Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6341/16.8T8GMR.G1
Relator: AFONSO MANUEL ANDRADE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CIVIL
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
CONTRATO SINALAGMÁTICO
CLÁUSULAS ABUSIVAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Quando num contrato de seguro de responsabilidade civil são inseridas cláusulas não negociadas entre as partes, quer de cobertura, quer de exclusão, que pelo seu funcionamento, afastam da cobertura contratual a totalidade ou a esmagadora maioria dos danos decorrentes da actividade que se pretendeu segurar, estamos perante contrato não sinalagmático, em que apenas uma prestação (o pagamento do preço) existe e é determinável. E tal implica que se considere que as cláusulas abusivas são nulas, por aplicação do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro), mormente dos seus arts. 15º e 16º, por clamorosa violação dos ditames da boa-fé.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Sumário: 1. Quando num contrato de seguro de responsabilidade civil são inseridas cláusulas não negociadas entre as partes, quer de cobertura, quer de exclusão, que pelo seu funcionamento, afastam da cobertura contratual a totalidade ou a esmagadora maioria dos danos decorrentes da actividade que se pretendeu segurar, estamos perante contrato não sinalagmático, em que apenas uma prestação (o pagamento do preço) existe e é determinável. E tal implica que se considere que as cláusulas abusivas são nulas, por aplicação do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro), mormente dos seus arts. 15º e 16º, por clamorosa violação dos ditames da boa-fé.

I- Relatório

Empresa X, Lda., instaurou a presente acção sob a forma de processo comum contra Y - Companhia de Seguros, SA, pedindo que, por força do contrato de seguro celebrado entre ambas, a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 8.534,60, acrescida dos juros vincendos contados desde a citação, devidos até efectivo e integral pagamento da aludida quantia.

A Ré contestou, alegando, em síntese, que no âmbito do contrato de seguro celerado entre as partes foi convencionada uma franquia, que sempre deveria ser descontada ao montante peticionado pela A. Alega, ainda, a R. que o sinistro invocado pela A. se insere no âmbito da responsabilidade civil contratual, sendo que o contrato de seguro apenas cobre a responsabilidade civil extracontratual, pelo que nunca assistiria à A. o direito de obter da R. o pagamento da quantia peticionada. Por fim, alega a R. que os danos invocados pela A. estão excluídos do dito contrato de seguro, já que se inserem no âmbito de cláusulas de exclusão previstas nas condições particulares desse contrato. Conclui, assim, a R., em face do por si alegado, no sentido da improcedência da acção.
Houve resposta às excepções e contra-resposta.

Foi realizada audiência prévia, tenho sido proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância, se identificou o objecto do litígio e se seleccionaram os temas de prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a Ré Y - Companhia de Seguros, SA, do pedido contra si formulado pela autora Empresa X, Lda.

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs o presente recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos do disposto nos artigos 644º,1,a, 645º,1,a e 647º, todos do Código do Processo Civil.

Termina as suas alegações com as seguintes conclusões (transcrição):

1. Ao abrigo do art. 644º,1,a do CPC, vem o presente recurso interposto da douta sentença de 10/08/2017, que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido;
2. É incumbência do Juiz convidar as partes a suprir insuficiências na exposição da matéria de facto alegada (art. 590º,4 do CPC);
3. Ao proferir a douta sentença recorrida, onde afirma que os factos alegados pelo A. são insuficientes para “concluir no sentido de que o sinistro acima aludido tivesse sido devido a dolo ou mera culpa sua”, o Tribunal abre mão de uma decisão surpresa de cujo objecto e conteúdo o A. não teve, sequer, oportunidade de se pronunciar (art. 3º,3 do CPC);
4. O disposto nos arts. 5º,2,b e 607º,1 habilita o Juiz a ordenar a reabertura da audiência para submeter ao contraditório os factos que sejam complemento dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa;
5. A douta sentença recorrida padece de nulidades (art. 195º,1,2 do novo Código de Processo Civil), sendo que os vícios se verificam tanto a montante da audiência de julgamento (na omissão de despacho de convite ao aperfeiçoamento da Petição Inicial), como a jusante do mesmo (na omissão de despacho de reabertura da audiência de julgamento) e também na douta sentença recorrida (com a prolação de decisão surpresa, com a qual a A. não podia razoavelmente contar);
6. Fundando-se o pedido na celebração de um contrato de seguro e na ocorrência de um sinistro coberto pelas cláusulas daquele, incumbe ao segurado o ónus de provar as ocorrências concretas em conformidade com as situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco, como factos constitutivos que são do direito de indemnização; Por seu turno, incumbe à seguradora provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam susceptíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos;
7. Era à Ré que competia alegar e provar que o sinistro se deveu a uma conduta dolosa e, nessa medida, não fortuita e excluída da cobertura do contrato de seguro;
8. A A. apenas reclama da Ré os danos que, mercê da conduta dos seus trabalhadores, foram causados nas mangueiras eléctricas e hidráulicas, nas caixas que contêm os cabos eléctricos, no quadro eléctrico que está ligado aos fornos e demais objectos estranhos à empreitada danificados ou destruídos com o incêndio que deflagrou, que são absolutamente estranhos à obra.
9. Constatando-se que durante a realização dos trabalhos os empregados da empreiteira testaram o forno de fusão e este vazou alumínio a alta temperatura (680º Celsius), que derramou sobre uma calha de conduta com mangueiras eléctricas e hidráulicas, o que deu azo a que se incendiassem, tendo o incêndio se prolongado às caixas que contêm os cabos eléctricos e as informações para os outros equipamentos e abastecedor eléctrico ao fornecimento da empresa, acabando por queimar o quadro eléctrico que está ligado aos fornos, a empreiteira incorre em responsabilidade civil extracontratual para com o dono da obra;
10. O Tribunal a quo confunde o erro ou omissão de quem é parte num contrato e que origina o incumprimento do mesmo, com o erro ou omissão dos denominados deveres de prevenção do perigo de dano (que também cabem na modalidade de ilicitude a que se reporta o nº 1 do art. 483º do Código Civil) que originam a violação de direitos subjectivos alheios;
11. A douta sentença recorrida viola os arts. 342º e 798º do Código Civil.

A recorrida contra-alegou, sustentando a manutenção da sentença recorrida, e terminando as suas contra-alegações com as seguintes conclusões (transcrição):

1ª. A douta sentença recorrida está em conformidade com a matéria de facto provada e com o direito aplicável, pelo que não merece censura.
2ª. A Ré, independentemente da apelante provar o dolo ou mera culpa sua na produção do sinistro, nunca poderia ser condenada ao pagamento de qualquer quantia, uma vez que os danos causados à autora não estão cobertos pelo contrato de seguro invocado.
3ª. Nos termos do disposto nos arts. 1º e 32º da Lei do Contrato de Seguro, Decreto-Lei n º72/2008, para sabermos qual o risco que o segurador cobre temos necessariamente de recorrer ao que consta da apólice.
4ª. Ora, conforme resulta da matéria de facto provada, pontos 1) a 11), nenhuma dúvida de que estamos perante um caso de aplicação das regras da responsabilidade civil contratual da autora perante aquele cliente e não no domínio da responsabilidade civil extracontratual.
5ª. Uma vez que, tal como consta do ponto 17) dos Factos Provados, o contrato de seguro invocado apenas “garante a responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao segurado”, os danos descritos na presente acção sempre estariam fora do âmbito da cobertura da apólice.
6ª. Por cautela, caso se entenda necessário, ao abrigo do disposto no art. 636.º, nº 2, do CPC, requer a ampliação do âmbito do recurso, nos termos que seguem.
7ª. Salvo o devido respeito, entende a ora recorrida que a factualidade constante do Ponto 22) dos Factos Provados não podia ser dada como provada nos termos em que o foi, uma vez que, pelo menos, no que diz respeito à cláusula reproduzida no ponto 17) dos Factos Provados, resultou provado que o seu teor foi comunicado ao representante da apelante.
8ª. Contrariamente ao exposto na douta sentença recorrida, a matéria constante do ponto 22) dos Factos Provados foi impugnada pela ora recorrida, mais concretamente em sede de audiência prévia.
9ª. Sobre esta matéria, e tal como consta da fundamentação da matéria de facto, apenas depôs a testemunha Aurora Maria, arrolada por ambas as partes, que acabou por referir expressamente matéria que infirma ainda que parcialmente o que foi dado como provado no ponto 22) dos Factos Provados.
10ª. Deste modo, do ponto 22) dos Factos Provados deve passar a constar: “No âmbito do dito contrato, a A. limitou-se a aceitar o clausulado acima aludido, constante das condições gerais, particulares e especiais, as quais foram previamente elaboradas pela aqui R., sendo que, pelo menos, a cláusula respeitante ao objecto do contrato de seguro (Ponto 17 dos Factos Provados) foi-lhe individualmente comunicada e explicada.”
11ª. Atendendo a esta alteração, sempre se teria de manter a solução de direito já atrás exposta e que por economia de tempo e espaço aqui se dá por reproduzida.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) o sinistro ocorrido e descrito nos factos provados é coberto pelo contrato de seguro celebrado entre as partes;
b) se o Tribunal devia ter proferido despacho a convidar a autora a aperfeiçoar a petição inicial, alegando factos para preencher o conceito de culpa (dolo ou negligência).

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica ao desenvolvimento de isolantes refractários para utilização em fundições, cimenteiras, vidreiras, siderurgias, refinarias e outros.
2. Sucede que, no dia 22/02/2016, a autora, no âmbito do exercício da sua actividade, deslocou-se às instalações de uma sua cliente, a "P. Alumínio, Lda.", com vista à reparação do interior de um forno de fusão para alumínio, com aplicação de isolamento feito com tijolos isolantes, placa de isolamento, placa micro-porosa e betão refractário.
3. No decurso da reparação daquele forno, ocorreu uma fuga de alumínio a alta temperatura (680º Celcius), que derramou sobre uma calha de conduta com mangueiras eléctricas e hidráulicas,
4. que se incendiaram,
5. tendo-se o incêndio propagado às caixas que contêm os cabos eléctricos e as informações para os outros equipamentos e abastecedor eléctrico ao fornecimento da empresa, acabando por queimar o quadro eléctrico que está ligado aos fornos.
6. A autora participou a ocorrência do aludido sinistro à R.
7. Em consequência da dita fuga de alumínio, bem como dos danos que se seguiram, a dita cliente da autora teve de parar a laboração do estabelecimento durante 10 dias.
8. A reparação de todos os componentes afectados pelo dito sinistro teve um custo de € 8.327,74,
9. que a A. já liquidou àquela sua cliente,
10. tendo-lhe pago a quantia de € 4.619,92, em 26/09/2016,
11. e, em 29/09/2016, a quantia de € 3.707,82.
12. Na quaIidade de tomadora do seguro, a autora celebrou com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil exploração, titulado pela apólice n.º …, sendo que as respectivas condições gerais, especiais e particulares constam de fls. 36 a 50, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
13. Tal contrato de seguro previa para a Autora a obrigação de pagar o prémio estabelecido, o que esta sempre fez, no montante que ultimamente se fixou em € 615,85.
14. Mediante o referido contrato de seguro foi garantido o capital máximo de € 50.000,00 (cinquenta mil euros),
15. Tendo sido estabelecida uma franquia de 10% sobre o valor dos prejuízos indemnizáveis, a cargo do segurado, sujeita ao mínimo de € 750,00 e ao máximo de € 7.500,00, por sinistro, por danos decorrentes de incêndio e/ou explosão,
16. Sendo tal franquia de 10% sobre o valor dos prejuízos indemnizáveis, com o valor mínimo de € 375,00 e máximo de € 3.750,00, por sinistro, pelos restantes danos cobertos.
17. Estipula o artigo 2º das Condições Gerais do dito contrato de seguro que o mesmo “(…) garante a responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao Segurado, no exercício da actividade ou na qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou Particulares da apólice”.
18. O artigo 3º das Condições Gerais do dito contrato de seguro dispõe que “O presente contrato de seguro garante, até ao limite do valor seguro constante das Condições Particulares, o pagamento de indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao Segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causados a terceiros em consequência de actos ou omissões do Segurado, bem como dos seus empregados, assalariados ou mandatários, no exercício da actividade ou na qualidade expressamente referida nas condições Especiais ou Particulares da apólice”.
19. Estipula o artigo 2º das Condições Particulares do dito contrato de seguro que “Ao abrigo da presente condição particular, quando expressamente contratada nas Condições Particulares, o Segurador garante o pagamento das indemnizações emergentes de responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da lei civil, sejam exigíveis ao Segurado, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a terceiros, resultantes do exercício de actividade complementar de construção civil, indicada nas Condições Particulares, cuja causa seja devida a: a) Ato ou omissão não doloso do Segurado ou de qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço; (…)”.
20. Nos termos do artigo 3º das ditas Condições Particulares, “Para além das exclusões previstas no artigo 6º das Condições Gerais, a garantia desta Condição Particular não abrange danos: (…) b) Causados aos bens objecto dos trabalhos e às próprias obras a cargo do Segurado; (…) e) Decorrentes de erros ou omissões profissionais; (…) h) Causados às propriedades pertencentes e/ou sob guarda, custódia ou controle do dono da obra, dos empreiteiros ou de outros intervenientes na execução dos trabalhos;”.
21. Nos termos do disposto no artigo 16º,1 das Condições Gerais, “Em caso de sinistro coberto pelo presente contrato, o Segurado, sob pena de responder por perdas e danos, obriga-se a: (…) d) Não abonar extrajudicialmente a indemnização reclamada sem autorização escrita do Segurador, bem como não formular ofertas, tomar compromissos ou praticar algum acto tendente a reconhecer a responsabilidade do Segurador, a fixar a natureza e o valor da indemnização ou que, de qualquer forma, estabeleça ou signifique a sua responsabilidade”.
22. No âmbito do dito contrato, a autora limitou-se a aceitar o clausulado acima aludido, constante das condições gerais, particulares e especiais, as quais foram previamente elaboradas pela aqui ré, sem que o seu conteúdo tivesse sido discutido entre as partes.

B – FACTOS NÃO PROVADOS:

a. A ré comunicou à autora, no momento da celebração do contrato, o teor da cláusula aludida no ponto 20 dos factos provados.

IV

Estamos perante um litígio de natureza contratual. O que significa, por outras palavras, que estamos perante duas partes que celebraram entre elas um contrato, ou seja, obrigaram-se reciprocamente a certos direitos e deveres, e a autora veio a Tribunal alegar que a ré não cumpriu as suas obrigações contratuais.

É pacífico que o contrato em causa é um contrato de seguro.

O contrato de seguro é o negócio jurídico pelo qual uma das partes (a seguradora) se obriga a cobrir o risco que certo facto futuro e incerto constitui para a outra parte (segurado), mediante a prestação certa e periódica (prémio) que esta se compromete a efectuar (cfr. Guerra da Mota, O contrato de seguro terrestre, I, pág. 271; Maria Clara Lopes, Seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pág. 15; Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, pág. 703).

O contrato de seguro é actualmente um contrato nominado e típico, estando regulado pelo DL 72/2008 de 16/4 (Lei do Contrato de Seguro - LCS). Tal diploma entrou em vigor no dia 1/1/2009 (art. 7º), e, de acordo com o regime transitório constante do artigo 2º, a lei nova só se aplica aos sinistros que ocorram depois da entrada em vigor do novo regime. Ora, no caso em apreço sabemos que o sinistro ocorreu em 22.2.2016, logo, é-lhe aplicável o regime da LCS.

A apólice, documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, é integrada pelas condições gerais, especiais, e particulares.

Condições gerais são as que se aplicam a todos os contratos de seguro de um mesmo ramo ou modalidade. Condições especiais são as que, completando ou especificando as condições gerais, são de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo. Condições particulares são as que se destinam a responder em cada caso às circunstâncias específicas do risco a cobrir.

Vamos directamente ao contrato celebrado entre a autora e a ré.

Como vimos, ficou provado que a autora é uma sociedade comercial que se dedica ao desenvolvimento de isolantes refractários para utilização em fundições, cimenteiras, vidreiras, siderurgias, refinarias e outros.

E a autora, na quaIidade de tomadora do seguro, celebrou com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil exploração, titulado pela apólice n.º …, sendo que as respectivas condições gerais, especiais e particulares constam de fls. 36 a 50, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

É interessante verificar como é tão desigual a tarefa de identificar as obrigações a que cada uma das partes se auto-vinculou.

A prestação contratual da autora não podia ser mais simples, singela, e ao abrigo de toda e qualquer controvérsia: cabia-lhe a obrigação de pagar o prémio estabelecido, no montante que ultimamente se fixou em € 615,85. O que fez.

Vejamos agora a obrigação contratual da ré. À partida é uma tarefa bem mais complexa e melindrosa.
Estipula o artigo 2º das Condições Gerais do contrato de seguro que o mesmo “(…) garante a responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao Segurado, no exercício da actividade ou na qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou Particulares da apólice”.

Já o art. 3º das Condições Gerais do dito contrato de seguro dispõe que “o presente contrato de seguro garante, até ao limite do valor seguro constante das Condições Particulares, o pagamento de indemnizações que sejam legalmente exigíveis ao Segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causados a terceiros em consequência de actos ou omissões do Segurado, bem como dos seus empregados, assalariados ou mandatários, no exercício da actividade ou na qualidade expressamente referida nas condições Especiais ou Particulares da apólice”.

E se formos ler o art. 2º das Condições Particulares do dito contrato de seguro verificamos que o que lá está clausulado é: “ao abrigo da presente condição particular, quando expressamente contratada nas Condições Particulares, o Segurador garante o pagamento das indemnizações emergentes de responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da lei civil, sejam exigíveis ao Segurado, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a terceiros, resultantes do exercício de actividade complementar de construção civil, indicada nas Condições Particulares, cuja causa seja devida a: a) Ato ou omissão não doloso do Segurado ou de qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço; (…)”.

E as dificuldades não ficam por aqui. Nos termos do artigo 3º das ditas Condições Particulares, “para além das exclusões previstas no artigo 6º das Condições Gerais, a garantia desta Condição Particular não abrange danos: (…) b) Causados aos bens objecto dos trabalhos e às próprias obras a cargo do Segurado; (…) e) Decorrentes de erros ou omissões profissionais; (…) h) Causados às propriedades pertencentes e/ou sob guarda, custódia ou controle do dono da obra, dos empreiteiros ou de outros intervenientes na execução dos trabalhos”.

Se a tarefa de definir a obrigação contratual da ré já se revelava difícil, à partida, então à chegada parece que a tarefa se revela impossível.

Vejamos.
A autora é uma sociedade comercial que se dedica ao desenvolvimento de isolantes refractários para utilização em fundições, cimenteiras, vidreiras, siderurgias, refinarias e outros. Significa isto que, de acordo com o funcionamento normal do tráfego jurídico, a autora vai exercer o seu objecto social de uma única maneira: celebrando contratos com terceiros, ditos clientes, prestando os seus serviços comerciais.

Ora, uma sociedade comercial, que exerce o seu objecto social celebrando contratos com clientes, e que quer colocar-se a salvo de pedidos de indemnização por danos causados por actos ou omissões não dolosos de si própria ou de qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço, celebra um contrato de seguro de responsabilidade civil.

E, com efeito, lendo o art. 2º das Condições Particulares do dito contrato de seguro verificamos que o que está clausulado é: “ao abrigo da presente condição particular, quando expressamente contratada nas Condições Particulares, o Segurador garante o pagamento das indemnizações emergentes de responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da lei civil, sejam exigíveis ao Segurado, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a terceiros, resultantes do exercício de actividade complementar de construção civil, indicada nas Condições Particulares, cuja causa seja devida a: a) Ato ou omissão não doloso do Segurado ou de qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço; (…)”.

Tudo seria linear e compreensível, não fora a inserção na cláusula da palavra “extracontratual”, logo a seguir a “responsabilidade civil”.

Assim sendo, ficamos perante uma contradição patente. O contrato de seguro celebrado entre as partes visa transferir para a ré a obrigação de indemnizar “terceiros”, que porventura venham a sofrer danos patrimoniais ou não patrimoniais, resultantes do exercício da actividade comercial da empresa tomadora, cuja causa seja devida a “acto ou omissão não doloso do Segurado ou de qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço.

Ora, cabe perguntar: quem são esses “terceiros” que podem vir a sofrer danos patrimoniais ou não patrimoniais resultantes do exercício da actividade comercial da autora, causados por acto ou omissão não doloso do Segurado ou de qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço?

A resposta, supomos, só pode ser uma: por definição, são os clientes da autora. Ou seja, só podem ser pessoas ou empresas que celebraram contratos com a autora.

Donde, qualquer acto negligente de um empregado da autora, executado no âmbito da prestação dos serviços desta, que cause prejuízos ao cliente, será, diríamos por definição, causador de responsabilidade contratual, nas modalidades de incumprimento ou cumprimento defeituoso. O que, salvo melhor opinião, não faz de todo sentido, é a referência a que a ré só garante a responsabilidade civil extracontratual da autora.

Que sinistros poderão caber no conceito de responsabilidade civil extracontratual da autora, que ao mesmo tempo causem a terceiros (ou seja, não à própria autora) danos patrimoniais ou não patrimoniais, no exercício da actividade comercial desta, e decorrentes de acto ou omissão não doloso do Segurado ou de qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço ?

Não conseguimos configurar nenhum. No limite, ainda poderíamos pensar num acidente de viação ocorrido com o veículo no qual se faziam transportar os empregados da autora, quando fossem a caminho das instalações do cliente, mas aí já estaríamos no âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel, o que manifesta e notoriamente não é o caso (situação que, além do mais, está excluída da cobertura pelo art. 6º,1,l das condições gerais do contrato celebrado entre as partes).

Assim, e sempre ressalvando melhor opinião, esta cláusula necessita de uma cuidada interpretação, sob pena de ser insanavelmente contraditória.

Procurando ser ainda mais claros, ocorre-nos a comparação com uma cláusula que diga: “por este contrato transfere-se para a seguradora a obrigação de indemnizar os terceiros lesados na sequência de acidente de viação causado por empregados da tomadora, quando, no exercício das suas funções, se desloquem para o seu local de trabalho a pé”.

Não é nossa intenção ironizar, até porque o assunto é sério. Queremos apenas realçar o quão contraditório é, aos nossos olhos, o teor literal do contrato celebrado.

Mas as contradições não ficam por aqui.

Tal como resultou provado, nos termos do artigo 3º das ditas Condições Particulares, “para além das exclusões previstas no artigo 6º das Condições Gerais, a garantia desta Condição Particular não abrange danos: (…) b) causados aos bens objecto dos trabalhos e às próprias obras a cargo do Segurado; (…) e) decorrentes de erros ou omissões profissionais; (…) h) causados às propriedades pertencentes e/ou sob guarda, custódia ou controle do dono da obra, dos empreiteiros ou de outros intervenientes na execução dos trabalhos;”.

Bom, aqui, e salvo o devido respeito, começamos a não perceber, de todo, exactamente o que é este contrato de seguro que as partes celebraram, e para que é que ele serve. Para a Seguradora, percebe-se: serve para receber o prémio contratualmente fixado. E para a autora ?

Repare-se: uma empresa como a autora, que se dedica ao desenvolvimento de isolantes refractários para utilização em fundições, cimenteiras, vidreiras, siderurgias, refinarias e outros quer transferir para uma seguradora a sua obrigação futura e incerta de indemnizar terceiros que porventura venham a sofrer “danos patrimoniais ou não patrimoniais”, resultantes do exercício da sua actividade, causados por acto ou omissão não doloso de qualquer dos seus empregados no exercício da sua actividade e ao seu serviço”.

E celebra um contrato com a seguradora ré, pelo qual transfere para esta a sua responsabilidade civil extracontratual.

E não bastando isso, nesse contrato está expressamente estipulado que o mesmo não cobre, para além das inúmeras situações previstas nas cláusulas de exclusão constantes do art. 6º das condições gerais, os danos causados aos bens objecto dos trabalhos e às próprias obras a cargo do Segurado (!), os danos decorrentes de erros ou omissões profissionais (!), os danos causados às propriedades pertencentes e/ou sob guarda, custódia ou controle do dono da obra, dos empreiteiros ou de outros intervenientes na execução dos trabalhos (!).

Façamos agora o exercício inverso, e vamos procurar encontrar sinistros que não estejam expressamente excluídos da cobertura contratual, ou seja, os verdadeiros sinistros para os quais este contrato foi celebrado.

Deixando de parte a questão da expressão “responsabilidade civil extracontratual”, que será tratada adiante, temos então que a autora, sempre que enviar pessoal seu para executar uma obra ou serviço junto de um cliente, não está coberta pelo seguro que celebrou com a ré em todos os casos em que sejam causados danos, repare-se bem, aos bens objecto dos trabalhos e às próprias obras a cargo do segurado. Se considerarmos, como nos parece pacífico, que quer os bens objecto dos trabalhos, quer as próprias obras, serão sempre propriedade da cliente da autora e não desta, teremos de concluir que só esta cláusula de exclusão chega para afastar a aplicabilidade do contrato à esmagadora maioria das situações de danos que possam vir a ocorrer causados por actos ou omissões dos trabalhadores da autora.

E, para o caso de os danos se produzirem não na esfera de proximidade imediata do local onde os trabalhadores da tomadora estão a exercer as suas funções, mas mais afastados, entra em funcionamento a cláusula de exclusão seguinte, que coloca fora da cobertura os danos causados às propriedades pertencentes e/ou sob guarda, custódia ou controle do dono da obra, dos empreiteiros ou de outros intervenientes na execução dos trabalhos.

Assim, do ponto de vista da proximidade espacial, estas duas cláusulas parecem colocar definitivamente fora da cobertura contratual quaisquer danos causados quer directamente nos materiais objecto da obra que está a ser feita, quer na própria obra, quer ainda em toda a propriedade onde a obra se insere. Apenas poderia eventualmente estar coberto um dano que tivesse tido origem na conduta negligente de um trabalhador da tomadora do seguro, mas que, por qualquer estranho funcionamento das leis da natureza, não tivesse recaído directamente no material que está a ser objecto da intervenção, nem na obra à qual esse material objecto da intervenção pertence, nem sequer em toda a propriedade onde essa obra está inserida, mas sim em propriedades vizinhas. Que tipo de dano seja esse, não sabemos. Eventualmente, podemos pensar numa explosão que ocorra no local da intervenção, que projecte qualquer objecto pelo ar, sem causar danos em toda a obra e nas instalações onde ocorreu, mas que vá causar danos apenas em propriedades vizinhas. Podemos chamar-lhe o “dano quântico”.

Mas nem aí teremos uma cobertura contratual efectiva, pois no caso improvável de ocorrer o que chamámos de “dano quântico”, entraria em funcionamento a terceira cláusula de exclusão contratual, e supomos que seria com grande facilidade que a seguradora alegaria e demonstraria em Tribunal que o dano tinha sido decorrente de erro ou omissão profissional de um dos trabalhadores da tomadora. Até porque se não fosse, acrescente-se, nem a própria autora seria responsável, ab initio, logo nenhuma responsabilidade haveria para transferir contratualmente para a ré.

Parece, pois, que estamos perante um contrato não sinalagmático, em que apenas a prestação da autora existe e é determinável.

Ora, tal conclusão não é aceitável, sob pena de o contrato ser nulo.
Tem aplicação, aqui, o disposto no Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro).

O regime contido no RCCG aplica-se a este contrato, por força do disposto no nº 2 do art. 1º, pois estamos perante contrato individualizado, em que parte é resultado da negociação entre autora e ré, e a outra parte contém o tal conteúdo previamente fixado que o destinatário não pode influenciar(1).

Para esse conteúdo não negociado rege o art. 5º do citado diploma: as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las, e essa comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.
E vimos que resultou não provado que a ré tenha comunicado à autora, no momento da celebração do contrato, o teor da cláusula aludida no ponto 20 dos factos provados.

Relativamente às cláusulas de exclusão, importa ainda ter presente que segundo o art. 15º, são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé.

ara nos auxiliar a interpretar esta norma, que remete para uma cláusula aberta e de conteúdo tão amplo como a boa-fé, vamos recorrer ao Acórdão do STJ de 7 de Outubro de 2010, de que é Relator o Conselheiro Serra Baptista: começa-se nesse aresto por estabelecer que “o regime das cláusulas contratuais gerais do DL 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo DL 220/95, de 31 de Outubro, que o republicou, e pelo DL 249/99, de 7 de Julho, é aplicável aos contratos de seguro. E isto porque “o controlo prévio do clausulado nos seguros por banda do Instituto de Seguros de Portugal não subtrai o contrato de seguro ao regime das cláusulas contratuais gerais”.

Seguindo para a substância do regime, escreve-se naquele aresto que “ao avaliar-se o conteúdo proibido das cláusulas padronizadas de um contrato de seguro, não pode deixar de se ter em conta o princípio da boa-fé, ainda que em articulação com o escopo que com o conteúdo das mesmas se pretende alcançar”. “Estando aqui a boa-fé em sentido objectivo, como parâmetro de conduta na relação contratual, importa ter em consideração na apreciação do desequilíbrio das prestações gravemente atentatório da boa-fé, todas as circunstâncias que envolvam o contrato, as quais devem ser apreciadas objectivamente, na perspectiva de um observador razoável e com referência, não ao momento da celebração do contrato, mas daquele em que é feita valer a nulidade da cláusula”.

Outra ajuda é fornecida pelo próprio legislador, no artigo 16º, cuja epígrafe é justamente “Concretização”. Aí se escreve que “na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e especialmente: a) a confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis; b) o objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado”.

Ora, esta norma quase parece ter sido criada a pensar no caso destes autos. Fazendo a sua exegese, escreve Ana Prata (2) uma extensa anotação dogmática, na qual inclui uma citação de Menezes Cordeiro: “...Procurando auxiliar o intérprete-aplicador, a lei explicitou, a título exemplificativo, alguns dos termos geradores da confiança atendível: o sentido global das cláusulas, o processo de formação do contrato singular celebrado e o teor deste. Trata-se de elementos importantes. Mostram que releva a confiança objectiva, alicerçada em elementos susceptíveis de serem partilhados por todos os intervenientes normais e não as meras expectativas subjectivas, eventualmente desenvolvidas pelo aderente. Além disso, recordam a importância do contrato singular concretamente considerado (...)”.

A Directiva 93/13/CEE – Directiva relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – estabelece, no seu art. 3.º, n.º 1, como critério que “uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência da boa-fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato”.

Como se escreve no Acórdão da TRC de 19/6/2013 (Relator Arlindo Oliveira) “quando, em resultado de cláusulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela com que o tomador do seguro podia de boa-fé contar, tendo em consideração o objecto e finalidade do contrato, tais cláusulas são nulas. Apesar da delimitação/exclusão dos riscos ser lícita, por assentar na liberdade contratual, é pois preciso apurar se, em concreto e na prática, tal delimitação/exclusão não desvirtua o objecto do contrato; se o contrato não fica esvaziado no seu objecto/risco, o que constituirá uma ilicitude, desde logo por violar o art. 9.º do DL 176/95, quando este prescreve que as condições especiais ou particulares não podem modificar a natureza dos riscos cobertos nos termos das condições gerais, tendo em conta a classificação dos ramos de seguros e respectivos riscos. É o caso – situação pacificamente reputada como abusiva – de num contrato de seguro de incêndio se determinar que ficam excluídas do âmbito da cobertura as mais usuais causas de incêndio – curto-circuito, raio, rebentamento de bombas e foguetes, etc. – podendo assim chegar-se, no limite, a uma situação em que verdadeiramente o contrato de seguro fica sem objecto, pois o que seriam os riscos próprios e típicos de tal seguro de incêndio, a poderem ser consideradas como válidas as exclusões, não se encontrariam cobertos.

Veja-se ainda, com especial interesse para o caso dos autos, o acórdão do STJ de 14 de Novembro de 2006, de que é relator o Conselheiro Salreta Pereira, onde se considera que uma determinada cláusula de exclusão, “face à sua amplitude, retira, praticamente, a utilidade deste seguro, pelo que dificilmente qualquer empresário da construção civil o celebraria, se fosse devidamente informado da sua cobertura tão residual (arts. 5º e 6º do DL 446/85, de 25.10, alterado pelo DL 220/95, de 31.01). Nos termos do disposto nas al. a) e b) do art. 8º dos citados diplomas legais a referida cláusula deve considerar-se excluída do contrato. Sempre a referida cláusula seria proibida, nos termos da al. a) do artº. 21º dos mesmos diplomas, na medida em que limita excessivamente as obrigações assumidas na contratação pela recorrente Seguradora”.

E como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Maio de 2011, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos, “a boa-fé é hoje um princípio fundamental da ordem jurídica, particularmente relevante no campo das relações civis e, mesmo, de todo o direito privado. Exprime a preocupação da ordem jurídica pelos valores ético-jurídicos da comunidade, pelas particularidades da situação concreta a regular e por uma juridicidade social e materialmente fundada. A consagração da boa-fé corresponde, pois, à superação de uma perspectiva positivista do direito, pela abertura a princípios e valores extra-legais e pela dimensão concreto-social e material do jurídico que perfilha (…). Significa o que acabamos de dizer que o princípio da boa-fé se ajusta a -e contribui para- uma visão do direito em conformidade com a que subjaz ao Estado de Direito Social dos nossos dias, intervencionista e preocupado por corrigir desequilíbrios e injustiças, para lá das meras justificações formais. Como já dissemos, o princípio da boa-fé tem um âmbito muito vasto, invadindo todas as áreas do direito. Mas ele assume uma importância muito grande no domínio dos contratos, em permanente diálogo e contraponto com um outro princípio fundamental, já analisado, e que é o da autonomia privada. De todo o modo, ao fazermos estas afirmações estamos a perspectivar o princípio da boa-fé como critério normativo, e, portanto, num sentido objectivo.“ As regras de conduta postuladas pela actuação leal, prudente e que contempla os interesses das partes, deve ser apanágio dos contratos em que se negoceia em pé de igualdade e onde a liberdade contratual está por regra assegurada; com mais rigor deve ser exigida em contratos em que tal igualdade não existe, ou seja, naqueles em que a liberdade negocial está cerceada pela patente disparidade dos contratantes como é o caso dos contratos de adesão sujeitos a cláusulas contratuais gerais”.

Como ensina o Professor Antunes Varela, o conceito de boa-fé existente há séculos não conhece matizes, é uma regra civilizacional no mundo jurídico, um padrão ético inspirador da confiança, norteado por critérios de lisura, lealdade e de protecção dos interesses daqueles com quem se negoceia, demandando maior rigor no que respeita aos contratos de adesão.

À luz deste conceito de boa-fé, que implica como acabámos de ver um padrão ético inspirador da confiança, norteado por critérios de lisura, lealdade e de protecção dos interesses daqueles com quem se negoceia, como interpretar um contrato de seguro em que a seguradora afirma perante o cliente que garante o risco de indemnizações que legalmente sejam exigíveis a esta última, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da sua actividade comercial, e depois, de uma forma habilidosa, tece uma teia de cláusulas de adesão que na prática esvaziam na quase totalidade, senão mesmo na totalidade, a garantia do seguro, a não ser como uma grosseira violação das regras da boa-fé ?

E assim, existe a forte possibilidade de, por aplicação do disposto nos arts. 12º e 15º RCCG, as cláusulas de exclusão invocadas pela ré para se eximir ao cumprimento do contrato serem nulas.

Retomando agora a questão da expressão “responsabilidade civil extracontratual”, já vimos que a forma como a cobertura contratual surge definida no contrato celebrado entre as partes é contraditória. O que nos obriga a encontrar a melhor interpretação recorrendo aos cânones legais.

O art. 236º,1 CC dispõe que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

O art. 237º acrescenta que “em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações”.

Ora, temos de partir de uma situação de normalidade, e logo, considerar como razoável que para o legal representante da autora, quando negociou com a ré a celebração deste contrato, sempre foi um adquirido que o mesmo se destinava a cobrir a sua responsabilidade civil resultante do exercício da sua actividade comercial. Acresce que para um não jurista, que desconhece o significado técnico da expressão “responsabilidade civil extracontratual”, a expressão acima reproduzida, que define a cobertura contratual do seguro faz sentido, e correspondia certamente ao que ele pretendia. Arriscamos dizer ainda mais, e afirmar que se a autora soubesse que de acordo com o teor literal das cláusulas supra citadas, a sua responsabilidade civil para com terceiros decorrente do exercício da sua actividade comercial não estava coberta, jamais teria celebrado o contrato. A não ser que o seu objectivo fosse financiar a ré a fundo perdido, o que não é razoável.

Assim, a regra do art. 236º,1 CC leva-nos a optar pela interpretação segundo a qual se devem considerar abrangidos pela cobertura contratual todos os casos de danos causados a terceiros decorrentes do exercício da actividade comercial da autora, e causados por conduta não dolosa dos seus funcionários. Esta interpretação, aliás, é a que conduz ao maior equilíbrio das prestações (art. 237º CC).

Depois do longo percurso que nos trouxe até aqui, chegamos à conclusão de que o sinistro descrito nos factos provados pode ser coberto pelo contrato, ou pelo menos, não é possível afirmar desde já, como se fez na sentença recorrida, que não é coberto pelo contrato.

Não podemos afirmar com segurança que é coberto porque -e agora entroncamos nas conclusões da recorrente- consideramos que lhe assiste razão quando afirma que deveria ter sido proferido despacho a convidá-la a aperfeiçoar a sua petição inicial.

Ora, existe uma ordem de precedência lógica nas questões que as conclusões de recurso colocam ao Tribunal superior. Segundo essa ordem, deve ser conhecida em primeiro lugar a questão da nulidade decorrente da omissão de um acto essencial para a correcta decisão da causa, pois o seu conhecimento pode levar à anulação da sentença, e tornar inútil o conhecimento das restantes.

E, com efeito, assim sucede in casu.
Independentemente de conceitos jurídicos como responsabilidade civil contratual, ou extracontratual, a causa de pedir nesta acção, na sua vertente puramente fáctica, tem necessariamente de incluir factos que permitam imputar à própria autora a responsabilidade civil pela reparação dos danos. Só depois desse primeiro passo lógico estar garantido, é que se irá verificar se, através do contrato de seguro, essa responsabilidade foi transferida para a ré seguradora.

Ora, tal só pode ser feito alegando factos que permitam fazer o nexo de causalidade entre um acto ilícito e culposo de um dos seus empregados, e o dano. Porque, efectivamente, essa alegação não consta da petição inicial. Aí apenas se afirma que “no dia 22/2/2016 ocorreu um sinistro num cliente da A, “P. Alumínio, Lda”, mormente uma infiltração de alumínio, que acabou por queimar o quadro eléctrico, que está ligado aos fornos. Com efeito, a A, no âmbito do exercício da sua actividade deslocou-se às instalações daquela “P. Alumínio, Lda” com vista à reparação do interior de um forno de fusão, para alumínio, com aplicação de isolamento feito com tijolos isolantes, placa de isolamento, placa micro-porosa e betão refractário. No decurso da reparação daquele forno ocorreu uma fuga de alumínio a alta temperatura (680º Celsius), que derramou sobre uma calha de conduta com mangueiras eléctricas e hidráulicas, que se incendiaram, tendo o incêndio se propagado às caixas que contêm os cabos eléctricos, …”. (…) Sendo certo que a aludida infiltração ficou a dever-se ao exercício da actividade da autora”.

Mais nada de relevante se alega nesta parte: assim fica o Tribunal sem saber de que forma a fuga de alumínio foi causada, nomeadamente se se deveu a conduta culposa dos empregados da autora, se se deveu a erro do dono da obra, ou a outra causa qualquer, e logo, se a autora é responsável perante o cliente pela reparação desses danos.

Ora, nos termos do art. 590º,2,b CPC, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes. E no nº 4 refere-se: “incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”.

Deveria o Tribunal a quo ter convidado a autora a aperfeiçoar a sua petição, alegando os factos supra referidos, os quais são essenciais para a decisão.

Com efeito, escreve-se na sentença recorrida que: “tendo em consideração o alegado pela A. no âmbito da sua petição inicial, duvidas não poderão restar de esta inscrever o direito que pretende fazer valer através da presente acção, exclusivamente, no domínio da responsabilidade civil contratual, designadamente no que se refere ao ressarcimento dos danos causados à "P. Alumínio, Lda.", por força do incumprimento, por da A., do contrato celebrado entre ambas, referente à reparação de um forno. De facto, ainda que possa ocorrer, em certos casos, uma concorrência entre a responsabilidade civil contratual e a extracontratual, o que é certo é que, no caso sub judice, a A. nunca chegou a invocar factualidade que permitisse concluir no sentido da verificação de todos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (3), centrando a presente acção exclusivamente na responsabilidade civil contratual. (…) Ora, a A. nunca chegou a alegar qualquer factualidade que permitisse concluir no sentido de que o sinistro acima aludido tivesse sido devido a dolo ou mera culpa sua, pelo que nunca poderia considerar-se invocado e, muito menos, verificado o pressuposto da responsabilidade civil aquiliana relacionado com o nexo de imputação subjectiva. É certo que a R., no âmbito da contestação que apresentou, alegou que o sinistro se ficou a dever a “descuido” da A.

Porém, fê-lo de forma meramente conclusiva e sem alegar factualidade que permitisse concluir no sentido de aferir se tal sinistro ficou dever-se a dolo ou mera culpa da A”.

A sentença recorrida acabou por concluir que “tendo a A. peticionado a liquidação de danos causados a um cliente seu por força do incumprimento do contrato celebrado entre ambos, centrando esta acção no âmbito da responsabilidade civil contratual, e sendo certo que o contrato de seguro celebrado entre as partes apenas garante o pagamento das indemnizações emergentes de responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da lei civil, sejam exigíveis à A., deverá considerar-se que tal sinistro, tal como foi, nesta acção, invocado pela A., não se mostra coberto pelo dito contrato de seguro”.

E, mesmo a final, dando mostras de que teve a percepção de que a solução encontrada pode não satisfazer a justiça do caso concreto, o M.mo Juíz a quo escreve: “de referir, por fim, que, no meu entendimento, caso se conclua que o sinistro em questão se insere igualmente no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, estando verificados todos os seus pressupostos, nada impedirá a A. de intentar nova acção contra a R., com base no contrato de seguro acima referido, alegando todos os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana e peticionando a condenação da R. no pagamento dos danos em causa”.

Não podemos acompanhar esta afirmação.
Estamos perante uma acção de natureza contratual, que tem como causa de pedir a alegação de um contrato de seguro, a alegação de factos que integram um sinistro ocorrido e participado à ré, e o incumprimento contratual por parte da ré.

Ora, se a autora, na sequência da improcedência desta acção, tentasse intentar nova acção com base no mesmo contrato de seguro, temos como certo que a tal obstaria o caso julgado material que teria sido formado. A essência do caso julgado material está descrita no art. 580º CPC, do qual resulta que a excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário. E o objectivo, como bem se compreende, é evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

Tecnicamente, repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art. 581º,1 CPC).

Se a autora tentasse, após um eventual trânsito em julgado de decisão final desfavorável, intentar nova acção, tal como afirmado na sentença, é incontestado que estaríamos perante as mesmas partes e perante o mesmo pedido. Poder-se-ia tentar discutir a existência ou não da excepção de caso julgado material ao nível da causa de pedir. Mas não temos dúvidas que a mesma se verificaria. O nº 4 da norma supra citada dispõe que “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Ora, se viesse a ser instaurada mais tarde esta mesma acção, mas com a ênfase na responsabilidade civil contratual, teríamos a alegação num novo processo do mesmo contrato que foi trazido a estes autos, teríamos a alegação do mesmo facto concreto que consubstancia o mesmo sinistro, ocorrido no dia 22/2/2016, e teríamos a repetição da alegação do incumprimento por parte da ré. Seria, se assim se pode dizer, um exemplo de escola do que é a excepção de caso julgado. E nesses termos, o art. 619º,1 CPC impediria a instauração e/ou o prosseguimento dessa hipotética acção.
Donde, a solução que vier a ser dada a este litígio terá a força do caso julgado material.
E daí decorre a necessidade de ter no processo todos os factos necessários para tomar a decisão justa, o que não sucede neste momento.

Os termos do art. 590º CPC são esclarecedores quanto à obrigação do Juiz de proferir o despacho de convite ao aperfeiçoamento: “o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a …providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados”; e “incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”. Lebre de Freitas (CPC anotado, 3ª edição, anotação ao artigo em causa) reforça a ideia do carácter vinculado do despacho de convite ao aperfeiçoamento, fazendo a comparação com o regime diverso que vigorava antes da reforma de 2013.

Não pode haver qualquer dúvida sobre a essencialidade dos factos que não foram alegados, devendo tê-lo sido, pois a sua falta compromete manifestamente o destino da acção.

Assim, a omissão no momento processual próprio do despacho de convite ao aperfeiçoamento, constituiu nulidade processual (art. 195º CPC), a qual arguida agora em sede de recurso, deve ser conhecida pelo Tribunal superior.

Resta pois devolver os autos à primeira instância, para que seja sanada tal nulidade, convidando a autora a, se assim o entender, vir alegar factos que preencham o vínculo de imputação subjectiva do sinistro aos seus trabalhadores, ou seja, alegar factos constitutivos do conceito de culpa ou negligência destes.

Em respeito ao princípio da economia processual, não se determina a anulação da audiência de julgamento. Esta deverá ser reaberta, nos termos do art. 607º,1 CPC, a fim de ser produzida prova sobre os factos que eventualmente venham a ser alegados, após terem sido sujeitos ao contraditório. Caberá ao prudente arbítrio do Julgador decidir se existe a necessidade de repetir algum meio de prova que já tenha sido produzido, sendo que se for esse o caso assim determinará.

Todas as demais questões colocadas no presente recurso ficam desta forma prejudicadas.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso da autora procedente, e em consequência anula a sentença proferida, devendo ser proferido despacho a convidar a autora ao aperfeiçoamento da sua petição, nos termos supra descritos, seguindo-se depois a tramitação subsequente.

Custas pela recorrida (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 26/04/2018

Relator
(Afonso Cabral de Andrade)

1º Adjunto
(Alcides Rodrigues)

2º Adjunto
(Joaquim Luís Espinheira Baltar)


1. Para o Professor Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. I, ed, p. 265 e seguintes), são considerados contratos de adesão aqueles em que um dos contraentes (o cliente ou consumidor) “não tendo a menor participação ou preparação das respectivas cláusulas, se limita a aceitar o texto que o outro contraente oferece, em massa, ao público interessado”. Como é óbvio, tais contratos caracterizam-se por denotar um cuidado extremo na defesa dos interesses da parte que propõe o negócio, contrastando com o pouco ou nenhum cuidado dedicado à defensa dos direitos e expectativas da outra parte / cliente / aderente. O que hoje releva do regime proteccionista do DL 446/85 é, por conseguinte, o carácter não negociável ou não influenciável das cláusulas, mais do que a sua generalidade, sendo certo, por outro lado, como resulta dos art.º 17º e seguintes do diploma, que aquele regime se estende não apenas aos consumidores finais mas ainda às relações entre empresários ou profissionais liberais, quando intervenham nessa qualidade e no âmbito da sua actividade específica. Para que se possa invocar a disciplina das CCG importa saber, por conseguinte, se esta ou aquela cláusula pôde ou não ser discutida, para ser modificada, excluída, ou tão só mantida nos termos inicialmente propostos.
2. Obra citada, fls. 330 e seguintes.
3. Destaque nosso.