Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
411/25.9T8MNC.G1
Relator: LUÍS MIGUEL MARTINS
Descritores: SEPULTURA PERPÉTUA
DESTINO DOS RESTOS MORTAIS
LEGITIMIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/04/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Dos contratos de concessão de terrenos nos cemitérios para jazigos, mausoléus ou sepulturas perpétuas não resulta para o concessionário um direito de propriedade nos termos em que o estabelece o regime de direito privado, embora possa haver transmissão por via sucessória ou entre vivos desse direito, mas desde que tal seja autorizado pela respetiva autarquia local.
II - No âmbito dessa concessão não tem o concessionário por esse facto qualquer direito sobre o corpo que se mostre inumado em sepultura perpétua.
III - A legitimidade para decidir se os restos mortais devem permanecer inumados ou serem cremados cabe ao sucessivamente às pessoas indicadas no art. 3.º, n.º 1 do D.L. n.º 41IV1/98, de 30/12.
IV - O abuso de direito na modalidade de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas define-se como sendo o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objetiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objetivo).
V - O destino a dar ao próprio cadáver é algo que pode ser incluído em testamento e que só terá validade enquanto tal, enquanto cláusula reguladora desse destino, se constar de testamento, de ato revestido de forma testamentária.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório (também com base na decisão recorrida)

AA veio instaurar contra BB, procedimento cautelar não especificado, solicitando que o Tribunal ordene a notificação do requerido para se abster de mandar retirar a falecida mãe da requerente da sepultura perpétua onde se encontra.
Para o efeito alegou que o requerido tem vindo a diligenciar para exumar os restos mortais da falecida mulher e mãe da requerente; que esta nunca foi a vontade da requerida e que a concessão do uso da campa lhe pertence, não autorizando a referida exumação.
Determinou-se a realização de audiência final, sem contraditório prévio do requerido, e foi proferida decisão decretando a providência requerida.
Citado nos termos do artigo 372, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, o requerido deduziu oposição aduzindo, em suma, que o direito a dar destino às ossadas da falecida mulher lhe pertence, em exclusivo, nos termos do art. 3.º do D.L. n.º 411/98, devendo este suplantar o direito da requerente quanto à posse da sepultura perpétua.

Realizou-se audiência final, após o que foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, o Tribunal julga totalmente improcedente, por não provada, a oposição suscitada pelo requerido, mantendo-se, na íntegra, a providência cautelar já decretada nos autos, ou seja, mantém-se a condenação do R. a abster-se da prática de todo e qualquer ato suscetível de perturbar o direito de uso exclusivo da sepultura perpétua n.º ..., arruamento n.º 5, talhão n.º 5 do Cemitério ... e ..., ... de que é titular a A.; designadamente condena-se o R. a abster-se de ordenar, efetivar e/ou tentar a exumação ou retirada dos restos mortais da falecida Sr.ª D.ª CC da redita sepultura.
Notifique o requerido, com a advertência expressa de que, caso infrinja a providência cautelar decretada, incorrerá na prática do crime de desobediência qualificada, previsto e punível pelo art. 348.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Código Penal ex vi art. 375.º do Código de Processo Civil.”.
  
Inconformada com esta decisão, dela veio recorrer o requerido formulando as seguintes conclusões:
“1. Deve ser eliminada a segunda parte do facto indiciariamente provado n.º 4, onde se refere “e assim privar os demais familiares, nomeadamente a requerente, de prestar culto à falecida mãe” devendo o mesmo passar a ter a seguinte redacção: O requerido, ao agir do modo descrito, pretendia e pretende cremar os restos mortais da referida CC.
2. O Tribunal considerou provado aquele facto com base naquilo que as testemunhas da Requerente pensam ser o propósito do Requerido ao pretender a exumação e cremação do cadáver da sua falecida esposa, com base numa mera convicção das testemunhas da Requerente.
3. Nos seus depoimentos, apenas duas testemunhas disseram que achavam que o objectivo do Requerido com a cremação dos restos mortais da sua falecida esposa era privar a família de prestar culto e de depositar flores na campa da falecida, o que, uma delas, pensava com base em boatos que a mesma referiu que chegaram a circular pela aldeia.
4. É o que resulta das seguintes concretas passagens dos depoimentos de duas testemunhas:
- depoimento da testemunha DD no dia 30.09.2025 com início às 15h52m e termo às 16h00m, minutos 5.20 a 5.25 e 5.55 a 6.21;
- depoimento da testemunha EE do dia 30.09.2025 com início às 15h26m e termo às 15h46m, minutos 12.22 a 13.25.
5. Depois, na fundamentação de facto, dizer que as testemunhas pensam que o propósito do Requerido é esse só porque ao fim de 3 anos é que o Requerido se propôs realizar a exumação e cremação da sua falecida esposa é um argumento que não tem qualquer validade pela simples e singela razão de que após a inumação é proibido abrir qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, conforme dispõe o artigo 21.º, n.º 1 do DL 411/98.
6. Não havendo qualquer disposição testamentária nesse sentido, a legitimidade para dispor dos restos mortais e requerer a exumação do cadáver da CC, cabe, em exclusivo, ao seu cônjuge sobrevivo, ora Requerido, conforme dispõe o artigo 3.º do DL 411/98, de 30 de Dezembro.
7. Atenta a importância da matéria em questão, o legislador, em nome da segurança jurídica, teve o cuidado de consagrar expressamente que esse tipo de manifestações de vontade tem de constar de testamento, sendo indiferente que em vida a falecida possa ter manifestado qualquer vontade, verbalmente, a alguns familiares.
8. O facto de a Requerente ser titular do alvará de uma sepultura não lhe concede qualquer direito sobre os restos mortais aí sepultados, sendo este direito das pessoas mencionadas no artigo 3.º do DL 411/98 que podem não coincidir com a pessoa que é titular do alvará – cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte datado de 02/06/2021, proferido no processo 7/21.4BEVIS disponível em www.dgsi.pt:
9. A possibilidade de dispor dos restos mortais que se encontram aí sepultados, não se confunde com a possibilidade de uso de uma sepultura, algo que o Requerido não pretende perturbar.
10. Depois, vem a decisão fundamentada no facto de o Requerido estar a actuar em abuso de direito porque na opinião do Tribunal apenas actua com uma vontade emulativa pois pretende privar a sua filha de prestar culto à sua falecida mãe.
11. Sustenta tal conclusão, em primeiro lugar, no facto do Requerido ter permitido a inumação do cadáver e só após o decurso de mais de 3 anos, após sedimentação de uma situação fáctica indutora de confiança legítima, por parte dos demais herdeiros legais e parentes, mormente a A., de que poderia prestar culto à sua falecida mãe, em cemitério; é que o R. agiu do modo descrito nos autos.
12. Desde já, como se disse, após a inumação é proibido abrir qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, conforme dispõe o artigo 21.º, n.º 1 do DL 411/98.
13. Depois, se assim fosse, segundo a teoria jurídica explanada na sentença, após a inumação, jamais se poderia praticar qualquer acto previsto no Decreto-lei 411/98, pois estaria criada uma expectativa pelo facto de em três anos nada se ter feito.
14. Mas se a lei refere que nesses três anos após a inumação não se pode praticar qualquer acto previsto nesse decreto lei, não há qualquer expectativa jurídica que possa ser criada, pelo menos, que tenha acolhimento legal.
15. Depois, dizer-se que, também pelo facto de o Requerido não ter elucidado o Tribunal qual o destino que iria dar às cinzas indicia que a vontade do mesmo é privar os restantes familiares de prestarem o culto à falecida D.ª CC, é uma mera suposição, sem qualquer suporte factual ou jurídico.
16. Por um lado, nenhum facto indiciariamente provado assim o enuncia e, por outro lado, o destino que o Requerido irá dar às cinzas só a ele compete determinar dentro dos condicionalismos previstos no artigo 19.º do DL 411/98.
17. A autorização da Requerente é irrelevante para o caso em apreço pois, como se disse, o Requerido apenas pretende dispor dos restos mortais da sua falecida esposa e não privar ou turvar o uso da sepultura pela sua filha.
18. Isto sem esquecermos que as sepulturas perpétuas não são propriedade privada mas sim uma concessão de uso privativo sobre um espaço do cemitério, que é um bem do domínio público das freguesias ou Municípios.
19. Assim, é suficiente a autorização da freguesia ou Município para se poder proceder à exumação do cadáver da falecida esposa do Requerido, e tão só para este efeito.
20. Violou a sentença recorrida o artigo 3.º do DL 411/98, de 30 de Dezembro.
Termos em que, Deve ser dado provimento ao presente recurso com a consequente revogação da sentença recorrida, devendo a oposição ser julgada totalmente procedente por provada, revogando-se a decisão que decretou e manteve o presente procedimento cautelar com todas as legais consequências.”.
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A requerente apresentou resposta às alegações por parte do requerido, pugnando pela improcedência da apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objeto do recurso

A – Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sendo de salientar que, de todo o modo, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar a sua posição, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.
B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, cumpre apreciar, por ordem lógica de conhecimento:
- Da pretendida alteração da matéria de facto;
- Se, em consequência do decidido quanto à alteração da matéria de facto, deve ser revogada a decisão, nos termos alegados no recurso, por não se verificarem os pressupostos para que fosse decretada a providência cautelar não especificada requerida.

III – Fundamentação de facto

A - Matéria de facto julgada indiciariamente provada:
“1. O Requerido pretende cremar o corpo da mãe da requerente, também sua falecida mulher, Sr.ª D.ª CC, sepultada, pelo menos desde ../../2022, na sepultura perpétua n.º ..., arruamento n.º 5, talhão n.º 5 do Cemitério ... e ..., ...;
2. A requerente é titular do direito de concessão incidente sobre na sepultura perpétua n.º ..., arruamento n.º 5, talhão n.º 5 do Cemitério ... e ..., ...;
3. Na data da propositura deste procedimento, o requerido, sem autorização da requerente, ordenou a execução de trabalhos de exumação a uma funerária por si contratada, tendo em vista o levantamento dos restos mortais da referida Sr.ª D.ª CC.
4. O requerido, ao agir do modo descrito, pretendia e pretende cremar os restos mortais da referida Maria Autora e assim privar os demais familiares, nomeadamente a requerente, de prestar culto à falecida mãe.
5. O requerido ordenou a uma funerária que efetuasse trabalhos de desenterro/exumação dos restos mortais da mãe da requerente sepultada no referido cemitério, sem qualquer autorização desta última.
6. O requerido, sempre que encontra flores colocadas na sepultura perpétua n.º ..., arruamento n.º 5, talhão n.º 5 do Cemitério ... e ..., ..., pela filha e por outros familiares da referida esposa, deita-as ao lixo.
Mais se indiciou:
7. Os trabalhos referidos supra nos pontos 3 a 5 não se concretizaram por intervenção com oposição da requerente e seu Ilustre Mandatário.
8. A falecida CC sempre manifestou, em vida, desejar ser sepultada e que os seus restos mortais pudessem receber culto em cemitério.
Ainda se indiciou (oposição):
9. O Requerido BB é o cônjuge sobrevivo da falecida CC e pai da Requerente.
10. No último testamento efetuado por CC não foi nomeado nenhum testamenteiro para a prática de qualquer acto, conforme consta de doc- n.º 2 da junto com a oposição e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
11. O Requerido já tem o serviço de exumação contratado com a EMP01... Lda.”.

B - Matéria de facto julgada indiciariamente não provada:

“12. A ornamentação em granito colocada na dita sepultura foi doada à requerente pelo requerido.
13. O requerido pretende ser cremado quando falecer e colocar as cinzas da sua falecida esposa juntamente com as suas.”.
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IV - Da impugnação da matéria de facto

Cabe aqui apreciar desde logo se o tribunal cometeu algum erro da apreciação da prova na decisão sobre a matéria de facto, conforme lhe é imputado pelo recorrente, ou seja, e na expressão legal, indagar sobre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil).
Note-se que a reapreciação da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação dos depoimentos prestados em sede de audiência, não pode  por em crise o princípio da livre apreciação da prova com assento no art. 607.º, n.º5 do Código de Processo Civil, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição (cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes in Temas de Processo Civil, II Vol., pág. 201).
O art. 607.º, n.º4, do Código de Processo Civil prevê expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.
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A motivação da decisão recorrida, no que se reporta à matéria de facto recursivamente impugnada, foi a seguinte, reportando-se às testemunhas arroladas pela requerente (EE, FF, DD e GG):
“Todas as testemunhas relataram unanimemente surpresa pela atitude do requerido, até porque a falecida estava sepultada há 3 anos, apenas antevendo como possível vontade do R. privar os demais familiares da falecida da homenagem e culto”.
 
Ouvidas na íntegra todos os depoimentos das testemunhas inquiridas nos autos, constata-se que não corresponde a realidade que todas as sobreditas testemunhas anteviram ou disseram que anteviram ser a vontade do requerido (com a cremação) privar os demais familiares da falecida da homenagem e culto.
Tal foi referido de forma inconsistente por EE, tio da requerente e cunhado do requerido que disse ter ouvido boatos que ele queria cremar “para esconder da família”, sendo essa a sua opinião- “acho que sim” -, mas reiterou que se tratavam de boatos, nunca tendo ouvido tal da boca do requerente e que não sabia quais os motivos, mas depois disse que achava que era para não terem acesso e para o que talvez fosse para que o sofrimento da filha fosse maior.
As testemunhas FF, tio da requerente e cunhado do requerido, e GG, cunhada da requerente, nada disseram a este respeito.
Já testemunha DD, tio da requerente e cunhado do requerido, disse a este respeito sem qualquer assertividade “só se for para não termos acesso”, ou seja em termos alinhados com seu irmão EE, até na inconsistência do seu depoimento.
Tais depoimentos são, pois, manifestamente insuficientes para que pudesse quedar provada a intenção do requerido de querer a cremação da sua falecida esposa para privar a requerida e demais familiares de lhe prestarem homenagem e culto.
Ainda que assim não fosse, tal é completamente infirmado pelo depoimento da testemunha HH, prima da requerente e sobrinha do requerido e próxima deste, que deu explicação serena, detalhada e consistente para os motivos pelos quais o requerido queria proceder à cremação da sua falecida esposa, pois que também ele pretendia ser cremado e dessa forma poderiam juntar as cinzas, dando ainda conta de episódio concreto em que colocou flores na sepultura a pedido da requerente e que este sempre permitiu que os familiares colocassem flores e velas, em termos que reputamos de fidedignos.
Chegamos, assim, a conclusão divergente do tribunal a quo, no que a esta matéria diz respeito, sendo que como a demais matéria não se mostra impugnada não nos pronunciaremos sobre a mesma. É que as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício da impugnação a matéria de facto indicou nas respetivas alegações que circunscrevem o objeto do recurso. Assim o determina o princípio do dispositivo. Em tais circunstâncias a modificação da matéria de facto está sujeita à iniciativa da parte interessada e deve limitar-se aos pontos de facto especificamente indicados. (cfr. neste sentido Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8ª edição atualizada, 2024, págs. 387 e 388).
 Julga-se, assim, ser de alterar tal matéria, inserida no item 4 dos factos indiciariamente provados, fazendo transitar tal matéria para os factos indiciariamente não provados.
 Assim sendo, procede na íntegra a impugnação da matéria de facto.
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Passa a ser, assim, a factualidade indiciária a considerar:

1. O Requerido pretende cremar o corpo da mãe da requerente, também sua falecida mulher, Sr.ª D.ª CC, sepultada, pelo menos desde ../../2022, na sepultura perpétua n.º ..., arruamento n.º 5, talhão n.º 5 do Cemitério ... e ..., ...;
2. A requerente é titular do direito de concessão incidente sobre na sepultura perpétua n.º ..., arruamento n.º 5, talhão n.º 5 do Cemitério ... e ..., ...;
3. Na data da propositura deste procedimento, o requerido, sem autorização da requerente, ordenou a execução de trabalhos de exumação a uma funerária por si contratada, tendo em vista o levantamento dos restos mortais da referida Sr.ª D.ª CC.
4. O requerido, ao agir do modo descrito, pretendia e pretende cremar os restos mortais da referida CC.
5. O requerido ordenou a uma funerária que efetuasse trabalhos de desenterro/exumação dos restos mortais da mãe da requerente sepultada no referido cemitério, sem qualquer autorização desta última.
6. O requerido, sempre que encontra flores colocadas na sepultura perpétua n.º ..., arruamento n.º 5, talhão n.º 5 do Cemitério ... e ..., ..., pela filha e por outros familiares da referida esposa, deita-as ao lixo.
Mais se indiciou:
7. Os trabalhos referidos supra nos pontos 3 a 5 não se concretizaram por intervenção com oposição da requerente e seu Ilustre Mandatário.
8. A falecida CC sempre manifestou, em vida, desejar ser sepultada e que os seus restos mortais pudessem receber culto em cemitério.
Ainda se indiciou (oposição):
9. O Requerido BB é o cônjuge sobrevivo da falecida CC e pai da Requerente.
10. No último testamento efetuado por CC não foi nomeado nenhum testamenteiro para a prática de qualquer acto, conforme consta de doc- n.º 2 da junto com a oposição e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
11. O Requerido já tem o serviço de exumação contratado com a EMP01... Lda.

Passa a ser a seguinte a factualidade indiciariamente não provada:
“12. A ornamentação em granito colocada na dita sepultura foi doada à requerente pelo requerido.
13. O requerido pretende ser cremado quando falecer e colocar as cinzas da sua falecida esposa juntamente com as suas.
14. O requerido ao pretender cremar os restos mortais da referida CC quer privar os demais familiares, nomeadamente a requerente, de prestar culto à falecida mãe.
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V – Fundamentação de direito

Mostrando-se procedente a impugnação da matéria de facto, incumbe verificar se a solução alcançada na decisão recorrida é de manter.

Dispõe o art. 362.º do Código de Processo Civil que:
“1 - Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
 2 - O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
 3 - Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte. “

Por seu turno, estabelece o art. 365.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que:
“Com a petição, o requerente oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão.”.
Por fim o art. 368.º, ainda do mesmo diploma legal, rege, na parte que ora importa convocar, que:
“1 - A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
2 - A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.”.

Tendo por base os referidos normativos, vem-se generalizadamente entendendo que o decretamento de uma providência cautelar não especificada (ou comum) depende da concorrência dos seguintes requisitos:
- que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado, ou que venha a emergir de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor;
- que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a ação não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito;
- que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas;
- que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado; e
- que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar (cfr., a título de exemplo, o acórdão desta Relação, de 25/1/2024, processo n.º 2187/23.5T8BCL.G1, consultável em www.dgsi.pt).

No caso em análise, considerou-se na decisão que a recorrida, em conformidade com o item 2 dos factos indiciariamente provados, tinha o direito de uso da sepultura perpétua, que como se refere não é um direito de propriedade mas sim uma concessão de uso privativo sobre um espaço do cemitério, que é um bem do domínio público das freguesias ou municípios.
Diz-se, contudo, que a autorização da requerente para o acesso à sepultura seria necessário para a exumação de restos mortais e que logrando a requerente indiciar o direito exclusivo de uso da sepultura perpétua, se aplicam as regras quanto à tutela da sua posse sobre o bem, na fruição da sua concessão de uso exclusivo – art. 1276.º do Código Civil.
Independentemente de tomar posição sobre se o direito concessionado de uso da sepultura perpétua pode ser defendido por meios possessórios (cfr. desenvolvidamente a propósito da existência de posse nesta área, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/6/20008, processo n.º 991/08-1, consultável em www.dgsi.pt), não é isto de todo o que está em causa nos presentes autos, nem sequer a requerente invocou que pretendia qualquer tutela possessória, antes dizendo erradamente no seu requerimento inicial que é proprietária da sepultura.
Os cemitérios municipais e paroquiais são bens integrados no domínio público cujo uso privativo é atribuído a particulares sob o regime de contrato de concessão.
É aos municípios, através do presidente de câmara municipais ou às freguesias, através das respetivas juntas, conforme se trate de cemitérios municipais ou de cemitérios paroquiais, que a lei confere a competência para conceder terrenos nos cemitérios para jazigos, mausoléus ou sepulturas perpétuas, conforme deflui atualmente dos artigos 16º, n.º 1, al. gg) e 35.º, n.º 2, al. p), da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro.
Dos referidos contratos de concessão não resulta para o concessionário um direito de propriedade nos termos em que o estabelece o regime de direito privado, embora possa haver transmissão por via sucessória ou entre vivos desse direito, mas desde que tal seja autorizado pela respetiva autarquia local. (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/2/2006, processo n.º 06B202, consultável em www.dgsi.pt).
E no âmbito dessa concessão não tem o concessionário por esse facto qualquer direito sobre o corpo que se mostre inumado em sepultura perpétua, sendo que obviamente não pode obstar à exumação de cadáver desde que tal exumação tenha sido autorizada pela autoridade competente, que no caso é  a freguesia, proprietária do cemitério, através da Junta que o administra (Junta de Freguesia ... e ..., que emitiu o alvará de 22 de abril de 2022 relativo à sepultura perpétua em que se encontram inumados os restos mortais da mãe da recorrida e cônjuge do recorrente), conforme decorre do art. 4.º, n.º 2 do D.L. n.º 411/98, de 30/12, através de modelo de requerimento que consta como anexo de tal diploma a que se reporta também o art. 31.º.

Conforme se refere no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte datado de 02/06/2021, proferido no processo 7/21.4BEVIS, consultável em www.dgsi.pt:
“(…) A concessão de uma sepultura confere aos titulares o direito de utilização do terreno objeto de concessão para fins de inumação, mas daí não decorre necessária a automaticamente qualquer direito sobre os restos mortais que aí foram depositados, estando em causa, direitos de natureza diversa.
Efetivamente, não basta invocar a qualidade de concessionário de sepultura e muito menos a posse do correspondente alvará que titula esse direito, para que correspondentemente se possa necessária e automaticamente, dispor dos restos mortais aí sepultados, uma vez que o direito de disposição dos restos mortais não é concedido, por natureza, aos concessionários onde os mesmos se encontrem depositados, mas às pessoas indicadas no artigo 3º do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, o que não é necessariamente coincidente.”.

Assim sendo, ao contrário do que se disse na segunda decisão proferida na primeira instância, objeto de recurso não há qualquer conflito de direitos, pois que à partida a recorrida não tem qualquer direito de que se possa fazer valer para obstar à exumação dos restos mortais da sua mãe. Note-se que na decisão primeira proferida sem contraditório, decidiu-se exclusivamente com base na suposta posse que a recorrida tinha sobre a sepultura perpétua, obnubilando-se o D.L. n.º 411/98, de 30/12, máxime o seu art. 3.º, n.º 1 que dispõe que:

“1 - Têm legitimidade para requerer a prática de actos regulados no presente decreto-lei, sucessivamente:
a) O testamenteiro, em cumprimento de disposição testamentária;
b) O cônjuge sobrevivo;
c) A pessoa que vivia com o falecido em condições análogas às dos cônjuges;
d) Qualquer herdeiro;
e) Qualquer familiar;
f) Qualquer pessoa ou entidade.”.

Neste diploma mostram-se regulados os atos a que se reporta o seu art. 1.º que reza assim no seu n.º 1:
“O presente diploma estabelece o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres, de cidadãos nacionais ou estrangeiros, bem como de alguns desses actos relativos a ossadas, cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, e, ainda, da mudança de localização de um cemitério.”.
Em face dos transcritos normativos é indiscutível que a legitimidade para decidir se os restos mortais da mãe da recorrida e cônjuge do recorrente incumbem a este último, visto, que conforme quedou assente não foi instituído qualquer testamenteiro, sendo que do testamento da falecida que se mostra junto aos autos como doc. nº 2 junto com a oposição, a que se refere o item 10 dos factos indiciariamente dados por adquiridos não consta qual o destino que pretendia que fosse dado aos seus restos mortais.
De facto, de tal instrumento de disposição de última vontade apenas consta que a falecida instituiu como seu único e universal herdeiro o seu cônjuge aqui recorrente e que para a hipótese de este falecer com anterioridade a si própria, legava o usufruto de um prédio a uma neta e de outro prédio a um filho, não contemplando a recorrida, sua filha, com o que quer que fosse da sua quota disponível.
Porém, de tal não se pode extrair nada a respeito que seria dado aos restos mortais.
O cadáver, na definição legal, o corpo humano após a morte até estarem terminados os fenómenos de destruição da matéria orgânica (artigo 2º, nº 1, alínea i), do Decreto-Lei nº 411/98, de 30 de dezembro) em si é uma coisa que não integra a herança, e que, por razões de piedade e respeito pelos mortos, é insuscetível de direitos privados e que queda excluído do tráfico jurídico normal (cfr. art. 202.º do Código Civil).
Em suma, não há qualquer direito a considerar por parte da recorrida por virtude da titularidade do direito sobre a sepultura perpétua em que se encontra inumado o cadáver da sua mãe, sendo que a legitimidade para decidir se tais restos mortais devem permanecer inumados ou serem cremados cabe ao recorrente, não existindo em rigor qualquer conflito de direitos como se veiculou na decisão recorrida.
A questão que verdadeiramente se coloca é a de saber se a legitimidade que a lei atribui ao recorrente para decidir quanto ao destino dos restos mortais do seu falecido cônjuge merece tutela do direito, diferentemente do que se entendeu na decisão recorrida que defendendo que existia conflito de direitos entre a posse da requerente e a legitimidade conferida pelo transcrito art. 3.º, n.º 1, aç. b) do D.L. n.º 411/98, de 30/12, este atuaria em abuso de direito e que, portanto, esta legitimidade para decidir ficava postergada pelo direito da recorrente de defesa da posse.

No caso vertente há que, por isso, sindicar da existência do bonus fumus iuris quanto à existência do direito, rectius legitimidade, da recorrida para ser ela a decidir quanto ao destino dos restos mortais da sua mãe pela paralisação da legitimidade do recorrido para decidir quanto ao destino do cadáver por atuar em abuso de direito nos termos em que o prevê o art. 334.º do Código Civil, que dispõe o seguinte:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”.
A justificação do instituto do abuso do direito, que é uma defluência do princípio da boa fé (enquanto regra de conduta) tem por alicerce razões de justiça e de equidade, sendo que se verifica uma situação de abuso do direito quando o titular de um direito o exercita caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em afronta ao sentimento jurídico dominante.
No exercício em abuso de direito existe um desvio flagrante e ostentatório entre a dimensão do direito tutelado e compressão de um outro estado ou situação jurídica, que não estando salvaguardado pela ordem jurídica, terá obtido pela permanência na esfera jurídica de um outro sujeito, um estádio de quase direito que a consciência jurídica, numa assunção de pré-juridicidade ou juridicidade fáctica, deve tutelar, ou pelo menos, obstar que seja inocuizado pelo direito validamente constituído.
As situações catalogadas como de abuso do direito são enquadráveis em distintas tipologias as quais permitem subsumir parâmetros jurídicos de atuação suscetíveis a concretizar os conceitos indeterminados em que está respaldado este instituto.
Uma dessas tipologias é o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
O abuso de direito na modalidade de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas define-se como sendo o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objetiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objetivo).
Este tipo de comportamento abusivo diz respeito à desproporcionalidade que se pode verificar entre o exercício de posições jurídicas e os seus efeitos.

Esta categoria pode, pois, ser preenchida pelas seguintes modalidades:
a) O exercício danoso e inútil, segundo o qual será abusivo, por contrariedade à boa-fé, todo o comportamento que tem como propósito causar dano a outrem sem que o titular exercente dele tire qualquer utilidade. Este tipo de comportamento abusivo resulta da associação entre o exercício inútil (atos chicaneiros) e a intenção de prejudicar (os emulativos), e manifesta-se abusivo porque contrário a valores fundamentais do sistema.
b) O dolo agit, age com abuso aquele que exige algo que terá de restituir imediatamente.
c) A desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício imposto a outrem. Integram esta submodalidade de abuso situações como o desencadear de poderes-sanção por faltas insignificantes, a atuação sem direito com lesão intolerável de outras pessoas e o exercício jurídico subjetivo sem consideração por situações especiais (cfr. neste sentido Gorki Salvador, “O exercício inadmissível de posições jurídicas: a exegese do artigo 334.º do Código Civil”. pág. 210 e segs. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Volume V, pág. 345 e segs. e na jurisprudência, v.g., acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9/10/2025, processo n.º5/24.6T8MTR.G1, consultável em www.dgsi.pt).

No caso vertente, sufragou-se na decisão recorrida a primeira das descritas modalidade, ao dizer-se, para além do mais, que o recorrente atuou de modo emulativo.
 “Na sua variante de exercício em desequilíbrio – desproporção grave entre o exercício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem – o abuso de direito resultará da prática de uma acção que pelas circunstâncias ultrapasse os limites razoáveis do exercício de um direito, provocando danos a um terceiro - apresenta-se, desta forma, como um resultado do princípio da proporcionalidade conatural à própria ideia de justiça, intuída como proporção ou justa medida.”. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/2015 proferido no processo n.º 283/2002.P2.S1, consultável em www.dgsi.pt).

Pode ainda ler-se a este propósito o que consta do sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 15/06/2023, processo n.º 147/06.0TCSNT-B.L1-6, consultável em www.dgsi.pt que:
 “I- A figura do abuso de direito tem subjacente a intenção de assegurar que na aplicação do Direito, das normas positivas, se encontre uma ideia de justiça, que deve observar-se sempre em função das concretas circunstâncias de cada caso, observadas as especificidades da vida, sem que porém se entre numa ideia de discricionariedade; a aplicação da figura do abuso de Direito deve orientar-se por um critério objectivo, pela aplicação dos princípios gerais de direito, em especial o princípio geral da boa-fé, para que o resultado ou solução a que se chega possa servir melhor esse ideal de justiça. II – O desequilíbrio no exercício do direito caracteriza-se pela desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem, sem que se ponha em causa o direito do titular. III - A questão é saber se o exercício desse direito se revela, no caso concreto, desproporcionado; desequilibrado, em termos que ofendam outros princípios e valores validamente vigentes no nosso ordenamento jurídico, observada a situação material subjacente, ponderação que se tem de fazer através da análise das concretas circunstâncias de cada caso.”.

 No caso em apreço, o desequilíbrio do exercício do direito conferido ao requerente de decidir sobre se os restos mortais do seu cônjuge deviam ser cremados ou manter-se inumados derivaria basicamente da matéria que foi dada por indiciariamente adquirida no segmento final do item 4 respetivo, que tinha o seguinte teor:
“O requerido, ao agir do modo descrito, pretendia e pretende cremar os restos mortais da referida Maria Autora e assim privar os demais familiares, nomeadamente a requerente, de prestar culto à falecida mãe.”. Sublinhado nosso.
Ora, como vimos, o segmento final supra sublinhado, em função da procedência da impugnação da matéria de facto foi eliminado, passando tal item a ter a seguinte redação:
“O requerido, ao agir do modo descrito, pretendia e pretende cremar os restos mortais da referida Maria Autora.”.
Cai assim pela base factual a tese do abuso de direito, pois que não se mostra indiciado que a cremação tinha como objetivo por parte do recorrido impedir que a recorrida e os demais familiares de prestarem culto à falecida.
Diz-se ainda sentença recorrida que releva também para a avaliação do abuso de direito a vontade da requerida em ser sepultada e que os seus restos mortais pudessem receber culto no cemitério, sobretudo porque o recorrente permitiu a inumação do cadáver e só após o decurso de mais de 3 anos, após sedimentação de uma situação fáctica indutora de confiança legítima, por parte dos demais herdeiros legais e parentes, mormente a recorrente, de que poderia prestar culto à sua falecida mãe, em cemitério é que agiu do modo descrito nos autos.
Tais asserções revelam várias inconsistências.
Em primeiro lugar, a matéria conclusiva da vontade da falecida em ser inumada e que lhe fosse prestado culto em cemitério que se deu por indiciariamente adquirida foi prestada perante quem, quando e em que circunstâncias? Não se sabe. Sabe-se isso sim que tal declaração de vontade, tenha sido prestada em que termos foi é inválida.
De facto, a lei confere o direito de, num ato que é tipicamente patrimonial, como o testamento, inserir o chamado “conteúdo atípico que consiste em disposições não patrimoniais, a que a lei atribui eficácia ainda que na falta de disposições de carácter patrimonial, desde que se contenham em acto com a forma de testamento.”. (Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol.VII, pág. 391).

Assim o permite art. 2179.º, n.º 2 do Código Civil, que no diz que:
“As disposições de carácter não patrimonial que a lei permite inserir no testamento são válidas se fizerem parte de um acto revestido de forma testamentária, ainda que nele não figurem disposições de carácter patrimonial.”
Independentemente de saber se a validade da inclusão dessas disposições de carácter não patrimonial se cinge aos casos em que a lei expressamente prevê que o negócio possa ser contido em testamento, ou se essa interpretação restritiva deve ser tida como injustificada, o certo é que, expressamente, a lei prevê a inclusão em testamento da cláusula que tem a ver com o destino do cadáver.
É o que ressalta da transcrita al. a), do art. 3.º, n.º 1 do D.L. n.º411/98 - o testamenteiro, em cumprimento de disposição testamentária.
O que resulta da conjugação destes dois dispositivos é que o destino a dar ao próprio cadáver é algo que pode ser incluído em testamento e que só terá validade enquanto tal, enquanto cláusula reguladora desse destino, se constar de testamento, de ato revestido de forma testamentária.
Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/1/2003, processo n.º 03B2523, consultável em www.dgsi.pt:
“Ou o testador rubrica disposição testamentária sobre a sua própria inumação, ou o testamenteiro não tem sequer legitimidade para requerer quaisquer actos a ela relativos. Por muito que ele conheça qualquer expressão da vontade de quem o nomeou sobre essa exacta questão, quer verbal quer mesmo escrita.
Num tal caso, e se o testador não houver especificado, ao nomeá-lo, as atribuições do testamenteiro, não lhe resta outra coisa senão cuidar do funeral do testador ... consoante os usos da terra - art.2326º CCivil - ficando a legitimidade conferida pelo Dec.lei nº411/98 para quem lhe suceder nas várias alíneas do nº1 do art.3º.
Ou seja:
ao menos em relação ao testamenteiro, alguém que é encarregado pelo testador de vigiar o cumprimento do seu testamento ou de o executar, no todo ou em parte (art.2320º do CCivil) e a quem, se acaso não são especificadas as suas atribuições, compete cuidar do funeral segundo os usos da terra, está absolutamente claro que a lei exclui a validade de disposição de última vontade quanto ao destino do cadáver que não conste expressamente de um acto revestido de forma testamentária.
E se é assim para alguém que quem morre indica formalmente para cumprir as suas últimas vontades (afastando, porventura, desconfianças sobre o cumprimento delas pelos seus herdeiros), por maioria de razão o há-de ser para quem lhe sucede a um outro qualquer título.
Fora da expressão rigorosa, e formal, da vontade do de cujus em testamento ou acto formalmente equivalente, aquilo que quem morre tenha, num qualquer tempo ou circunstância, dito ou escrito, há-de ser apenas um elemento a ponderar na formação de uma vontade de respeito pela personalidade moral de quem morreu, no exercício de uma legitimidade que já não é de quem morre mas de quem lhe sucedeu.

Concluindo:
dentro do testamento, a disposição sobre o concreto lugar da inumação do cadáver é válida e têm legitimidade para exigir o seu cumprimento ou o testamenteiro, se tal encargo lhe foi confiado, ou sucessivamente as mais pessoas indicadas no art.3º do Dec.lei nº411/98;
fora do testamento, uma tal cláusula perde validade enquanto negócio jurídico unilateral que cumpra respeitar.”.
 Assim sendo, como é, os desejos da falecida manifestados em qualquer momento perante umas quaisquer pessoas de ser sepultada e sem que saibamos os concretos contornos não têm qualquer validade, pois que o meio próprio, válido e seguro que o fazer era através de disposição testamentária.
Depois, o facto de o cadáver ter ficado três anos inumado é absolutamente irrelevante, não havendo nenhuma confiança a tutelar de quem quer que seja na manutenção de tal situação, sendo que o facto de a pessoa que tem legitimidade exercer o direito a escolher o destino a dar ao cadáver após esse período não constitui de per si qualquer abuso de direito, antes um normal exercício do mesmo.

Aduza-se que de todo o modo, por imperativo legal, estava vedado ao recorrente requerer a exumação do cadáver para proceder à sua cremação, visto que de acordo com o art.21.º, n.º 1 do D.L. n.º 411/98:
“Após a inumação é proibido abrir qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, salvo em cumprimento de mandado da autoridade judiciária.”.
Ou seja, não se mostrando provado o motivo pelo qual o cadáver foi inumado logo após o decesso, sabemos isso sim por virtude da transcrita disposição legal, que o cadáver não podia ser exumado antes de decorridos três anos, sendo que pouco tempo depois de decorrido este período o recorrente pretendeu realizar a exumação do cadáver, tendo, como ficou provado contratado uma empresa para levar a cabo tal tarefa.
Inexiste, pois, qualquer abuso de direito por parte do recorrente, não tendo, por isso, qualquer base legal a pretensão da recorrida, nem lhe assistindo, ainda que indiciariamente, qualquer direito que possa ser acutelado com o decretamento do procedimento cautelar em apreço, o que equivale por dizer que o procedimento cautelar deve claudicar.
Procede, pois, o recurso.
As custas serão suportadas pela apelada, uma vez que ficou vencida (art. 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
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VI - Decisão

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se improcedente o procedimento cautelar, absolve-se, em consequência, o recorrente dos pedidos formulados pela recorrida contra si.
Custas pela recorrida.
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Guimarães, 4/12/2025

Relator: Luís Miguel Martins
Primeira Adjunta: Sandra Melo
Segunda Adjunta: Margarida Pinto Gomes