagamento.
Logo, sobre todos os credores da insolvência, impende um ónus de reclamação dos seus créditos, ónus esse que, reafirma-se, impende, inclusivamente, sobre aqueles que já tenham visto o seu crédito reconhecido, por decisão condenatória do devedor/insolvente, transitada em julgada.
Na verdade, se os restantes credores do devedor/insolvente, antes da declaração da insolvência, eram terceiros juridicamente indiferentes em relação ao discutido e decidido, em definitivo, em ações que foram movidas por credores contra o devedor/insolvente, em que este veio a ser condenado, em definitivo, a satisfazer determinado crédito aos seus credores, aí autores, uma vez declarada a insolvência, os restantes credores do devedor/insolvente passaram a ser terceiros juridicamente interessados em relação ao discutido e decidido nessas anteriores ações, pelo que as sentenças condenatórias do devedor/insolvente, nelas proferidas e transitadas em julgado, não operam caso julgado dentro do processo de insolvência.
Por conseguinte, esses créditos têm de ser reclamados no processo de insolvência e podem ser impugnados pelos restantes interessados na insolvência e, inclusivamente, pelo devedor/insolvente.
Aliás, como acima já se assinalou, uma vez declarada a insolvência do devedor, o administrador de insolvência apenas pode efetuar pagamento de créditos que tenham sido reconhecidos na sentença de verificação e de graduação de créditos transitada em julgado (arts. 128º, n.º 3 e 173º).
Os créditos têm de ser reclamados pelos credores da insolvência, incluindo pelo Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que representa, junto do administrador de insolvência, dentro do prazo fixado na sentença declaratória de insolvência para esse efeito (art. 128º, n.ºs 1 e 2).
Uma vez reclamados esses créditos, acompanhados de todos os documentos probatórios de que os reclamantes disponham, é ao administrador de insolvência que, em função desses elementos de prova e de outros que venha a recolher, nomeadamente, junto da contabilidade do devedor/insolvente, que cabe ou não reconhecer os créditos que lhe foram reclamados, tendo este, inclusivamente, o dever de reconhecer créditos que, apesar de não lhe terem sido reclamados, de cuja existência teve conhecimento através dos meios de prova a que teve acesso (art. 129º, n.º 1, in fine).
Para o efeito, nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador de insolvência encontra-se obrigado a elaborar uma lista de todos os créditos por si reconhecidos e não reconhecidos (art. 129º, n.º 1 do CIRE).
Qualquer interessado pode impugnar essa lista (art. 130º, n.º 1).
Em caso de impugnação da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos pelo administrador de insolvência, abre-se então, no âmbito do processo de insolvência, em sede de incidente de verificação de créditos, um incidente processual de natureza declarativa, em que o administrador da insolvência ou qualquer interessado, incluindo o devedor, poderá responder à impugnação apresentada (n.º 1 do art. 131º), cabendo ao juiz, salvo quanto aos créditos que venham a ser aprovados na tentativa de conciliação (art. 136º, n.º 4), após a realização das diligências probatórias, decidir o diferendo, em sede de sentença de verificação e graduação de créditos (8).
Feitas estas considerações jurídicas, nos presente autos, tendo a apelante reclamado o seu crédito junto do administrador de insolvência, alegando ter satisfeito a indemnização em que foi condenada no âmbito do processo criminal n.º 1825/12.9T8GMR, por via de acidente de viação em que foi interveniente o veículo automóvel por si seguro, cuja eclosão imputa à culpa exclusiva do devedor/insolvente, por via de conduzir essa viatura com uma taxa de alcoolémia de, pelo menos, 1,62 g/l, e que esse seu direito de crédito lhe foi, inclusivamente, reconhecido no âmbito da ação n.º 637/18.1T8GMR, que instaurou contra o devedor/insolvente, em que exerceu o direito de regresso que lhe assiste, em que este, por sentença transitada em julgado, foi condenada a pagar-lhe a quantia de 401.202,69 euros, acrescida de juros de mora desde a citação, e tendo o administrador de insolvência reconhecido o crédito assim reclamado pela apelante, conforme resulta do que acima se disse, caso o presente processo de insolvência tivesse seguido o seu curso normal, assistia ao devedor/insolvente o direito a impugnar esse crédito assim reclamado pela apelante e reconhecido pelo administrador de insolvência, questionando, nomeadamente, a alegada fonte ilícita e dolosa que a apelante atribui ao mesmo.
Acontece que tendo, por decisão proferida em 06/09/2021, entretanto transitada em julgado, o presente processo de insolvência sido encerrado por insuficiência da massa insolvente (art. 232º), e tendo o encerramento, nos termos da al. b), do n.º 2 do art. 233º, salvo os casos previstos nesse preceito (não aplicáveis aos autos), como consequência jurídica a extinção da instância de verificação de créditos que se encontre pendente, resulta do exposto que, o diferendo entre apelante e devedor/insolvente a propósito da fonte ilícita e dolosa (ou não) do crédito em causa, carece de ser discutido e dirimido no âmbito do presente incidente de exoneração.
Ora, conforme flui do que antedito, apesar desse diferendo ter de ser decidido no âmbito do presente incidente de exoneração do passivo restante, na respetiva resolução impõe-se observar as regras processuais enunciadas para o incidente de verificação de créditos, nomeadamente, o comando segundo o qual, o trânsito em julgado de sentença proferida no âmbito da ação n.º 637/18.1T8GMR, intentada pela apelante contra o devedor/insolvente, em que aquela exerceu o direito de regresso contra o último, e que o condenou a pagar-lhe a quantia global de 401.202,69 euros, não opera caso julgado dentro do processo de insolvência, assistindo, inclusivamente ao devedor/insolvente o direito a impugnar esse crédito (art. 131º, n.º 1)
Essa sentença, como se disse, não desonera a apelante do ónus de reclamar o seu crédito no processo de insolvência e de, nesta ter de alegar toda a facticidade essencial da causa de pedir que lhe serve de sustentação ao pedido formulado.
Aliás, para além da existência dessa sentença, transitada em julgado, em que é reconhecido o crédito da apelante sobre o devedor/insolvente, não ser necessária para que a mesma possa reclamar o seu crédito junto do administrador (assim se compreendendo, de resto, a previsão legal da al. b), do n.º 2 do art. 245º, quando condiciona a exclusão do benefício da exoneração apenas aos créditos que tenham sido reclamados junto do administrador de insolvência como constituindo créditos indemnizatórios devidos por factos ilícitos e dolosos praticados pelo devedor/insolvente), a mesma não é suficiente para que o administrador (ou o tribunal) possa reconhecer esse crédito (9).
Feitas estas precisões, entendeu a 1ª Instância que, o crédito reclamado pela apelante e reconhecido pelo administrador de insolvência, não consubstancia um crédito indemnizatório por factos ilícitos e dolosos praticado pelo devedor/insolvente, dado que o mesmo resulta do exercício do direito de regresso exercido pela apelante contra o devedor/insolvente, no âmbito da ação n.º 5976/20.9T8GMR, que condenou este a pagar-lhe a quantia de 401.202,69 euros, acrescida de juros de mora, desde a citação, quando o direito de regresso “é um direito de crédito que surge ex novo, que não se confunde, de todo, com o direito de indemnização que contra a seguradora, sua titular foi valer pelos lesados”.
Por sua vez, o devedor /insolvente, na resposta à oposição apresentada pela apelante à posição adotada pelo administrador de insolvência, advogou que o direito de regresso tem fonte contratual e que, portanto, na sequência da posição doutrinária sufragada por Carvalho Fernandes e por João Labareda, não estava abrangido pela exclusão da exoneração prevista na al. b), do n.º 2 do art. 245º.
Em abono destas posições, a 1ª Instância e o devedor/insolvente invocam o acórdão da Relação de Coimbra de 24/01/2012, Proc. 644/10.2TBCBR.A.C1, mas sem qualquer arrimo jurídico, sequer é esta a posição que se perfilha nesse aresto.
Conforme se pondera no identificado acórdão, o direito de regresso não se confunde com o instituto da sub-rogação legal.
A sub-rogação, do ponto de vista, puramente descritivo, traduz-se como “a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento”. Trata-se de um fenómeno de transferência de créditos, que se encontra regulada no capítulo da «transmissão de créditos ou dívidas», mas “cujo fulcro reside no cumprimento”, e em que os direitos do sub-rogado se medem sempre em função do cumprimento (art. 593º, n.º 1 do CC) (10).
A sub-rogação chama-se voluntária, quando se baseia no consentimento do credor ou do devedor (arts. 589º e 590º do CC), ou chama-se legal, quando a investidura do sub-rogado na posição antes ocupada pelo credor se dá por força da lei - ope legis -, independentemente de qualquer declaração de vontade do credor ou do devedor nesse sentido (art. 592º do CC).
Neste sentido escreve-se naquele acórdão que, na “sub-rogação verifica-se, uma sucessão, uma transmissão de crédito, que mantém a sua identidade e acessórios. Apesar da modificação subjetiva operada, o credor sub-rogado continua o direito de crédito anterior, no todo ou em parte, consoante a sub-rogação seja total ou parcial”.
Por sua vez, o direito de regresso é um direito novo, que nasce na esfera jurídica do solvens em consequência do cumprimento da obrigação e que faz nascer na esfera jurídica do devedor um novo dever de prestar.
Em suma, enquanto a sub-rogação é uma forma de transmissão das obrigações, que coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito (conquanto limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao credor primitivo, “o direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta. A sub-rogação envolve um benefício concedido (umas vezes, por uma ou outra das partes; outras, pela lei) a quem, sendo terceiro, cumpre, por ter interesse na satisfação do direito do credor. O direito de regresso, no caso da solidariedade passiva, é uma espécie de direito de reintegração (ou de direito à restituição) concedida por lei a quem, sendo devedor perante o accipiens da prestação, cumpre, todavia, para além do que lhe competia no plano das relações interno “ e “no caso de solidariedade ativa, o direito de regresso tem igualmente o sentido de uma obrigação de restituir imposta a quem, sendo embora credor da prestação por inteiro perante o solvens, recebeu para além do que lhe compete no plano das relações internas” (11).
Posto isto, o DL. n.º 291/2007, de 21/09, que institui o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, prevê (assim como já previa o anterior regime do art. 19º, n.º 1, al. c) do DL. n.º 522/85, de 31/12), no seu art. 27º, n.º 1, al. c), que “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o condutor quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”.
Resulta linearmente do preceito legal que acabamos de transcrever que o legislador qualifica expressamente o direito da seguradora a ser restituída pelo condutor do veículo por si segurado do valor das indemnizações que teve de satisfazer aos lesados de acidente de viação provocado (“tenha dado causa”) por esse condutor, quando conduzia esse veículo, entre outros, com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, como direito de regresso, o que tem merecido críticas quer da parte da doutrina quer da jurisprudência, por entenderem que, mais adequado seria o legislador qualificar esse direito à restituição satisfeita como de sub-rogação legal.
Como quer que seja, assente que o legislador qualificada expressamente esse direito à restituição que reconhece à seguradora como direito de regresso, que, como tal, com o pagamento da indemnização devida aos lesados pelos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais que sofreram em consequência do acidente provocado culposamente pelo condutor quando este, entre outras situações, conduzia o veículo segurado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, faz extinguir o direito indemnizatório que assistia a esses lesados, fazendo nascer, ex novo, na esfera jurídica-patrimonial da seguradora um direito a ser restituída pelo condutor do veículo pelo montante despendido na satisfação daquela indemnização aos lesados, conforme é entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico, esse direito de regresso tem natureza exclusivamente extracontratual, porquanto, é um direito que, nasce na esfera jurídica da seguradora ope legis, com o pagamento da indemnização aos lesados do acidente (e não por força do incumprimento, pelo condutor do veículo segurado de qualquer disposição contratual) e decorre do comportamento do condutor dessa viatura, que causou/provocou culposamente o acidente, quando conduzia o veículo segurado com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida (12).
Destarte, conforme é entendimento pacífico, a causa de pedir do direito de regresso que assiste à seguradora à restituição da indemnização que satisfez aos lesados sobre o condutor do veículo segurado, é complexo, uma vez que depende da alegação e prova pela seguradora dos seguintes pressupostos legais cumulativos: a) liquidou a indemnização devida aos lesados por via dos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais que sofreram no acidente em que foi interveniente o veículo por si segurado; b) esse acidente foi provocado (causado) culposamente pelo condutor deste último veículo; e c) esse condutor, no momento do acidente, conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.

O que se acaba de dizer é, de resto, aquilo que expressamente se escreve no acórdão da Relação de Coimbra citado pela 1ª Instância e pelo devedor em abono das respetivas teses, mas sem razão, onde se lê que:
Em face destes parâmetros de repartição das formas de responsabilidade do direito positivo, é patente que o dever de reembolso que, segundo a autora vincula o réu, não resulta da violação de qualquer dever contratual, não procede de qualquer incumprimento contratual, antes emerge da infração de um interesse extracontratual: a lesão do bem integridade física de duas pessoas. À luz da causa pretendi desenhada pela apelante na petição inicial, o dever de restituição a que o apelado está adstrito não assenta na violação, pelo demandado, de deveres contratualmente impostos ou assumidos; a pretensão indemnizatória, que a recorrente afirma ter adquirido, funda-se, isso sim, dado que o interesse atingido é extracontratual, numa responsabilidade puramente delitual.
Fundando-se a pretensão de que a autora se diz titular numa responsabilidade ex delicto, a sujeição do crédito correspondente aos prazos de prescrição específicos da responsabilidade aquiliana é meramente consequencial.
Todavia, esta conclusão está longe de resolver todos os problemas, dada a dualidade dos prazos de prescrição do dever de reparação fundado na responsabilidade extracontratual disposta na lei (artº 498 nºs 1 e 3 do Código Civil).
No caso que nos ocupa, a recorrente faz derivar o seu direito de crédito deste facto complexo: por força do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel por danos causados a terceiros com o veículo automóvel …, que concluí com o réu, procedi ao pagamento de indemnizações, por danos patrimoniais e não patrimoniais, às pessoas que sofreram lesões corporais – F… e M… – aos estabelecimentos hospitalares que os tratarem e assistiram e, bem assim, ao perito que interveio no processo de regularização do sinistro; como este ficou a dever-se à atuação sob o efeito do álcool do segurado e condutor do veículo seguro, gozo, relativamente àquele, do direito de regresso por tudo o que paguei aos titulares do direito à indemnização.
É discutível, ao menos no domínio estritamente teórico, se o direito de reembolso que a lei reconhece ao segurador deve ser qualificado como sub-rogação antes como direito de regresso”.
E, inclusivamente, acaba-se por aplicar ao direito de regresso (na sequência, aliás, da posição uniforme da jurisprudência) o prazo prescricional previsto no art. 498º do CC que, como é sabido, é o aplicável à responsabilidade civil extracontratual, posto que o aplicável à responsabilidade contratual é o prazo prescricional geral, que ascende a vinte anos.
Aqui chegados, embora seja certo que o direito de regresso faz nascer ex novo, com o cumprimento pela seguradora da prestação indemnizatória devida aos lesados de acidente em que foi interveniente o veículo por ela segurado um direito a ser restituída pelas quantias pagas pelo condutor desse veículo, não se subscreve a ilação da 1ª Instância quando, a partir desse facto, extrai a conclusão que esse direito de regresso não tem cariz indemnizatório e não assenta na conduta ilícita e culposa do condutor do veículo segurado, quando manifestamente assim não é, na medida em que, como dito, para além do direito de regresso assentar no cumprimento pela seguradora da indemnização, assenta no facto do acidente ter sido culposamente causado pelo condutor do veículo segurado (logo, não há direito de regresso em relação a acidentes em que a responsabilidade da seguradora pela satisfação da indemnização devida aos lesados nessa acidente assenta no risco) e no facto deste, na altura do acidente, conduzir esse veículo com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente permitida.
Acresce que a ilação do devedor/insolvente de que o direito de regresso tem raiz contratual, não tem qualquer arrimo jurídico possível.
Procedem, neste conspecto, os erros de direito que a apelante assaca à decisão recorrida.
Prosseguindo, passando ao segundo argumento aduzido na decisão recorrida, nela entendeu-se que, não se verificava a exclusão da exoneração da al. b), do n.º 2 do art. 245º, uma vez que, no âmbito do processo criminal n.º 185/12.0TAGMR, por sentença transitada em julgado, o aqui devedor/insolvente foi condenado pela prática, como autor material e em concurso real, de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo art. 137º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art. 148º, n.ºs 1 e 3, com referência ao art. 144º, als. b) e c), ambos do Código Penal, e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo art. 291º, n.ºs 1, al. a) e 3 do mesmo Código, a título de negligência, e foi absolvido da prática do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292º, n.ºs 1, do Código Penal, pelo qual se encontrava acusado, entendimento este com a qual não se conforma a apelante, pelo que urge verificar se lhe assiste razão.
Tal como acima se escreveu a propósito das sentenças cíveis, também em relação às penais, a parte dispositiva destas não se compadece com uma interpretação meramente literal do que aí ficou decidido, mas antes, essa parte dispositiva, tem de ser interpretada por referência aos fundamentos de facto e de direito que na sentença foram aduzidos pelo julgador em sede de fundamentação de facto e de direito para ancorar essa decisão vertida na parte dispositiva.

Ora, compulsada a sentença proferida no âmbito daquele processo criminal n.º 185/12.0TAGMR, devidamente transitada em julgado, verifica-se que nela foram julgados os seguintes factos:

1- Na noite de 07 para 08 de setembro de 2012, o arguido esteve num bar em ..., Santo Tirso, onde ingeriu bebidas alcoólicas em quantidades elevadas que o colocaram em estado de completa embriaguez, com o consequente entorpecimento e perturbação das suas capacidades mentais, sensoriais e percetivas, que lhe diminui substancialmente os reflexos, as faculdades visuais, o poder de vigilância relativamente ao meio envolvente, com o consequente aumento dos tempos de reação e perceção errada da velocidade imprimida ao veículo, bem como a capacidade de concentração e o discernimento necessários para poder tomar os cuidados, a atenção mínimos e cumprir os sinais, as regras e demais obrigações previstas nas normas estradais exigíveis para manter o veículo automóvel na sua trajetória normal e exercer a condução com o mínimo de segurança.
2- Mas, apesar de ciente desta falta de condições físicas e psicológicas, no dia 08 de setembro de 2012, alguns minutos depois das 05.00 horas, o arguido iniciou marcha com o seu veículo automóvel, ligeiro de passageiros, matrícula DD, conduzindo-o desde ... até Vizela, onde chegou pelas 05.50 horas, passando então a circular pela Variante G. P., na freguesia de ..., Vizela, no sentido Vizela-Guimarães, com destino à sua residência, imprimindo-lhe uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 70 quilómetros por hora.
3- Na mesma artéria, em sentido contrário, vinha o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula TU, conduzido por J. F., nela seguindo também como passageira a J. R., que transitava pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Guimarães-Vizela.
(…).
10- Quando, já próximo das instalações da B., depois de descrever uma curva para a direita, acabava de descrever a contracurva à esquerda, o arguido, em consequência da velocidade em que seguia, da falta de capacidade de reflexos, da concentração e do discernimento mínimos que o exercício da condução exige, provocada pela quantidade de álcool no sangue, sem qualquer outro motivo que justificasse a realização de uma qualquer manobra de emergência, altera a trajetória normal, por não existir na altura na hemifaixa direita, atento o seu sentido de marcha, qualquer tipo de trânsito ou obstáculo que o impedisse de nela prosseguir em segurança, perdeu de forma inesperada e repentinamente o controlo do veículo que conduzia e invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem.
11- E foi embater com a parte da frente na parte frontal do veículo automóvel ligeiro de passageiros, matrícula TU, conduzido por J. F..
(…).
15- O arguido apresentou então uma taxa de 1,62 g/l de álcool no sangue, conforme exame efetuado ao sangue recolhido na altura.
16- O choque ocorreu na hemifaixa esquerda, atento o sentido de marcha seguido pelo arguido.
17- Em consequência deste embate e devido à violência do impacto o J. F. sofreu as lesões (…), que foram causa direta e necessária da sua morte.
18- E a J. R. sofreu as lesões corporais (…).
19- O arguido agiu de vontade livre e consciente, com o propósito de conduzir na via pública o seu veículo automóvel apesar de saber que, por força da quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições físicas e psicológicas para o exercício da condução com a segurança para os demais utentes e que, deste modo, se colocava na iminência da ocorrência de colisão por despiste, quer sozinho, quer com outros veículos automóveis que transitassem ou se encontrassem nas mesmas artérias por onde seguia, criando, assim, sério perigo para a integridade de tais veículos e para a integridade física e a própria vida dos respetivos ocupantes e dos demais utentes da via, dada a situação de forte probabilidade em que foram colocados de virem a sofrer danos materiais, e ofensas e lesões corporais graves.
20- Ferimentos que efetivamente vieram a ocorrer (…).
21- No decurso do exercício da condução, o arguido atuou ainda em desrespeito ao preceituado nos artigos (…), e sem as cautelas e cuidados exigíveis a um condutor medianamente diligente e prudente e, embora tenha representado como possível que, conduzindo naquelas circunstâncias e naquele estado, iria criar perigo para a integridade física e a vida de terceiras pessoas, como veio a acontecer, não se conformou com essa realização e ocorrência.
22- O arguido estava ciente de que a sua conduta não era permitida”.

Já em sede de subsunção da facticidade apurada, lê-se na mesma sentença, a propósito do crime de condução de veículo em estado de embriaguez:
“O arguido veio ainda acusado da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (…).
(…)
O elemento objetivo do tipo legal consubstancia-se no ato de conduzir veículo com ou sem motor, isto é, coloca-lo em movimento no trânsito, em via pública ou equiparada (…), apresentando uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l.
(…).
O elemento subjetivo fica preenchido quando o crime é cometido com dolo ou negligência, traduzindo-se a conduta dolosa na vontade, livre e consciente, de conduzir veículos com motor, em via pública ou equiparada, estando o condutor ciente de, pelo facto de ter ingerido bebidas alcoólicas nos momentos anteriores a ter iniciado a condução, apresentar um teor de álcool no sangue dentro dos valores proibido para essa atividade, sendo totalmente irrelevante, para o preenchimento do tipo, se o agente se sente ou não seguro na condução ou se esta na realidade é segura, pois basta que apresente uma TAS superior a 1,2g/l.
(…)
Sucede, contudo, que, a nosso ver, a factualidade provada é suscetível de integrar, antes, a prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
(…).
Exige-se, para o preenchimento dos elementos típicos objetivos, a verificação cumulativa das seguintes circunstâncias: i) a condução de veículo na via pública ou equiparada; ii) não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência do álcool (…); iii) a criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de elevado valor; e iv) o nexo de causalidade entre a condução no estado referido na alínea a) ou em violação das referidas regras estradais e o perigo criado.
(…).
Já quanto ao tipo subjetivo, resulta do normativo em análise que o mesmo pode ser composto pelo dolo do agente, quer quanto à conduta de conduzir, quer quanto ao perigo, como pelo dolo da conduta e pela negligência do perigo, quer ainda pela negligência da conduta e do perigo (…).
Ou seja e quanto ao disposto no n.º 1 do artigo 291º, é necessário o dolo relativamente a todos os elementos do tipo legal objetivo, incluindo, por conseguinte, a criação de perigo para os bens jurídicos enumerados. É suficiente o dolo eventual, pelo que basta que o agente tenha a consciência do perigo decorrente da sua conduta para outras pessoas ou para bens alheios de valor elevado, e se tenha conformado com essa situação (…).
(…)
Feitas estas considerações, atentos os considerandos expostos supra quanto à negligência e, bem assim, a factualidade provada, é inegável que se encontram preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos que nos permitem enquadrar a conduta do arguido no artigo 291º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 do Código Penal.
De referir que existe uma relação de subsidiariedade expressa entre o crime previsto no artigo 292º do Código Penal e o crime previsto no artigo 291º, do citado Código, ou seja, só terá aplicação a punição prevista naquele artigo na medida em que o seu comportamento o agente não coloque em perigo concreto os bens jurídicos referidos no n.º 1 deste artigo (…).
Ora, in casu, o arguido, com a sua conduta, não só pôs em perigo a vida e a integridade física de outrem, como efetivamente levou à lesão de tais bens jurídicos”.
Decorre do texto da sentença criminal que se acaba de transcrever que, apesar de nela o aqui devedor/insolvente ter sido efetivamente absolvido (em termos formais) do crime de condução em estado de embriaguez por que vinha acusado, entendeu-se que o mesmo preencheu, material e substancialmente, todos os elementos objetivos e subjetivos típicos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a título doloso.
No entanto, porque se entendeu que entre o crime de condução em estado de embriaguez e o crime de condução perigosa de veículo rodoviário intercede uma relação de subsidiariedade, sempre que o agente coloque em perigo concreto, isto é, efetivo, os bens jurídicos protegidos pelo n.º 1 do art. 292º do Código Penal (perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado), que são os mesmos bens jurídicos que são protegidos, mas em abstrato, pelo tipo legal de condução em estado de embriaguez, o arguido apenas pode ser condenado pelo crime de condução de condução perigosa de veículo rodoviário.
Tal como se lê nessa sentença penal, nessa situação, existe um concurso aparente (não real, verdadeiro ou material) entre ambos os tipos legais, em que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário consome o crime de condução em estado de embriaguez.
Logo, como bem diz a apelante, o devedor/insolvente, no âmbito do identificado processo criminal, apenas foi condenado pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário e foi absolvido do crime de condução em estado de embriaguez, devido a se ter entendido que entre ambos os tipos legais de crime, em determinadas circunstâncias, ocorre uma relação de concurso aparente, e não porque se tivesse entendido que este não tinha, material e substancialmente, incorrido na comissão do crime de condução em estado de embriaguez, conforme efetivamente se entendeu.
Porém, porque, concomitantemente, o devedor/insolvente também incorreu na comissão do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, e como ambos os tipos legais de crime protegem os mesmos bens jurídicos (a vida, a integridade física e o património de outrem), mas porque, enquanto o crime de condução em estado de embriaguez é um crime de perigo abstrato, em que o agente incorre no cometimento desse crime com a mera condução de veículo em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l, independentemente de colocar ou não em perigo efetivo a vida, a integridade física ou o património de terceiros, enquanto o crime de condução perigosa de veículo rodoviário é um crime de perigo concreto, isto é, para incorrer na sua prática, o agente tem de conduzir veículo em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, mas adicionalmente tem de colocar em perigo efetivo a vida, a integridade física ou o património de terceiros (logo, este crime é um mais em relação ao de condução em estado de embriaguez), absolveu-se o devedor/insolvente do crime de condução em estado de embriaguez por este, em suma, já estar contido no crime de condução perigosa de veículo rodoviário, pelo qual foi cominado.
No entanto, como dito, sendo o crime de condução em estado de embriaguez um crime de perigo abstrato, contrariamente ao entendimento sufragado pela apelante, não basta que o devedor/insolvente tenha, material e substancialmente, incorrido na comissão do crime em referência para que lhe assista o direito de regresso sobre o condutor referente às indemnizações pagas aos lesados no acidente, posto que, conforme supra se disse e aqui se reafirma, para que esse direito de regresso assista à seguradora é necessário que esta alegue e prove (além do pagamento da indemnização devida aos lesados no acidente e da condução do veículo segurado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida), que o condutor do veículo por si segurado (no caso, o devedor/insolvente) “tenha dado causa” ao acidente, isto é, que o tenha provocado culposamente.
Ora, porque provocar o acidente “culposamente” tanto pode abranger o dolo (nas suas diversas modalidades: direto, necessário ou eventual) como a negligência (consciente ou inconsciente) e podendo, aliás, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, do ponto de vista subjetivo, ser cometido tanto na modalidade de dolo, como de negligência (13), ainda que o devedor/insolvente tenha causado culposamente o acidente quando conduzia o veículo segurado na via pública com uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,2g/l, se tal é suficiente para que assista o direito de regresso à apelante sobre o mesmo em relação às quantias indemnizatórias que pagou aos lesados nesse acidente, poderá ser insuficiente para se verificar a exclusão da exoneração prevista na alínea b), do n.º 2 do art. 245º do CIRE, que exige o dolo.
No caso dos autos, verifica-se que o devedor/insolvente, na sequência daquele acidente, foi condenado, por decisão penal transitada em julgado, pela comissão, em autoria material e em concurso real, de um crime de homicídio negligente e de um crime de ofensa à integridade física por negligência.
Quanto ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, o devedor/insolvente foi condenado, no âmbito daquela decisão penal, transitada em julgado, nos termos do disposto no art. 291º, n.ºs 1, al. a) e 3 do Cod. Penal, isto é, por ter agido com dolo de conduta, mas com negligência quanto ao perigo que criou.
Dito por outras palavras, o arguido foi condenado pela comissão do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, por dolosamente ter conduzido o veículo segurado pela apelante, em via pública, com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida – cfr. facticidade julgada provada nos pontos 1º e 2º daquela sentença criminal (dolo de conduta) - e “representou como possível que, conduzindo naquelas circunstâncias e naquele estado, iria criar perigo para a integridade física e a vida de terceiras pessoas, como veio a acontecer” (perigo concreto) mas, “não se conformou com essa realização e ocorrência” – facticidade julgada provada no ponto 21º da mesma sentença (negligência consciente quanto ao perigo).
Destarte, salvo o devido respeito por entendimento contrário, ao decidir que não se verificava a exclusão da exoneração prevista na alínea b), do n.º 2 do art. 245º do CIRE, a 1ª Instância não incorreu no erro de direito que a apelante lhe assaca, mas quem se equivoca é a própria apelante que confunde dolo de perigo com dolo de dano, quando se trata de realidades distintas.
Para que fosse possível concluir que as quantias indemnizatórias pagas pela apelante aos lesados no acidente foram por ela satisfeitas “por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor” era necessário que se verificasse: ou dolo direto do devedor/insolvente - situações em que este representou ou prefigurou no seu espírito determinado efeito da sua conduta e quis esse efeito como fim da sua atuação, isto é, previu que conduzindo o veículo, no estado de embriaguez em que o conduzia, ia ter um acidente, de que resultaria a morte e as ofensas corporais dos ocupantes de veículo ou veículos automóveis com que viesse a colidir e quis efetivamente causar a morte e ofensas corporais dos ocupantes desses veículos -, ou o dolo necessário – o devedor/insolvente, não quis causar diretamente a morte e as ofensas corporais dos ocupantes desses veículos, mas, por exemplo, pretendia chegar rapidamente a casa a fim de ir descansar, mas previu que conduzindo naquela estado de embriaguez e a alta velocidade ia ter um acidente e provocar aqueles resultados (morte e ofensas corporais) como consequência necessária, segura da sua conduta -, ou o dolo eventual – o devedor/insolvente previu que, conduzindo naquele estado, podia ir colidir com uma outra viatura e provocar a morte e ofensas corporais nos seus ocupantes e insensível para com a sorte destes, conformou-se com essa possibilidade e adotou a sua conduta, pondo-se a conduzir o veículo, ou continuando a conduzi-lo naquele estado em que se encontrava, aceitando que pudesse vir a tirar a vida ou a lesar a integridade física dos eventuais veículos com que viesse a colidir (14).
Ora, nada disto é a situação que se verifica nos autos, posto que conforme foi julgado provado, em definitivo, naquela sentença criminal, o aqui devedor/insolvente “embora tenha representado como possível que, conduzindo naquelas circunstâncias e naquele estado, iria criar perigo para a integridade física e a vida de terceiras pessoas, como veio a acontecer, não se conformou com essa realização e ocorrência – cfr. ponto 21º da facticidade nela julgada como provada -, isto é, o mesmo nem sequer agiu com dolo de perigo, mas apenas com negligência consciente de perigo, o que naturalmente não equivale, respetivamente, a dolo de dano ou a negligência consciente de dano.
Neste sentido escreve Paulo Pinto de Albuquerque: “O dolo de perigo não se confunde com o dolo de dano. O dolo de perigo não pode corresponder a mais do que uma negligência consciente de dano (…). A negligência consciente de perigo implica necessariamente um juízo conclusivo negativo sobre o perigo, que é conforme com uma negligência inconsciente de dano. A negligência inconsciente de perigo só se distingue da negligência inconsciente de dano em virtude da diferente natureza e intensidade dos deveres de cuidado violados pelo agente” (15).
Ora, tendo a apelante pago a indemnização aos lesados pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreram em consequência da morte do condutor do veículo e das lesões corporais sofridas pela passageira desse veículo, que foi colidido pelo veículo conduzido pelo devedor/insolvente (segurado pela apelanto), quando este invadiu a hemifaixa de rodagem contrária, com uma taxa de alcoolemia de 1,62g/l, por onde aquele outro veículo circulava dentro da sua mão de trânsito, se é certo que este acidente é de imputar culposamente, isto é, negligentemente ao devedor/insolvente, assim se compreendendo, aliás, que o mesmo tenha, no âmbito daquele processo criminal, sido sancionado, a título de autor material pela prática, em concurso real, de um crime de homicídio negligente, um crime de ofensas corporais negligentes e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, este com dolo de conduta e com negligência consciente de perigo, essa indemnização satisfeita pela apelante não pode ser imputada a uma conduta dolosa do devedor/insolvente, porquanto este nem sequer se conformou com o perigo de lesar a vida e a integridade física de terceiros, perigo esse que previu e que efetivamente criou, mas com o qual não se conformou.
Dispõe o art. 623º do CPC, que “a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”.
Logo, a sentença penal condenatória, transitada em julgado, constitui, em relação a terceiros, isto é, a quem não foi parte no processo criminal em que aquela foi proferida e em que, portanto, não teve oportunidade de exercer o seu direito de defesa, presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação, em qualquer ação de natureza civil em que se discutam relações jurídica dependentes ou relacionadas com a prática da infração.
Em relação a quem foi parte no processo criminal em que a sentença condenatória transitada em julgado foi proferida, como é o caso do aqui devedor/insolvente, que aí arguido, e da aqui apelante, que foi demandada cível, a referida presunção é inilidível, dado que ambos tiverem oportunidade de, nesse processo, apresentar a sua defesa, diversamente do que acontece em relação aos terceiros alheios ao processo criminal em que aquela foi proferida (16).
Destarte, tendo no âmbito do referido processo penal, por decisão transitada em julgado, o devedor/insolvente sido condenado pela comissão de um crime de homicídio negligente, um crime de ofensas corporais negligentes e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, este previsto e punido pelo art. 291º, n.ºs 1, al. a) e 3 do Cod. Penal, ou seja, com dolo de conduta, mas com negligência consciente de perigo, essa sentença, face à confiança na averiguação dos factos feita pelo juiz penal, constitui presunção inilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, no âmbito dos presentes autos de insolvência, pelo que, o crédito indemnizatório reclamado pela apelante e que lhe foi reconhecido pelo administrador de insolvência, não integra a exceção à exoneração a que alude a al. b), do n.º 2 do art. 245º do CIRE, porquanto, não consubstancia um crédito indemnizatório devido por factos ilícitos e dolosos praticados pelo devedor.
Ao assim decidir, a decisão recorrida não incorreu nos erros de direito que lhe são imputados pela apelante, pelo que se impõe concluir pela improcedência da presente apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
*
Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência:
- confirmam a decisão recorrida.
*
Custas da apelação pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
*
Guimarães, 03 de fevereiro de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

José Alberto Moreira Dias (relator)
Rosália Cunha (1ª Adjunta)
Lígia Venade (2ª Adjunta)



1. Alberto dos Reis, ob. cit., vol. V, págs. 265 a 268.
2. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 783, nota 1.
3. Teixeira de Sousa, ob. cit., págs. 489 a 491.
4. Jorge Augusto Pais de Amaral, “Direito Processual Civil”, 2016, 12º ed., Almedina, pág. 425.
5. Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., Almedina, págs. 379 e 380.
6. Vide Preâmbulo de Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03.
7. Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2016 – 4ª ed., Almedina, pág. 535. No mesmo sentido Luís Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 4ª ed., págs. 236 e segs.; Catarina Serra, “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2008, 3ª ed. Almedina, págs. 102 e 103.
8. Ac. RG. de 23/09/2021, Proc. 1559/12.5TBBRG.R.G1, in base de dados da DGSI, relatado pelo aqui relator, em que se desenvolve esta matéria, com ampla citação doutrinal e jurisprudencial.
9. Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, abril/2018, págs. 267 a 272.
10. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª ed., Almedina, págs. 335 e 336.
11. Antunes Varela, ob. cit., págs. 346 e 347.
12. Acs. STJ. de 09/04/2019, Proc. 1880/16.3T8BJA.E1.S2; RG. de 17/11/2016, Proc. 363/15.3T8FAF.G1; R.P. de 16/06/2020, Proc. 224/18.4T8VGS,P1; RL. de 04/03/2021, Proc. 639/18.0T8LSB.L1-8; de 05/06/2014, Proc. 3423/16.TVLSB.L1-6; RC. de 11/01/2021, Proc. 1247/17.5T8CTB.C1; e STJ de 25/03/2021, Proc. 313/17.2T8AVR.P1.S1, defendendo-se neste último, à semelhança dos anteriores arestos, que, para além de ser necessário a prova pela seguradora do pagamento da indemnização devida aos lesados por danos emergentes de acidente em que foi interveniente veículo por si seguro; que esse acidente foi provocado culposamente pelo condutor do veículo por si seguro, e que este conduzia esse veículo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida no momento do acidente, mas exige ainda o requisito adiciona, da prova do nexo de causalidade entre o acidente e a condução sofre o efeito do álcool, mas sustenta que face a disposto no art. 27º, n.º 1, al. c) do DL 291/2007, há uma presunção iuris tantum de nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia ou a evidência de consumo de substância psicotrópica e o ato de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em ação de regresso, o ónus da sua ilisão; neste último sentido Ac. RG. de 08/10/2020, Proc. 2588/19.9T8GMR.G1.
13. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal à Luz a Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pág. 741.
14. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., Almedina, págs. 590 a 592.
15. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., págs. 702 e 704.
16. Ac. STJ. de 13/01/2010, Proc. 1164/07, in base de dados da DGSI; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, pág. 763.