Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
249/20.0T8EPS-A.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: INVENTÁRIO
LEI Nº. 23/2013
DE 05/03
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DA LEGÍTIMA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A Lei nº 23/2013, de 05/03 de 05/03, que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário inovou dispondo no seu art. 48º, nº 1 que, na conferência preparatória da conferência de interessados, podem os interessados deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos aí previstos.
II – Esta disposição mostra-se conforme aos princípios constitucionais da igualdade, da propriedade privada e de acesso ao direito e à tutela jurídica efectiva.
III – Contudo, tal preceito não pode sobrepor-se ao princípio da intangibilidade qualitativa da legítima previsto no art. 2163º do C.C. pelo que, no que respeita à sucessão legitimária, não podem também os co-herdeiros que representam dois terços da herança designar bens que integram a legítima de outro herdeiro.
IV. Num caso em que a maioria de dois terços dos herdeiros delibera designar os bens que hão compor os seus quinhões, não tendo a outra interessada demostrado vontade de ficar com a verba remanescente, e deliberaram por unanimidade proceder à venda desta e distribuir o produto da venda entre todos, a legítima desta é respeitada sendo consequente válida a deliberação em causa.
V – Uma tal conduta da maioria de dois terços dos herdeiros sem mais não se subsume ao exercício abusivo do seu direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

A. J. instaurou em 23/09/2015, no Cartório Notarial de F. M. inventário para partilha da herança por óbito de F. F. dando origem ao Proc. nº 4435/15.
A cabeça de casal, M. B., prestou compromisso de honra e declarações. Referiu que os herdeiros são ela própria, enquanto viúva do falecido, a requerente (filha do primeiro casamento) e M. S. e S. F. (filhos do segundo casamento),

Juntou a seguinte relação de bens deixados pelo inventariado:
“Verba nº 1 - Sepultura no Cemitério (…) no valor de 500,00 €.
- Bens Imóveis - Sitos na Freguesia de ..., concelho de Esposende
Verba nº 2 - Prédio rústico, (…), com a área de 6.291,00 m2, omisso na respectiva matriz predial (…), a desanexar do prédio rústico inscrito na matriz (…), sob o artigo ..º e que faz parte do descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …/..., ao qual se atribui o valor patrimonial de 500,00 €.
Verba nº 3
Prédio rústico, (…), com a área de 1.000,00 m2, (…), omisso na Conservatória do Registo Predial e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …º, com o valor patrimonial (CIMI) de 21,37 €.
Verba nº 4
Prédio rústico, (…), com a área de 1.000,00 m2, omisso na Conservatória do Registo Predial e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …º, com o valor patrimonial (CIMI) de 31,85 €.
Verba nº 5
Prédio rústico, (…), com a área de 1.200,00 m2, (…), omisso na Conservatória do Registo Predial e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …º, com o valor patrimonial (CIMI) de 55,09 €.
Verba nº 6
Prédio rústico, (…), com a área de 1.300,00 m2, (…), omisso na Conservatória do Registo Predial e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …º, com o valor patrimonial (CIMI) de 64,32 €.”
Os interessados foram citados.
Em 06/03/2017 realizou-se Conferência Preparatória da Conferência de Interessados onde, não havendo acordo acerca da adjudicação dos bens, a interessada A. J. requereu a avaliação de todos os bens constantes da relação de bens, o que sofreu oposição. A Sra. Notária deferiu o requerido e nomeou perito avaliador.
Foi por este apresentado relatório pericial que concluiu pelos seguintes valores:
Verba nº 1 - € 2.500,00
Verba nº 2 - € 182.000,00
Verba nº 3 - € 49.000,00
Verba nº 4 - € 49.000,00
Verba nº 5 - € 56.400,00
Verba nº 6 - € 58.500,00
A interessada A. J. solicitou que o Sr. Perito prestasse esclarecimentos.
Igualmente, em 10/05/2018, apresentou reclamação contra a relação de bens dizendo que deve ser também relacionada a quantia de € 15.145,14 referente a dois depósitos bancários.
Passando o processo a ser tramitado no Cartório Notarial de A. S. esta, por despacho de 21/09/2018, determinou que o Sr. Perito prestasse os esclarecimentos solicitados; considerou que a reclamação de bens era extemporânea e designou para continuação da Conferência Preparatória da Conferência de Interessados.
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Em 25/10/2018 realizou-se a continuação da Conferência Preparatória da Conferência de Interessados tendo aí sido consignado o seguinte:

“I) - Por todos os interessados foi deliberado procederem à atualização da verba dois no sentido dela ficar a constar que a mesma já se encontra inscrita na matriz sob o artigo ….
II) – Por todos os interessados foi deliberado que aceitam os valores resultantes do relatório de avaliação pelo que deverão ser tais valores a ter em conta para efeitos da partilha a realizar no âmbito dos presentes autos.
III) – Pelos mandatários dos interessados M. B., M. S. e S. F., que representam mais de dois terços dos interessados nos presente autos, foi deliberado adjudicar a verba um, no valor de dois mil e quinhentos euros, a verba três no valor de quarenta e nove mil euros e a verba quatro no valor de quarenta e nove mil euros à interessada M. B., adjudicar a verba cinco no valor de cinquenta e seis mil e quatrocentos euros ao interessado M. S. e a verba seis no valor de cinquenta e oito mil e quinhentos euros ao interessado S. F..
IV) - Pelos mandatários dos interessados M. B., M. S. e S. F., que representam mais de dois terços dos interessados nos presente autos, foi deliberado ainda proceder-se à venda no âmbito dos presentes autos da verba dois da relação de bens pelo valor resultante da avaliação, ou seja, cento e oitenta e dois mil euros.
V) – Após as deliberações antecedentes, foi pedida a palavra pelo ilustre mandatário da requerente, Dr. F. B., e pelo mesmo foi dito: “A interessada A. J. invoca a inconstitucionalidade material do artigo 48.º do RJPI por violar os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurídica efetiva, designadamente o direito a um processo equitativo, direitos estes consagrados nos artigos 13.º e 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade material essa que invoca para todos os efeitos legais.”. Tendo ainda prosseguido dizendo o seguinte: “A deliberação tomada pelos interessados M. B., M. S. e S. F. a coberto do disposto no artigo 48.º do RJPI constitui uma manifestação grosseira de abuso de direito e por conseguinte ilegal, pois impede a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos interessados, já que, como decorre da relação de bens e atento o número de interessados, é possível a repartição igualitária e equitativa dos bens a partilhar a cada um dos interessados das verbas 3,4,5 e 6 que têm valores semelhantes, relegando a verba 2 para venda atendendo ao seu valor, com a posterior distribuição do preço pelos quatro herdeiros, de forma a evitar que a interessada A. J. não seja contemplada, apesar der ser possível, com um dos prédios constantes das verbas 3, 4, 5 ou 6, desta forma impugna-se a deliberação tomada pelos interessados M. B., M. S. e S. F, nos fundamentos supra expostos, requerendo que os presentes autos de inventário prossigam com a realização de licitações possibilitando assim desta forma que todos os herdeiros estejam em posição de igualdade com vista à adjudicação dos bens que compõem a herança a partilhar.”
VI) – De seguida pediu a palavra o Ex.mo Dr. A. S. A., que em resposta disse o seguinte: “Respondendo aos argumentos invocados entendem os interessados M. B., M. S. e S. F não se verificar a inconstitucionalidade arguida, já que a intenção do legislador na redação foi a de havendo uma maioria qualificada permitir a partilha de património que ficaria por partilhar ad eternum. Por outro lado face à avaliação feita, não se verifica o argumento da desigualdade da partilha uma vez que a avaliação foi efetuada precisamente para se apurar o valor de mercado dos bens. Por último, os quinhões não têm necessariamente de ser composto por imóveis, móveis ou quaisquer outros objetos, podendo ser compostos em dinheiro ou parcialmente em dinheiro e bens. Entendem assim não assistir à impugnação apresentada pela interessada A. J., requerendo que o processo prossiga com a venda extrajudicial da verba dois, através de encarregado para a venda a nomear pela Notária, de forma a que feita a venda, seja distribuído o produto pelos interessados para composição dos quinhões ou o que faltar para a composição de quinhões.”
VII) - Pelo mandatário da interessada A. J. foi dito depois que concorda que se proceda à venda da verba dois, mas que relativamente à adjudicação das verbas 3, 4, 5 e 6, mantém a posição já manifestada.”
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Em 02/01/2020 A. J. veio, ao abrigo do disposto no art. 12º, nº 2 b) da Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro, requerer a remessa dos autos para o Tribunal Judicial.
Os demais interessados nada opuseram pelo que foi deferido o requerido por despacho de 10/05/2020.
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A interessada A. J., ao abrigo do disposto no art. 13º nº 2 da Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro, impugnou as seguintes decisões do Notário:

- a que indeferiu a sonegação de bens referida no requerimento de 10/05/2018;
- que designou dia para Conferência Preparatória da Conferência de Interessados e sua continuação e, consequentemente impugnar as deliberações aí tomadas por maioria de 2/3 com a fundamentação aí apresentada pela requerente.
A cabeça de casal pronunciou-se no sentido do indeferimento do requerido.
Por decisão de 17/12/2020 (conclusão de 12/10/2020) foi julgada improcedente a impugnação apresentada.
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Os interessados M. B., M. S. e S. F. requereram a venda do bem nº 2 através de leilão electrónico pelo valor de € 182.000,00.
A interessada A. J. requereu a designação de conferência de interessados.
Em 14/05/2021 foi proferida decisão que analisou a questão que ficou pendente da inconstitucionalidade material do art. 48º do R.J.P.I., concluiu pela constitucionalidade, julgou válida a deliberação III) tomada na conferência preparatória de 25/10/2018 e que determinou que os autos prosseguissem com a venda da verba nº 2 deliberada por todos os interessados.
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Não se conformando com esta decisão veio a interessada A. J., em 16/06/2021, dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1. O douto despacho recorrido não se pronunciou sobre o abuso de direito invocado, e exercido pelos recorridos. Cabeça de Casal, M. S. e S. F, na tomada de deliberação, por maioria de dois terços, que decidiu a adjudicação das verbas n° 1, 3, 4, 5 e 6 da relação de bens a estes três herdeiros.
2. O que constitui a invocação de excepção peremptória.
3. E que é do conhecimento oficioso.
4. O douto despacho recorrido viola o disposto nos artigos 152° e 615° nº 4 do C.P. C ..
5. A deliberação lll) tomada pelos interessados Cabeça de Casar, M. S. e S. F, por maioria de dois terços, deliberaram quais as verbas I bens imóveis adjudicados a cada um dos interessados.
6. Assim, por imposição dos referidos interessados, e contra a vontade da ora Recorrente, aqueles determinaram que os seus quinhões hereditários fossem compostos da seguinte forma:
a) à Cabeça de Casar é adjudicado a verba nº 1; e os bens imóveis das verbas nº 3 e n° 4 da relação de bens.
b) ao interessado M. S. o bem imóvel da verba nº 5.
c) ao interessado S. F o bem imóvel da verba n° 6.
7. Não adjudicaram à Recorrente qualquer bem, designadamente de natureza imóvel..
8. Assim, o quinhão hereditário da Recorrente, face ao decidido, apenas seria preenchido em dinheiro, proveniente da venda da verba nº 2 da relação de bens.
9. A actuação dos Recorridos viola. o princípio e o objectivo, que norteia o processo de inventário, de que a partilha seja o mais igualitária possível.
10. E que nos presentes autos seria atingido com a adjudicação à Recorrente da verba nº 3 ou nº 4, e não destas duas verbas à recorrida Cabeça de Casal.
11. Sendo certo que os bens imóveis das verbas n° 3, 4, 5 e 6 da relação de bens têm valores semelhantes, como decorre da avaliação de fls. dos autos, e o número de interessados com quinhões hereditários iguais.
12. Por isso, é manifesto que a deliberação tomada pelos Recorridos, através da maioria de dois terços consagrada no artigo 48° do RJPI, gerou desigualdade na composição dos respectivos quinhões hereditários, bem como uma manifesta imposição da vontade daqueles herdeiros à Recorrente.
13. O que a Recorrente não aceita.
14. Pois, tal deliberação - imposição da vontade da maioria de dois terços por parte dos Recorridos - viola o princípio de intangibilidade da legítima.
15. E que se invoca para todos os efeitos legais.
16. Sendo certo' que a lei adjectiva não se pode sobrepor I postergar à substantiva que fixa os termos em que se devem partilhar os bens que constituem determinado acervo hereditário, sob pena de se desvirtuar os interesses inerentes a uma justa e correcta partilha de bens entre todos os interessados.
17. Ora, nos presentes autos, trata-se de sucessão legitimária,
18. Os Recorridos apesar de representarem dois terços da herança não podem designar os bens que integram a legítima da Recorrente, herdeira legitimária, contra sua vontade, por implicar à violação da intangibilidade da legitima, sob pena de violação, por via da lei adjectiva, o expressamente proibido na lei substantiva.
19. De todo modo, sempre se dirá, que a deliberação III) impugnada, constitui grosseira manifestação de abuso de direito exercida pelos Recorridos em manifesto prejuízo da Recorrente.
20. O que torna tal deliberação ilegítima, e, por conseguinte ilegal.
21. De forma que a deliberação III) tomada pela maioria de dois terços e plasmada na acta da conferência preparatória impugnada não pode prevalecer.
22. Por violar o disposto nos artigos 2157°, 2163° e 334° do Código Civil.
23. Por outro lado, acresce invocar que o artigo 48° RJPI está inquinado de inconstitucionalidade, por violar os artigos 13°, 20° nº 4 e 266° da Constituição da República Portuguesa.
24. Inconstitucionalidade material que se invoca para todos os efeitos legais.
25. Pelo que, salvo o devido respeito, impõe-se revogar o douto despacho recorrido.”

Pugna pela revogação da decisão ordenando-se a realização da conferência de interessados.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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O tribunal pronunciou-se pela inexistência da nulidade apontada.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

a) Saber se a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia;
b) E se o art. 48º do R.J.P.I. é inconstitucional;
c) Se viola o princípio da intangibilidade da legítima previsto no art. 2162º do C.C.;
d) E, por fim, se os demais herdeiros exerceram abusivamente o seu direito.
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II – Fundamentação

Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
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A) Nulidade da decisão recorrida

Defende a apelante que a decisão recorrida é nula por não se ter pronunciado acerca do abuso de direito, excepção invocada pela mesma na Conferência Preparatória da Conferência de Interessados de 28/10/2018.
Os apelados defendem que o tribunal recorrido apreciou a referida excepção na medida em que se pronunciou acerca do direito que os interessados M. B., M. S. e S. F tinham, enquanto titulares de mais de 2/3 do direito à herança, de poder deliberar quanto ao modo de composição dos seus quinhões.
O tribunal a quo referiu ter fundamentado a razão de ser de inexistência de qualquer abuso de direito.
Vejamos.

Dispõe o art. 615º do C.P.C.:

“1. É nula a sentença quando: (…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões que não podia tomar conhecimento; (…)”
As nulidades da sentença estão típica e taxativamente prevista no art. 615º do C.P.C. Estas reconduzem-se a vícios formais da decisão decorrentes de erro de actividade ou de procedimento - error in procedendo - referente à disciplina legal e que impedem o pronunciamento de mérito.
Os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia previstos na al. d) do citado artigo incidem sobre as questões a resolver nos termos e para os efeitos do disposto no art. 608º nº 2 do C.P.C.. Com efeito, nos termos deste preceito O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Questões cuja omissão de pronúncia conduz à nulidade de decisão são “(…) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos pelas partes (…)” (Antunes Varela, in R.L.J., Ano 122, p. 112). São “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer” (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, 2º, 2ª ed., p. 704).
Assim, tais questões não se confundem com argumentos, razões (de facto ou de direito) ou motivos invocados pelas partes em defesa ou reforço das suas posições
Como se lê no Ac. do S.T.J. de 16/02/2015 (Sousa Peixoto), in www.dgsi.pt “Questões, para o efeito do disposto no nº 2 do art. 660º do C.P.C., não são aqueles argumentos e razões, mas sim e apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernantes ao pedido, à causa de pedir e às excepções”. E no Ac. do S.T.J. de 28/02/2013 (João Bernando), in www.dgsi.pt: “A nulidade duma sentença ou dum acórdão por omissão de pronúncia só tem lugar quando o juiz deixe de conhecer, sem prejudicialidade, de algum dos pedidos deduzidos, de alguma das causas de pedir, de alguma das excepções invocadas ou de alguma das excepções de que oficiosamente lhe cumpra conhecer”.
Para que a nulidade ocorra é necessário que ocorra omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão não prejudicada e não uma fundamentação deficiente.
Revertendo ao caso em apreço verificamos que assiste razão à apelante.
Se atentarmos na acta da Conferência Preparatória da Conferência de Interessados (continuação) de 25/10/2018, verificamos que, após as deliberações aí tomadas, a interessada A. J. invocou, por um lado a inconstitucionalidade material do art. 48º do Regime Jurídico do Processo de Inventário e, por outro, o exercício abusivo por parte dos demais interessados a coberto desta disposição legal.

Ora, o tribunal a quo, na decisão recorrida, apenas apreciou a primeira destas questões. E, quanto a nós, da fundamentação aí apresentada, que concluiu que a norma é conforme à Constituição, não se pode retirar uma apreciação, ainda que implícita, acerca do eventual uso abusivo do direito concedido pela disposição em análise. Além de que, naturalmente, uma norma pode não ser inconstitucional e ser exercida abusivamente nos termos do art. 334º do C.C.. Acresce que a presente questão não ficou prejudicada pela decisão proferida.
Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, declara-se a decisão recorrida nula por omissão de pronúncia (art. 615º nº 1 d) do C.P.C.).
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Verificada esta nulidade importa supri-la mediante o conhecimento da aludida questão cuja apreciação foi omitida segundo a regra da substituição do tribunal recorrido prevista no art. 665º, nº 1 e 2 C.P.C..
Tendo a presente nulidade sido suscitada nas alegações de recurso e tendo os apelados se pronunciado acerca da mesma não se mostra necessário proceder à notificação prevista no nº 3 deste preceito.
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B) Subsunção jurídica

Antes de mais, importa fazer uma resenha da evolução legislativa acerca do preceito em análise.
Dispunha o art. 1353º do C.P.C. na versão do Dec.-Lei nº nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, que na conferência de interessados os interessados podiam acordar por unanimidade que a composição dos quinhões se realizasse por algum dos modos seguintes: a) designando as verbas que hão-de compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um deles e os valores por que devem ser adjudicados; b) Indicando as verbas ou lotes e respectivos valores, para que, no todo ou em parte, sejam objecto de sorteio pelos interessados; c) Acordando na venda total ou parcial dos bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados.
Este preceito foi revogado pela Lei nº 29/2009 de 29 de Julho (entretanto alterado pela Lei nº 1/2010, de 15/01, Lei nº 44/2010, de 03/09) que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário, mas o art. 35º deste diploma continuou a exigir a referida unamimidade.
A Lei nº 23/2013, de 05/03 de 05/03 (entretanto alterada pela Lei nº 29/2013, de 19/04) inovou dispondo no seu art. 48º, nº 1 que, na conferência preparatória da conferência de interessados, podem os interessados deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos aí previstos. Na génese desta opção legislativa esteve a simplificação e celeridade do processo de inventário. Contudo, a mesma foi alvo de críticas na medida que, além do mais, permite uma “aliança” entre herdeiros contra outro(s).
Este preceito foi revogado pela Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro, que voltou a exigir a unanimidade.
O tribunal recorrido já se pronunciou, por despacho de 14/12/2020 (conclusão de 17/12/2020), acerca das impugnações contra as decisões proferidas pela Sra. Notária mantendo a decisão referente à extemporaneidade da reclamação de bens e a decisão que designou data para conferência preparatória da conferência de interessados e sua continuação.
O objecto da presente apelação é a decisão proferida em 14/05/2021 que se debruçou acerca da conformidade constitucional do art. 48º nº 1 da Lei nº 23/2013, de 05/03, aplicável in casu, e validade da deliberação constante do ponto III da acta da conferência preparatória e que ordenou o prosseguimento dos autos com a venda da verba nº 2 aí deliberada.
Vejamos.
1. Conformidade com a Constituição
A apelante refere que o artigo 48° R.J.P.I. é materialmente inconstitucional por violar os art. 13°, 20° nº 4 e 266° da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.).
Mas, sem razão.
Prevê o art. 13º da C.R.P. o princípio da igualdade de todos os cidadãos, princípio estruturante do Estado de direito democrático, segundo o qual deve ser dado tratamento igual ao que for essencialmente igual e tratamento diferente ao que for essencialmente diferente.

Lê-se no Ac. Tribunal Constitucional nº 266/15, in www.tribunalconstitucional.pt: «Recorre-se aqui à conhecida e abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao princípio da igualdade. Enquanto «vínculo específico do poder legislativo (pois só essa sua «qualidade» agora nos interessa), o princípio da igualdade não tem uma dimensão única. Na realidade, ele desdobra-se em duas «vertentes» ou «dimensões»: uma, a que se refere especificamente o n.º 1 do artigo 13.º, tem sido identificada pelo Tribunal como proibição do arbítrio legislativo; outra, a referida especialmente no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, tem sido identificada como proibição da discriminação. Em ambas as situações está em causa a dimensão negativa do princípio da igualdade. Do que se trata - tanto na proibição do arbítrio quanto na proibição de discriminação - é da determinação dos casos em que merece censura constitucional o estabelecimento, por parte do legislador, de diferenças de tratamento entre as pessoas. Mas enquanto, na proibição do arbítrio, tal censura ocorre sempre que (e só quando) se provar que a diferença de tratamento não tem a justificá-la um qualquer fundamento racional bastante, na proibição de discriminação a censura ocorre sempre que as diferenças de tratamento introduzidas pelo legislador tiverem por fundamento algumas das características pessoais a que alude - em elenco não fechado - o n.º 2 do artigo 13.º É que a Constituição entende que tais características, pela sua natureza, não poderão ser á partida fundamento idóneo das diferenças de tratamento legislativamente instituídas”.
Antes de mais, os interessados têm um tratamento igualitário ao longo do processo. No preceito em análise assegura-se tal tratamento na medida em que é tida em conta a posição de cada titular do direito à herança independentemente da proporção de sua quota. E, prevendo-se ainda a avaliação das verbas que hão de compor o quinhão de cada um, cumpre-se o princípio da partilha igualitária.
A alegada “desigualdade na composição dos respectivos quinhões hereditários” não tem qualquer razão de ser tanto mais que, mesmo por unanimidade, a mesma “desigualdade” pode ocorrer. Acresce que nenhum preceito legal regula como se devem compor os quinhões, designadamente impondo que, havendo vários prédios imóveis, tenham necessariamente que ser “distribuídos” pelos interessados de molde a que caiba pelo menos um a cada interessado. Veja-se tal impossibilidade quando haja mais que um interessado e exista apenas um bem.
A diferença de tratamento entre os interessados prevista no preceito em análise tem, como vimos supra, um fundamento de simplificação e celeridade não sendo por isso censurável tal opção legislativa.
Assim, conclui-se pela não violação deste princípio.
Prevê o art. 62º, nº 1 o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte nos termos da Constituição.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.º ed, nota VI, p. 802, aludem, pelo menos, a quatro componentes: a liberdade de adquirir bens; a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; a liberdade de os transmitir e o direito de não ser privado deles.
Ora, não se vislumbra que o preceito em análise, na medida em que pode atribuir bens a herdeiros que não participem da deliberação, desrespeite algum destes componentes tanto mais que, nos termos do art. 2119º do C.C., o interessado adquire o direito de propriedade directamente do de cujus.
Assim sendo, não ocorre violação deste princípio.
Não se vislumbra igualmente como a norma em causa possa violar o princípio da proporcionalidade, do acesso ao direito, à tutela jurídica efectiva, nem a apelante fundamenta esta alegação.
Como referimos supra a redacção do art. 48º do R.J.P.I, introduzida pela Lei nº 23/2013, de 05/03 de 05/03, correspondeu a uma opção do legislador devidamente justificada e da sua revogação com a reposição da anterior regra não resulta necessariamente o reconhecimento por parte do legislador de que a norma seja inconstitucional.
Neste sentido vide Rita Lobo Xabier e Cátia Rodrigues Matos, in Sucessão familiar na empresa e deliberação dos herdeiros por maioria qualificada, edição online, p. 81 e ss.
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2. Da conformidade com a lei substantiva

Insurge-se a apelante igualmente contra a decisão recorrida na parte em que julgou válida a deliberação constante do ponto III) da conferência preparatória de 25/10/2018 defendendo que a mesma viola o princípio da intangibilidade da legítima previsto no art. 2163º do C.C. sendo certo que a lei adjectiva não se pode sobrepor à lei substantiva.
Vejamos.
O princípio da intangibilidade da legítima tem incidências quantitativas – garante a quota e é tutelado pela repressão das disposições inoficiosas – e qualitativas – proibição do preenchimento da quota pelo autor da sucessão contra a vontade do herdeiro, bem como o testador não poder impor encargos sobre a legítima (art. 2163º do C.C., preceito incluído no título referente à sucessão legitimária).
A doutrina tem chamado à atenção que a solução legal prevista no art. 48º do R.J.P.I. na redacção introduzida pela Lei nº 23/2013, de 05/03 não pode sobrepor-se ao princípio da intangibilidade qualitativa da legítima pelo que, no que respeita à sucessão legitimária, não podem também os co-herdeiros que representam 2/3 da herança designar bens que integram a legítima de outro herdeiro. Por outras palavras, o acordo referido no preceito em análise não é licito quando viole o art. 2163º do C.C..
Neste sentido vide S. F Neto Ferreirinha, in Processo de Inventário, Reflexões sobre O Novo Regime Jurídico, 3ª ed revista, aumentada e actualizada, Almedina, p. 291, 292 (nota 107) e Carla Câmara, Carlos Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira, in Regime Jurídico do Processo de Inventário, Almedina, 2013, p. 214-215.
Na jurisprudência vide Ac. da R.C. de 21/11/2017 (Arlindo Oliveira) e de 25/06/2019 (Luís Cravo), da R.L. de 08/04/2021 (Adeodato Brotas), in www.dgsi.pt
Revertendo ao caso em apreço verificamos que a situação em apreço não se enquadra no acima referido.
Assim, por óbito de F. F. sucedeu-lhe o cônjuge e três filhos.
Os interessados M. B., M. S. e S. F não deliberaram a designação da(s) verba(s) que haviam de compor, no todo ou em parte, o quinhão da interessada apelante, mas apenas as verbas que haviam de compor os seus quinhões (verbas 1, 3, 4 - M. B., verba 5 - M. S., verba 6 S. F.) e, não tendo a apelante querido ficar com a verba nº 2, mais deliberaram por unanimidade proceder à venda desta e distribuir o produto da venda entre todos.
Assim, a legítima da apelante, quer na sua incidência quantitativa, quer qualitativa é respeitada sendo consequente válida a deliberação em causa.

3. Do abuso de direito

Defende a apelante que ocorre uma manifestação grosseira de abuso de direito uma vez que a deliberação em apreço impede a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos interessados, sendo que, como decorre da relação de bens e atento o número de interessados, é possível a repartição igualitária e equitativa dos bens a partilhar a cada um dos interessados das verbas 3, 4, 5 e 6 que têm valores semelhantes. Ao deliberarem nos termos referidos impediram que a apelante fosse com um desses prédios. Propugna o prosseguimento do inventário com licitações.

Dispõe o art. 334º do C.C., sob a epígrafe “Abuso de direito”:

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A doutrina do abuso de direito ganhou consistência na Europa nos finais do Sec. XIX e princípios do Sec. XX e surgiu como uma necessidade de “relativização” dos direitos por contraposição ao seu carácter absoluto. Foi especialmente desenvolvida pela doutrina alemã.
Em Portugal tal doutrina foi igualmente recebida tendo Manuel de Andrade, in Teoria Geral das Obrigações, I, Coimbra, 1958, pág. 63-64, referido: “”Grosso modo”, existirá um tal abuso quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto ele aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante”.
O Professor Vaz Serra, in Abuso de Direito, B.M.J., nº 85, escreveu “Pode dizer –se, de um modo geral, que há abuso do direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante; e a consequência é a de o titular do direito a ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual”.
Funciona como uma válvula de segurança do sistema, um dos expedientes ditados pela consciência jurídica para obtemperar a situações em que um preceito legal, certo e justo para as situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram.
O art. 334º do C.C. foi introduzido por influência do Professor Vaz Serra revelando uma recepção ampla da referida doutrina. O legislador adoptou a concepção objectiva na medida em que não é necessário que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido, bastando que com o seu acto tenha excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício.
Não obstante a lei falar em exercício de direitos a locução “direito” surge numa acepção ampla de molde a abranger, não apenas o exercício de direitos subjectivos, mas de quaisquer posições jurídicas, quer pela acção ou pela omissão.

Este instituto jurídico baseia-se na boa fé que exprime os valores fundamentais do sistema e para cuja concretização utilizam-se dois princípios:
- o principio da tutela da confiança legítima que tem como quatro pressupostos:
a) a situação de confiança – própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
b) a justificação para essa confiança – expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível;
c) o investimento de confiança – ter havido da parte do sujeito um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
d) a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante – tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu;
- e o princípio da primazia da materialidade subjacente (exige-se que o exercício das posições jurídicas seja avaliado em termos materiais, de acordo com as consequências que acarretam).

Enunciam-se igualmente grupos típicos de actuação abusiva:

1) exceptio doli - consiste na faculdade potestativa de paralisar o exercício do direito de outrem quando este prevalecer-se de sugestões ou de artifícios proibidos por lei. Este tipo não se mostra consagrado no Código Civil Português;
2) venire contra factum proprium - exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente;
3) inalegabilidades formais - situações em que a nulidade derivada de falta de forma legal de determinado negócio não pode ser alegada, sob pena de abuso de direito;
4) suppressio – uma modalidade do venire - uma posição jurídica, não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais possa sê-lo por, de outra forma, se atentar contra a boa fé.;

E surrectio - o oposto, i.e., a aquisição de uma posição, mercê uma confiança legítima, que de outro modo não lhe assistiria;
5) tu quoque - impossibilidade de uma pessoa que viola uma norma jurídica de poder depois, sem abuso, prevalecer-se da situação daí decorrente ou exercer a posição violada pelo próprio ou exigir a outrem o acatamento da situação jurídica violada;
6) desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados – tipo extenso e residual de actuações contrárias à boa-fé que comporta três subtipos:
- o exercício do direito sem qualquer benefício para o exercente e com dano considerável para outrem;
- a actuação dolosa daquele que vem exigir a outrem o que lhe deverá restituir logo a seguir;
- e a desproporção grave entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto a outrem.

Nesta parte acompanhamos de perto Menezes Cordeiro, in Teoria Geral do Direito Civil, 1º vol, AAFDL, 1987/88; in Do abuso de direito: Estado das Questões e Perspectivas, R.O.A., nº 65, Set. 2005 e in Tratado do Direito Civil, Parte Geral, Tomo V, Almedina, 2011.
Revertendo ao caso em análise afigura-se-nos que não resultou, de modo algum, demonstrado que os apelados tenham exercido abusivamente o direito que lhes é concedido pelo art. 48º do R.J.P.I..
Acresce que a apelante não alude sequer à boa fé, nem à tutela da confiança.
De qualquer modo, não se vislumbram factos de onde se possa retirar uma confiança, e muito menos legítima, que lhe viesse a ser adjudicado um dos prédios sob as verbas 3, 4, 5 e 6. Quando muito aquela teria essa vontade e uma mera expectativa que tal se verificasse.
Por outro lado, a deliberação não se subsume a nenhum dos grupos típicos de actuação abusiva. A mesma, não se inscrevendo em nenhum dos três sub-tipos, não encerra um desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados.
Pelo exposto, e em resumo, concluímos que a mesma não ofende clamorosamente o sentido de justiça.
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Assim, a apelação improcede.
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As custas da apelação são da responsabilidade da apelante face ao seu decaimento (art. 527º do C.P.C.).
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – A Lei nº 23/2013, de 05/03 de 05/03, que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário inovou dispondo no seu art. 48º, nº 1 que, na conferência preparatória da conferência de interessados, podem os interessados deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos aí previstos.
II – Esta disposição mostra-se conforme aos princípios constitucionais da igualdade, da propriedade privada e de acesso ao direito e à tutela jurídica efectiva.
III – Contudo, tal preceito não pode sobrepor-se ao princípio da intangibilidade qualitativa da legítima previsto no art. 2163º do C.C. pelo que, no que respeita à sucessão legitimária, não podem também os co-herdeiros que representam dois terços da herança designar bens que integram a legítima de outro herdeiro.
IV. Num caso em que a maioria de dois terços dos herdeiros delibera designar os bens que hão compor os seus quinhões, não tendo a outra interessada demostrado vontade de ficar com a verba remanescente, e deliberaram por unanimidade proceder à venda desta e distribuir o produto da venda entre todos, a legítima desta é respeitada sendo consequente válida a deliberação em causa.
V – Uma tal conduta da maioria de dois terços dos herdeiros sem mais não se subsume ao exercício abusivo do seu direito.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Guimarães, 11/11/2020

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues