Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
361/19.8T9BRG.G1
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: PROIBIÇÃO DE UTILIZAÇÃO DAS PROVAS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRAR VERSUS MENTIR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- Nos termos do n. º7 do artigo 58.º do CPP a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova. A cominação do n. º 7 “remete para o regime da proibição de utilização das provas – as declarações prestadas pelo visado sem o respeito pela formalidade de constituição de arguido não são prova nula, mas a proibição de utilização («não podem ser utilizadas como prova») impede que sejam valoradas, isto é, não são prestáveis, não podendo servir para fundamentar a convicção da autoridade judiciária – cfr. Conselheiro Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, pág. 205.
É discutido se a norma citada vale apenas para as declarações que possam ser incriminadoras do próprio declarante ou se também abrange as declarações que possam ser incriminadoras de terceiros. Certo é que tal norma pretende sempre sancionar uma gravíssima violação do direito ao silêncio – cfr. Paulo Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE Editora, 2.ª Edição, pág. 175 – sendo apenas aplicável, portanto, aos casos e pessoas que tenham tal direito no processo penal, ou seja, os arguidos ou os que como tal devessem ter sido considerados e tratados.
A invalidade invocada não quadra aos autos, por não existir a fundada suspeita da prática de um crime por parte desta testemunha, que não foi, por isso, constituída como arguida, não existindo qualquer impedimento legal à prestação do seu depoimento nessa qualidade no inquérito ou na audiência de julgamento.
O depoimento em causa não padece, portanto, de qualquer invalidade formal, não merecendo, por esta via, procedência o recurso interposto.
II- O art.º 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, apenas permite a alteração do julgamento de facto quando as provas invocadas pelo recorrente impõem uma decisão diversa, não bastando que a permitam; trata-se de concluir que se impõe quase como um imperativo categórico kantiano um “julgamento necessário” e não apenas que se configura como aceitável ou possível um “julgamento diferente”.
III- “A mentira não se define simplesmente por uma duplicidade ou por uma dobrez. Para haver mentira, rigorosamente, essa falsidade de e na significação – segunda, porque se dá numa esfera alargada da subjetividade comunicativa – tem que se encontrar operada por uma vontade intencional, por propósito deliberado, de enganar.
A expressão de Pascal, - «a qualidade do mentiroso encerra a intenção de mentir» - pode, à primeira vista, parecer algo redundante, mas ela visa, contudo, sublinhar e reforçar esta dimensão de desígnio assumido que preside ao ato de mentir.
Esta maneira de empreender uma caracterização da mentira, a partir de um intento deliberado ou voluntário de induzir o outro em erro (quer no que à objetividade de um dado estado de coisas diz respeito, quer, desde logo, no que concerne à genuína posição de quem tem a palavra), apresenta, aliás, uma genealogia vetusta (cfr. José Barata-Moura, Da Mentira: Um Ensaio – Transbordante de Errores, Caminho, Coleção Universitária, pag. 93/95). .
Importa distinguir o que é errar (seja por confusão, esquecimento, precipitação, nervosismo, ou qualquer outro motivo) e o que é mentir (transmitir a outrem algo falso com vontade de o fazer e de, assim, o enganar).
IV- No caso em apreço é evidente que a testemunha errou, ao não ter logo dito que teve outra pessoa a trabalhar para si, designadamente a sua irmã, e ao afirmar que esta foi, depois, trabalhar para o arguido AA, mas não o fez com vontade de assim proceder, nem para enganar o tribunal –aliás, nem se vislumbra que motivo teria para o fazer ou que proveito daí poderia para si advir, vetores essenciais na apreciação daqueles elementos subjetivos da mentira (qual o interesse da testemunha em proporcionar à recorrente a possibilidade de auferir prestações da Segurança Social se nem a conhece e nunca a viu!).
Assim, as incidências cirurgicamente detetadas pela recorrente no depoimento desta testemunha, esgrimidas quase com o entusiasmo de Arquimedes, em nada beliscam a sua credibilidade, sendo até sinal da sua total espontaneidade e franqueza, pelo que nada há a censurar ao decidido nesta sede.
Decisão Texto Integral:
RELATÓRIO

No Processo n.º 361/19...., do Juízo Local Criminal de Guimarães – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, teve lugar a audiência de julgamento, durante a qual foi proferida sentença co o seguinte dispositivo:

Julga-se a acusação parcialmente procedente e consequentemente decide-se:
a) Absolver os arguidos BB e CC do crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º, nº 1 e 2, do RGIT.
b) Declarar extintas as medidas de coacção aplicadas aos citados arguidos - artigo 214º, nº1, alínea d), do CPP.
c) Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º, nº 1 e 2, do RGIT, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, suspensão condicionada ao pagamento, no aludido prazo de 3 (três) anos, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, da indemnização ao ISS que infra se fixará (correspondente ao benefício indevidamente obtido), nos termos dos artigos 50º, do Código Penal e artigo 14º, nº 1, do RGIT.
d) Condenar a arguida DD, pela prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º, nº 1 e 2, do RGIT, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, ficando no entanto a suspensão condicionada ao pagamento, no aludido prazo de 3 (três) anos, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, da indemnização ao ISS que infra se fixará (correspondente ao benefício indevidamente obtido), nos termos dos artigos 50º, do Código Penal e artigo 14º, nº 1, do RGIT.
e) Condenar os arguidos AA e DD, solidariamente, no pagamento ao Estado da quantia de € 8.679,24 (oito mil, seiscentos e setenta e nove euros e vinte e quatro cêntimos), nos termos do artigo 111º, nº 2 e 4, do Código Penal (na redacção em vigor à data dos factos).
f) Condenar os arguidos condenados nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC para cada um - artigos 514º e 515º, do CPP e artigo 8º, nº 5 e Tabela III do RCP.
Julga-se o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:
g) Absolver os arguidos BB e CC do pedido,
h) Condenar os demandados AA e DD, solidariamente, no pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P., da quantia de € 8.679,24 (oito mil, seiscentos e setenta e nove euros e vinte e quatro cêntimos), acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral e efectivo pagamento, absolvendo-os do demais peticionado.

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Não se tendo conformado com a decisão, a arguida DD interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

I) – Entendeu o Tribunal a quo “Julgar a acusação parcialmente procedente e, consequentemente decidiu:
d) Condenar a arguida DD, pela prática de um crime de burla tributária , pp pelo art.º 87º, n.º 1 e 2, do RGIT, na pena de 1 ( um ) anoe 3 ( três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 ( três) anos, ficando no entanto a suspensão condicionada ao pagamento, no aludido prazo de 3 ( três) anos, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, da indemnização ao ISS que infra se fixará ( correspondente ao benefício indevidamente obtido), nos termos do art.º 50º, do código Penal e artigo 14º, n.º 1, do RGIT.;
e) Condenar os arguidos AA e DD, solidariamente, no pagamento ao Estado da quantia de € 8.679,24 ( oito mil, seiscentos e setenta e nove euros e vinte e quatro cêntimos) nos termos do art.º 111º, n.º 2 e 4, do Código P ( na redação em vigor á data dos factos);
f) Condenar os arguidos condenados nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 ( três) UC para cada um – artigo 514º e 515º, do CPP e artigo 8º, n.º 5 e Taela III do RCP.
Entendeu ainda julgar o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e consequentemente decidiu:
a) Condenar os demandados AA e DD, solidariamente, no pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P., da quantia de € 8.679,24 (oito mil, seiscentos e setenta e nove euros e vinte e quatro cêntimos), acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral e efectivo pagamento, absolvendo-os do demais peticionado.
b) Custas cíveis a cargo do demandante e demandados, na proporção do decaimento - artigo 523º, do CPP e artigo 527º, nº 1 e 2, do CPC.
II) A Arguida considera que, face à prova produzida nos autos, deveriam ter sido dados como NÃO PROVADOS os factos constantes dos números 5, 6, 7, 8, 9, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 dos factos dados como provados na sentença recorrida, com a consequente absolvição da arguida.
III) Por não se conformar com a apreciação judicial quanto aos referidos factos, deixa-os a Arguida expressamente impugnados.
IV) Da prova produzida percebemos que este processo não poderá, de todo, levar á condenação da arguida pois, a única prova produzida em relação a esta e que se baseia, exclusivamente, na testemunha EE, está repleta de contradições, falsidades, parcialidade e incongruências.
V) Aliás, e com todo o respeito, deveria sim ter conduzido, como conduziu em relação aos outros arguidos a uma absolvição, essa sim justa, imparcial e equitativa.
VI) Na verdade, a sentença alicerça/ motiva a sua decisão na testemunha EE.
VII) Foi ouvida a testemunha FF, inspector tributário e entendeu o Tribunal a quo que, “ Quanto aos factos aqui em apreciação, para além de reproduzir o que os arguidos lhe disseram (o que não pode ser valorado enquanto meio de prova – artigo 356º, nº 7, do CPP) enquanto testemunhas, muito pouco adiantou para se poder concluir que os contratos de trabalho invocados pelos arguidos, que serviam de fundamento para as declaradas contribuições à segurança social, não eram reais ou genuínos. Com efeito, nada conseguiu esclarecer, de concreto, sobre uma eventual criação de carreira contributiva falsa por parte dos citados arguidos.
VIII) Foi ainda ouvida a testemunha GG, chefe de equipa no ISS que “confirmou os valores pagos a título de prestação de desemprego e pensão de velhice, bem como os respetivos períodos, nos precisos termos dados como provados. Quanto à pensão de velhice, foi incapaz de determinar em que medida contribuiu para o seu valor as carreiras contributivas alegadamente falas, até porque, como seria expectável, os arguidos sempre teriam acesso à reforma por força de contribuições anteriores às aqui em causa. Por essa razão, não foi dada como provada, no que às pensões de velhice diz respeito, que as mesmas resultassem de qualquer carreira contributiva falsa ou forjada.
IX) A Testemunha, HH, irmão do arguido AA, exerceu a faculdade de recusar-se a depor (artigo 134º, nº 1, alínea a), do CPP).
X) A referida testemunha, EE, cabeleireira, “confirmou ter contratado os serviços do arguido AA para gerir a sua contabilidade, atenta a sua empresa consistente num salão de cabeleireira. Mais referiu que, certo dia, foi convocada pela AT, para prestar esclarecimentos, momento em que foi confrontada com o facto de ter uma trabalhadora registada e associada à sua empresa, a aqui arguida DD, o que a deixou incrédula, pois que para além de não conhecer aquela arguida, nunca teve trabalhadores ao seu cargo, trabalhando sozinha. Na sequência dessa revelação, contactou o arguido AA, exigindo explicações, tendo este procurado explicar a situação com um erro de registo ou de troca de empresas.”
XI) Entendeu assim o Tribunal a quo e no que concerne à actuação dos arguidos AA e DD, que os mesmos praticaram os factos tal como provados, “atento o depoimento seguro e objectivo da testemunha EE, que confirmou que a citada arguida nunca foi sua trabalhadora, sendo manifesto, atentas as regras da normalidade e experiência que o invocado erro do arguido AA não passou de uma vã tentativa de esconder da testemunha o que efectivamente havia feito.”
“Que os arguidos AA e DD actuaram em conjugação de esforços e intentos, resulta das regras da normalidade e bom senso”.
“No que concerne ao aspecto subjectivo da conduta, designadamente a intenção dos arguidos, ponderou-se o respectivo iter criminis, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, pois que é manifesto que quem assim actua, o faz de modo consciente, com o objectivo de enganar ou ludibriar a Segurança Social, para assim obter prestações sociais indevidas, como veio a obter a arguida DD, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente puníveis.”
XII) Quanto aos factos não provados, designadamente quanto às alegadas carreiras contributivas dos demais arguidos, entendeu o tribunal que não foi produzida prova suficiente, pois que a testemunha II, em rigor, assentou as suas conclusões na “confissão” que os arguidos realizaram enquanto testemunhas na investigação que conduziu à suspeita de fraude fiscal.
XIII) Não restam, quanto á defesa quaisquer dúvidas de que, a única prova que alicerça a acusação tem que ser considerada nula.
XIV) Resulta da observação atenta dos autos que foi inquirida perante o Ministério Público, como testemunha, EE , em 04.05.2021, Referência Citius: 173014911.
XV) Dessas declarações resulta inequivocamente e é notório que as mesmas reclamam natureza criminal.
XVI) Uma vez que a testemunha reconhece ser, formalmente, o sujeito ativo que determinou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais alegadamente resultou enriquecimento do agente ou de terceiro.
XVII) Nesta medida, verifica-se que, aquando da inquirição na qualidade de testemunha, recaía sobre EE suspeita fundada de por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro, ou seja, sobre esta recaía a hipótese de conhecimento da prática de um crime de fraude fiscal.
XVIII) Assim sendo, seria obrigatória a sua constituição como arguida e o seu interrogatório como tal, o que não sucedeu, conforme resulta da análise do auto de inquirição de testemunha.
XIX) Ora, a falta de explicitação deste direito tem como consequência que as declarações, prestadas posteriormente, não podem ser utilizadas como prova, ocorrendo proibição de valoração, nos termos e para efeitos do artigo 58°/2 e 59º do CPP, e art. 13.º e 22.º da CRP.
XX) Nos termos do n.º 2 do art.º 58.º do CPP, “A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.”
XXI) Por tudo o supra o exposto, o depoimento da testemunha EE não podia ser valorado, por constituir prova nula, sob pena de se violar o disposto nos artigos 58º e 59º, do Código de Processo Penal e os artigos 13º e 32º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
XXII) Nessa sequência, invoca-se expressamente a nulidade por falta de constituição obrigatória de arguido no inquérito da testemunha, o que se requer.
XXIII) O que enferma esta prova de nulidade, que expressamente se requer.
XXIV) Mas mais, esta testemunha é absolutamente parcial e mentiu ao tribunal, o seu depoimento foi muito pouco sincero, nada objetivo e incongruente.
XXV) A única prova produzida foram as declarações desta e, foi com base nestas mesmas declarações que o tribunal fundamentou a sua orientação e baseou toda a condenação.
Sucede que,
XXVI) Tal depoimento não pode constituir prova bastante dos factos, atenta a indiscutível parcialidade, ás intervenções contraditórias desta nos autos quanto á ocorrência dos factos.
XXVII) Deu o tribunal a quo como provado, no número 5 dos factos provados que, “O arguido AA, na execução de um plano comum que previamente delineou, decidiu criar uma carreira contributiva falsa para a arguida DD, como trabalhadora por conta de EE, com o objectivo de posteriormente aquela vir a obter da Segurança Social atribuições patrimoniais indevidas nomeadamente subsídio de desemprego, às quais não teria direito por não desempenhar quaisquer funções para EE.
XXVIII) Ora, tal facto não deveria ter sido dado como provado o que faria caírem todos os demais factos provados pois, para além de não traduzir a realidade, tal não pode resultar da única prova produzida, o depoimento da testemunha EE, que não poderá ser valorado.
Senão vejamos,
XXIX) Desde logo, importa significar que, uma das arguidas – JJ, que alegadamente registou remunerações na Entidade Empregadora EE, é irmã da testemunha e, portanto, obviamente que esta, além de não se ter recusado a prestar depoimento, porque tinha a necessidade de proteger a sua irmã, fê-lo sempre de modo parcial e denotava sempre ter algo a esconder, pois que ora dizia de um modo, ora dizia de outro.
XXX) Reitere-se, esta testemunha é absolutamente parcial e mentiu ao tribunal, o seu depoimento foi muito pouco sincero, nada objetivo e incongruente e não poderá constituir prova bastante dos factos.
XXXI) No despacho de arquivamento com a referência ...67, refere-se expressamente que “ Confrontada com os trabalhadores que estavam inscritos na Segurança Social ao seu serviço explicou que apenas JJ esteve efetivamente a trabalhar no seu estabelecimento, numa altura que esteve de gravidez de alto risco e para não fechar o cabeleireiro pós lá a JJ, que é sua irmã, a trabalhar.”
XXXII) Contrariamente, em audiência de julgamento,e a instâncias do Dr. KK, advogado, nem sequer se referiu a essa gravidez de risco mas que seria alegadamente para aproveitar a circunstância dos benefícios do 1.º emprego da irmã, não se lembrando sequer dos períodos em questão, ora dizendo de um modo, ora dizendo de outro.
XXXIII) Fácil é de ver que não poderá ser dada credibilidades a esta testemunha, pedra basilar da condenação, já que os próprios testemunhos no processo da testemunha são contraditórios.
XXXIV) Razão pela qual não se entende como pôde o tribunal a quo, e salvo o devido respeito, considerar que a testemunha EE teve um registo “sincero, escorreito e objectivo”, quando o seu depoimento da seu depoimento foi absolutamente incoerente, parcial, resultando do mesmo incongruências notórias e crassas quanto à ocorrência dos factos.
XXXV) Sendo certo que a única conclusão que se pode retirar daqui é que esta estará a mentir,
Tanto mais que,
XXXVI) Esta não podia, jamais, confessar os factos pois que estaria a assumir a prática, por si só, de um crime.
Ou seja,
XXXVII) Para além do depoimento da referida testemunha, não existe qualquer prova nos autos de que a carreira contributiva da arguida seja falsa.
XXXVIII)Assim sendo, deverá o tribunal ad quem modificar a matéria de facto dada como provada em 1ª instância, dando como não provados os números 5, 6, 7, 8, 9, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 dos factos provados.
XXXIX)Não podemos esquecer o princípio básico e essencial do processo penal, in dubio pro reo, não existindo certeza quanto aos factos decisivos para a decisão da causa, deve o tribunal decidir pro reo.
Ora,
XLI) Atenta a – insuficiente, contraditória, inverosímil e pouco plausível – prova produzida nos autos, não se logrou provar os factos de que vinha acusada a Arguida, persistindo uma dúvida razoável quanto à ocorrência dos factos após a produção da prova.
Isto posto,
XLII) Atendendo ao princípio in dubio pro reo, a arguida deveria ter sido absolvida da prática de um crime de burla tributária na forma continuada.
Mas mais,
Da Nulidade
XLIII) A única testemunha, base da condenação, como já supra referido, foi inquirida perante o Ministério Público como testemunha, em 04.05.2021, Referência Citius: 173014911.
XLIV)Dessas declarações resulta inequivocamente e é notório que as mesmas reclamam natureza criminal.
XLV)Uma vez que a testemunha reconhece ser, formalmente, o sujeito ativo que determinou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais alegadamente resultou enriquecimento do agente ou de terceiro.
XLVI)Nesta medida, verifica-se que, aquando da inquirição na qualidade de testemunha, recaía sobre EE suspeita fundada de por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro, ou seja, sobre esta recaía a hipótese de conhecimento da prática de um crime de fraude fiscal.
XLVII) Assim sendo, seria obrigatória a sua constituição como arguida e o seu interrogatório como tal, o que não sucedeu, conforme resulta da análise do auto de inquirição de testemunha, aqui já referido.
XLVIII) Ora, a falta de explicitação deste direito tem como consequência que as declarações, prestadas posteriormente, não podem ser utilizadas como prova, ocorrendo proibição de valoração, nos termos e para efeitos do artigo 58°/2 e 59º do CPP, e art. 13.º e 22.º da CRP.
XLIX) Nos termos do n.º 2 do art.º 58.º do CPP, “A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.”
L)- Por tudo o supra o exposto, o depoimento da testemunha EE não podia ser valorado, por constituir prova nula, sob pena de se violar o disposto nos artigos 58º e 59º, do Código de Processo Penal e os artigos 13º e 32º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
LI)- Nessa sequência, invoca-se expressamente a nulidade por falta de constituição obrigatória de arguido no inquérito da testemunha, o que se requer.
LII)- O que enferma esta prova de nulidade, que expressamente se requer.
Sendo que,
LIII) A única prova na qual o julgador baseou, no seu entendimento, a condenação é nula, não pode ser considerada nem valorada, ora, não havendo prova bastante e modificando o tribunal ad quem a matéria de facto dada como provada em 1ª instância, dando como não provados os números supra identificados, não pode a arguida ser condenada pela prática de um crime de burla tributária na forma continuada.
LIV) Assentando o pedido indemnizatório na prática de um crime que não existiu, conforme se alegou, não existe fundamento para que a arguida seja condenada nesse mesmo pedido, bem como no pagamento ao Estado da quantia de € 8.679,24, razão pela qual deve a Arguida ser absolvida dos mesmos.
LV) Pelo que, não restarão dúvidas de que a arguida terá que ser absolvida também do pedido de indemnização civil formulado, bem como da indemnização ao Estado.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com as legais consequências.

3
O Ministério Público respondeu ao recurso, propondo a improcedência do recurso.

4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada foi dito.

6
Colhidos os vistos, forma os autos à conferência.

II FUNDAMENTAÇÃO

1 Objeto do recurso:

A
O depoimento da testemunha EE deve ser considerado como meio de prova nulo, designadamente por falta da sua constituição obrigatória como arguida no inquérito?

B
Ocorre erro de julgamento em relação aos factos constantes dos números 5, 6, 7, 8, 9, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 dos factos dados como provados na sentença recorrida?

2
Decisão recorrida (excertos relevantes):

II. OS FACTOS:

A. FACTOS PROVADOS:
Da acusação/pronúncia:
1) O arguido AA é irmão de HH.
2) HH era gerente da empresa “EMP01...”.
3) O arguido AA era ainda amigo e vizinho de EE.
4) Igualmente era responsável pela contabilidade da empresa que esta geria.
5) O arguido AA, na execução de um plano comum que previamente delineou, decidiu criar uma carreira contributiva falsa para a arguida DD, como trabalhadora por conta de EE, com o objectivo de posteriormente aquela vir a obter da Segurança Social atribuições patrimoniais indevidas nomeadamente subsídio de desemprego, às quais não teria direito por não desempenhar quaisquer funções para EE.
6) Na execução do plano delineado, o arguido AA exigia a DD que lhe entregasse os valores correspondentes às contribuições devidas à Segurança Social, valores dos quais se locupletava, registando posteriormente remunerações de DD como se fosse trabalhadora de EE, quando na realidade nunca trabalhou para esta.
7) Assim, na execução do plano gizado, persistindo na vontade de obter benefícios económicos em detrimento Segurança Social, o arguido AA comunicou à a admissão da arguida DD como trabalhadora da entidade empregadora EE.
8) Todavia, bem sabia o arguido AA que a arguida DD não trabalhara para a dita entidade empregadora nos períodos comunicados, nunca ali tivera qualquer horário de trabalho, serviço distribuído ou tarefa específica para cumprir, não possuindo com a mesma qualquer relação laboral de subordinação, nem lhe foi pago quaisquer salários ou subsídios como trabalhadora.
9) No seguimento do acordo e plano gizado, a arguida DD requereu à Segurança Social a atribuição de prestações sociais, que lhe foram deferidas, sendo que para o seu cálculo foram consideradas as remunerações falsamente registadas como tendo sido auferidas na entidade empregadora EE.
10) O arguido BB solicitou à Segurança Social o pagamento de subsídio de desemprego relativo ao período de 29/04/2016 a 28/04/2018, que lhe foi concedido no valor global de €9.825,74.
11) O arguido BB solicitou, ainda, o pagamento de subsídio social subsequente, que lhe foi concedido entre 29/04/2018 e 28/04/2020, tendo recebido o valor global de €10.296,00.
12) A arguida CC solicitou à Segurança Social o pagamento de subsídio de desemprego relativo ao período de 05/12/2016 a 04/10/2018, que lhe foi concedido no valor global de €9.335,82.
13) A arguida CC solicitou, ainda, o pagamento de pensão de velhice, que lhe foi concedido desde ../../2018, no valor mensal de €220,56, tendo recebido o valor global de €9.484,08
14) A arguida DD solicitou à Segurança Social o pagamento de subsídio de desemprego relativo ao período de 23/10/2015 a 22/08/2017, que lhe foi concedido no valor global de €8.679,24.
15) A arguida DD solicitou, ainda, mais tarde, o pagamento de pensão de velhice, que lhe foi concedida desde ../../2017, no valor mensal de €277,59, tendo recebido o valor global de €12.769,14.
16) A arguida DD sabia que não tinha direito à quantia referida em 14).
17) A Segurança Social fundamentou a decisão de deferimento da concessão de subsídio de desemprego nas informações prestadas pela arguida DD, nomeadamente na entrega das declarações de remunerações supra referidas, e, com base nelas e nos demais documentos entregues pela arguida DD, que retrataram situações que nunca ocorreram, maxime que trabalhou na entidade empregadora EE e cessou o seu contrato de trabalho com a mesma por motivo que não lhe era imputável.
18) A conduta dos arguidos AA e DD determinou a Segurança Social a entregar o montante global de €8.679,24 à citada arguida, sem que esta tivesse direito a receber tais montantes.
19) A Segurança Social atribuiu as referidas prestações à arguida DD com base na qualidade de trabalhadores por conta de outrem que foi forjada e falsamente comunicada pelo arguido AA, bem sabendo aqueles dois arguidos que a qualidade de trabalhador por conta de outrem e a posterior situação de desemprego por causa não imputável ao trabalhador eram condições essenciais à atribuição das prestações sociais descritas e sabia ainda que o valor destas prestações seria, como foi, apurado com base no valor constante daquelas declarações de remunerações apresentadas na Segurança Social, que bem sabiam não corresponder à verdade.
20) A arguida DD agiu livre, deliberada e conscientemente, em execução de um plano concertado pelo arguido AA, simulando a qualidade de trabalhadora por conta de EE, com vista a obter prestações sociais indevidas, como obteve, bem sabendo que aquela arguida que nunca exercera quaisquer funções de trabalhador por conta daquela entidade empregadora, assim logrando enriquecimento patrimonial ilegítimo a que sabia não ter direito, determinandopor essa via a Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais a título de prestações de subsídio de subsídio de desemprego indevidas no valor total de €8.679,24, atentando contra a verdade e transparência exigidas na relação entre a Administração da Segurança Social e o contribuinte.
21) Mais sabiam os arguidos AA e DD que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas por lei e, mesmo assim, não se coibiram de assim proceder.
Da situação pessoal e económica dos arguidos:
22) O arguido AA está reformado, auferindo a pensão mensal de € 600,00.
23) Vive com um filho, em casa cedida gratuitamente.
24) Despende a quantia mensal de € 100,00, em medicação.
25) Concluiu o 9º ano de escolaridade.
26) Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
27) O arguido BB está reformado, auferindo a pensão mensal de €480,00.
28) A esposa é trabalhadora por conta de outrem, auferindo o salário mínimo nacional.
29) Vivem em casa própria.
30) Concluiu o 6º ano de escolaridade.
31) Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
32) A arguida CC encontra-se reformada, auferindo a pensão mensal de € 260,00.
33) O marido está igualmente reformado, auferindo a pensão mensal de € 600,00.
34) Vivem em casa própria.
35) A arguida é analfabeta.
36) Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida.
37) A arguida DD encontra-se reformada, auferindo a pensão mensal de € 360,00.
38) O marido encontra-se igualmente reformado, auferindo a pensão mensal de €420,00.
39) Vivem em casa própria.
40) Concluiu o 4º ano de escolaridade.
41) A arguida cuida do marido, que se encontra totalmente dependente, for força de doença oncológica.
42) Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida
B. FACTOS NÃO PROVADOS:
Da acusação/pronúncia:
a) O arguido AA era responsável pela contabilidade da empresa “EMP01...”.
b) Em face da confiança que lhe era depositada por HH e EE, o arguido AA encontrava-se na posse dos elementos de identificação dos mesmos, bem como dos códigos de acesso à Segurança Social directa.
c) O arguido AA, na execução de um plano comum que previamente delineou, decidiu criar carreiras contributivas falsas para BB, e CC, como trabalhadores por conta de HH, com o objectivo de posteriormente estes virem a obter da Segurança Social atribuições patrimoniais indevidas nomeadamente subsídio de desemprego e pensões de velhice, às quais não teriam direito por não desempenharem quaisquer funções para os citados indivíduos.
d) Assim, na execução do plano gizado, persistindo na vontade de obter benefícios económicos em detrimento da Segurança Social, o arguido AA comunicou à Segurança Social a admissão dos arguidos BB e CC como trabalhadores da entidade empregadora HH.
e) Todavia, bem sabia o arguido AA que os arguidos BB e CC não trabalharam para as ditas entidades empregadoras nos períodos comunicados, nunca ali tiveram qualquer horário de trabalho, serviço distribuído ou tarefa específica para cumprir, não possuindo com as mesmas qualquer relação laboral de subordinação, nem lhes foram pagos quaisquer salários ou subsídios como trabalhadores.
f) O arguido BB sabia que não tinha direito às quantias referidas em 10) e 11).
g) A arguida CC sabia que não tinha direito às quantias referidas em 12) e 13).
h) A arguida DD sabia que não tinha direito à quantia referida em 15).
i) A conduta de todos os arguidos determinou a Segurança Social a entregar o montante global de €60.390,02 (sessenta mil, trezentos e noventa euros e dois cêntimos) aos arguidos BB e CC, sem que estes tivessem direito a receber tais montantes.
j) A Segurança Social atribuiu as referidas prestações aos arguidos BB e CC com base na qualidade de trabalhadores por conta de outrem que foi forjada e falsamente comunicada pelo arguido AA, bem sabendo aqueles arguidos que a qualidade de trabalhador por conta de outrem e a posterior situação de desemprego por causa não imputável ao trabalhador eram condições essenciais à atribuição das prestações sociais descritas e sabia ainda que o valor destas prestações seria, como foi, apurado com base no valor constante daquelas declarações de remunerações apresentadas na Segurança Social, que bem sabiam não corresponder à verdade.
k) Os arguidos BB e CC sabiam que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas por lei e, mesmo assim, não se coibiram de assim proceder.

III MOTIVAÇÃO:

O Tribunal formou a sua convicção apreciando de forma crítica o conjunto da prova produzida em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
Os arguidos, quanto aos factos constantes do libelo acusatório, exerceram o direito de não prestarem declarações.
FF, inspector tributário, esclareceu que foi desencadeada uma investigação que tinha como alvo a actividade do arguido AA, havendo suspeitas de fraudes fiscais, designadamente com recurso a facturação falsa, sendo que o mesmo prestava serviços de contabilidade a empresas não sujeitas a contabilidade organizada. No âmbito dessa investigação, apurou, através da inquirição de testemunhas, designadamente dos demais arguidos, que estes haviam colaborado com o arguido AA na criação de carreiras contributivas falsas. Terá sido esta informação que deu origem à investigação referente aos presentes autos. Quanto aos factos aqui em apreciação, para além de reproduzir o que os arguidos lhe disseram (o que não pode ser valorado enquanto meio de prova – artigo 356º, nº 7, do CPP) enquanto testemunhas, muito pouco adiantou para se poder concluir que os contratos de trabalho invocados pelos arguidos, que serviam de fundamento para as declaradas contribuições à segurança social, não eram reais ou genuínos. Com efeito, nada conseguiu esclarecer, de concreto, sobre uma eventual criação de carreira contributiva falsa por parte dos citados arguidos.
GG, chefe de equipa no ISS, confirmou os valores pagos a título de prestação de desemprego e pensão de velhice, bem como os respetivos períodos, nos precisos termos dados como provados. Quanto à pensão de velhice, foi incapaz de determinar em que medida contribuiu para o seu valor as carreiras contributivas alegadamente falas, até porque, como seria expectável, os arguidos sempre teriam acesso à reforma por força de contribuições anteriores às aqui em causa. Por essa razão, não foi dada como provada, no que às pensões de velhice diz respeito, que as mesmas resultassem de qualquer carreira contributiva falsa ou forjada.
HH, irmão do arguido AA, exerceu a faculdade de recusar-se a depor (artigo 134º, nº 1, alínea a), do CPP).
EE, cabeleireira, num registo que se nos afigurou sincero, escorreito e objectivo, confirmou ter contratado os serviços do arguido AA para gerir a sua contabilidade, atenta a sua empresa consistente num salão de cabeleireira. Mais referiu que, certo dia, foi convocada pela AT, para prestar esclarecimentos, momento em que foi confrontada com o facto de ter uma trabalhadora registada e associada à sua empresa, a aqui arguida DD, o que a deixou incrédula, pois que para além de não conhecer aquela arguida, nunca teve trabalhadores ao seu cargo, trabalhando sozinha. Na sequência dessa revelação, contactou o arguido AA, exigindo explicações, tendo este procurado explicar a situação com um erro de registo ou de troca de empresas. Mais relatou a testemunha, de forma assertiva, que, foi após aquele contacto com a AT que foi procurado por um homem, que se identificou como marido da arguida DD, o qual tentou convencê-la a, junto da Segurança Social, confirmar que a citada arguida era mesmo sua trabalhadora, ou seja, que fosse prestar falso depoimento, o que a testemunha recusou prontamente.
Da prova documental, foi valorada a seguinte: Certidão , de fls. 2 e ss; informações da Segurança Social, de fls. 247 e ss; 482 e ss, 629 e ss , 7 41 e ss e 778 e ss, do qual resulta, entre o mais, a qualidade de trabalhadores dos arguidos BB, CC e DD, bem com as prestações de desemprego que lhe foram atribuídas e respectivo período.
Dito isto, e no que concerne à actuação dos arguidos AA e DD, o tribunal convenceu-se que os mesmos praticaram os factos tal como provados, atento o depoimento seguro e objectivo da testemunha EE, que confirmou que a citada arguida nunca foi sua trabalhadora, sendo manifesto, atentas as regras da normalidade e experiência que o invocado erro do arguido AA não passou de uma vã tentativa de esconder da testemunha o que efectivamente havia feito.
Que os arguidos AA e DD actuaram em conjugação de esforços e intentos, resulta das regras da normalidade e bom senso
No que concerne ao aspecto subjectivo da conduta, designadamente a intenção dos arguidos, ponderou-se o respectivo iter criminis, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, pois que é manifesto que quem assim actua, o faz de modo consciente, com o objectivo de enganar ou ludibriar a Segurança Social, para assim obter prestações sociais indevidas, como veio a obter a arguida DD, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente puníveis.
Os arguidos esclareceram a respectiva situação pessoal e económica, nos precisos termos dados como provados.
A inexistência de antecedentes criminais resulta dos CRC juntos aos autos.
Quanto aos factos não provados, designadamente quanto às alegadas carreiras contributivas dos demais arguidos, conforme se deixou intuído supra, não foi produzida prova suficiente que assim fosse, pois que a testemunha II, em rigor, assentou as suas conclusões na “confissão” que os arguidos realizaram enquanto testemunhas na investigação que conduziu à suspeita de fraude fiscal. Acresce que a prova documental dos autos e a demais prova testemunhal, não apontam para a conclusão de que os arguidos BB e CC, com a colaboração do arguido AA, hajam, conforme consta do libelo acusatório, forjado uma carreira contributiva.
(…)


3 O direito.

A
O depoimento da testemunha EE deve ser considerado como meio de prova nulo, designadamente por falta da sua constituição obrigatória como arguida no inquérito?

Entende a recorrente que:

XIV) Resulta da observação atenta dos autos que foi inquirida perante o Ministério Público, como testemunha, EE, em 04.05.2021, Referência Citius: 173014911.
XV) Dessas declarações resulta inequivocamente e é notório que as mesmas reclamam natureza criminal.
XVI) Uma vez que a testemunha reconhece ser, formalmente, o sujeito ativo que determinou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais alegadamente resultou enriquecimento do agente ou de terceiro.
XVII) Nesta medida, verifica-se que, aquando da inquirição na qualidade de testemunha, recaía sobre EE suspeita fundada de por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro, ou seja, sobre esta recaía a hipótese de conhecimento da prática de um crime de fraude fiscal.
XVIII) Assim sendo, seria obrigatória a sua constituição como arguida e o seu interrogatório como tal, o que não sucedeu, conforme resulta da análise do auto de inquirição de testemunha.
XIX) Ora, a falta de explicitação deste direito tem como consequência que as declarações, prestadas posteriormente, não podem ser utilizadas como prova, ocorrendo proibição de valoração, nos termos e para efeitos do artigo 58°/2 e 59º do CPP, e art. 13.º e 22.º da CRP.

Na sua resposta, diz o Ministério Público:

Na verdade, o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, decide, em face dos elementos de prova carreados para o inquérito, se existem indícios suficientes da existência de crime e de quem é/são o/s seu/s autor/es.
Nessa senda, apenas e só perante o juízo de “fundada suspeita da prática de crime” é que alguém é constituído como arguido.
Ora, durante o inquérito, o Ministério Público entendeu não existir qualquer razão para a constituição da testemunha EE como arguida – que nunca foi denunciada ou suspeita sequer -, pelo que a mesma foi apenas ouvida na qualidade de testemunha, qualidade essa que manteve nos autos.
Aliás, em caso de arquivamento – o que nem sequer se verificou nos autos relativamente à referida testemunha, pois que nunca deixou de o ser -, apenas o denunciante ou o assistente poderiam requerer a intervenção hierárquica, sendo que a arguida não tinha qualquer legitimidade para reagir.
O mesmo se dirá relativamente à abertura da instrução, já que a arguida apenas poderia reagir processualmente relativamente à dedução de acusação contra si.
Por todo o exposto, entendemos inexistir qualquer insuficiência de inquérito ou qualquer nulidade da sentença, por existência de quaisquer provas nulas.

Para invalidar este meio de prova, a recorrente invoca as regras sobre proibição de prova e sobre nulidades.

Vejamos o que diz o Código de Processo Penal num e noutro caso:

Artigo 126.º
Métodos proibidos de prova
1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4 - Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.

Das nulidades
  Artigo 118.º
Princípio da legalidade
1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.

Artigo 119.º
Nulidades insanáveis
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º;
f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.

Artigo 120.º
Nulidades dependentes de arguição
1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
a) O emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra, sem prejuízo do disposto na alínea f) do artigo anterior;
b) A ausência, por falta de notificação, do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;
b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;
d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.

Em primeiro lugar, diga-se que é acertada, em princípio, a posição que o Ministério Público enuncia na sua resposta, sendo certo que as consequências de uma omissão de constituição como arguido poderão ser diferentes se a aludida pessoa vier a ser atribuída essa posição após a prestação das declarações. Todavia, não é esse o caso, uma vez que o detentor da ação penal entendeu que não existiam nos autos indícios suficientes para afirmar a fundada suspeita da prática de crime pela pessoa em causa, pelo que nenhuma necessidade havia de a constituir com aquele estatuto jurídico processual penal.

Para além disso, nem com muito esforço se consegue minimamente alvitrar como inserir a situação na supracitada regra sobre proibições de prova

Por outro lado, também se não alcança previsão alguma para que a situação constitua uma nulidade.

Seguindo a estrutura do pensamento da recorrente, parece-nos que pretende convocar para a presente situação o disposto no artigo 59.º, n.º 7, do Código de Processo Penal, cujo teor se transcreve:

7 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.

“A cominação do n.º 5 (atual n.º 7) remete para o regime da proibição de utilização das provas – as declarações prestadas pelo visado sem o respeito pela formalidade de constituição de arguido não são prova nula, mas a proibição de utilização  («não podem ser utilizadas como prova») impede que sejam valoradas, isto é, não são prestáveis, não podendo servir para fundamentar a convicção da autoridade judiciária.” – cfr. Conselheiro Henriques Gaspar,  Código de Processo Penal Comentado, pag. 205.    

Assim, a existir a situação invocada, o caso não é, em rigor, de métodos proibidos de prova, previsto na norma acima referida, nem de nulidade, sendo certo que o regime aplicável é o mesmo da proibição de prova.
É discutido se a norma citada vale apenas para as declarações que possam ser incriminadoras do próprio declarante ou se também abrange as declarações que possam ser incriminadoras de terceiros – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE Editora, 2.ª Edição, pag. 176.
Certo é que tal norma pretende sempre sancionar uma gravíssima violação do direito ao silêncio – cfr. Paulo Albuquerque, ob. cit., pag. 175 – sendo apenas aplicável, portanto, aos casos e pessoas que tenham tal direito no processo penal, ou seja, os arguidos ou os que como tal devessem ter sido considerados e tratados.

Diz a recorrente que:

XVI) Uma vez que a testemunha reconhece ser, formalmente, o sujeito ativo que determinou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais alegadamente resultou enriquecimento do agente ou de terceiro.

Ora, esta afirmação está nos antípodas dos factos dados como provados, resultando claramente até do depoimento da testemunha, acima sinteticamente resumido, que a situação criada resultou diretamente do comportamento do arguido AA e da ora recorrente, pelo que nenhuma razão haveria para constituir esta pessoa como arguida.

Todavia, a invalidade invocada não quadra aos autos, por não existir a fundada suspeita da prática de um crime por parte desta testemunha, que não foi, por isso, constituída como arguida, não existindo qualquer impedimento legal à prestação do seu depoimento nessa qualidade no inquérito ou na audiência de julgamento.

Muito menos se vislumbra como possam ter sido violadas as disposições da Constituição da República Portuguesa citadas no recurso, nem o recorrente diz em que medida tal sucedeu, pelo que nada haverá a referir nesta sede – cfr. artigo 412.º, n.º 2, b), do Código de Processo Penal.

O depoimento em causa não padece, portanto, de qualquer invalidade formal, não merecendo, por esta via, procedência o recurso interposto.

B
Ocorre erro de julgamento em relação aos factos constantes dos números 5, 6, 7, 8, 9, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 dos factos dados como provados na sentença recorrida?

A matéria de facto dada como provada numa decisão jurisdicional pode ser escrutinada em recurso por dois modos: o primeiro, que é também de verificação oficiosa, está previsto no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e consubstancia uma imperfeição do texto da própria decisão e/ou do raciocínio nele expendido, por si só considerado ou conjugado com o objeto do processo e as regras da experiência, desdobrando-se nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova; o segundo, previsto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, através do qual, e mediante a reanálise de segmentos probatórios testemunhais ou outros, devidamente circunscritos e identificados, se discute a bondade do juízo efetuado na decisão, igualmente em relação a pontos factuais específicos devidamente individualizados, quer por imparidade entre o selecionado conjunto probatório existente e o que foi assente, quer por incorreta aplicação do principio da livre apreciação da prova.

A decisão recorrida não patenteia qualquer dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Passemos, assim, à impugnação do julgamento da matéria de facto, cuja regulamentação o Código de Processo Penal enuncia pelo seguinte modo:

Artigo 412.º
Motivação do recurso e conclusões

(…)

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Assim, se a indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados não apresenta dificuldade de maior, bastando indicá-los tout court, sendo certo que a maior parte das decisões têm a factualidade estruturada através de numeração, já as concretas provas dizem respeito ao conteúdo específico das provas, não sendo suficiente a simples indicação de uma testemunha ou perícia, por exemplo, para fundar aquela pretensão; igualmente, a especificação das provas que devem ser renovadas só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência no julgamento no tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do art.º 410.º e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (art.º 430.º, n.º 1)  – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, UCE, 2.ª Edição Atualizada, pag. 1131.

Observação importantíssima tem que ver com as condições de procedência do recurso em sede de impugnação da matéria de facto. Na verdade, o julgamento efetuado em primeira instância beneficia, em pleno, dos princípios da oralidadee imediaçãoda produção de prova, o que, consabidamente, confere aos julgadores melhores possibilidades de apreciar a prova com rigor e clarividência, permitindo um juízo mais aproximado da verdade material e, portanto, uma mais precisa reconstituição desta.

Por isso, a lei estabelece no preceito ora em análise que a argumentação do recorrente deve conter a indicação das provas que impõem uma decisão diversa, bem como, naturalmente, qual é ela. Que impõem, e não apenas que aconselham, permitem, autorizam ou facultam. E tal exigência não deriva, como muitas vezes se afirma, do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art.º 127.º do CPP, pois este tanto se aplica ao julgamento do tribunal recorrido como ao julgamento do tribunal de recurso; na verdade, tão livre é um tribunal quanto o outro para apreciar a prova; a diferença entre ambos radica, precisamente, na aludida proximidade em relação à prova produzida na primeira instância, a qual confere particulares garantias de fiabilidade do juízo que assim sobre elas se produz, ideia que a lei acolhe expressamente, quando opta pelo vocábulo impõe para autorizar uma alteração daquele julgamento primordial – basta pensarmos na diferença entre um julgador numa sala de audiências com várias pessoas olhar diretamente o arguido, a testemunha ou o perito nos olhos, assistir às suas reações, postura corporal, esgares, hesitações ou assertividade, e olhares, assistir ao seu interrogatório ou formular-lhe as perguntas que entender necessárias, no momento que lhe parecer ser pertinente ou adequado, mostrar-lhe documentos ou outras partes do processo, apreciar, no decurso da audiência,  comparativa e simultaneamente as reações isoladas ou recíprocas de uns e outros, enfim, ter perante si este completíssimo e riquíssimo cenário, dir-se-ia teatro até, por um lado, e entre um outro julgador que está durante umas horas, dias ou até mais, fechado no seu gabinete, com uns auscultadores nos ouvidos e de olhos abertos, cerrados ou semicerrados, tentando captar a maior parte que lhe é humanamente possível de toda aquela riqueza de pormenores através da simples audição, para percebermos por que (acertado) motivo a lei tomou a opção acima referida. É, na verdade, esta diferença fundamental de condições que justifica que a intervenção do tribunal de recurso no julgamento da matéria de facto só ocorra se estiver irrefutável e cabalmente demonstrado que há um claro e evidente erro de apreciação, seja por inexperiência, desconhecimento, precipitação ou outro qualquer motivo, de tal modo que se torne absolutamente indiscutível proceder à correção ou acerto da decisão nesta sede.

Assim, e em conclusão, o art.º 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, apenas permite a alteração do julgamento de facto quando as provas invocadas pelo recorrente impõem uma decisão diversa, não bastando que a permitam; trata-se de concluir que se impõe quase como um imperativo categórico kantiano um “julgamento necessário” e não apenas que se configura como aceitável ou possível um “julgamento diferente”.

Além disso, é consabido que a jurisprudência e a doutrina entendem de forma unânime que o recurso do julgamento da matéria de facto não se traduz na realização de um novo e inteiro julgamento pelo tribunal recorrido, antes constituindo um meio de sanar evidentes erros, devidamente circunscritos, sendo certo que não se pode negar que a verificação de um desse erros de julgamento possa ter consequências mais ou menos extensas na decisão da matéria de facto, consoante a sua relevância e a matéria a que respeitar. Seguro é que uma pretensão recursiva de inconformismo genérico e total com o julgamento da matéria de facto, traduzida na proposta de uma completa inversão do decidido se afigura como inaceitável à luz do teor da nossa lei e da interpretação que dela é feita, como se disse – cfr., a título exemplificativo, os Acórdãos do ST de 14/05/2008, Processo n.º 1139/98, de 12/06/2008, Processo n.º 4375/07, mencionados na obra acima citada (Código de Processo Penal Comentado, pag. 1399/1401).
E não há dúvida de que a pretensão aqui formulada está muito próxima, se não a abraçar mesmo, da dita postura de varrimento completo do decidido, tantos são os pontos concretos cuja alteração reclama – e repare-se que não são pontos concretos constantes de pontos relativos à numeração da factualidade dada como provada na decisão, são os textos integrais de muitos (praticamente todos a si respeitantes, dir-se-ia) desses pontos com função numerativa.

E, repare-se bem, toda a argumentação recursiva tem que ver com credibilidade das provas (de uma testemunha, designadamente) e não com erros evidentes de julgamento. No julgamento efetuado, o tribunal recorrido, perante meios de prova com diferentes conteúdos, decidiu, optou, explicando essa opção, por aceitar uns em detrimento de outros, por valorizar alguns e desconsiderar outros, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, o que, compreensivelmente, desagradou ao recorrente, o qual, na argumentação a este respeito expendida na motivação e nas conclusões, se dedica à enunciação do seu modo de valorar essas declarações/depoimentos e na elaboração de comentários à prova produzida  – na verdade, o que a recorrente apresenta, é um autêntico, novo e diametralmente diferente julgamento da matéria de facto, da sua inteira autoria, eventualmente defensável, é certo, intelectualmente aceitável ou possível, é verdade, mas descabido, por não recair sobre si essa tremenda responsabilidade que se traduz na reconstituição histórica do passado através da apreciação das provas recolhidas e apresentadas; na verdade sobre si recaem também enormes responsabilidades processuais, mas não essa.

Todavia, sendo pertinentes as observações constantes do parecer do Ministério Público a respeito da escassez recursiva nesta sede, podemos, com um critério lato, por assim dizer, aceitar que a recorrente deu mínima satisfação às exigências legais indispensáveis à apreciação da sua pretensão recursiva em sede de julgamento de facto: pontos impugnados (embora por atacado), indicação das provas e seu conteúdo (um microscópico excerto de um depoimento, assinale-se), a ainda a referenciação relativa à sua localização na gravação digital, e o sentido da decisão pretendida.

A posição da recorrente, em síntese, é a seguinte: o depoimento da testemunha EE não deve ser considerado como sério e credível, tal como decidiu o tribunal, antes se impondo que sobre ele incida um juízo de incredulidade, ou, pelo menos, de razoável dúvida, atentas as contradições e mentiras (sic) em que incorreu.

Na verdade, diz-se nas conclusões que:

XXXIII) Fácil é de ver que não poderá ser dada credibilidades a esta testemunha, pedra basilar da condenação, já que os próprios testemunhos no processo da testemunha são contraditórios.
XXXIV) Razão pela qual não se entende como pôde o tribunal a quo, e salvo o devido respeito, considerar que a testemunha EE teve um registo “sincero, escorreito e objectivo”, quando o seu depoimento foi absolutamente incoerente, parcial, resultando do mesmo incongruências notórias e crassas quanto à ocorrência dos factos.
XXXV) Sendo certo que a única conclusão que se pode retirar daqui é que esta estará a mentir,

Para estribar a sua posição, a recorrente invoca na motivação a brevíssima passagem que se situa ao minuto 07:10 deste depoimento.

Ouvido o depoimento na íntegra, resulta claramente deste que a testemunha afirma que a referida DD nunca trabalhou no seu estabelecimento (minuto 03:27), que a não conhece nem nunca a viu, e que quando com isso foi confrontada pelas autoridades competentes, se dirigiu de imediato ao coarguido AA que aceitou que tal tinha ocorrido, é certo, mas que fora por engano, uma vez que queria “registar” a dita DD em nome de uma outra entidade patronal, igualmente de nome EE, mas de ligeirissimamente diferente apelido (minuto 04:00), justificação, naturalmente, não aceite pelo tribunal, por manifestamente implausível e sem qualquer demonstração documental.
É certo que a testemunha também disse, tal como se refere na motivação, que nunca teve trabalhadores (minuto 07:00) e, que, depois, perguntada pela defesa, admitiu que a irmã, em tempos, trabalhou no seu estabelecimento por um ano, no âmbito dos incentivos à concessão de primeiro emprego, e que, terminado esse incentivo foi trabalhar para o Sr. AA (sic), explicando, depois (minuto13:00), que quis dizer que a irmã também recorreu aos serviços de contabilidade deste arguido – ora, nenhuma destas incidências do depoimento têm  a potencialidade destrutiva proclamada pelo recorrente, sendo perfeitamente normal que se não assimile, de imediato, uma irmã a trabalhar naquelas condições a um trabalhador/empregado/funcionário, algo de muito mais impessoal e até alheio, e tendo ficado absolutamente claro, pela intervenção do juiz presidente, que a afirmação foi trabalhar para o Sr. AA pretendia significar que a irmã recorreu aos serviços de contabilidade desta pessoa quando se estabeleceu por conta própria.

Repare-se o modo coincidente como o tribunal recorrido expressa a sua convicção:

EE, cabeleireira, num registo que se nos afigurou sincero, escorreito e objectivo, confirmou ter contratado os serviços do arguido AA para gerir a sua contabilidade, atenta a sua empresa consistente num salão de cabeleireira. Mais referiu que, certo dia, foi convocada pela AT, para prestar esclarecimentos, momento em que foi confrontada com o facto de ter uma trabalhadora registada e associada à sua empresa, a aqui arguida DD, o que a deixou incrédula, pois que para além de não conhecer aquela arguida, nunca teve trabalhadores ao seu cargo, trabalhando sozinha. Na sequência dessa revelação, contactou o arguido AA, exigindo explicações, tendo este procurado explicar a situação com um erro de registo ou de troca de empresas. Mais relatou a testemunha, de forma assertiva, que, foi após aquele contacto com a AT que foi procurado por um homem, que se identificou como marido da arguida DD, o qual tentou convencê-la a, junto da Segurança Social, confirmar que a citada arguida era mesmo sua trabalhadora, ou seja, que fosse prestar falso depoimento,

Assim sendo, é evidente que as inócuas minudências invocadas em nada afetam, nem podem afetar, a credibilidade da testemunha, nem a seriedade do seu depoimento, como muito bem decidiu o tribunal recorrido.

E muito menos se justifica o uso neste caso da palavra mentira.

“A mentira não se define simplesmente por uma duplicidade ou por uma dobrez. Para haver mentira, rigorosamente, essa falsidade de e na significação – segunda, porque se dá numa esfera alargada da subjetividade comunicativa – tem que se encontrar operada por uma vontade intencional, por propósito deliberado, de enganar.
A expressão de Pascal, que a propósito me vem à lembrança - «a qualidade do mentiroso encerra a intenção de mentir» - pode, à primeira vista, parecer algo redundante, mas ela visa, contudo, sublinhar e reforçar esta dimensão de desígnio assumido que preside ao ato de mentir.
Esta maneira de empreender uma caracterização da mentira, a partir de um intento deliberado ou voluntário de induzir o outro em erro (quer no que à objetividade de um dado estado de coisas diz respeito, quer, desde logo, no que concerne à genuína posição de quem tem a palavra), apresenta, aliás, uma genealogia vetusta.
Na Antiguidade, esta linha de abordagem está fortemente presente e ativa, muito em particular, nos ambientes estoicos, e não deixou de se transmitir ao pensamento romano, para o qual era familiar a lida com uma distinção entre «mentir» (mentiri) e «dizer mentiras» (mendacia dicere), isto é, no fundo, entre «errar» (errare) e «dizer o falso» (falsum dicere).
(…)
Todavia, neste particular, as formulações canónicas de Aurélio Agostinho. onde avulta e é recorrente como operador de identificação, precisamente, a expressão voluntas fallendi, «vontade de enganar» - acabarão por constituir o núcleo duro ou fundante da noção de mentira, que, em boa verdade, acabou por adquirir direito de cidade no âmbito da nossa cultura, mesmo quando as suas origens mais remotas permanecem desconhecidas ou obscurecidas.
Fique então aqui o registo da definição agostiniana clássica, segundo uma versão que ocorre no tratado De mendacio: «é manifesto ser a mentira uma enunciação falsa proferida com vontade de enganar (cum voluntatem ad fallendum prolata))».

Sob este ponto de vista preciso da determinação categorial, Tomás de Aquino limita-se, em larga medida, a sistematizar, dentro do seu instrumentário de pensamento, esta doutrina de ascendência mais antiga, dispersa por diferentes tratados e passagens diversas.
É, designadamente, que acontece quando, na Suma teológica, se assinala a necessária convergência na mentira de três condições de falsidade - «material», «formal», e «efetiva» (ou «efetuante») – expressa nos seguintes requisitos:
«que aquilo que é enunciado seja falso» (quod falsum sit id quod enuntiatur),
«que esteja presente uma vontade de enunciar o falso» (quod adsit voluntas falsum enuntiandi),
e, «em segundo lugar, (que esteja presente) a intenção de enganar (iterum intentio fallendi).” - cfr. José Barata-Moura, Da Mentira: Um Ensaio – Transbordante de Errores, Caminho, Coleção Universitária, pag. 93/95.

Ora, na posse destes lúcidos ensinamentos do citado insigne filósofo e professor da Faculdade de Letras de Lisboa, com base nos trabalhos do Bispo de Hipona e do chamado Anjo das Escolas, podemos com inteira lucidez distinguir o que é errar (seja por confusão, esquecimento, precipitação, nervosismo, ou qualquer outro motivo) e o que é mentir (transmitir a outrem algo falso com vontade de o fazer e de, assim, o enganar).

E é evidente que a testemunha errou, ao não ter logo dito que teve outra pessoa a trabalhar para si, designadamente a sua irmã, e ao afirmar que esta foi, depois, trabalhar para o arguido AA, mas não o fez com vontade de assim proceder, nem para enganar o tribunal –aliás, nem se vislumbra que motivo teria para o fazer ou que proveito daí poderia para si advir, vetores essenciais na apreciação daqueles elementos subjetivos da mentira (qual o interesse da testemunha em proporcionar à recorrente a possibilidade de auferir prestações da Segurança Social se nem a conhece e nunca a viu!).

Assim, as incidências cirurgicamente detetadas pela recorrente no depoimento desta testemunha, esgrimidas quase com o entusiasmo de Arquimedes, em nada beliscam a sua credibilidade, sendo até sinal da sua total espontaneidade e franqueza, pelo que nada há a censurar ao decidido nesta sede.

Nesta conformidade, não existe qualquer motivo para a convocação do princípio decisório em sede de matéria de facto in dúbio pro reo, quer por ser evidente que não germinou no espírito do tribunal recorrido o mais pequeno grão de dúvida, quer porque entendemos ainda, atento o acima decidido, que nada impõe que tal dúvida se afirme nos autos.

O recurso soçobra, portanto, também nesta parte.

III DISPOSITIVO

Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso apresentado por DD, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCs.
Guimarães, 19 de Março de 2024,

Os Juízes Desembargadores

Bráulio Martins
Paulo Almeida Cunha
Armando Azevedo