Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
394/17.9T8VVD.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DIREITO DE PROPRIEDADE
RESTRIÇÕES
ESCOAMENTO NATURAL DE ÁGUAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulho que elas arrastam na sua corrente.
II - Em face do preceituado no artigo 1351º n.º 1 do Código Civil, não é permitida qualquer modificação no escoamento natural das águas, não podendo o dono do prédio inferior fazer obras capazes de perturbar esse escoamento natural, nem o dono do prédio superior fazer obras que o agravem.
III - O escamento das águas do prédio superior através de um tubo de plástico colocado para descarga direta das águas sobre o prédio inferior constitui uma alteração artificial, realizada pelo homem, ao curso normal das águas que, se inexistisse o referido tubo, escorreriam de forma livre, distribuindo-se naturalmente, sendo o seu recebimento no prédio inferior determinado apenas pela inclinação existente e demais características do terreno.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

T. J., viúva, reformada, com domicílio no Lugar …, n.º 19, freguesia de …, Terras de Bouro, por si e em representação da Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu marido A. D. veio intentar a presente Ação de Processo Comum contra J. M. e mulher T. P., casados entre si no regime de comunhão geral de adquiridos, ambos com domicílio no Lugar …, n.º .., freguesia de …, Terras de Bouro, pedindo a condenação dos Réus:

a) A reconhecerem que o prédio identificado no artigo 2º da petição inicial faz parte da Herança indivisa, aberta por óbito de A. D., falecido em -/11/2014;
b) A reconhecerem que esse mesmo prédio não está onerado com qualquer ônus ou servidão a favor do prédio dos réus;
c) A removerem o coletor/ reservatório de água e respetivas tubagens, referidos nos artigos 11º 12º, 13º, 14º e 15º da petição inicial que implantaram no prédio da herança representada supramencionado;
d) A removerem o tubo para descarga de águas referido nos artigos 16º, 17º e 18º da petição inicial;
e) A não estorvarem, seja por que modo for, direito de propriedade e a posse da herança sobre o prédio rústico em questão nos autos;
f) A pagarem uma indemnização à autora, a título de danos não patrimoniais, em quantia nunca inferior a €1.500,00.
A Autora requereu a intervenção principal provocada, do lado ativo, para garantir a legitimidade dos representantes da herança aberta por óbito de A. D., ou da própria herança representada pela Autora, em conformidade com o disposto no artigo 2091º do Código Civil de: F. M., com domicílio em …, Canada e S. R., e mulher S. F., casados sob o regime da comunhão de adquiridos, ambos com domicílio no Lugar do …., n.º …, União das freguesias de … e …, Terras de Bouro.
Citados os Réus vieram contestar, defendendo-se por impugnação e alegando que o reservatório foi construído antes do falecimento do marido da Autora e só no prédio dos Réus e que o valado para onde escorre a água pertence exclusivamente aos Réus.
Invocam ainda que o prédio da herança está onerado com uma servidão de escoamento.
Pugnam pela improcedência da ação, e respetiva absolvição do pedido.
Foi proferido despacho saneador, que fixou o valor da causa, dispensando-se o despacho de enunciação de objeto do litígio e fixação dos temas da prova.
Foi admitida a intervenção principal de F. M., S. R. e mulher S. F. os quais, regularmente citados, nada vieram declarar ou requerer.

Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“De acordo com o exposto, e de harmonia com os preceitos legais supra citados, julga-se a ação parcialmente procedente, e consequentemente, decide-se:---
i. Condenar os Réus a reconhecer que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio melhor identificado no ponto 3) da factualidade provada;---
ii. Condenar os Réus a reconhecerem que o referido prédio rústico não se encontra onerado com qualquer ônus ou servidão a favor do prédio dos réus;---
iii. Condenar os Réus a não estorvarem, seja por que modo for, o direito de propriedade e a posse dos autores sobre o referido prédio rústico;---
iv. Condenar os Réus a removerem tubo subterrâneo melhor descrito no ponto 10) dos factos provados na parte em que atravessa o referido prédio rústico propriedade dos autores;---
v. Absolver os Réus do demais peticionado;---
Custas da acção a cargo de Autores e Réus, fixando-se a proporção em 75% para os primeiros e 25% para os segundos”.

Inconformada, veio a Autora T. J. interpor recurso da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“1. – A decisão da matéria de facto acha-se incorretamente proferida quanto a vários dos seus Pontos, do que resultou uma errada aplicação do direito, com a sentença proferida a absolver os réus de alguns dos pedidos formulados pela ora recorrente, a saber:
a) – Condenar-se os réus a removerem o tubo para descarga de águas referido nos artigos 16º, 17º e 18º; da petição inicial;
b) – Condenar-se os réus a removerem o coletor/reservatório de água e respetivas tubagens, referidos nos artigos 11º 12º, 13º, 14º e 15º da petição inicial, que abusivamente implantaram no prédio da herança representada por Autora e demais herdeiros;
c) – Condenar-se os réus removerem a caixa de cimento e respetivas tubagens que abusivamente implantaram no prédio da herança.

Da absolvição do pedido referido em a):
2. – Resulta da prova pericial e inspeção judicial que existe um valado entre o prédio rústico da herança e o prédio rústico dos réus e que este último se encontra em cota superior relativamente ao primeiro.
3. – No cimo do mesmo valado ou talude, existe um outro tubo de plástico para descarga direta de águas sobre o prédio referido (Ponto 11) dos factos provados),
4. – Conforme vertido na douta sentença recorrida “havendo um desnível entre o prédio dos autores e o prédio dos réus (encontrando-se este último a uma cota superior), temos, pois, que o prédio dos autores não está onerado por qualquer servidão de águas, mas está obrigado a receber as águas que naturalmente decorrem dos prédios superiores, nos termos do mencionado art. 1351º do CC. Trata-se por isso, de uma restrição ao direito de propriedade dos autores e não de uma servidão”.
5. – Efetivamente, resulta da prova produzida que os prédios rústicos em causa são confinantes entre si e que o prédio dos réus se situa num plano ou cota superior relativamente ao da herança e que, por força do estatuído no artigo 1351.º do Cód. Civil, o este último prédio está sujeito a receber as águas pluviais que naturalmente derivam do prédio dos réus, não estando em causa qualquer servidão de escoamento.
6. – Todavia, na fundamentação de direito, o Meritíssimo Juiz «a quo» conclui não resultar da matéria fáctica apurada “que tais obras levadas a cabo pelos réus tenham agravado o escoamento, nem que estas tenham alterado o estado natural das coisas no que já que eles continuam a receber, nas mesmas condições, as mesmas águas que receberiam se não tivessem sido efetuadas as obras. Assim, dos elementos dos autos teremos de concluir que as obras efetuadas pelos réus são permitidas e se circunscrevem no âmbito das restrições ao direito de propriedade, não implicando a constituição de qualquer servidão”.
7. – Salvo melhor opinião em contrário, o facto de os réus terem colocado um tubo a sobrevoar o valado que existe entre ambos os prédios rústicos, constituiu por si só um desvio ou uma alteração artificial ao curso normal das águas que, de outra forma, sempre escorreriam livremente, distribuindo-se de forma natural, sem obra do homem, pelas terras do mencionado valado, situação em que a sua progressão para o prédio da autora seria apenas determinada pela inclinação e demais caraterísticas do terreno.
8. – Tal não sucede com a colocação do tubo em causa que, de forma artificial, altera o curso normal ou natural das águas, dando-lhe direção diferente daquela que seria determinada pela mera ação da gravidade, o que até vai confirmado nos esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito em aditamento ao relatório pericial realizado nos autos, quando refere “que a descarga frequentemente ocorre de forma projetada e não de forma rasante ao muro existente”.
9. – De mais a mais, o tubo faz com que as águas sejam convergidas para um único local, ao invés de se espalharem, e até sumir, pelas terras do valado.
10. – Na douta sentença de que recorre, foram os réus condenados “a reconhecerem que o referido prédio rústico não se encontra onerado com qualquer ônus ou servidão a favor do prédio dos réus”.
11. – Aqui chegados, não existindo qualquer servidão, aos réus não lhes é lícito fazer escoar as águas da forma que o fazem, através do tubo que colocaram no valado, violando o disposto no 1563.º do Código Civil.
12. – Na verdade, o princípio plasmado no artigo 1351º, n.º 1 do Código Civil é o de que as águas devem seguir o seu curso natural, sem que os donos dos prédios de onde as mesmas brotam, possam impor a outrem a alteração artificial do seu fluxo, através da efetivação de obras.
13. – Assim, salvo o devido respeito, nesta concreta questão ou pedido, ao decidir, como decidiu, a douta sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do artigo 1351.º do Código Civil, impondo-se decisão diversa à proferida pelo Tribunal «a quo», condenando os réus a retirarem o tubo o removerem o tubo para descarga de águas referido nos artigos 16º, 17º e 18º da petição inicial.

Da absolvição dos pedidos referido em b) e c):
14. – A questão aqui a dirimir era a de saber em que terrenos se encontram implantados o reservatório de água e a caixa de cimento, mencionados, respetivamente, nos pontos 7) e 13) do elenco dos factos provados.
15. – Relativamente a esta questão, o Tribunal recorrido não analisou e ponderou convenientemente, a prova por inspeção judicial, documental e pericial nos autos produzida;
16. – A sentença recorrida considerou como não provado que o reservatório e a caixa de cimento se encontrem implantados dentro dos limites do prédio da herança (alíneas B) e D) da factualidade dada por não provada).
17. – Ora, a recorrente discorda do julgamento desta concreta matéria de facto, por considerar que o Tribunal «a quo» deveria, ao invés, ter dado como provada essa factualidade.
18. – Efetivamente, entende a recorrente que a prova produzida nos autos revela que as construções realizadas pelos réus foram edificadas dentro dos limites do prédio da herança do marido.
e o prédio rústico dos réus e que este último se encontra em cota superior relativamente ao primeiro.
20. – A recorrente alegou que ambas as construções (reservatório e caixa de cimento) se encontram dentro dos limites do prédio da herança cuja estrema se estende, no local em questão, até à linha inferior do valado de suporte do prédio rústico dos réus.
21. – Contudo, entendeu o tribunal recorrido que a autora “não fez prova de que os equipamentos acima referidos se encontram localizados dentro dos limites da sua propriedade, uma vez que não se logrou apurar de todo onde termina o prédio dos autores e começa o prédio de que os réus se arrogam proprietários”.
22. – A este respeito julgou ainda provado que “implantado” no “valado/talude que podemos observar no local, existe um reservatório/coletor de águas, com 1,50 metros de diâmetro e com uma altura de 0,5 metros…” - (ponto 7) dos factos provados).
23. – Mais se considerou provado que “pelo menos desde o dia 12 de novembro de 2021, existe mesmo ao lado do reservatário de água uma caixa em cimento, de forma quadrada, construída pelas réus fora dos limites do muro de suporte de terras do prédio referido em 6)…” (ponto 13) do factos provados).
24. – Quanto à questão dos limites dos prédios ou em que prédios foram construídos o reservatório e a caixa de cimento, entendeu o Tribunal recorrido que “a prova oferecida foi manifestamente insuficiente para se concluir a qual dos prédios pertence o valado/talude observado no local, e, nessa medida, onde se encontram implantadas as aludidas construções”.
25. – Entende o recorrente que o Tribunal “a quo” não fez uma correta apreciação da prova produzida e que teve, como consequência, o errado julgamento da matéria de facto controvertida.
26. – Desde logo, pela análise das fotografias junto aos autos na petição inicial e articulado superveniente apresentados pela recorrente, bem como do relatório pericial, emerge que o reservatório de água não se encontra “implantado” no valado, mas tão somente encostado ou junto ao mesmo.
27. – Consequentemente, o ponto 7) dos factos provados deve ser alterado, concluindo-se que o reservatório/coletor de águas encontra-se junto ou encostado ao valado/talude e não nele “implantado”.
28. – Igualmente em discordância relativamente ao decidido pelo Tribunal «a quo», entende a ora recorrente que da prova produzida resulta demonstrado que o reservatório de água e a caixa de cimento foram construídos dentro dos limites do prédio da herança. 29. – Neste concreto ponto de facto, não se retirou, do relatório pericial (incluindo os respetivos esclarecimentos) e das realizadas inspeções judiciais, as devidas conclusões relativas à definição dos limites dos prédios em causa.
30. – Na verdade, resulta inequivocamente destes dois meios de prova que o prédio dos réus encontra-se a uma cota superior relativamente ao prédio rústico da herança e que entre eles existe um valado ou talude.
31. – Como é consabido, tal como um muro, os valados têm a função de suportar os terrenos ou leiras de prédios que se encontram em cota superior relativamente aos inferiores com os quais confinam, sendo, também eles, partes integrantes desses prédios (superiores).
32. – Maioritariamente, são os valados de terra que delimitam os prédios rústicos, situação em que assumem ou têm a função de marco divisório entre propriedades.
Esta é, sem qualquer dúvida, a situação em apreço nos autos.
33. – Como muito bem foi comprovado pelo Tribunal recorrido, na inspeção judicial, “constata-se que existe um valado/talude entre uma e outra propriedade, composto maioritariamente por terra, ervas, arbustos e algumas pedras soltas, com sensivelmente 2,30 metros de altura, sem parede nem pedras visíveis (isto no local onde o reservatório se encontra implantado), situando-se depois um muro no mesmo enfiamento do reservatório. Entre o reservatório e a primeira pedra visível, verificou-se no local que a superfície tinha raízes firmes (como decorre do auto de inspeção)”.
34. – Contudo, acrescenta o Meritíssimo Juiz «a quo» ”que não se vislumbrou no local quaisquer elementos concludentes que comprovassem de forma séria e objetiva que a delimitação entre prédios fosse feita a partir de algum marco (seja ele uma pedra, muro, ou o próprio rego de água a que se faz referência no auto de inspeção ao local)”.
35. – Neste concreto ponto, a recorrente não pode, mais uma vez, concordar com o Tribunal recorrido, pela simples, mas determinante, razão de que no próprio auto da inspeção judicial, refere-se que por cima do reservatório (ou atrás dele) “estão edificadas pedras que suportam o prédio dos réus”, sustentando-o, o que desde logo contraria a conclusão vertida na douta sentença, relativamente à não existência de qualquer pedra ou muro balizador dos limites, no caso, do prédio rústico dos réus (cfr. foto n.º 2 do auto de inspeção ao local, de 03-12-2020).
36. – O mesmo auto de inspeção judicial ao local complementa que no local concreto onde se encontra o reservatório, o valado apresenta uma curvatura para dentro do prédio dos réus, acompanhada por uma parte de muro em pedra, “situando-se o reservatório do lado de fora dessa curva”, ou seja, para cá do valado e antes das ”pedras que suportam o prédio dos réus”, isto, se observarmos o local desde o prédio da herança.
37. – Mas se algumas dúvidas ainda pudessem permanecer quanto à questão da linha divisória dos prédios e em quais deles se encontra implantado o reservatório, as mesmas ficaram definitivamente desfeitas quando os réus, no decurso da ação e após a realização da inspeção judicial ao local de 03-12-2003, construíram uma caixa de cimento junto ao reservatório de água.
38. – Tal qual consta do ponto 13) dos factos provados, essa caixa de cimento foi “construída pelos réus fora dos limites do muro de suporte de terras do prédio referido em 6)” – prédio rústico dos réus –.
39. – Mais resultou provado - ponto 14) – que “junto ao reservatório, os réus reconstruíram parte do muro de suporte do valado do prédio rustico referido em 6)” – prédio rústico dos réus –. (cfr. fotografias juntas ao articulado superveniente apresentado pela recorrente em 18-11-2021).
40. – Ora, ao terem reconstruído o muro de suporte do valado naquele preciso local, caracterizado por apresentar uma curvatura para dentro do prédio do seu prédio rústico, os réus fizeram-no na linha limite do seu terreno, tal qual configurado pela recorrente, tendo os mesmos réus respeitado ou tido em devida atenção a referida curvatura do valado.
41. – Assim sendo, para além da existência em si do falado valado, o muro reconstruído pelos réus traduz-se em mais um elemento concludente que o Tribunal «a quo» afirmou não ter encontrado de modo a comprovar “de forma séria e objetiva que a delimitação entre prédios fosse feita a partir de algum marco”.
42. – Como é fácil de confirmar, o reservatório e a caixa de cimento encontram-se encostados ao muro, portanto, fora dos limites por ele estabelecidos para o prédio dos réus, relativamente ao prédio da herança, servindo como derradeiro marco delimitador de ambas as propriedades.
43. – Em suma, é entendimento da ora recorrente que o limite dos prédios rústicos em causa é determinado pelo valado existente entre eles, sendo parte integrante do prédio dos réus, servindo-lhe de suporte.
44. – Por outras palavras, o limite ou estrema do prédio da herança coincide com a base inferior do valado/talude do prédio rústico dos réus, concluindo-se, indubitavelmente, do relatório pericial, das duas inspeções judicias realizadas ao local e das fotografias juntas às peças processuais apresentadas pela recorrente, de que o reservatório e a caixa de cimento encontram-se edificados fora dos limites desse mesmo prédio rústico dos réus.
45. – Posto isto, atentas as razões supra aduzidas, deve ser alterada a matéria de facto, uma vez que houve erro na apreciação da prova (art.º 662º, do Código de Processo Civil), existindo desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão da matéria de facto.
46. – Na verdade, da prova produzida, seja documental, pericial e por inspeção judicial, deviam resultar provados os factos das alíneas A) e D) dados como não provados na douta sentença recorrida.
47. – Pelas mesmas razões, como atrás já se alegou, deve ser alterado o facto do ponto 7), da factualidade dada por provada, concluindo-se que o reservatório/coletor de águas encontra-se encostado ou junto ao valado/talude e não nele “implantado”.
48. – Em consequência, atento o disposto nos artigos 1302.º, 1305.º, 1311.º e 1344.º do Código Civil. devem os réus ser condenados a retirarem o reservatório e a caixa de cimento, incluindo tubagens e demais acessórios neles incluídos, por se encontrarem dentro dos limites do prédio rústico da herança”.
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso e consequentemente pela revogação da sentença recorrida, na parte ora impugnada, e sua substituição por acórdão que condene igualmente os Réus a: removerem o tubo para descarga de águas referido nos artigos 16º, 17º e 18º da petição inicial, removerem o coletor/reservatório de água e respetivas tubagens, referidos nos artigos 11º, 12º, 13º, 14º e 15º da petição inicial que implantaram no prédio da herança e a removerem a caixa de cimento e respetivas tubagens que abusivamente implantaram no prédio da herança, conforme alegado em articulado superveniente.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:

1 - Determinar se houve erro no julgamento da matéria de facto quanto ao ponto 7) dos factos provados e aos pontos B) e D) dos factos não provados;
3 - Determinar se houve erro na subsunção jurídica dos factos.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:
1) No dia - de novembro de 2014, faleceu A. D., no estado de casado com a autora, em primeiras núpcias de ambos, sob o regime da comunhão de adquiridos;
2) O falecido deixou, como seus únicos e universais herdeiros, para além da sua esposa, aqui autora, os seus dois filhos F. M., e S. R., casado com S. F.;
3) Encontra-se registado a favor da herança ilíquida e indivisa de A. D. o prédio rústico, denominado Campos de … e …, constituído por cultura arvense de regadio, sito no lugar ..., freguesia de ..., concelho de Terras de Bouro, a confrontar do Norte com A. T. e outro, do Sul com o prédio dos réus, adiante identificado, do Nascente com Ribeiro e do Poente com I. S., outro e Caminho, inscrito na matriz rústica sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/20170113;
4) O prédio referido em 3) foi adquirido pela autora e pelo seu falecido marido, na constância do matrimónio, por escritura pública de compra e venda outorgada em 9 de março de 1984, no extinto Cartório Notarial de …, constando da verba nº 6 da Relação de Bens anexa à mesma escritura;
5) A autora e filhos, por si e antecessores legítimos, detêm e fruem esse prédio, habitando, agricultando-o e colhendo, fazendo seus, os respetivos frutos e rendimentos ou ocupando por qualquer outra forma o prédio desde há mais de 20, 30 e 50 anos, de modo ininterrupto, sempre no seu interesse e proveito, com ânimo de quem é dono exclusivo, à vista e com o conhecimento de toda a gente nisso interessada, incluindo os réus, sem qualquer estorvo ou turbação;
6) Encontra-se registado a favor dos réus o prédio rústico, denominado Campo da …, sito no referido lugar ..., da freguesia de ..., Terras de Bouro, a confrontar do Norte com o prédio melhor descrito em 3), do Sul com Z. M. e outro, do Nascente com Ribeiro e do Poente com Caminho Público, inscrito na matriz rústica sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/19880315;
7) Implantado valado/ talude que podemos observar no local, existe um reservatório/coletor de águas, com 1,50 metros de diâmetro e com uma altura de 0,5 metros, construído com um anel de betão e com uma tampa também em betão, ambos pré-fabricados;
8) O reservatório referido em 7) serve para receber águas pluviais ou outras captadas no prédio referido em 6);
9) No interior do reservatório é visível a boca de um tubo proveniente do prédio referido em 6) e que para ali transporta as águas;
10) Depois de caírem no reservatório, as águas são canalizadas para local desconhecido através de um tubo subterrâneo de cor alaranjada que, saindo do reservatório, atravessa o prédio referido em 3) no sentido sul para norte, junto ao seu lado nascente;
11) No cimo do mesmo valado ou talude, existe um outro tubo de plástico para descarga direta de águas sobre o prédio referido em 3);
12) As obras referidas em 7) a 11) foram construídas pelos réus em data não concretamente apurada;
13) Pelo menos desde o dia 12 de novembro de 2021, existe mesmo ao lado do reservatário de água uma caixa em cimento, de forma quadrada, construída pelas réus fora dos limites do muro de suporte de terras do prédio referido em 6), com cerca de 30 cm de altura e 40 cm em todos os seus lados, com tampa metálica na sua parte superior, contendo no seu interior uma torneira de esfera e tubagens para condução de águas;
14) Junto ao reservatório, os réus reconstruíram parte do muro de suporte do valado do prédio rustico referido em 6);
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

A. Que no verão de 2015, a autora se tenha deslocado ao prédio rústico melhor descrito em 3) e constatado que nele tinha sido construído um reservatório/coletor de águas;
B. Que o reservatório referido em 6) se encontre dentro dos limites do prédio referido em 3);
C. Que a construção do coletor e respetivas tubagens subterrâneas, bem como a colocação do tubo para escoamento de águas tenham sido realizadas entre os meses de fevereiro e agosto de 2015;
D. Que a caixa de cimento referida em 13) tenha sido implantado em terrenos do prédio referido em 3);
E. Que tal situação tem causado incómodos à autora, sentindo-se ofendida e angustiada, bem como desgosto e ansiedade ao ver o prédio da herança devassado pelos réus;
F. Que o encanamento referido em 10) tenha sido feito há mais de dez anos com autorização expressa do falecido marido da autora, o qual ajudou inclusivamente o réu marido a fazer tal canalização no seu prédio.
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto

Sustenta a Recorrente que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto ao ponto 7) dos factos considerados provados e aos pontos B) e D) dos factos não provados.
Nos termos do disposto no artigo 662º n.º 1 do CPC “[A] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
O legislador impõe por isso ao recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto tal ónus de especificar, sob pena de rejeição do recurso.
No caso concreto, a Recorrente cumpriu satisfatoriamente o ónus de impugnação da matéria de facto, indicando que considera incorretamente julgados o ponto 7) dos factos considerados provados e aos pontos B) e D) dos factos não provados, o sentido da decisão que em seu entender se impõe e os elementos de prova em que fundamentam o seu dissenso.
Analisemos os motivos de discordância da Recorrente, começando por referir que a mesma no corpo das suas alegações e na conclusão 46) refere que deviam ser julgados provados os factos das alíneas A) e D) e nas conclusões 16) e 17) alega discordar do julgamento do tribunal a quo ao dar como não provada a matéria das alíneas B) e D).
Considerando que da alínea A) da matéria de facto consta como não provado que no verão de 2015, a Autora se tenha deslocado ao prédio rústico e constatado que nele tinha sido construído um reservatório/coletor de águas e que a Recorrente impugna a matéria relacionada com o terreno onde se encontram implantados o reservatório de água e a caixa de cimento, julgamos que só por manifesto lapso é feita menção à alínea A), pretendendo efetivamente a Recorrente impugnar os pontos B) e D) da matéria de facto não provada, o que, aliás, resulta também da pretensão da Recorrente de ver os Réus igualmente condenados a removerem o tubo para descarga de águas, a removerem o coletor/reservatório de água e respetivas tubagens, e a removerem a caixa de cimento e respetivas tubagens.

Os factos em causa têm a seguinte redação:
“7) Implantado valado/ talude que podemos observar no local, existe um reservatório/coletor de águas, com 1,50 metros de diâmetro e com uma altura de 0,5 metros, construído com um anel de betão e com uma tampa também em betão, ambos pré-fabricados;
B. Que o reservatório referido em 6) se encontre dentro dos limites do prédio referido em 3);
D. Que a caixa de cimento referida em 13) tenha sido implantado em terrenos do prédio referido em 3)”.
Sustenta a Recorrente que o ponto 7) dos factos provados deve ser alterado no sentido de que o reservatório/coletor de águas se encontra junto ou encostado ao valado/talude e não nele implantado.
Entende ainda que deve concluir-se que da prova produzida resulta provado que o reservatório de água e a caixa de cimento foram construídos dentro dos limites do prédio dos Autores.
Invoca a Recorrente o relatório pericial e as inspeções judiciais realizadas e conclui que os referidos reservatório e caixa se encontram construídos fora dos limites do prédio dos Réus, uma vez que se encontram encostados ao muro, servindo este como derradeiro marco delimitador de ambas as propriedades.
A questão, porém, não é tanto se as construções se encontram fora do prédio dos Réus, mas sim se se encontram dentro do prédio da herança.
Aliás, pelo tribunal a quo foi julgado provado que o reservatório se encontra implantado no valado e que a caixa de cimento foi construída pelos Réus fora dos limites do muro de suporte de terras do prédio dos Réus (ponto 13 dos factos provados); o que não deu como provado é que se encontrem dentro dos limites do prédio dos Autores, identificado em 3) dos factos provados.
Vejamos.

O tribunal a quo na motivação da sentença recorrida refere, o seguinte:
“(…) Relativamente à factualidade plasmada nos pontos 7) a 14) dos factos provados, a mesma resulta pacificamente da conjugação do relatório pericial junto aos autos (fls. 69-71 e 75-78), com a inspeção ao local realizada pelo Tribunal (e vertida no auto), e ainda com as diversas fotografias constantes nos autos (com as quais as testemunhas foram frequentemente confrontadas em audiência), e da globalidade da prova testemunhal produzida. Em suma, decorre à saciedade da prova produzida, que no local em questão existe – e podemos observar – um reservatório de água implantado no solo com as características descritas, um tubo de plástico para descarga direta de águas sobre o prédio referido em 3), um tubo subterrâneo de cor alaranjada que, saindo do reservatório, atravessa o prédio referido em 3), e ainda uma construção mais recente, que corresponde a uma caixa em cimento com as características elencadas.---
Relativamente a esta última (que por ser mais recente não foi objeto de prova pericial), importa tomar em conta que os factos alegados no articulado superveniente deduzido pela autora não foram objeto de impugnação especificada por parte dos réus, assim se considerando os mesmos como provados no que tange à existência da caixa de cimento e suas características (confirmadas na inspeção ao local). Diversamente, não foram considerados como provados os factos que se encontravam em oposição com as contestações no seu todo (isto é, quanto à implantação da caixa de cimento no interior dos limites do prédio referido em 3), pelas razões que melhor explicaremos mais abaixo). Dir-se-á, em todo o caso, que os réus admitiram expressamente terem sido eles os autores de cada uma das construções acima descritas, como resulta à saciedade das próprias contestações, e da globalidade da prova produzida em audiência.---
(…) Aqui chegados, as duas questões transversais que importou apurar-se em julgamento consistiram em saber, por um lado, em qual dos prédio se encontram implantadas as construções (reservatório e caixa de cimento); e, por outro lado, saber se foi ou não concedida autorização aos réus para fazer passar o tubo subterrâneo melhor descrito em 10) pelo prédio de que os autores se arrogam proprietários.---
Ora, relativamente à primeira questão, a prova oferecida foi manifestamente insuficiente para se concluir a qual dos prédios pertence o valado/ talude observado no local, e, nessa medida, onde se encontram implantadas as aludidas construções.---
Como é sabido, a jurisprudência dos nossos tribunais tem-se pronunciado pela negação da presunção a que se refere o art. 7.º do Código de Registo Predial relativamente às áreas e confrontações, isto é, a força probatória material de tais documentos só vai até onde alcançam as perceções da entidade documentadora, não abrangendo fatores descritivos, como as confrontações ou áreas – cf. entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.03.2014, processo n.º 555/2002.E2.S1, in www.dgsi.pt.---
Assim sendo, e começando pela realidade física do local (tal como percecionada na inspeção ao local realizada), constata-se que existe um valado/ talude entre uma e outra propriedade, composto maioritariamente por terra, ervas, arbustos e algumas pedras soltas, com sensivelmente 2,30 metros de altura, sem parede nem pedras visíveis (isto no local onde o reservatório se encontra implantado), situando-se depois um muro no mesmo enfiamento do reservatório. Entre o reservatório e a primeira pedra visível, verificou-se no local que a superfície tinha raízes firmes (como decorre do auto de inspeção). Contudo, não se vislumbrou no local quaisquer elementos concludentes que comprovassem de forma séria e objetiva que a delimitação entre prédios fosse feita a partir de algum marco (seja ele uma pedra, muro, ou o próprio rego de água a que se faz referência no auto de inspeção ao local). No relatório pericial afirma-se (e o Tribunal acompanha e reitera) que “os prédios não têm os seus limites perfeitamente definidos no local em questão, no entanto o reservatório encontra-se à cota do prédio da autora”. Ora, tal como consta do auto de inspeção ao local, o reservatório situar-se-á sensivelmente a 80 cm da cota do prédio da autora, e o acesso ao mesmo afigura-se mais facilitado se for feito através do prédio que fica a uma cota inferior, o que parece indicar uma maior probabilidade de estar efetivamente implantado no prédio melhor descrito em 3) de que a autora se arroga proprietária. Todavia, o juízo que o Tribunal pode fazer é de mera probabilidade, e não de certeza, até porque a demais prova produzida (nomeadamente testemunhal), foi escassa, vaga, imprecisa (nomeadamente em termos de referências cronológicas) e por vezes, contraditória, não permitindo sustentar qualquer uma das versões no que tange ao local e forma como é feita a delimitação entre os prédios. Vejamos:---
A. G., militar da GNR, referiu ter colaborado entre 2010 e 2015 nos trabalhos de poda e vindima no prédio da autora, frisando que até 2015 nunca lá viu nenhum reservatório, pelo que o mesmo só poderá ter sido construído nessa data; reiterou por mais do que uma vez que desconhece a delimitação concreta entre os prédios em questão, embora lhe “dê a sensação de ser (o reservatório) nos terrenos da dona T. J.”. Não conhecia o local anteriormente, e mesmo nos anos em que lá foi trabalhar, deslocou-se ali somente duas vezes por ano, respetivamente na altura da poda (fevereiro) e da vindima (outubro/ novembro).---
J. S., irmão da nora da autora, também referiu ter ajudado nos trabalhos da poda e da vindima durante quatro anos seguidos, embora não soubesse precisar quais, ou se havia sido antes ou depois do falecimento do marido da autora. Para além de revelar uma enorme confusão temporal, também mostrou ter pouca memória física do local (que apenas conseguiu descrever de forma vaga), além de que não tinha a certeza do “como” ou do “quando” o reservatório foi descoberto no local, embora tenha alegado que se encontrava a participar, integrado no grupo, nos trabalhos de limpeza do prédio em questão.---
Também B. F. mencionou que participava frequentemente nos trabalhos de vindima e poda do terreno, seguramente entre 2006 ou 2007 e 2017, referindo que o reservatório foi “descoberto” em 2015 aquando dos trabalhos realizados. Todavia, também esta testemunha referiu desconhecer os limites do terreno, e não soube precisar se até onde era feita a limpeza do terreno (se apenas na parte de baixo do valado, ou se ao longo de toda a superfície do valado).---
A. F., pai de B. F., prestou um depoimento muito defensivo, com uma postura trémula, nervosa, pouco à vontade, e com respostas vagas e sem qualquer tipo de concretização. Repetiu inúmeras vezes que não se lembrava de nada a não ser do depósito de água, não se recordando da existência de tubos, da poça de água ou do rego, ou de quem estava ou não no local quando o reservatório foi alegadamente “descoberto”. Manifestou também ele uma enorme dificuldade em descrever a realidade física do local.---
Por fim, R. R., irmã da autora, alegou conhecer o terreno de “toda a vida”, dizendo que sempre ajudou na poda e na vindima, e alegando estar no local quando o “reservatório” foi descoberto (estranhando-se que, entre as demais testemunhas ouvidas, ninguém se tenha referido à sua presença no local nessa data); apesar de revelar ter a certeza de que o reservatório estava implantado no terreno da sua irmã, não foi convincente a precisar como era feita a delimitação, referindo-se indistintamente a um muro de pedra antigo, ao mesmo tempo que referia que o valado sempre foi composto por terra e erva, “bocados de parede” e pedras soltas. No geral, adotou uma postura de defesa acérrima da posição da sua irmã, tendo prestado um depoimento pouco isento e imparcial que não mereceu credibilidade.---
Somou-se à prova oferecida pela autora, como vimos, pouco consistente e objetiva, uma versão distinta relatada pelas testemunhas indicadas pelos réus, em especial por J. V. e F. V., irmãos da ré, que vieram defender que o valado é parte integrante do prédio dos réus, e que sempre foram os réus os responsáveis pelos trabalhos de limpeza do valado, nos quais as testemunhas participavam. Tais depoimentos padecem da mesma falta de objetividade e isenção revelada pelas demais testemunhas, pois, enquanto irmãos da ré, não revelaram ser totalmente desinteressados e equidistantes do litígio (sendo claro o esforço feito para defender a posição dos réus), e na lograram convencer o Tribunal em como a delimitação dos terrenos sempre se fez pela poça de água, e não por qualquer outro meio. No mesmo sentido, a testemunha M. E. veio reforçar que trabalhou no local há mais de trinta anos para o “Sr. J. M.” (aqui réu), e que faziam a limpeza do valado “até cá baixo”, sendo o seu depoimento igualmente pautado por uma enorme abstração e falta de objetividade.---
Tudo conjugado, por se ter assistido a duas versões contraditórias entre si quanto aos limites de cada uma das propriedades – e o mesmo e diga quanto à data de construção do dito reservatório de água, sendo certo que até o próprio relatório pericial revela ser inconclusivo – e uma vez que as testemunhas oferecidas não se revelaram suficientemente isentas ou imparciais, ou verdadeiramente conhecedoras do local em litígio a fim de convencer o Tribunal da bondade da sua versão, temos, pois, que os aludidos factos foram julgados como não provados, segundo as regras da repartição do ónus da prova (art. 342.º, n.º 1 do CC), uma vez que sempre caberia à autora fazer prova dos factos constitutivos do direito de propriedade de que se arroga.--- (…)
Autora e réus foram ainda ouvidos em declarações de parte, limitando-se a defender as versões por si já defendidas nos articulados, não acrescentando qualquer outro facto relevante para a boa decisão da causa.---(…).
O tribunal a quo teve, por isso, o cuidado de começar por esclarecer a realidade física do local, tal como percecionada na inspeção ao local que realizou.
Salientamos aqui que para além do auto de inspeção ao local datado de 03 de dezembro de 2020, onde constam diversas fotografias do local, e que não foi levado a cabo pelo juiz que procedeu à audição das testemunhas e à elaboração da sentença, este teve o cuidado de proceder ele mesmo a tal diligência (realizada no dia 21 de janeiro de 2022) por entender ser de particular relevância que a diligencia de inspeção ao local fosse repetida, de forma a ter perceção direta do local, e não apenas através da consulta dos registos fotográficos constantes dos autos; importância acrescida em face do articulado superveniente (v. despacho proferido na sessão da audiência de 29/11/2021).
Ora, analisada a prova documental constante dos autos, os referidos autos de inspeção ao local, e o relatório pericial não vemos que esteja errada a convicção do tribunal a quo, e nem que dos mesmos resulte qualquer erro de julgamento quanto ao ponto 7) e às alíneas B) e D).
Importa referir que a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo conclua, com a necessária segurança, no sentido de que a prova produzida, aponta em direção diversa, e delimita uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª instância. O que não é manifestamente o caso.
Ao que acresce no caso concreto o conhecimento privilegiado do local por força da inspeção realizada que o juiz do julgamento teve o cuidado de repetir de forma a ter uma perceção direta do mesmo.
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Atualizada, página 435 a 436).
Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
Ora, o tribunal a quo na análise da prova equacionou a prova testemunhal produzida, , bem como as declarações prestadas pela Autora e pelos Réus, a prova documental, a inspeção que efetuou ao local, e a prova pericial, e fê-lo de forma crítica, fundamentada e exaustiva, esclarecendo através de raciocínio lógico a forma como formou a sua convicção, especificando os fundamentos decisivos para a formação da mesma e justificando os motivos da sua decisão, designadamente porque não julgou provado que o valado onde se encontram as construções pertence ao prédio identificado em 3) dos factos provados.
Ora, analisado os autos de inspeção ao local, em particular o que data de 03 de dezembro de 2020 onde constam diversas fotografias, e o relatório pericial, os mesmos não permitem concluir que o valado ou talude pertença ao prédio dos Autores.
O próprio perito nos esclarecimentos que prestou (a fls. 77 dos autos) refere que os prédios não têm os seus limites perfeitamente definidos no local em questão, encontrando-se o reservatório à cota do prédio da herança; já no referido auto de inspeção concretiza-se que o reservatório se situa a sensivelmente 80 cm da cota do prédio dos Autores e que por cima do mesmo estão edificadas pedras que suportam o prédio dos Réus, o qual se situa a uma cota superior.
Assim, tal como refere a Recorrente, em face do relatório pericial e do auto de inspeção, o que se conclui é não haver dúvidas de que o prédio dos Réus se situa a uma cota superior ao prédio da herança.
Analisado o auto de inspeção e as fotografias que do mesmo constam (disponíveis a cores na consulta via Citius), bem como o relatório pericial, e encontrando-se o reservatório a cerca de 80 cm da cota do prédio da herança, não permitem estes meios de prova de per si, considerar que o reservatório não se encontra implantado, mas apenas junto ou encostado ao valado, tando mais que o juiz que presidiu ao julgamento e elaborou a sentença se deslocou ao local e dele teve uma perceção direta.
E, se tal como refere a Recorrente, os valados tal como os muros têm a função de suportar os terrenos ou leiras de prédios que se encontram em cota superior relativamente aos inferiores com os quais confinam, sendo também eles partes integrantes desses prédios superiores, assumindo muitas vezes a função de marco divisório, não é possível também concluir, em face daqueles meios de prova que o reservatório implantado no valado ou talude, e a caixa de cimento, se encontrem em terreno do prédio dos Autores, e dar como provada a matéria das alíneas B) e D), como pretende a Recorrente.
De todo o exposto decorre não resultar fundamento para alterar a decisão recorrida quanto à matéria dada como provada e não provada, sendo certo que, conforme já referimos, é o tribunal de 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, que está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação.
Assim, mantêm-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª instância.
***
3.4. Reapreciação da decisão de mérito da ação

Tendo improcedido a pretensão da Recorrente quanto à reapreciação da matéria de facto e mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado e não provado pelo Tribunal a quo, importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa, apreciando os demais fundamentos invocados pela Recorrente.
Na decisão recorrida o tribunal a quo condenou os Réus a reconhecer que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio melhor identificado no ponto 3) da factualidade provada, a reconhecerem que o referido prédio rústico não se encontra onerado com qualquer ônus ou servidão a favor do prédio dos Réus, a não estorvarem, seja por que modo for, o direito de propriedade e a posse dos Autores sobre o referido prédio rústico e a removerem o tubo subterrâneo melhor descrito no ponto 10) dos factos provados na parte em que atravessa o prédio rústico propriedade dos Autores, absolvendo os Réus do demais peticionado.

O presente recurso, tal como delimitado pela Recorrente é, por isso, restrito à matéria respeitante aos pedidos de condenação dos Réus a:

a) A removerem o coletor/reservatório de água e respetivas tubagens;
b) A removerem o tubo para descarga de águas;
c) A removerem a caixa de cimento e respetivas tubagens,
pois que relativamente ao pedido de condenação a pagar à Recorrente uma indemnização, também julgado improcedente, a sentença recorrida não mereceu a sua impugnação.

Vejamos então se lhe assiste razão.
Quanto aos pedidos referidos em a) e c), não tendo procedido a pretensão da Recorrente de ver alterada a matéria de facto, designadamente dando como provados os pontos B) e D) da matéria de facto não provada, é manifesto que terá de manter-se a sentença recorrida nessa parte, em que julgou improcedentes os pedidos de condenação dos Réus a removerem o coletor/reservatório de água e respetivas tubagens e a removerem a caixa de cimento e respetivas tubagens.
Tal como refere o tribunal a quorelativamente ao reservatório de água melhor descrito no ponto 7) dos factos provados, e à caixa de cimento melhor descrita em 13) dos factos provados, ficou demonstrado que os mesmos se encontram implantados no valado/talude que podemos observar no local, sendo certo que, no que tange a essa parcela de terreno, a autora não logrou provar, como era seu ónus, que o prédio rústico de que é legítima dona e proprietária também abrange dentro dos seus limites o aludido valado, e, por conseguinte, não fez prova de que os equipamentos acima referidos se encontram localizados dentro dos limites da sua propriedade, uma vez que não se logrou apurar de todo onde termina o prédio dos autores e começa o prédio de que os réus se arrogam proprietários”.
Mantendo-se inalterada a matéria de facto, tal como fixada em 1ª Instância, resta concluir que não foi efetivamente feita prova de qualquer lesão ao direito de propriedade da Recorrente não podendo, por isso, proceder os pedidos de remoção quer do reservatório de água, quer da caixa de cimento, improcedendo desde já, e nesta parte, o recurso.
Analisemos agora o pedido referido em b): condenação dos Réus a removerem o tubo para descarga de águas.
Resulta da matéria de facto provada (ponto 11) que no cimo do valado ou talude existe um tubo de plástico para descarga direta de águas sobre o prédio identificado em 3) dos factos provados.
Não obstante ter reconhecido que o prédio não se encontra onerado com qualquer ónus ou servidão a favor do prédio dos Réus, foi entendimento do tribunal a quo que não resulta da matéria de facto apurada que as obras levadas a cabo pelos Réus tenham agravado o escoamento, nem que tenham alterado o estado natural das coisas, pois os Autores continuam a receber nas mesmas condições as águas que receberiam se não tivessem sido efetuadas as obras, concluindo que as obras são permitidas e se circunscrevem no âmbito das restrições ao direito de propriedade, não existindo qualquer violação do direito de propriedade dos Autores.
É contra este entendimento que se insurge a Recorrente sustentando que tal entendimento faz uma errada interpretação do artigo 1351º do Código Civil.
Vejamos se lhe assiste razão.
Sendo incontroverso nos autos que os Autores são proprietários do prédio identificado no ponto 3) dos factos provados, é inquestionável que dele podem gozar de “(...) modo pleno e exclusivo, dos direitos de uso, fruição e disposição, (...) dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas” (cfr. artigo 1305º do Código Civil, de ora em diante designado apenas por CC).
O direito de propriedade enquanto direito real de gozo máximo ou pleno é exclusivo - jus excludendi omnes allios - podendo o proprietário exigir a terceiros que o reconheçam e que se abstenham de perturbar o seu exercício (neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 2ª Edição, 1987, p. 93).
Da mesma forma, sendo os Réus donos e legítimos proprietários do prédio identificado no ponto 6) dos factos provados, dele podem também gozar nos mesmos moldes, mas sempre com respeito pelos limites da lei e pelas restrições por ela impostas.
Tais restrições a que se refere o artigo 1305º do Código Civil decorrem desde logo da necessidade de regular as relações de vizinhança, tendo por objetivo “regular conflitos de interesses que surgem entre vizinhos em virtude da impossibilidade dos direitos do proprietário serem exercidos plenamente sem afetação dos direitos dos vizinhos” (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit. p. 95); a este propósito refere também Henrique Mesquita (Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, p. 141) que se “a natureza exclusivista do direito de propriedade não sofresse temperamentos, tornar-se-ia impossível, nestas situações, conciliar os interesses conflituantes dos vários proprietários: cada um deles poderia impedir aos demais as formas de exercício que direta ou reflexamente, atingissem o seu imóvel. Simplesmente, nós sabemos já que o direito de propriedade só é exclusivo dentro dos limites postos pela lei (cfr. art. 1305º). E a lei estabelece várias restrições dirigidas precisamente a solucionar os conflitos que as situações ou relações de vizinhança podem originar (…)”.
Uma das restrições que o proprietário deve respeitar é a que resulta da constituição de uma servidão predial, a qual, sendo o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, dizendo-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia (artigo 1543º do CC), inibe o dono do prédio serviente de praticar atos que prejudiquem o exercício da servidão e, consequentemente, restringe o gozo pleno e efetivo por parte do mesmo.
In casu, não vem questionado nos autos que o prédio não se mostra onerado com servidão a favor do prédio dos Réus.
Contudo, a vizinhança imobiliária é suscetível de criar conflitos entre os proprietários vizinhos, e a lei procura regular as relações que se estabelecem em razão dessa vizinhança, estabelecendo restrições normais ao direito de propriedade decorrentes dessas relações de vizinhança, não sendo permitido ao proprietário fazer no seu prédio tudo aquilo que à primeira vista se poderia compreender no conteúdo geral do direito de propriedade, designadamente se daí resultar prejuízo para os prédios vizinhos, em particular para os que fiquem a cota inferior.
Compreendem-se nessas restrições ou limitações ao direito de propriedade as que emanam do artigo 1351º do CC, a que se refere a Recorrente, e que estabelece que “os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastem na sua corrente” (n.º 1) e que “nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida” (n.º 2).
Assim, quando exista um terreno inclinado, do qual as águas podem correr naturalmente, o proprietário do prédio situado a nível inferior está obrigado a receber essas águas oriundas do prédio superior.
Contudo, os proprietários só estão obrigados a receber as águas que decorrem “naturalmente e sem obra do homem” dos prédios superiores, e já não as que nestes se acumulam por derivação ou que são encaminhadas, por obra humana, para o prédio inferior.
No referido normativo legal consagra-se o princípio de que as águas devem seguir o seu curso natural, sem que os seus utentes ou os donos dos prédios imponham a outros a alteração artificial desse fluxo normal.
As águas que o prédio inferior está obrigado a receber são apenas as que decorrem naturalmente, e sem obra do homem, dos prédios superiores e correspondem às águas pluviais que caiam diretamente no prédio superior ou que para ele decorrem de outros prédios superiores a ele, as águas provenientes da liquefação das neves e gelos, as que se infiltrem no terreno e as das nascentes que brotam naturalmente num prédio (v. Pires Lima e Antunes Varela, ob. cit., p. 191; Acórdão da Relação do Porto de 17/06/2014, Processo n.º 148/11.6TBMSF e o Acórdão desta Relação de Guimarães de 09/06/2020, Processo n.º 4868/17.3T8VNF.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Ao lado desta obrigação de receber as águas que decorrem naturalmente, há também a obrigação de receber a terra e os entulhos que essas águas arrastam na corrente, mas “apenas a terra e entulhos que correm naturalmente, e não quaisquer outras substâncias que se juntem às águas por obra do homem e que as tornem nocivas, pois ao recebimento da aqua nocens não está obrigado o prédio inferior” (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., p.192 e Acórdão da Relação do Porto de 24/02/2005, Processo n.º 0530135, disponível em www.dgsi.pt).
Se as águas decorrem, naturalmente e sem obra do homem, de um prédio superior para um prédio inferior, nos termos do referido artigo 1351º, n.º 1 haverá uma simples limitação do direito de propriedade sobre imóveis, que decorre diretamente da lei, mas não um encargo adicional inerente à servidão de escoamento (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/01/2001, Processo n.º 00A3364, disponível em www.dgsi.pt).
Este encargo de escoamento natural das águas configura uma situação normal de relação propter rem de vizinhança imobiliária, que delimita ou cerceia o exercício dos direitos de propriedade sobre os prédios envolvidos, em vista da sua função social, que se distingue da limitação anormal da propriedade representada pela servidão de escoamento (neste sentido v. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil - Reais, 4ª Edição, 1987, Coimbra Editora, p. 450 e 451; Luís Manuel Menezes Leitão, Direitos Reais, 5ª Edição 2015, Almedina, p. 182, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/01/2019, Processo n.º 388/14.6TJVNF, disponível em www.dgsi.pt e Acórdão desta Relação de Guimarães de 09/06/2020, já citado).
Assim, em consequência da regra plasmada no n.º 1 do artigo 1351º não é permitida qualquer modificação na escorrência natural das águas, não podendo o dono do prédio inferior fazer obras capazes de perturbar o escoamento natural e nem o dono do prédio superior fazer obras que o agravem, ressalvados os casos de constituição de servidão legal de escoamento).
Referindo-se ao encargo de escoamento natural das águas, escreveu Mário Tavarela Lobo (Manual do Direito das Águas, Vol. II, 1999, Coimbra Editora, p. 65) que: “As águas pluviais, em princípio, deverão seguir a direção determinada pela inclinação natural do terreno, sendo vedado ao proprietário do prédio onde caem desviá-las desse curso natural”.
Segundo este autor, não só o proprietário do prédio superior não pode modificar o escoamento das águas pluviais ou das nascentes existentes no seu terreno de forma a lançar sobre os vizinhos um curso de água mais forte, como também não pode aumentar artificialmente o volume das águas que derivam sobre os prédios inferiores: “[O] art. 1351º exige a ausência de obra de homem para impor ao prédio inferior o ónus de receber as águas escoadas do prédio superior, seja qual for o objetivo em vista ao proceder a tais obras” (ob. cit. p. 418 e 420 ).
Como se afirma no citado Acórdão desta Relação Guimarães de 09/06/2020, não obstante a obrigação de receber as águas que naturalmente derivem para o prédio inferior, o seu proprietário pode opor-se a obras que desviem o curso normal das águas ou o tornem mais gravoso para o seu prédio, contra atos que alterem ou agravem o escoamento das água, não sendo permitida qualquer modificação que provoque agravamento da restrição ao direito de propriedade resultante da obrigação de receber as águas que decorrem naturalmente do prédio superior.
Por isso, as águas que os prédios inferiores têm de receber, em decorrência do preceituado no artigo 1351º do CC, são as águas pluviais que caiam diretamente no prédio superior ou que para este decorram de outros prédios superiores a ele, as provenientes da liquefação das neves e gelos e as que se infiltrem no terreno e as nascentes que brotam naturalmente num prédio.
A “exigência única que se faz é a de que todas elas devem decorrer espontaneamente do prédio superior para o inferior, por virtude do declive do terreno” (José Cândido de Pinho, As Águas no Código Civil, 2ª Edição, Almedina, 2005, p. 378).
Em relação a qualquer destas águas, o ónus de as receber só existe para os prédios inferiores se elas seguirem o seu curso normal, que é o determinado pelo declive do terreno; têm de ser águas naturalmente surgidas e não por ação de transformação do homem.
Sempre que sejam desviadas do seu curso natural, cessa tal obrigação.
No caso em apreço, os Réus alegaram que o tubo existente faz escorrer a água diretamente para o valado, que pertence exclusivamente as Réus.
Conforme resulta dos factos provados (ponto 11) no cimo do valado ou talude existe um tubo de plástico para descarga direta de águas sobre o prédio identificado em 3) dos factos provados.
Ora, salvo melhor opinião, parece-nos evidente que a descarga de águas pelo mencionado tubo não é uma corrente natural, que segue o seu curso normal, e sem obra do homem; pelo contrário, é produto de obra humana, e, nada mais resultando demonstrado, temos de concluir que sempre teria dado curso diferente às águas existentes no prédio dos Réus, concentrando e encaminhando o escoamento das mesmas através de tal tudo, que as descarrega diretamente sobre o prédio dos Autores.
Tal como refere a Recorrente a colocação do tubo constitui uma alteração artificial, realizada pelo homem, ao curso normal das águas que, se inexistisse o referido tubo, escorreriam de forma livre, distribuindo-se naturalmente, sendo o seu recebimento no prédio dos Autores determinado apenas pela inclinação existente e demais características do terreno; com a colocação do tubo as águas convergem num único ponto em vez de se espalharem e, dessa forma sumirem no terreno, criando a concentração de águas num ponto específico do prédio dos Autores junto ao referido tubo.
Assim, e ao contrário da posição perfilhada pelo tribunal a quo, entendemos que o escoamento das águas do prédio superior através do referido tubo de plástico alterou o estado natural das coisas e que os Autores não continuam a receber as mesmas águas nas mesmas condições que receberiam se não tivessem sido efetuadas as obras de colocação do tubo.
Temos para nós como certo que o escamento das águas pelo tubo constitui uma alteração artificial ao curso normal das águas, resultante da intervenção humana, e que, por isso, os Autores não estão obrigados a acolher as águas que dessa forma são descarregadas para o seu prédio; o direito dos Réus a tal escoamento só poderia ser licitamente fundado em constituição de servidão predial nos termos gerais do artigo 1547º n.º 1 do Código Civil ou em servidão legal de escoamento mediante indemnização, se verificados os pressupostos previstos no artigo 1563º n.º 1 alínea a) e b) do mesmo Código.
Em face do exposto procede, ainda que apenas parcialmente, o presente recurso, devendo alterar-se a sentença recorrida de forma a que os Réus sejam ainda condenados a remover o tubo de plástico para descarga de águas referido no ponto 11) dos factos provados.
As custas do recurso são da responsabilidade da Recorrente e dos Recorridos na proporção de 2/3 para a Recorrente e 1/3 para os Recorridos, e as custas da ação são da responsabilidade de Autores e Réus na proporção de 75% para os primeiros e 25% para os segundos, em face do respetivo decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
***
SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil):

I - Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulho que elas arrastam na sua corrente.
II - Em face do preceituado no artigo 1351º n.º 1 do Código Civil, não é permitida qualquer modificação no escoamento natural das águas, não podendo o dono do prédio inferior fazer obras capazes de perturbar esse escoamento natural, nem o dono do prédio superior fazer obras que o agravem.
III - O escamento das águas do prédio superior através de um tubo de plástico colocado para descarga direta das águas sobre o prédio inferior constitui uma alteração artificial, realizada pelo homem, ao curso normal das águas que, se inexistisse o referido tubo, escorreriam de forma livre, distribuindo-se naturalmente, sendo o seu recebimento no prédio inferior determinado apenas pela inclinação existente e demais características do terreno.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente em:

a) Alterar a sentença recorrida, condenando ainda os Réus a remover o tubo de plástico para descarga de águas referido no ponto 11) dos factos provados;
b) Manter, no mais, a sentença recorrida.
As custas do recurso são da responsabilidade da Recorrente e dos Recorridos na proporção de 2/3 para a Recorrente e 1/3 para os Recorridos, e as custas da ação são da responsabilidade de Autores e Réus na proporção de 75% para os primeiros e 25% para os segundos, em face do respetivo decaimento.
Guimarães, 10 de novembro de 2022
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Afonso Cabral Andrade (2º Adjunto)