Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1846/14.8TBVCT-V.G1
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: VENDA EXECUTIVA
REMIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artº 879º do Código Civil.

2. Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, na venda executiva esta apenas tem lugar com a emissão, pelo agente de execução, do respectivo título de transmissão, o que apenas ocorre depois de este último se ter certificado do pagamento do preço e do cumprimento (ou da isenção) das legais obrigações fiscais.

3. O direito de remição constitui um «direito de preferência» qualificado ou especial que prevalece sobre o direito de preferência legal ou convencional.

4. Estando em causa a venda judicial por meio de propostas em carta fechada, os titulares do direito de remição podem exercer esse direito enquanto não for emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão do bem, mesmo que o proponente tenha pago o preço e cumprido as respectivas obrigações fiscais em data anterior.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: A.

Recorrida: B.
* *
i). Com data de , no tribunal recorrido foi proferido o seguinte despacho judicial, ipsis verbis:

«Fls. 595 e 596 e 597-600:



Pelo requerimento datado de 12 de Junho de 2015, veio B., na qualidade de filha da executada, exercer o de direito de remição.
Na sequência do último despacho proferido, veio a remidora depositar o valor em falta (fls. 596).

Dando-se aqui por reproduzidas as razões de facto e de direito constantes do despacho de fl. 592, uma vez que a requerente comprovou a sua legitimidade, o requerimento é tempestivo e foi depositado a totalidade do preço, com o acréscimo previsto no art. 842º, n.º 3, do CPC., defere-se o requerido a fls. 583 e 584, admitindo-se o exercício do direito de remição (cfr. artigos 842º e 843º, do CPC.).
Notifique.»
* *

ii). Inconformado com o dito despacho, veio o proponente A. dele interpor recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões recursivas:
1. O despacho julgou tempestivo o requerimento para exercício do direito de remição formulado por B., em …, constante de fls. 582 a 585., na qualidade de filha da executada, o que não poderia ter sucedido.

2. Com efeito, na diligência de abertura de propostas relativamente ao imóvel melhor identificado nos autos a fls…, realizada nos autos no dia 10 de Março de 2015 não foi exercido qualquer direito de remição, sendo que na abertura de propostas foi aceite a proposta do aqui recorrente A., no montante de € 91.500,00, entregando no momento a quantia de € 4.000,00.
3. Conforme consta dos autos, o aqui proponente sabia que deveria comprovar nos autos o pagamento do restante preço e o cumprimento das obrigações fiscais inerentes à respectiva aquisição no prazo de 15 dias, nos dias que se seguiram à data da abertura das propostas, deslocou-se várias vezes aos escritórios da Srª solicitadora de execução com o objectivo de que lhe fosse emitido o documento necessário para pagamento do preço restante, conforme deu conhecimento aos presentes autos, o que não sucedeu.
4. Tendo posteriormente tomado conhecimento, que em 24 de Março de 2015, a referida B., apresentando-se na qualidade de filha da executada C., havia apresentado requerimento aos autos, no qual referia pretender exercer o direito de remição sobre o prédio penhorado no âmbito dos presentes autos, juntando uma certidão do seu assento de nascimento e um cheque no montante de € 4.000,00, tendo o Tribunal a quo proferido despacho em 27 de Maio de 2015 no qual indeferiu o requerimento para exercício do direito de remição, uma vez que a requerente não fez acompanhar o seu requerimento com o depósito do preço devido, […]notificando a Exma. Agente de execução informar o que tivesse conveniente.
5. Em 1 de Junho de 2015 aos autos, veio a Exma. agente de execução referir a fls… que “ tem-se entendido que o proponente tem o prazo de quinze dias para depósito do preço, contados da data da notificação que lhe é feita através da qual lhe é fornecida a referência multibanco para o efeito ” e ainda que “ tendo sido apresentado nos autos o requerimento de remição entendeu a signatária que os autos deviam aguardar decisão da mesma pelo que não notificou o proponente para o depósito ” E ainda que “ encontrando-se agora decidida desfavoravelmente a remição, vai de imediato proceder-se à notificação do proponente para o efeito.
6. Assim, em 3 de Junho 2015, o aqui proponente depositou finalmente o preço e comunicou de imediato à agente de execução tal facto, o que apenas foi possível após ter sido finalmente efetuada a competente notificação por parte da Agente de Execução, e note-se que desde a apresentação da proposta, em 10 de Março de 2015 até à notificação para proceder ao pagamento do preço que ocorreu em 3 de Junho de 2015, decorrem quase três meses!!
7. Após o aqui proponente ter procedido ao pagamento do preço, deveria ter sido ordenada a imediata emissão do título de transmissão […]
da propriedade, o que não sucedeu e conforme dispõe o artigo 827.º do CPC que mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados.
8. Todavia, tal não sucedeu, e em 12 de junho de 2015, a referida B. apresentou novo requerimento para o exercício de direito de remição, conforme conta de fls. 582 a 585., tendo o tribunal a quo considerado que tal requerimento é tempestivo, concluindo que “o direito de remição é exercido após a diligência de abertura de propostas, não tendo ainda sido emitido o título de transmissão, pelo que o requerimento é tempestivo”, e que a remidora veio depositar o valor em falta, conforme consta de fls…596, com o acréscimo previsto no artigo 842, n.º 3 do CPC, deferindo o requerido a fls. 583 e 584, admitindo-se o exercício do direito de remição.
9. Todavia entende, o aqui proponente que tal requerimento de remição é manifestamente intempestivo e como tal deveria ter sido liminarmente indeferido e admitir o mesmo como tempestivo constitui uma subversão das regras processuais, pois permite à referida B. gozar de […]

um benefício processual, pois o primeiro requerimento de remição constituiu uma manobra dilatória no processo, que muito prejudica o aqui recorrente, constituindo uma violação do princípio da igualdade, e de boa fé processual.
10. Com o presente despacho, e mesmo após o proponente ter efectuado os competentes pagamentos, é permitido à referida B. apresentar novo requerimento, beneficiando assim de um prazo manifestamente desproporcional e dilatado face ao que seria normalmente expectável, pois já havia apresentado requerimento de remição que veio a ser indeferido, e que atrasou os normais trâmites processuais e impediu que fosse emitido o título de transmissão ao aqui proponente, o que é manifestamente injusto para o aqui proponente e para os restantes credores.
11. Com efeito, o requerimento de remição apresentado em 12 de Junho é manifestamente intempestivo, e deveria ter sido liminarmente indeferido e ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o artigo 827º do CPC, constituindo ainda uma violação do princípio da igualdade, e de boa-fé processual.
Deverá pois ser concedido provimento ao recurso, e em consequência, ser revogado o despacho recorrido.
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iii). A Recorrida e (remidora) B., apresentou contra-alegações, em que pugnou pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
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Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTOS.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts. 635º, n.º 3, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, a única questão suscitada no presente recurso reconduz-se em saber se, ao contrário do decidido pelo tribunal recorrido, o exercício do direito de remição pela recorrida B. é intempestivo.

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III – FUNDAMENTOS DE FACTO.


Para efeitos de conhecimento do recurso, relevam apenas os seguintes factos:

1- No âmbito de execução comum para pagamento de quantia certa, teve lugar a 10.03.2015 o auto de abertura de propostas em carta fechada, tendo em vista a venda do seguinte bem: - prédio misto, composto de casas altas, cobertos, espigueiro, tanque e terreno de lavradio, vinha e árvores de fruto, sito em , freguesia de , concelho de , descrito na Conservatória do Registo Predial de , e inscrito na matriz predial sob os artigos urbano e rústico. [vide acta a fls. 4-5 destes autos]

2. Na aludida diligência, foi proferido o seguinte despacho (no que ora releva): «o bem [alude-se ao prédio referido em 1.] será adjudicado ao proponente (...) com a proposta (...), apresentada por A. no valor de 91. 500, 00 €, que deverá no prazo de quinze dias comprovar nos autos o pagamento do restante preço e o cumprimento das obrigações fiscais inerentes à àquisição.» [vide acta a fls. 4-5 destes autos.]

3. Após aquela diligência de abertura de propostas, veio B., na qualidade de filha da executada C., deduzir, a 24.03.2015, requerimento para exercer o direito de remição sobre o prédio antes referido.


A acompanhar o dito requerimento a aludida B. juntou uma certidão de nascimento e um cheque no montante de € 4. 000, 00, posteriormente substituído por numerário. [vide despacho a fls. 62-63 destes autos]

4. Este seu requerimento foi indeferido por despacho judicial datado de 27.05.2015, e por não ter ela depositado, na sua integralidade, o preço do bem em apreço [vide o citado despacho a fls. 62-63 destes autos].

5. Em requerimento datado de 1.06.2015, o proponente A. veio informar não ter, ainda, sido notificado para proceder ao depósito da parte do preço ainda em falta, solicitando que fosse a Senhora Solicitadora notificada para efectuar a aludida notificação (ao mesmo), indicando o NIB da conta cliente executado ou outra que entendesse pertinente para o efeito. [vide requerimento a fls. 64-66 destes autos]

6. Em requerimento datado de 4.06.2015, o proponente A. fez juntar aos autos comprovativo do depósito do preço em falta (€ 87. 500, 00), e ali afirmou que «se encontrando integralmente pago o preço e as obrigações fiscais inerentes a transmissão seja notificada a Srª Agente de Execução para emitir o título de transmissão a seu favor, tudo conforme melhor dispõem nos n.ºs 1 e 2 do art. 827º do CPC.» [vide fls. 69-71 destes autos].

7. Após vários requerimentos e respostas (vide fls. 73-88 destes autos), veio a ser proferido, no que releva para a presente apelação, com data de 24.06.2015, o seguinte despacho (ipsis verbis):
«Fls. 582-585:
Veio a Requerente B., apresentando-se na qualidade de filha da executada C., pretender exercer o direito de remição sobre o prédio penhorado no âmbito dos presentes autos.
Encontra-se junta aos autos uma certidão do seu assento de nascimento.
Em 25.03.2015, entregou ao agente de execução € 4. 000, 00 (fls. 567).
Depositou agora € 91. 500, 00 (fls. 584 e 584 v), correspondente ao preço.
(...)
O direito de remição é exercido após a diligência de abertura de propostas, não tendo ainda sido emitido o título de transmissão pelo que o requerimento é tempestivo.
O proponente já fez o depósito a que alude o artigo 824º, n.º 2 do CPC (fls. 578-579).
A remidora tem assim de efectuar o depósito do acréscimo de 5% a que alude o artigo 843º, n.º2, 2ª parte, do CPC – depósito que se mostra quase integralmente satisfeito com a entrega de € 4. 000, 00.

Atento o valor já depositado (quase totalidade do valor estabelecido no art. 843º, do CPC), estando em falta um valor reduzido, entende-se conceder à remidora um prazo para depositar o montante em falta.
Pelo exposto, notifique-se a remidora para, no prazo de cinco dias, depositar o valor em falta até perfazer o acréscimo de 5% a que alude o artigo 843º, n.º 2, do CPC, sendo certo que, após tal depósito estarão reunidas as condições para deferir a sua pretensão e admitir o exercício do direito de remição.
Notifique.» [vide despacho a fls. 89 destes autos] (sublinhado nosso)

8. Por requerimento datado de 26.06.2015, a remidora B. veio comprovar o pagamento em numerário do valor em falta [referido no despacho antes citado a fls. 89 dos autos], no valor de € 575, 00, requerendo que lhe fosse deferido o exercício do direito de remição. [vide requerimento a fls. 92-93 destes autos]

9. O proponente, por requerimento datado de 8.07.2015, respondeu àquele último requerimento da remidora, pugnando pelo indeferimento da pretensão da mesma, sustentando da sua intempestividade. [vide requerimento a fls. 94-97 dos autos]

10. Nesta sequência, veio a ser proferido, com data de 13.07.2015, o despacho sob que incide o presente recurso e acima transcrito. [fls. 98 destes autos]

11. À data do requerimento deduzido pela recorrida B. e datado de 26.06.2015, não tinha sido emitido título de transmissão do bem em apreço a favor do proponente A. (este facto não se mostra posto em crise por qualquer das partes e, com efeito, dos autos não consta o dito título, sendo, aliás, essa não emissão, uma das razões da discordância do ora recorrente – vide conclusões 7. e 8. do recurso do mesmo)
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III – FUNDAMENTOS de DIREITO:

Descritos os factos relevantes para o conhecimento da questão suscitada pelo Recorrente, cumpre decidir.

A propósito do direito de remição, preceitua o art. 842º do CPC, que «ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço […]
por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.»
Como ensina J. LEBRE de FREITAS, “ A Acção Executiva – À luz do Código Revisto ”, Coimbra Editora, 2ª edição, 1997, pág. 271-272, o direito de remição consubstancia um especial direito de preferência ou um direito de preferência qualificado (pois que prevalece sobre o direito de preferência em sentido estrito, seja ele de origem legal, seja de origem convencional, embora, neste último caso, apenas se estiver dotado de eficácia real – cfr. art. 844º, n.º 1 do CPC), que visa a protecção do património familiar, evitando, quando exercido, a «saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado». Vide, ainda, no mesmo sentido, por todos, J. ALBERTO dos REIS, “ Processo de Execução ”, II volume, Coimbra Editora, 1985, pág. 477-478, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ A Acção Executiva Singular ”, Lex, 1998, pág. 381, AC RC de 27.05.2015, relator ARLINDO OLIVEIRA e AC RP de 23.06.2015, relator ARISTIDES RODRIGUES de ALMEIDA, ambos in www.dgsi.pt.

No caso em apreço, em função das conclusões do recurso (e são elas, como se expôs, que servem de delimitação do objecto do recurso e do «thema decidendum»), não se mostra posto em crise ou sequer discutido que o direito de remição tenha sido exercido por um dos familiares dos executados a quem, à luz do preceituado no art. 842º do CPC., assiste […]
um tal direito, ou, ainda, que o depósito efectuado pelo remidor tenha observado, quanto ao seu montante, no caso em apreço, os ditames do n.º 2 do art. 843º do CPC.

Com efeito, à luz do corpo das alegações recursórias ou das conclusões do recurso do apelante, não está posto em crise que a remidora seja filha da executada C. (art. 842º do CPC), nem que o valor depositado ou pago pela mesma à agente de execução se cifre no preço da venda do bem, acrescido de 5%, a título de indemnização (art. 843º, n.º 2 do CPC).
Desta forma, dando por assente este condicionalismo legal (da regularidade do montante/valor depositado nos autos e do vínculo familiar que intercede entre a remidora e a executada C. - filha/descendente), a única questão que está em causa é, no fundo, saber se a remidora exerceu tempestivamente o seu direito ou não, sendo certo que, merecendo esta questão resposta positiva, o recurso, inelutavelmente, terá que improceder, na estrita medida em que, em tal contexto, o direito de aquisição do remidor sempre corresponderá ao exercício de um (seu) direito processualmente consagrado.
Vejamos.



Quanto a esta matéria, estamos em crer que o teor do art. 843º, n.º 1 al. a)- do CPC. (correspondente ao art. 913º, n.º 1 al. a)- do CPC, na sua versão anterior - emergente do DL n.º 226/2008 de 20.11) é perfeitamente claro ao consignar que «o direito de remição pode ser exercido no caso de venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título da transmissão dos bens para o proponente ou no prazo e nos termos do n.º 3 do art. 825º.» (sublinhado nosso)

Nesta perspectiva, sendo certo que, à data de 26.06.2015 (quando a remidora completou o pagamento da quantia que era devida pelo exercício do direito de remissão – vide fls. 92/93 destes autos), ainda não tinha sido emitido o aludido título, é manifesto que esse exercício só pode ser tempestivo.

Com efeito, a este propósito, referem VIRGÍNIO RIBEIRO e SÉRGIO REBELO, “ A acção Executiva anotada e comentada ”, Almedina, 2015, pág. 572-573, que o n.º 1 do citado preceito fixa, nas suas alíneas a) e b), os momentos até aos quais pode ser exercido o direito de remição.



«Na venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título de transmissão de bens para o proponente ou no prazo previsto no n.º 3 do art. 825º.»
Em suma, como ali se escreve, op. cit., pág. 573, (e sendo certo que a hipótese do n.º 3 do art. 825º não tem, no caso dos autos, qualquer aplicação), «mesmo após ter ocorrido a aceitação da proposta no ato da sua abertura, o remidor pode exercer o seu direito; o que releva é que o exercício desse direito seja anterior ao momento da emissão do título da transmissão, cuja competência cabe ao agente de execução.» (sublinhado nosso)
Em suma, como resulta claro deste normativo, estando em causa uma venda por propostas em carta fechada – como é o caso dos autos –, mesmo após a aceitação da proposta e o eventual pagamento do preço e demais encargos (designadamente, de natureza fiscal) inerentes à transmissão por parte do proponente, sempre o remidor poderá exercer (validamente) o seu direito se o fizer até ao momento da emissão do título de transmissão (pelo agente de execução) a favor do proponente.

Julgamos que, neste conspecto, a lei processual civil (seja na actual versão, seja no anterior art. 913º, n.º 1 al. a) do pretérito Código), é absolutamente clara e não permite outra leitura ou interpretação que […]
não seja esta que ora se expôs.
Mas esta leitura e interpretação – que temos como a única susceptível de colher do texto legislativo e à luz do princípio geral da interpretação previsto no art. 9º, n.º 3 do Cód. Civil –, fornece-nos, ainda, segundo cremos, a resposta a uma outra questão, (abordada, de alguma forma, pelo recorrente nas suas alegações), qual seja a de saber em que momento se efectiva ou conclui a venda executiva, isto é, quando se considera realizada a venda executiva e produzidos os seus efeitos.
A venda ter-se-á como concluída e efectiva logo que é aceite a proposta, será apenas quando se encontra efectuado o pagamento integral do preço e das obrigações fiscais inerentes à transmissão (como parece sustentar o recorrente) ou será apenas quando ocorre a adjudicação através da emissão do respectivo título?
Nesta sede, referem VIRGÍNIO RIBEIRO e SÉRGIO REBELO, op. cit., pág. 539, que «sendo a venda constituída por um conjunto encadeado de actos, um verdadeiro acto complexo de formação sucessiva (composto por actos preparatórios, como a avaliação dos bens penhorados, a publicitação da venda, o acesso aos bens penhorados por parte dos interessados na venda, entre outros; actos de transmissão propriamente ditos, como a abertura de propostas, a deliberação sobre as propostas apresentadas e aceitação da proposta vencedora; e, finalmente, actos […]
de conclusão do procedimento em que a venda se traduz, como, por exemplo, o cumprimento de obrigações tributárias a que a transmissão dá lugar, emissão do título de transmissão e cancelamento dos registos dos direitos que caducam com a venda executiva), parece-nos defensável a solução de que a mesma só ocorre definitivamente quando se dá a emissão do título de transmissão.»
De facto, como é consabido, incumbe, exclusivamente, ao agente de execução (cfr. art. 827º, n.ºs 1 e 2 do CPC) verificar do pagamento efectivo e integral do preço e da satisfação das obrigações fiscais inerentes e, em função dessa certificação, emitir o respectivo título de transmissão.

Nestes termos, dispõe o n.º 1 do art. 827º, que «mostrando-se pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados.»
Ora, como a propósito da anterior norma - art. 900º, n.º 1 do CPC, na versão anterior à Lei n.º 41/2013 de 26.06, que aprovou o novo Código […]
de Processo Civil, - e cujo teor corresponde ao actual art. 827º, se escreveu, com plena aplicação ao caso sub judice, no AC RP de 20.11.2014, relator AMARAL FERREIRA, in www.dgsi.pt, «na venda negocial a transferência [da propriedade] dá-se por mero efeito do contrato, ou seja, a transferência não fica dependente da entrega da coisa e do pagamento do preço - cfr. art. 886º do Código Civil, que dispõe que “ Transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço ”.»
Contudo, como ali se salienta, a situação é diferente na venda executiva, porquanto nela, de acordo com o art. 900º, nº 1, do Código de Processo Civil [actual n.º 1 do art. 827º], «os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, agente de execução que, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, comunica a venda ao serviço de registo competente, juntando o respectivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do artº 824º do Código Civil.»

Assim, é de concluir que, «...face ao disposto nos citados preceitos legais, na venda executiva por propostas em carta fechada a transmissão da propriedade do bem vendido só se opera com o pagamento integral do preço e a satisfação das obrigações fiscais inerentes à transmissão e a emissão do respectivo título de transmissão - o instrumento de venda.» (sublinhados nossos)
É que, prossegue, ainda, o mesmo aresto, cuja lição aqui se segue de perto, «segundo o citado artº 900º, nº 1, a propriedade da coisa ou do direito não se transfere por mero efeito da venda, como sucede no direito substantivo [artºs 408º, nº 1, 874º, e 879º, al. a), e 578º nº 1 todos do Código Civil], mas só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução no caso de venda por propostas em carta fechada (no caso da venda por negociação particular com a outorga do instrumento da venda), para o que se torna necessário que se verifique mostrar-se paga a totalidade do preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão – cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 8ª ed., pág. 371.»

No mesmo sentido se pronunciam, aliás, José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, III Volume, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 582, quando referem que «O depósito […]
do preço não constitui uma simples conditio juris (condição de eficácia dum negócio já perfeito, mas um elemento constitutivo da venda executiva por proposta em carta fechada. Até ele ter lugar o proponente está ligado ao tribunal por um contrato preliminar (…), constituíndo com os elementos já verificados da fatispécie complexa do contrato definitivo em formação, com eficácia semelhante à do contrato-promessa e, como este, susceptível de execução específica (art. 898.º-1) ou de resolução com perda do valor da caução prestada (art. 897-1), a título de indemnização (art. 898-3). Só com a conclusão da venda se produzem os efeitos desta (art. 824 CC).» (sublinhados nossos)

Destarte, até ao dito momento - isto é, até à data de emissão do título por parte do agente de execução -, a venda não se mostra concluída (antes em mera formação) e os seus efeitos (nomeadamente, o efeito translativo), não se mostram consumados, inexistindo, portanto, ao contrário do que parece sustentar o Recorrente, até ao momento de emissão do título de transmissão, um negócio consumado de venda.
Existe a legítima expectativa dessa sua conclusão, mas apenas isso.
Aliás, é de notar que, em perfeita consonância com o antes exposto quanto à produção de efeitos na hipótese de venda executiva, o próprio legislador apenas reconhece ao adquirente, munido de título de […]
transmissão, legitimidade para «requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens» (cfr. art. 828º do CPC), sinal, assim, de que só com a emissão do título de transmissão a venda executiva se consolida definitivamente e se opera o respectivo efeito translativo da propriedade dos bens em apreço, ficando o então (mas só então...) adquirente em condições de exigir de outrem a entrega dos bens que adquiriu em sede de venda judicial.

O que, em conclusão, significa, para o que releva na presente apelação, que a remição efectuada pelo remidor, sendo, como é, tempestiva (por anterior à data de emissão do título de transmissão por parte do agente de execução – cfr. art. 843º, n.º 1 al. a)- do CPC.), deverá prevalecer sobre a proposta de compra efectuada pelo proponente, proposta esta que, não obstante a sua aceitação e o pagamento do preço e das inerentes obrigações fiscais, não se havia ainda (à data da remissão) convertido ou concluído em transmissão/venda.
Aliás, diga-se que o recorrente conclui, repetidamente, que o exercício da remição pela recorrida é intempestivo, mas omite a única norma processual aplicável ao prazo para esse exercício (o já citado art. 843º, n.º 1 al. a) do CPC), norma esta que, com o devido respeito, afasta, claramente, aquela sua conclusão.

É certo que entre a data da abertura de propostas e a data da sua notificação para efectuar o depósito do preço em falta (com indicação da conta bancária pertinente) decorreram quase 3 meses (10.03.2015 a 1.06.2015).
Todavia, essa questão mostra-se explicada/justificada pela Srª Agente de Execução a fls. 68 dos autos e, independentemente do mérito ou boa razão dessa justificação, o objecto destes autos não contende com a actuação da Sr. Agente de Execução ou do seu mérito, mas com o mérito de um concreto e definido despacho judicial, que constitui o objecto da presente apelação.
É certo, ainda, que entre a data de 4.06.2015, data em que o proponente efectuou o depósito do valor em falta do preço – e em que estaria, à partida, a agente de execução em condições de emitir o título de transmissão –, decorreu cerca de 1 mês e 10 dias até à prolação do despacho que deferiu o direito de remição pela recorrida B.
Todavia, esse decurso temporal é a consequência inelutável da circunstância de terem sido deduzidos nos autos, nesse interim, vários requerimentos [5] e respostas [2] (vide requerimento a fls. 73-76, datado de 4.06.2015; requerimento a fls. 77-83, datado de 12.06.2015; resposta a fls. 84-86, datada de 15.06.2015; requerimento da agente de execução a fls. 87-88, datado de 16.06.2015; e despacho judicial de fls. 89 destes autos […]
, datado de 24.06.2015, que incidiu sobre os aludidos requerimentos; requerimento a fls. 90-91, datado de 22.06.2015; requerimento a fls. 92-93, datado de 26.06.2015; resposta a fls. 94-97, datado de 8.07.2015, sobre os quais incidiu o despacho judicial de 13.07.2015 e ora em recurso...), sendo certo que, enquanto tais requerimentos e respostas não fossem decididos (como foram e deviam ser) por despacho judicial) [2], a Srª Agente de Execução não podia, de facto, emitir o título de transmissão em apreço.
Com efeito, mostrando-se suscitadas várias questões ao Juiz titular do processo nesse interim, necessariamente tinha que haver pronúncia quanto a elas, não podendo a Srª Agente, à revelia do Juiz do processo judicial, emitir um qualquer título.
É certo que de tais circunstâncias – que decorrem do exercício legal dos direitos consagrados na lei processual civil e do consequente contraditório – são susceptíveis de causar prejuízos ao proponente, que vê a sua proposta afastada a favor do remidor.
Porém, para compensar tais prejuízos prevê o legislador o pagamento de um valor acrescido de 5%, a título indemnizatório e a seu favor (cfr. art. 843º, n.º 2 do CPC), valor que foi depositado ou pago em numerário.

Assim, é de concluir que, face ao exposto, o direito de remição foi exercido tempestivamente, não existindo qualquer subversão das […]
regras processuais ou violação do princípio da igualdade ou da boa-fé processual, antes, ao invés, o estrito cumprimento dos trâmites e regras processuais aplicáveis ao caso.

O que vale por dizer, para concluir, que tudo importa a improcedência da presente apelação.
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IV. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido.

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Custas pelo Recorrente, que ficou vencido.

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Guimarães, 15.03.2016
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Sumário:

1. A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artº 879º do Código Civil.

2. Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, na venda executiva esta apenas tem lugar com a emissão, pelo agente de execução, do respectivo título de transmissão, o que apenas ocorre depois de este último se ter certificado do pagamento do preço e do cumprimento (ou da isenção) das legais obrigações fiscais.

3. O direito de remição constitui um «direito de preferência» qualificado ou especial que prevalece sobre o direito de preferência legal ou convencional.

4. Estando em causa a venda judicial por meio de propostas em carta fechada, os titulares do direito de remição podem exercer esse direito enquanto não for emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão do bem, mesmo que o proponente tenha pago o preço e cumprido as respectivas obrigações fiscais em data anterior.

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Dr. Jorge Miguel Pinto de Seabra
Dr. José Fernando Cardoso Amaral
Drª Helena Maria Gomes Melo