Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2305/08-1
Relator: NAZARÉ SARAIVA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - É requisito do crime de desobediência previsto no art. 348 nº 1 al. b) do Cod. Penal que a ordem, além de se revestir de legalidade substancial, seja regularmente transmitida, com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão, por forma a que o destinatário tenha conhecimento do que lhe é imposto ou exigido.
II – Não constando da facticidade provada esse elemento essencial, ou seja que a ordem do Director da Direcção de Viação de Braga foi transmitida de forma regular ao arguido e que este tomou conhecimento e entendeu o seu conteúdo, não pode ele ser condenado.
III – Não constando esse facto também da acusação, não se configura sequer o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art. 410 nº 2 al. a) do CPP. Sob pena de violação do princípio da acusação ou do acusatório, consagrado no art. 32 nº 5 da CRP, estava vedado ao juiz do julgamento colmatar a lacuna da acusação, pois o objecto do processo ficou por ela definido, ficando o julgador vinculado tematicamente a esse mesmo objecto.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Relação de Guimarães.

No 1º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial da comarca de Braga, procº nº 10782/02.0TABRG, o arguido Adélio P..., com os demais sinais dos autos, foi submetido a julgamento, em processo comum e com intervenção do tribunal singular, tendo a final sido proferida sentença que o condenou pela prática de um crime de desobediência p.p pelo artº 348º, nº 1, al. b) do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 5,00 euros (cinco euros).
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Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o arguido, onde, em síntese, suscita as seguintes questões:

- ocorre o vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artº 410º, nº 2, al. c), do CPP, porquanto «Os elementos disponíveis nos autos não permitem saber… se o arguido recebeu qualquer carta, se a abriu, se a leu, e fundamentalmente se entendeu o seu conteúdo ou mensagem»;

- houve violação do princípio in dubio pro reo;

- «não pode ser considerada legítima uma ordem que viola um prazo legalmente consagrado, ou seja, violando um direito a um prazo legalmente estabelecido».

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Respondeu o Ministério Público opinando no sentido da improcedência do recurso.

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Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
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Foi cumprido o artº 417º, nº 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Decisão fáctica constante da decisão recorrida (transcrição integral):
“I – Matéria de facto provada:
Por decisão de 2001-06-18 do Director de Viação de Braga tomada no processo 215914481 e não impugnada o arguido foi condenado na sanção acessória de inibição de conduzir automóveis pelo período de trinta dias.
Foi condenado a no prazo de quinze, após o trânsito em julgado da decisão, fazer entrega dos documentos que o habilitavam a conduzir, na DGV de Braga, sob a pena, que lhe foi expressamente comunicada, de cometer um crime de desobediência.
Contudo o arguido não chegou a efectuar a entrega daqueles documentos dentro do prazo fixado.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente.
Sabia que a sua conduta não lhe era permitida.
Sabia que não acatava um comando proferido por quem tinha poder para o fazer e que não o fazendo cometia um crime, o que previu e quis.
Respondeu no processo abreviado nº 382/99, do 3º Juízo do tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, pelo crime de ofensas à integridade física simples tendo sido condenado por decisão proferida em 24-01-2001, em 75 dias de multa à taxa diária de 350$00.
Respondeu no processo Comum Singular nº 1020/00.0PBGMR, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, pelo crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, tendo sido condenado, por decisão proferida em 30-10-2001, em 13 (treze) meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de um ano.
Factos não provados:
Inexistem factos não provados.
Motivação:
A convicção do Tribunal sobre factos provados baseou-se no teor da certidão de fls 3 a 11, devidamente analisada em audiência de julgamento.
Ora, confrontada a assinatura de fls 11 com as de fls 4, 5, 6 e 175, também tais documentos devidamente examinados em audiência de julgamento, facilmente se concluiu tratar-se da assinatura da mesma pessoa, ou seja do arguido, donde se concluiu, em termos de regras da experiência e normalidade do acontecer que o arguido recebeu, abriu a carta e leu a decisão, não tendo procedido à entrega da carta de condução para cumprimento da inibição de conduzir, tal como lhe havia sido ordenado.
A prova do elemento subjectivo é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais factos dados como provados e das regras de experiência comum, parecendo incontroverso, no caso vertente, que o arguido não podia deixar de saber que estava a actuar de forma ilícita e com intenção de desobedecer a uma ordem legitima que lhe fora dada.
Quanto aos antecedentes criminais, o tribunal baseou a sua convicção no teor do CRC junto aos autos a fls 208 a 210.”
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FUNDAMENTAÇÃO:
Há, desde logo, uma questão que surge como prévia às que são suscitadas pelo recorrente, e que é a de saber se os factos dados como provados na sentença recorrida integram o crime de desobediência p. p. pelo artº 348º, nº 1, al. b) do Código Penal.
Ora, a resposta a tal questão é inequivocamente negativa, pelas razões que se seguem.
“Dispõe o artigo 348º, nº 1, al. b), do CP:
“1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados da autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
(…);
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
(…)”
São, assim, elementos objectivos do tipo:
1. A ordem ou mandado,
2. A legalidade substancial e formal da ordem ou mandado,
3. A competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão e
4. A regularidade da sua transmissão ao destinatário vd Leal-Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, Rei dos Livros, 2ª Edição, Volume II, p. 1089 e ss..
A ordem ou mandado têm que se revestir de legalidade substancial, ou seja, têm que se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente,
Por outro lado, exige-se a legalidade formal que se traduz na exigência de as ordens ou mandados serem emitidos de acordo com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão.
Requer-se, ainda, que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, isto é, que aquilo que pretendam impor caiba na esfera das suas atribuições.
Os destinatários têm que ter ainda conhecimento da ordem a que ficam sujeitos, o que exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido.
E, por último, é necessário o preenchimento do respectivo elemento subjectivo, ou seja que o agente incumpra, consciente e voluntariamente a «ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente».
Acresce que, nos termos do artigo 283º, nº 3, al. b) do CPP, a acusação tem de conter, sob pena de nulidade, «A narração ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
Por outro lado, a acusação que não contenha a narração dos factos é considerada «manifestamente infundada» –vd. artº 311º, nº 3, al. a), do mesmo Código.
Pois bem, já acima foi referido, que um dos elementos objectivos do crime de desobediência consiste na comunicação da ordem ao destinatário, de forma regular.
Ora, in casu, da facticidade dada como provada na sentença recorrida não consta, como provado, esse elemento essencial, ou seja que a ordem do Director da Direcção de Viação de Braga foi transmitida de forma regular ao arguido e que este dela tomou conhecimento e entendeu o seu conteúdo. (Aliás, não deixa de ser, no mínimo, estranho, o que se encontra plasmado no 2º§ da matéria de facto dada como provada (e que reproduz o que já constava da acusação), designadamente quando ali se diz que o arguidoFoi condenado a … fazer entrega dos documentos que o habilitavam a conduzir, na DGV de Braga, sob a pena, que lhe foi expressamente comunicada, de cometer um crime de desobediência»).
E, por isso mesmo, a facticidade que consta como provada, atinente ao elemento subjectivo, mostra-se desprovida de qualquer sentido.
Por outro lado, há que dizer que a situação em causa não configura sequer o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, nº 2, al. a) do CPP, uma vez que o tribunal a quo investigou todos os factos alegados na acusação. O que se verifica é que aquele facto essencial para o preenchimento do crime já não consta alegado na acusação pública de fls 39 (a qual, como sabido, constitui o objecto do processo). Ou seja, a acusação deduzida já não fundamentava de per si «a aplicação ao arguido de uma pena», e, por isso, diga-se, devia ter sido rejeitada nos termos do artº 311º, nº 2, al. a), do CPP.
E, por último, importa dizer que, por força do princípio da acusação ou do acusatório, consagrado no artigo 32º, nº 5, da CRP, sempre estaria vedado ao juiz do julgamento colmatar a lacuna da acusação, pois, conforme já referido supra, o objecto do processo ficou por ela definido, ficando, consequentemente, o julgador vinculado tematicamente a esse mesmo objecto. É que, conforme escreve Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª ed., em anotação, ao artº 4º do CPP, “ A garantia de que o juiz de julgamento não esteja implicado na definição do objecto do processo é conatural à imparcialidade do próprio tribunal. O princípio da acusação representa, pois, uma concretização constitucional do princípio da imparcialidade do tribunal”.
Decisão:
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação, no provimento do recurso, em revogar a sentença recorrida e, em consequência absolvem o arguido da prática do crime de desobediência p. p. pelo artº 348º, nº 1, al. b) do CPP que lhe era imputado.
Sem custas.
(Texto processado em computador e revisto pela primeira signatária – artigo 94º, nº 2, do CPP)