Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
86/17.9T9PTB.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: DESPACHO NÃO PRONÚNCIA
CRIME DE INJÚRIA
ELEMENTO SUBJECTIVO
VÍCIOS DO ARTº 410º
Nº 2
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) O erro notório na apreciação da prova, previsto como fundamento de recurso no art. 410º, nº2, alínea c), do CPP, e, outrossim, os demais vícios vertidos nas alíneas a) e b) desse preceito, não são aplicáveis quando se trate de decisão instrutória.

II) Residindo a razão de ser do nº2 do art. 410º do CPP na garantia da sindicância da decisão de facto, mas circunscrita ao texto da decisão recorrida, por contraponto à faculdade da impugnação ampla da matéria de facto, tal divisão concetual não encontra nenhum sentido no caso de impugnação da decisão instrutória (de pronúncia ou não pronúncia), porquanto o que está justamente em causa é a reavaliação total e ampla das provas (indiciárias).

III) Neste sentido aponta claramente a norma do art. 426º, nº1, do CPP, concernente ao reenvio do processo no caso de existência dos vícios referidos nas alíneas do nº2 do art. 410º, consequência legal que é notoriamente inoperacional no caso da instrução, em que não está em causa o julgamento da causa (do objeto do processo).

IV) Por conseguinte, hipotéticas situações que verificadas em sede de sentença seriam suscetíveis de integrar um dos vícios do nº2 do art. 410º do CPP, em sede de recurso de despacho de pronúncia ou não pronúncia reconduzem-se sempre ao escrutínio sobre a existência ou não de indícios suficientes, com o desiderato de decidir se o arguido deve ou não ser submetido a julgamento.
V) Ponderado o contexto em que o epíteto de “ladrão” foi dirigido pela arguida ao assistente, em que ressalta uma situação de conflito entre ambos derivada do que a primeira considerava ser uma invasão e um apossamento ilegítimo por banda do assistente de uma parte de um terreno seu (tendo a arguida convocado ao local as autoridades policiais para se queixar do comportamento do assistente), não se pode inferir, pelo menos de modo minimamente seguro, que ela tenha usado a expressão em causa para gratuitamente e em primeira linha achincalhar e rebaixar a honra e o bom-nome do assistente e, em conformidade, mostra-se, destarte, inviável afirmar suficientemente indiciado o dolo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo nº 86/17.9T9PTB, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Juízo de Instrução Criminal de Viana do Castelo, no dia 31.05.2019, pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal foi proferida a seguinte decisão instrutória (fls. 393 a 397 – referência 44011207):

«Com relevância para os presentes autos de Instrução haverá que ponderar que o assistente M. P. deduziu a acusação particular contra a arguida H. P., imputando-lhe a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal e ainda de um crime de difamação, este previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, também do Código Penal.
Cfr. fls. 63 e 64.
*
O Ministério Público acompanhou esta acusação particular quanto ao imputado crime de injúria, não acompanhando, porém, quanto ao crime de difamação.
Cfr. fls. 67.
*
Inconformada com a acusação particular contra si deduzida, a referida arguida H. P. veio requerer a abertura de Instrução, negando a autoria dos factos nos termos que lhe são imputados e sustentando a inexistência de elementos de prova que permitam concluir pela sua indiciação criminal, remetendo, ainda, para uma situação de conflito civil relacionado com propriedades contextualizante.
Conclui pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia.
Cfr. fls. 76 a 80.
*

Foi proferido despacho de abertura da Instrução (cfr. fls. 218), tendo-se realizado as diligências instrutórias consideradas pertinentes, designadamente junção de elementos documentais e interrogatório de arguida; realizou-se, ainda, audiência de debate instrutório, em conformidade com o processualismo legal.
Mantém-se a validade e regularidade da instância criminal que estiveram subjacentes à prolação do despacho de abertura de Instrução.
Inexistem quaisquer nulidades, questões prévias, incidentais e/ou supervenientes que invalidem o processado e que obstem ao conhecimento do mérito dos autos, que cumpra conhecer.
Não vislumbrando a necessidade de realização de quaisquer outras diligências instrutórias, declaro encerrada a fase de Instrução Criminal, cumprindo decidir.
*

Com relevância para o despacho a proferir, concretamente, da ponderação da existência de indícios suficientes da prática, pela arguida dos factos e dos crimes pelos quais foi deduzida acusação particular parcialmente acompanhada pelo Ministério Público e da sua submissão a julgamento, com vista à aplicação de uma pena, importa proceder a uma apreciação crítica e articulada dos elementos probatórios carreados para os autos em sede de Inquérito e em sede de Instrução Criminal, tendo em consideração, ainda, o direito aplicável.
Conforme resulta do preceituado no art.º 286.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, na fase processual penal (facultativa) de instrução, visa-se a “(...) comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Com tal fase não se pretende um novo inquérito, mas a comprovação, por parte do juiz de instrução criminal da decisão proferida pelo Ministério Público, de acusação ou de arquivamento, não obstante o juiz de instrução dever instruir autonomamente os factos em apreço, não se limitando ao material probatório apresentado pelos sujeitos processuais.
Estabelece o art.º 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal da seguinte forma: “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Nesta sequência – e conforme o estabelecido pelo art.º 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – a suficiência de indícios encontra-se dependente de “deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
No seguimento do entendimento preconizado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-06-1963, in J.R., 3, 777, os indícios suficientes configurarão “Vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes de que crime e de que o arguido é responsável” - vide, ainda, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/11/1983, CJ, V, 71 e de 31-03-1993, CJ, 1993, II, 65.
E como se pode ler no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 20-01-2010, in www.dgsi.pt/jtrp: “A avaliação da suficiência de indícios para acusar ou pronunciar deverá ser levada a efeito sob duas perspectivas autónomas: uma primeira sobre a imputação dos factos ao arguido, no sentido de apurar se o mesmo pode ser por eles responsabilizado juridicopenalmente; uma segunda, sobre a consistência do acervo probatório recolhido e da sua reprodutibilidade e, audiência de julgamento, na ideia de que apenas a prova produzida e/ou susceptível de ser valorada na fase de julgamento pode fundar uma decisão de condenação. Se no momento da acusação ou da pronúncia, a prova indiciária não atinge a força necessária para formar a convicção razoável sobre a futura condenação, não deverá o processo prosseguir, pois por certo tal convicção não será alcançada nas fases posteriores, conhecida que é a tendência para a atenuação dos indícios existentes”.
Reportando-nos ao caso dos autos e procedendo a essa articulação, é o seguinte o entendimento do tribunal:

A.

Factualidade apurada:

No dia 29 de Março de 2017, cerca das 11.33, na Rua …, sita em ..., Arcos de Valdevez, na presença do assistente M. P., bem como de terceiros, designadamente de elementos da GNR local: J. E. e P. M., referindo-se à pessoa do assistente, afirmou, por diversas vezes, que este “estava a roubar o que era dos outros”.
B.

Factualidade não apurada:


Toda a demais imputada/alegada na acusação particular, que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais e o que se consigna, também, para todos os efeitos legais, designadamente:

1. Que ao agir da forma supra dada como apurada, a arguida tivesse agido livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punida e que ofendia a honra, consideração e bom-nome do assistente.
2. Que a arguida tem vindo a proferir acusações e insultos a respeito do assistente junto do Presidente da Junta de ..., acusando o assistente de vários crimes contra a sua propriedade.
3. Que a arguida tenha repetido várias vezes estas expressões e acusações a várias pessoas da freguesia e a várias entidades.
4. E que assim a arguida tivesse agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta, pretendendo ofender a honra, consideração e bom-nome do assistente.

C.
Motivação
A convicção do tribunal alicerçou-se na apreciação sumária, mas ainda assim, crítica, conjunta e articulada dos diversos elementos probatórios carreados para os autos, de entre depoimentos de assistente, arguida e testemunha, bem como nos elementos documentais juntos, salientando-se o seguinte:

C.1.

Relativamente à factualidade dada como apurada:

A mesma resulta objectivada pelo auto de notícia de fls. 10 e 11, com conhecimento directo e presencial do próprio elemento da GNR autuante (cfr. fls. 56 e 57), que aí se deslocou e que ouviu, de viva voz, a arguida a verbalizar os factos correspondentes, tratando-se de um elemento de prova objectivo, sem ligação a qualquer das partes e que tomou conhecimento dos factos em apreço no exercício das suas funções de elemento da GNR, termos em que mereceu credibilidade por parte do tribunal, assim se dando a factualidade em apreço como apurada, corroborada, de resto, também e para além do próprio assistente M. P. (cfr. fls. 30 a 32), pela testemunha F. B. (cfr. fls. 37 e 38) e pela testemunha O. P. (cfr. fls. 50 e 51), não merecendo, neste ponto, a versão de negação da arguida H. P. (declarações prestadas em sede de Instrução Criminal).
C.2.
No que respeita à factualidade dada como não apurada:

Relativamente à factualidade dada como não apurada sob o n.º 1, reportada à circunstância de se ter dado como não apurado o dolo da arguida na verbalização das palavras dadas como apuradas, importa ter em consideração a própria versão da arguida H. P. (conforme declarações prestadas em sede de Instrução Criminal) de que em causa se encontra um dissídio envolvendo arguida e assistente relacionado com os limites de propriedades confinantes de ambos, sendo de trazer à colação, também, neste âmbito os elementos documentais juntos aos autos, designadamente, o próprio auto de ocorrência de fls. 10 e 11, de onde resulta que foi a própria arguida a comunicar os factos e solicitar a comparência da GNR para tomarem conhecimento de uma situação que a mesma considerava lesiva da sua propriedade (trabalhos efectuados pelo assistente ou a mando deste), tendo sido nesse contexto que, em tom de desabafo, proferiu as palavras dadas como apuradas, tendo havido lugar, inclusive, à tirada de fotografias (cfr. fls. 12); ainda, a título documental, importa ter em ponderação a cópia do processo de contra-ordenação junto pela arguida e que foi instaurado contra o assistente por assunto relacionado com obras encetadas por aquele na propriedade em questão (cfr. fls. 81 a 85); ainda a cópia da providência cautelar instaurada pela aqui arguida contra o assistente e esposa, por assuntos relacionados com os respectivos direitos de propriedade conflituantes (cfr. fls. 86 a 144 e 227 a 301) e ainda cópia de um processo de Inquérito criminal a correr termos, desde 2016 – data anterior aos nossos factos - relacionado com a existência de falsidade, designadamente, quanto à área declarada, numa escritura de relativa a terrenos conexos com o caso dos autos (cfr. fls. 311 a 339); ou seja, temos todo um conjunto de elementos documentais que reportam uma situação de dissídio envolvendo assistente e arguido quanto aos respectivos direitos de propriedade, sendo que neste contexto não podemos afirmar o dolo da arguida, tanto mais que desconhecemos a realidade das áreas dos prédios em questão e a quem assiste ou não o direito, pelo que, repete-se, neste contexto, não podemos imputar uma vontade, consciência e/ou intenção da arguida em ofender a honra do assistente, estando-se perante um desabafo ante uma situação seguramente não clarificada sobre a quem assiste a razão, o direito, do ponto de vista das propriedades e áreas das mesmas.
Pertinentemente, permitimo-nos trazer à colação o entendimento preconizado pelo Tribunal da Relação de Guimarães em Acórdão datado de 11-02-2019 no âmbito do processo n.º 351/16.2GCVCT deste tribunal, sendo Relator o Exmo. Sr. Desembargador Dr. Fernando Chaves e que confirmou a absolvição do arguido pela imputada prática de crimes de difamação, em situação similar à dos presentes autos: “É no desenrolar de um conflito entre o arguido e o assistente, relacionado com a área de um terreno (…), isto é, por divergências relacionadas com o direito de propriedade, que o arguido proferiu aquelas afirmações. O que as afirmações proferidas exprimem não é mais do que a tensão criada pelo conflito entre o arguido e o assistente e o sentimento naquele instalado de o terreno adquirido ter uma área superior (…), e se nelas existe, reconhece-se, um excesso de linguagem, ela foi potenciada pelo conflito e não é mais do que o reflexo daquela tensão e daquele sentimento. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, como se verifica amiúde, no meio rural, nas questões relacionadas com direitos reais, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem de forma excessiva. Porém, o Direito Penal deve ter um carácter fragmentário, cumprindo uma função de ultima ratio, não podendo intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana. (…) Em conclusão, atento o contexto em que foram produzidas e os seus precisos termos, considera-se que o potencial ofensivo das afirmações produzidas pelo arguido não atinge o grau de gravidade a partir do qual o direito à honra carece de tutela penal, pelo que se entende atípica e, portanto, não difamatória, a imputação que elas consubstanciam; o caso dos autos assenta que nem uma luva neste entendimento, crendo-se que neste contexto, a arguida não tinha sequer, qualquer dolo genérico, tendo efectuado um desabafo perante uma situação que carece de tutela civil e tão só, estando aí a ser discutida, termos em que se deu a factualidade do n.º 1 do capítulo ora em análise, precisamente, como não apurada.
Sempre se dirá, em todo o caso e complementando o ora exposto, que, neste contexto, sempre seria bastante duvidoso que a arguida pretendesse e quisesse, efectivamente, atingir a honra do assistente, não se podendo olvidar que a arguida beneficia do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado no art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (“Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”), sendo de fazer apelo, ainda, ao princípio in dubio pro reo (aplicável, também, nesta fase processual – cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-12-2011, in www.dgsi.pt/jtrp), entendimento este que vai ao encontro do entendimento do Tribunal Constitucional conforme Acórdão n.º 439/2002, onde se estabeleceu que: “Se o tribunal que pronunciar não demonstrar que ultrapassou as dúvidas sobre uma efectiva possibilidade de condenação através de um juízo probabilístico apoiado nos factos concretos constantes da acusação, estará a enfraquecer intensamente de conteúdo a garantia processual, suportada pelo contraditório, consistente em poder infirmar a sustentabilidade da acusação e anulará, na prática, a possibilidade de o arguido impedir a submissão a julgamento” dizendo, mais adiante: “a interpretação normativa dos artigos citados 286.º, n.º 1, 298.º e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia, reduz, desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido previstas no art.º 32.º, n.º 2, da Constituição”; no caso dos autos, em última análise, não deixa – nem pode deixar - de ser relevante a presunção de inocência da arguida e o princípio in dubio pro reo, assim se tendo dado, também como este fundamento, repete-se, a factualidade em apreço como não apurada.
De resto, no mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20-03-2017, proferido no âmbito do recurso interposto pelo assistente no processo n.º 541/14.2GCVCT, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-01-2017, este proferido no âmbito do recurso igualmente interposto pelo assistente no processo n.º 119/12.5TAVLN, em ambos os casos versando sobre decisões instrutórias da lavra deste tribunal de Instrução, onde se confirmou a não pronúncia dos arguidos com fundamento, precisamente, no princípio in dubio pro reo aplicável, também, nesta fase processual de Instrução.
No que se refere à factualidade dada como não apurada sob os números 2 a 4, importa salientar que apenas o assistente alega a ocorrência dos correspondentes factos (cfr. fls. 30 a 32), não deixando de ser curioso que, de entre a imputação de tanta alegada propalação de insultos, de entre as tantas testemunhas arroladas pelo assistente e inquiridas, rigorosa e absolutamente nenhuma confirme a versão do assistente, inclusive o referido Presidente da Junta de Freguesia de ..., expressamente indicado como sendo uma das pessoas perante quem foram proferidos pela arguida os insultos à honra do assistente; veja-se, a este propósito, os depoimentos prestado pelas testemunhas G. B., que nem sequer mencionou estes factos (cfr. fls. 35 e 36), F. B., que também não mencionou esta factualidade (cfr. fls. 37 e 38), o dito Presidente da Junta, F. M. (cfr. fls. 39 e 40: “em momento algum a denunciada acusou ou insultou o denunciante junto da sua pessoa”), O. P., igualmente não mencionando a factualidade em apreço (cfr. fls. 50 e 51), P. M., elemento da GNR (cfr. fls. 54) e J. E., também elemento da GNR, o qual nada declarou quanto a esta factualidade (cfr. fls. 56 e 57); assim sendo, tendo-se apenas a versão do assistente, com a agravante de ter sido efectuada de forma vaga e genérica, sendo que no único segmento que concretiza, ainda por cima, é desmentido pela testemunha perante quem os factos em apreço teriam sido praticados, obviamente que outra solução não há que dar a factualidade em apreço como não apurada, como se procedeu, trazendo-se novamente à colação o princípio da presunção de inocência da arguida e o princípio in dubio pro reo, supra escalpelizados, dando-se a correspondente fundamentação como aplicável, igualmente, a esta matéria, o que aqui se consigna para todos os efeitos legais.
D.

Do Direito:

Do cotejo da factualidade dada como apurada verifica-se que a mesma é manifestamente insuficiente para se concluir pela verificação do imputado crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, bem como do imputado crime de difamação, este previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, também do Código Penal, atento o que importa formular um juízo de prognose de absolvição do arguido se sujeito a julgamento, o que é sinónimo de prolação de despacho de não pronúncia do mesmo.
*

Em conformidade com o exposto, ao abrigo do art.º 308.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal, O TRIBUNAL DECIDE:

NÃO PRONUNCIAR
A arguida:
- H. P., melhor identificada a fls. 45;
Pela prática dos factos e com a qualificação jurídica constantes da acusação particular deduzida pelo assistente M. P. a fls. 63 e 64 e que o Ministério Público acompanhou parcialmente a fls. 67.
*

Pelo desenlace da Instrução, fixa-se a taxa de justiça em 03 (três) UCs a cargo do assistente M. P. – cfr. o artigo 8.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais.

Oportunamente, arquivem-se os autos.
Notifique.»

▪ Inconformado com tal decisão do Mmo. Juiz de Instrução, dela veio o assistente M. P. interpor o presente recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (fls. 408 a 413):

1- O tribunal a quo no despacho de não pronúncia da arguida pelo crime de injúria, refere que do cotejo da factualidade dada como apurada verifica-se que a mesma é manifestamente insuficiente para se concluir pela verificação do imputado crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181 n.º 1 do Código Penal, formular um juízo de prognose de absolvição da arguida se sujeita a julgamento, o que é sinónimo de prolação de despacho de despacho de não pronúncia da mesma.
2- Não se conformando, o aqui recorrente, por considerar que a factualidade em causa e a prova constante dos autos, impunham, que a arguida fosse pronunciada, ou seja que fosse deduzida a competente acusação.
3- Ora, dos elementos de prova recolhidos no inquérito, incluindo as declarações prestadas pela arguida, e do auto da GNR de fls…, resulta, além do mais, de forma clara e inequívoca o seguinte:
“- No dia 29 de Março de 2017, a arguida H. P. comunicou à Guarda Nacional Republicana que no local Rua … em ... Arcos de Valdevez, que alegadamente teriam ocorrido danos na sua propriedade. (cfr. doc. n.º1)
- conforme consta do auto de notícia elaborado pela Guarda Nacional Republicana em 1 de Abril do corrente ano, junto sob o documento n.º 1, a arguida referindo-se ao aqui Assistente e ao seu filho, disse várias vezes aos militares da GNR que os Srs. M. P. e O. P., seu filho “estariam a roubar o que era dos outros.”
- Conforme consta do referido auto de notícia, a aqui arguida repetiu várias vezes estas expressões aos militares, e as pessoas que se encontravam no local, nomeadamente o Sr. G. B., proprietário da máquina que se encontrava a trabalhar para o aqui denunciante.
- A arguida referiu ainda que “o terreno era dela, visto que os Srs M. P. e O. P. apenas eram proprietários de cerca de 500 m2 e que estariam a trabalhar numa área de mais de 1000m2, entrando na propriedade da mesma”.
4- Não obstante, o despacho aqui recorrido, conclui que “sempre seria duvidoso que a arguida pretendesse e quisesse efectivamente, atingir a honra do assistente, não se podendo olvidar que a arguida beneficia da presunção de inocência constitucionalmente consagrado no art.º 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (…) sendo de fazer apelo ainda ao princípio in dubio pro reo.”
5 - Com efeito, o tribunal a quo refere ter um conjunto de elementos documentais que reportam uma situação de dissídio envolvendo a assistente e arguido quanto aos respectivos direitos de propriedade, sendo que neste contexto não podemos afirmar o dolo da arguida, tanto mais que desconhecemos a realidade das áreas dos prédios em questão e a quem assiste ou não o direito, pelo que repete-se, neste contexto, não podemos imputar uma vontade, consciência e ou intenção da arguida em ofender a honra do assistente, estando-se perante um desabafo ante uma situação seguramente não clarificada sobre a quem assiste a razão, o direito, do ponto de vista das propriedades e áreas das mesmas.”
6- Por outro lado vem o Tribunal a quo referir que “no que respeita à factualidade dada como não apurada sob o n.º1, reportada à circunstância de se ter dado como não apurado o dolo da arguida na verbalização das palavras dadas como apuradas, importa ter em consideração a própria versão da arguida H. P. (conforme declarações prestadas em sede de Instrução Criminal) de que em causa se encontra um dissídio envolvendo arguida e assistente relacionado com os limites de propriedades confinantes de ambos, sendo de trazer à colação, também, neste âmbito os elementos documentais junto aos autos, designadamente, o próprio auto de ocorrência de fls. 10 e 11, de onde resulta que foi a própria arguida a comunicar os factos e solicitar a comparência da GNR para tomarem conhecimento de uma situação que a mesma considerava lesiva da sua propriedade (trabalhos efectuados pelo assistente ou a mando deste), tendo sido nesse contexto que, em tom de desabafo, proferiu as palavras dadas como apuradas, tendo havido lugar, inclusive, à tirada de fotografias (cfr. fls. 12), ainda a título documental, importa ter em ponderação a cópia do processo de contra-ordenação junto pela arguida e que foi instaurado contra o assistente por assunto relacionado com obras encetadas por aquela na propriedade em questão (cfr. fls 81 a 85); ainda a cópia da providência cautelar instaurada pela aqui arguida contra o assistente e esposa, por assuntos relacionados com os respectivos direitos de propriedade conflituantes (cfr. fls. 86 a 144 e 227 a 301) e ainda cópia de um processo de Inquérito criminal a correr termos, desde 2016 – data anterior aos nossos factos – relacionado com a existência de falsidade, designadamente, quanto à área declarada, numa escritura relativa a terrenos conexos com o caso dos autos (cfr. fls. 311 a 339);”
7- O aqui recorrente manifesta a sua discordância relativamente à análise e avaliação dos indícios recolhidos nas fases de inquérito e de instrução feita na decisão instrutória, já que devidamente ponderadas e conjugadas com a prova documental que os autos contêm e a prova por declarações do assistente, teria de ser outra a conclusão sobre a suficiência dos indícios para uma decisão de pronúncia, e que no entender do aqui recorrente levam inevitavelmente à conclusão de fortíssima probabilidade do crime ter sido praticado e a fortíssima probabilidade da arguida ser condenada.
8- Desde logo, a principal prova constante dos autos é o auto de notícia, no qual vem reproduzida a expressão injuriosa usada pela arguida relativamente ao assistente, a qual nunca poderia deixar de ser considerada ofensiva, além de que ao contrário do entendimento vertido no despacho recorrido, não se percebe como possa referir-se que com aquelas expressões a arguida não quisesse ofender o assistente, e que com base no contexto de diferendo entre as partes quanto aos direitos de propriedade, não possa afirmar o dolo da arguida ou a sua vontade, consciência e/ou intenção em ofender a honra do assistente, e que se tratou de um simples desabafo ante uma situação não clarificada sobre a quem assiste a razão, o direito, do ponto de vista das propriedades e áreas das mesmas.
9- Ora no que concerne aos factos relativos ao elemento subjetivo do tipo, os mesmos consideram-se provados ou indiciariamente provados, face à forma como objetivamente os factos ocorreram e que foram reproduzidos no auto de notícia a fls.., o que permitia ao tribunal a quo, com recurso a regras de experiência comum, inferir a sua verificação, note-se que qualquer pessoa percebe, que ao proferir aquelas expressões as mesmas são suscetíveis de ofender a honra de terceiros, dizer que alguém anda a roubar o que é dos outros é de facto ofensivo da honra e bom nome da pessoa visada.
10- elementos documentais carreados pela arguida, que a expressão proferida não tem carácter injurioso, e que não pode afirmar o dolo da arguida ou intenção da arguida em ofender o assistente e dúvidas não restam, face à factualidade provada, de que a conduta da Arguida é merecedora de censura penal, encontrando-se preenchidos os pressupostos objectivos e subjectivos de imputação do crime de injúrias.
11- auto de ocorrência da GNR, de onde consta expressamente a expressão injuriosa proferida pela arguida a respeito do assistente;
- depoimento prestado pela testemunha J. E. – guarda da GNR, que aí se deslocou e que ouviu, de viva voz, a arguida a verbalizar os factos correspondentes, (cfr. fls …).
- declarações da assistente P. M. (cfr fls. 30 a 32),
- depoimento prestado pela testemunha F. B. (cfr. fls. 37 e 38),
- depoimento prestado pela testemunha O. P. (cfr. fls. 50 e 51),
- declarações da arguida prestadas no dia 25-03-2019, de minutos 07:48 a minutos 9:06;
12 - O Tribunal a quo desvalorizou os elementos que constituem a prova de que a arguida proferiu a expressão injuriosa contida no auto de notícia a fls…, incorrendo assim em erro notório na apreciação da prova, com violação do disposto no art. 410, n° 2, c) do CPP.
13- Com efeito, sendo certo que o princípio da presunção de inocência norteia o processo penal, não podem ser afastadas as provas efetivamente constantes do processo, que eram indícios mais do que suficiente para sustentar uma acusação.

Termos em que, e com o douto suprimento de V. Exas. deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se, em consequência, a Arguida pela prática do crime de difamação agravada, assim se fazendo JUSTIÇA!

▪ Na primeira instância, a Digna Magistrada do MP, notificada do despacho de admissão do recurso formulado pelo assistente, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou a sua douta resposta, na qual, concordando com os argumentos expendidos na douta decisão recorrida, e porque entende inexistir qualquer vício da mesma, pugna pela improcedência do recurso (fls. 427 e 428 dos autos).

A arguida, notificada do despacho de admissão do recurso formulado pelo assistente, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou a sua douta resposta (fls. 430 a 445 dos autos) pugnando pela manutenção da decisão recorrida, na sequência das conclusões que ali formulou e que aqui se reproduzem:

“1- Os elementos probatórios carreados para os autos em sede de inquérito e em sede de instrução criminal não podiam ter levado a outra decisão que não a constante do douto despacho recorrido.
2- Da factualidade dada como apurada verificou-se que a mesma é manifestamente insuficiente para se concluir pela verificação do imputado crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, bem como do imputado crime de difamação, este previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, também do Código Penal.
3- Pelo que foi formulado um juízo de prognose de absolvição da arguida se sujeita a julgamento;
4- Tendo o Tribunal decidido NÃO PRONUNCIAR a arguida, H. P..
5- O douto despacho recorrido é justo e procedeu a uma apreciação crítica e articulada dos elementos probatórios carreados para os autos em sede de inquérito e em sede de Instrução Criminal, de entre depoimentos de assistente, arguida e testemunha, bem como elementos documentais juntos, tendo ainda em consideração, o direito aplicável.
6- O douto despacho não enferma de qualquer erro, contradição, nem viola quaisquer disposições legais aplicáveis, está bem fundamentado e não existe qualquer contradição com a prova produzida.
7- Na situação dos presentes autos, compulsados os mesmos, verificou-se não existir qualquer prova indiciária relativa ao crime de difamação de à arguida vir a ser aplicada uma pena.
8- Pelo que a Digna Magistrada do Ministério Público não acompanhou a acusação particular em causa quanto ao crime de difamação, pois no seu douto entendimento “não foram recolhidos indícios suficientes da prática de qualquer crime de difamação” (fls. 58).
9- Os elementos trazidos aos autos, conjugados entre si, não permitiram concluir, em termos de probabilidade, ter a arguida praticado um crime de injúria.
10- No caso concreto tal expressão terá sido proferida pela arguida num contexto muito próprio de defesa da sua propriedade “a denunciante disse que o terreno era dela (…) entrando na propriedade da mesma (…) de informar que decorre um processo em tribunal em virtude deste desentendimento – cfr. auto de notícia – pelo que dela não se pode extrair, sem mais, que a arguida quis ao proferir tal expressão denegrir a honra e consideração do assistente.
11- A discussão em causa tem como pano de fundo um desentendimento relativo à propriedade de uma parcela de terreno e aos trabalhos de terraplanagem e construção de muros que o assistente estava a levar a cabo.
12- A expressão foi proferida como que repentinamente, num contexto de discussão de reivindicação de um direito da própria arguida.
13- No douto acórdão, deste Tribunal da Relação de Guimarães datado de 11/02/2019, no âmbito do processo n.º 351/16.2GCVCT, pode ler-se: É no desenrolar de um conflito entre o arguido e o assistente, relacionado com a área de um terreno (…) isto é, por divergências relacionadas com o direito de propriedade, que o arguido proferiu aquelas afirmações. O que as afirmações proferidas exprimem não é mais do que a tensão criada pelo conflito entre o arguido e o assistente e o sentimento naquele instalado de o terreno adquirido ter uma área superior (…), e se nelas existe, reconhece-se, um excesso de linguagem, ela foi potenciada pelo conflito e não é mais do que o reflexo daquela tensão e daquele sentimento. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal um certo grau de conflitualidade e animosidade entre membros de uma comunidade, como se verifica amiúde, no meio rural, nas questões relacionadas com direitos reais, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem de forma excessiva (…). Em conclusão, a tento o contexto em que foram produzidas e os seus precisos termos, considera-se que o potencial ofensivo das afirmações produzidas pelo arguido não atinge o grau de gravidade a partir do qual o direito à honra carece de tutela penal, pelo que se entende atípica e, portanto, não difamatória, a imputação que elas consubstanciam.
14- Neste contexto sempre a arguida beneficiaria do princípio da presunção da inocência – cfr. art.º 32.º, n.º 2 da CRP.
15- Bem como do princípio do in dúbio pro reo.”

▪ Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral da República comunga da posição já assumida pelo Ministério Público em primeira instância, tendo emitido, em conformidade, douto parecer sustentando a improcedência do recurso, invocando também ele pertinente jurisprudência e doutrina que sustenta a decisão recorrida (fls. 452 e 453).
Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, não foi apresentada resposta pelos demais sujeitos processuais.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.

*

II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÃO A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.)(1).

Assim sendo, no caso vertente, a questão que importa dilucidar é se o despacho recorrido enferma do alegado vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº2, al. c), do CPP) e, nessa conformidade, se resultam da prova indiciária produzida indícios suficientes da alegada prática pela arguida do crime de injúria.
*
III – APECIAÇÃO:

Do alegado erro notório na apreciação da prova - art. 410º, nº2, al. c), do Código de Processo Penal:

O recorrente alega a existência de erro notório na apreciação da prova, referindo expressamente a norma do art. 410º, nº2, al. c), do CPP – conclusão 12ª.

Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal (na parte que ora releva):

«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:

c) Erro notório na apreciação da prova.
…»
O erro notório na apreciação da prova “é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência” (2).
Como é jurisprudência pacífica (3), só há erro notório na apreciação da prova quando for de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores e resulta do próprio texto da decisão (não sendo admissível a sua demonstração através de elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo).

O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Perante a simples leitura do texto da decisão, o “homem médio” conclui, legitimamente, que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015, processo 72/11.2GDSTR.C1, acessível em www.dgsi.pt, “Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.”
Assim entendido, julgamos que no caso sub judice, estando em causa uma decisão instrutória, que não uma decisão final proferida em sede de julgamento, não é aplicável o invocado normativo legal.
Os vícios do art. 410º, nº2, do Código de Processo Penal concernem à sentença.
Com efeito, aqueles vícios respeitam à matéria de facto provada (e não provada), que, enquanto tal, ou seja, enquanto juízo probatório “definitivo”, inexiste na decisão instrutória, pois que nesta apenas consta a matéria de facto indiciada ou não indiciada.
Ademais, residindo a razão de ser do nº2 do art. 410º do CPP na garantia da sindicância da decisão de facto, mas circunscrita, nos termos supra expostos, ao texto da decisão recorrida, por contraponto à faculdade da impugnação ampla da matéria de facto, tal divisão concetual não encontra nenhum sentido no caso que nos ocupa, de impugnação da decisão de não pronúncia – e, bem assim, nos demais casos de decisões instrutórias, ainda que de pronúncia –, porquanto o que está justamente em causa é a reavaliação total e ampla das provas (indiciárias).
Assim, hipotéticas situações que verificadas em sede de sentença seriam suscetíveis de integrar um dos vícios do nº2 do art. 410º do CPP, em sede de recurso de despacho de pronúncia ou não pronúncia reconduzem-se sempre ao escrutínio sobre a existência ou não de indícios suficientes, com o desiderato de decidir se o arguido deve ou não ser submetido a julgamento.

Reforçando este entendimento, convoca-se a norma do art. 426º, nº1, do CPP que dispõe: «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº2 do art. 410º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.». Pois bem: tal consequência legal é notoriamente inoperacional no caso da instrução, em que não está em causa o julgamento da causa (do objeto do processo).

No mesmo sentido da inaplicabilidade dos vícios do art. 410º, nº2, do CPP à decisão instrutória, vejam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 03.07.2012 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.05.2015, processo 2135/12.8TAFUN.L1-5, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

Posto isto, entendemos que é ainda viável apreciar do mérito da sua alegação, cingindo-nos à seguinte questão central por ele abordada:

Tendo o tribunal a quo dado por indiciado que «No dia 29 de Março de 2017, cerca das 11.33, na Rua …, sita em ..., Arcos de Valdevez, na presença do assistente M. P., bem como de terceiros, designadamente de elementos da GNR local: J. E. e P. M., referindo-se à pessoa do assistente, afirmou, por diversas vezes, que este “estava a roubar o que era dos outros”, impunha-se, como entende o recorrente, que, por apelo às regras da experiência comum, desse também como indiciado que a arguida dirigiu ao assistente aquela expressão injuriosa, dolosamente, com o intuito de ofender a honra e bom nome do visado, e não, como decidiu, como não indiciado este facto?
Relembremos, então, qual a finalidade e âmbito da instrução.
Chamando à colação o disposto no art. 286º, nº1, do CPP, temos que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, prefere despacho de não pronúncia – art. 308º, nº1 do CPP.
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – cf. nº2 do art. 283º do CPP.
Assim, a existência de indícios suficientes da prática de um crime significará que daqueles indícios resulta uma possibilidade razoável de futura condenação do arguido. Pressupõe, pois, uma convicção, fundada nos elementos de prova disponíveis no momento em que a respetiva decisão é proferida, da probabilidade da futura condenação do arguido.
Em conformidade com a aludida definição legal, a expressão “indícios suficientes” inculca a ideia da necessidade de que a indiciação sobre a autoria ou participação no crime investigado tenha uma base de sustentação segura; não basta que a suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar uma decisão tão gravosa como a de submeter a julgamento – que, como é sabido, é uma circunstância frequentemente estigmatizante – uma pessoa que pode estar inocente ou sobre a qual não haja indícios seguros de que com toda a probabilidade venha a ser condenado pelo crime imputado.
Respeita-se, destarte, o princípio constitucional da presunção de inocência plasmado no art. 32º, nº2 da Constituição da República Portuguesa, o qual deve, por isso, incidir diretamente na formulação do sobredito juízo de probabilidade.
Daqui decorre que uma pessoa não deve ser sujeita a julgamento se emergir dos meios de prova produzidos até então dúvida razoável sobre se, com base nessas provas, o arguido seria aí sujeito à aplicação de uma pena (4). Se tal dúvida ocorrer cumpre, pois, aplicar processualmente a regra in dubio pro reo.
Como ressuma do exposto e é expendido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04/01/2006, divulgado em www.dgsi.pt., quanto ao despacho a proferir no culminar da instrução o juízo de pronúncia deve, em regra, percorrer três fases.
Em primeiro lugar um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada.
Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á, em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido.
Por último, efetuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir, que predomina uma razoável possibilidade de o arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efetuar em julgamento.

Volvendo ao caso sub judice:

Na decisão de facto tomada pelo tribunal a quo e, outrossim, na motivação que a estribou e que consta expressamente do texto do despacho recorrido, não se descortinam evidentes, crassos erros, raciocínios ilógicos ou arbitrários, incongruências ou contradições notórias na apreciação da prova que, à luz das regras da experiência comum, permitam concluir a qualquer cidadão comum, medianamente formado, que o facto ali dado por não apurado sob o nº1, referente à conduta dolosa da arguida, nunca poderiam corresponder à realidade.
Prescreve o art. 181º, nº1 do C.P.: “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra do sujeito passivo do crime, aqui se incluindo a reputação, o bom nome e a dignidade.
O crime de injúria é um crime de dano quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e de mera atividade quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação delituosa.

São elementos típicos do crime:

Objetivos: a imputação de factos, ainda que sob a forma de suspeita, ou o dirigir palavras a outras pessoas, ofensivos da sua honra ou consideração;
Subjetivo: o dolo, bastando o dolo genérico em qualquer das suas formas, não sendo necessário dolo específico, ou animus injuriandi - neste sentido, vide na doutrina, Maia Gonçalves, "Código Penal Português, Anotado e Comentado", 5ª edição, anotação 5 ao art. 164º, págs. 365 e 366; Beleza dos Santos, in Revista de Legislação e Jurisprudência, "Algumas considerações jurídicas sobre os crimes de difamação e injúrias", ano 92, p. 100; Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in “Código Penal – Anotado e Comentado”, 2ª Edição, Quid Juris, anotação 8 ao art. 181, p. 526; na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-03-1989, CJ, II, 84; do Tribunal da Relação do Porto de 03-02-1988, CJ, I, 232 e de 30-11-1988, CJ, V, 221; e do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-05-1988, CJ, III, 180).

Assim, cremos que a expressão utilizada pela arguida dirigida ao assistente/recorrente, apelidando-o de “ladrão” (“estava a roubar o que era dos outros”) tem um significado inequivocamente ofensivo da honra e consideração deste à luz dos padrões médios de valoração social, posicionando-se além da mera violação das regras de cortesia e de boa educação e atingindo o âmago daquele mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em sociedade.

Com efeito, segundo a normalidade da vida e as regras da experiência comum, aquela expressão dirigida pela arguida ao assistente, ainda que contextualizada por um relacionamento conflituoso entre ambos atinente à real extensão de uns terrenos, não pode deixar de ser tida como suscetível de ofender a honra e a consideração do visado, por a generalidade das pessoas lhe atribuir o significado de pessoa que furta ou rouba, que é um gatuno, que se apodera do alheio ou que é desonesta (5).

Por conseguinte, face à factualidade apurada, mostra-se suficientemente indiciado o preenchimento da tipicidade objetiva do crime de injúrias, p. e p. pelo art. 181º, nº1, do Código Penal.

Contudo, como se decidiu no despacho recorrido, exemplarmente fundamentado de facto e de direito, os elementos probatórios produzidos nos autos e o contexto em que a arguida expressou as sobreditas palavras, conduzem à não verificação do elemento subjetivo do ilícito criminal em questão, quanto mais não seja por via da aplicação da regra in dubio pro reo.
Pela sua clarividência e inatacabilidade facto-jurídica, reproduzimos aqui o trecho decisório em que o tribunal a quo verteu a motivação para dar como não apurado que a arguida, ao agir da forma dada como apurada, tivesse agido livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punida e que ofendia a honra, consideração e bom-nome do assistente:
«…importa ter em consideração a própria versão da arguida H. P. (conforme declarações prestadas em sede de Instrução Criminal) de que em causa se encontra um dissídio envolvendo arguida e assistente relacionado com os limites de propriedades confinantes de ambos, sendo de trazer à colação, também, neste âmbito os elementos documentais juntos aos autos, designadamente, o próprio auto de ocorrência de fls. 10 e 11, de onde resulta que foi a própria arguida a comunicar os factos e solicitar a comparência da GNR para tomarem conhecimento de uma situação que a mesma considerava lesiva da sua propriedade (trabalhos efectuados pelo assistente ou a mando deste), tendo sido nesse contexto que, em tom de desabafo, proferiu as palavras dadas como apuradas, tendo havido lugar, inclusive, à tirada de fotografias (cfr. fls. 12); ainda, a título documental, importa ter em ponderação a cópia do processo de contra-ordenação junto pela arguida e que foi instaurado contra o assistente por assunto relacionado com obras encetadas por aquele na propriedade em questão (cfr. fls. 81 a 85); ainda a cópia da providência cautelar instaurada pela aqui arguida contra o assistente e esposa, por assuntos relacionados com os respectivos direitos de propriedade conflituantes (cfr. fls. 86 a 144 e 227 a 301) e ainda cópia de um processo de Inquérito criminal a correr termos, desde 2016 – data anterior aos nossos factos - relacionado com a existência de falsidade, designadamente, quanto à área declarada, numa escritura de relativa a terrenos conexos com o caso dos autos (cfr. fls. 311 a 339); ou seja, temos todo um conjunto de elementos documentais que reportam uma situação de dissídio envolvendo assistente e arguido quanto aos respectivos direitos de propriedade, sendo que neste contexto não podemos afirmar o dolo da arguida, tanto mais que desconhecemos a realidade das áreas dos prédios em questão e a quem assiste ou não o direito, pelo que, repete-se, neste contexto, não podemos imputar uma vontade, consciência e/ou intenção da arguida em ofender a honra do assistente, estando-se perante um desabafo ante uma situação seguramente não clarificada sobre a quem assiste a razão, o direito, do ponto de vista das propriedades e áreas das mesmas.
Pertinentemente, permitimo-nos trazer à colação o entendimento preconizado pelo Tribunal da Relação de Guimarães em Acórdão datado de 11-02-2019 no âmbito do processo n.º 351/16.2GCVCT deste tribunal, sendo Relator o Exmo. Sr. Desembargador Dr. Fernando Chaves e que confirmou a absolvição do arguido pela imputada prática de crimes de difamação, em situação similar à dos presentes autos: “É no desenrolar de um conflito entre o arguido e o assistente, relacionado com a área de um terreno (…), isto é, por divergências relacionadas com o direito de propriedade, que o arguido proferiu aquelas afirmações. O que as afirmações proferidas exprimem não é mais do que a tensão criada pelo conflito entre o arguido e o assistente e o sentimento naquele instalado de o terreno adquirido ter uma área superior (…), e se nelas existe, reconhece-se, um excesso de linguagem, ela foi potenciada pelo conflito e não é mais do que o reflexo daquela tensão e daquele sentimento. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, como se verifica amiúde, no meio rural, nas questões relacionadas com direitos reais, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem de forma excessiva. Porém, o Direito Penal deve ter um carácter fragmentário, cumprindo uma função de ultima ratio, não podendo intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana. (…) Em conclusão, atento o contexto em que foram produzidas e os seus precisos termos, considera-se que o potencial ofensivo das afirmações produzidas pelo arguido não atinge o grau de gravidade a partir do qual o direito à honra carece de tutela penal, pelo que se entende atípica e, portanto, não difamatória, a imputação que elas consubstanciam; o caso dos autos assenta que nem uma luva neste entendimento, crendo-se que neste contexto, a arguida não tinha sequer, qualquer dolo genérico, tendo efectuado um desabafo perante uma situação que carece de tutela civil e tão só, estando aí a ser discutida, termos em que se deu a factualidade do n.º 1 do capítulo ora em análise, precisamente, como não apurada.
Sempre se dirá, em todo o caso e complementando o ora exposto, que, neste contexto, sempre seria bastante duvidoso que a arguida pretendesse e quisesse, efectivamente, atingir a honra do assistente, não se podendo olvidar que a arguida beneficia do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado no art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (“Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”), sendo de fazer apelo, ainda, ao princípio in dubio pro reo (aplicável, também, nesta fase processual);…no caso dos autos, em última análise, não deixa – nem pode deixar - de ser relevante a presunção de inocência da arguida e o princípio in dubio pro reo, assim se tendo dado, também como este fundamento, repete-se, a factualidade em apreço como não apurada.»
Concordamos integralmente com o expendido pelo Mmo. Juiz de Instrução, incluindo a apropriação com vista ao caso concreto do decidido no citado acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/02/2019, processo 351/16.2GCVCT, disponível em www.dgsi.pt.
Na verdade, como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 05/03/2018, processo 566/16.3CHV.G1, disponível em www.dgsi.pt,atentos os múltiplos factores que concorrem para a identificação das condutas ofensivas da honra e consideração de um indivíduo, apenas nos casos concretos é possível discernir quais as palavras ou afirmações que, efectivamente, comportam uma carga ofensiva das mesmas. Para este efeito, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como sejam, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são”.
E no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30/06/2014, processo nº 377/13.8GCBRG.G1, disponível em www.dgsi.pt: “No crime de injúria, a análise da verificação do ilícito não se pode circunscrever ou limitar á valoração isolada e objetiva das expressões proferidas, exigindo-se que as mesmas sejam apreciadas em função do circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas, tendo ainda em conta as realidades relacionadas com o contexto sociocultural e a maior ou menor adequação social do comportamento.”
Ponderando, no caso vertente, o contexto em que a frase da arguida foi proferida, temos que, como bem vinca o Excelentíssimo Procurador Geral-Adjunto no seu douto parecer, decorre da própria denúncia e, outrossim, de outros elementos documentais e testemunhais invocados na decisão recorrida, uma situação de conflito entre a arguida e o assistente derivada do que a primeira considera ser uma invasão e um apossamento ilegítimo por banda do assistente de uma parte de um terreno seu, que conduziu a que no dia em questão a arguida tivesse convocado ao local as autoridades policiais para se queixar do comportamento do assistente – tido por ela como ilícito e ilegal –, sendo que tal dissídio já deu origem a outros processos judiciais movidos por esta contra aquele.
Foi no predito contexto que a arguida referiu aos agentes policiais que tomaram conta da ocorrência, na presença do assistente e a ele se referindo, que este andava a roubar o que era dos outros, no caso, parte de um imóvel que toma como sua propriedade.
Por conseguinte, se a expressão verbalizada pela arguida não foi, por certo, a mais correta, a mais cortês ou a mais civilizada, cumpre ter presente que, naquele momento, ela queixava-se do comportamento do ora assistente aos agentes policiais, demonstrando o seu desagrado, a sua indignação pela conduta adotada por este, que considera injusta e pode até revestir natureza criminal (art. 215º do CP – usurpação de coisa imóvel). Tratou-se de uma forma - mal utilizada - de a arguida afirmar os seus pontos de vista.
Donde, não se pode inferir daquele comportamento da arguida, pelo menos de modo minimamente seguro, que ela tenha usado a expressão em causa para gratuitamente e em primeira linha achincalhar e rebaixar a honra e o bom-nome do assistente.
Mostra-se, destarte, inviável afirmar suficientemente indiciado o dolo (em qualquer das suas modalidades) subjacente à ajuizada conduta objetiva adotada pela arguida.
De todo o modo, sempre sobeja dúvida insanável, intransponível sobre tal facto, pelo que, aplicando o princípio in dubio pro reo, cumpria não pronunciar a arguida pelo imputado crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº1, do Código Penal.
Ou seja, não foram flagrantemente violadas na apreciação da prova indiciária que foi operada pelo tribunal a quo as regras da experiência comum, as quais, pelo contrário, validam e confortam a decisão recorrida.

Concluindo: não merece qualquer censura o douto despacho recorrido.

Uma última nota para salientar que nunca podia vingar a pretensão expressa pelo recorrente no seu petitório de sujeitar a arguida a julgamento pela prática de um crime de difamação agravada, pois que a factualidade por si impugnada contende exclusivamente com a prática de um hipotético crime de injúria e nunca com aqueloutro tipo de ilícito criminal, previsto e punido, conjugadamente, pelos arts. 180º, nº1 e 183º, ambos do CP.
Com efeito, como é sabido, o critério essencial da distinção entre a difamação e injúria reside no facto de o ataque ser direto à pessoa do ofendido, sem intermediação, no caso da injúria – como seria o caso –, ou ser feito de forma enviesada, indireta, através de terceiros, no caso da difamação.

Improcede, em conformidade, o recurso interposto pelo assistente.


IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente M. P. e, consequentemente, manter o douto despacho recorrido de não pronúncia da arguida.

Custas pelo assistente recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (arts. 515º, nº1, al. b) e 518º, ambos do CPP, arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, todos do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).
*
*
Guimarães, 27 de abril de 2020,

Paulo Correia Serafim (relator)
Nazaré Saraiva

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)



1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2. Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças, ibidem, p. 29.
3. Entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2011, processo 308/08.7ECLSB.S1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 09703/2018, processo 628/16.7T8LMG.C1, de 03/06/2015, processo 12/14.7GBSTR.C1, de 14/01/2015, processo 72/11.2GDSTR.C1, e de 17/12/2014, processo 872/09.3PAMGR.C1; e do Tribunal da Relação de Lisboa de21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
4. Com este entendimento, para além da jurisprudência invocada na douta decisão recorrida e no douto parecer deduzido nesta Relação pelo MP, veja-se Jorge Noronha Silveira, “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, pp. 180-181; Raúl Soares de Veiga, “O Juiz e Instrução e a Tutela de Direitos Fundamentais”, in ob. cit., p. 216; Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova”, in ob. cit., pp. 275-277.
5. Cfr., neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/09/2018, processo 117/16.0GAVFL.&1, acessível em www.dgsi.pt.