Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1564/14.7T8VCT.G1
Relator: MIGUEL BALDAIA MORAIS
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
DEFICIÊNCIA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- A ineptidão da petição inicial supõe que o autor não haja, em absoluto, definido factualmente o núcleo essencial da causa de pedir invocada como base da concreta pretensão de tutela jurisdicional que aduz, obstando tal deficiência a que a ação tenha um objeto inteligível.

II- A insuficiência na concretização ou densificação adequada de algum aspeto dos factos essenciais em que se ancora a pretensão deduzida (implicando que a petição, caraterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspeto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, podendo implicar a improcedência da ação, em termos de juízo de mérito.

III– A insuficiente alegação de um facto concretizador de factos essenciais nucleares pode ser suprida na sequência de um convite ao aperfeiçoamento ou em consequência da aquisição processual daquele tipo de factos quando resultem da instrução da causa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO


B. intentou a presente ação declarativa com processo comum contra o Estado Português, na qual conclui pedindo que se reconheça e seja declarado, nos termos do disposto no art. 15º da Lei nº 54/2004, de 15.11, o direito de propriedade privada do autor sobre o prédio rústico constituído por uma leira de lavradio, no lugar de …, inscrito na matriz predial rústica respetiva sob o artigo …e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº ….
Impetra igualmente que o réu seja condenado a ver reconhecido esse direito e a abster-se da prática de atos que o possam perturbar, com exclusão dos que estritamente lhe assistem nos termos legais.
Para tanto alega ser, por si e antepossuidores há mais de 150 anos, dono e legítimo possuidor do identificado prédio rústico, o qual confronta com a margem esquerda do Rio Lima, encontrando-se, pois, dentro do designado domínio hídrico, uma vez que dista menos de 50 metros das águas do leito do rio, sendo que foi por força da ação humana que tal prédio se encontra localizado dentro do que é hoje considerado margem desse rio.
Citado o Ministério Público (em representação do Estado), apresentou contestação na qual, para além do mais, invocou a ineptidão da petição inicial, alegando que o autor não localiza em termos de área, configurações, limites, coordenadas geográficas, levantamento topográfico, mapas ou medições, nenhum terreno ou parcela de terreno que possa integrar o domínio público hídrico.
Respondeu o autor pugnando pela improcedência da suscitada exceção dilatória.
A fls.70, foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos do qual foi o autor notificado para concretizar “a concreta delimitação do prédio descrito no artigo 1º da petição inicial, com especial incidência nas zonas de confrontação com o Rio Lima”.
O autor não enjeitou tal convite, apresentando o articulado que se mostra junto a fls. 71 vº a 72 vº, fazendo acompanhar o mesmo de suportes documentais tendentes a identificar os limites e os contornos do ajuizado imóvel.
Foi proferida decisão que julgou procedente a exceção de ineptidão da petição inicial, em consequência do que foi o réu absolvido da instância.

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Não se conformando com o assim decidido veio o autor interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
1. A presente acção parte da regra geral que determina quais são as parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, que constituem o domínio público hídrico, para, em concreto e mais directamente, pretender obter o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio que porventura constitua parcela de leitos ou margem de águas navegáveis ou flutuáveis, ao abrigo do disposto no artigo 15º da Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro.
2. Constituem factos essenciais individualizadores do tipo legal, por um lado, a verificação da existência de domínio público hídrico sobre determinada parcela de terreno e, por outro lado, a invocação, reconhecimento e declaração do direito de propriedade de um particular, relativamente a um prédio que coincide com aquela parcela.
3. Deve, ainda, esse direito de propriedade ter sido adquirido por título legítimo antes de 31.12.1864, ou se se tratar de alcantiladas, antes de 22.03.1868, salvo se o particular fizer prova da sua aquisição originária por usucapião que expressamente deve invocar.
4. No caso dos autos, tinha o Autor o ónus de alegar, na sua causa de pedir, os factos fundamentais da aquisição do domínio e posse sobre determinado prédio e alegar e provar que o mesmo pela sua localização e extensão ocupa uma parcela de domínio marítimo.
5. Estes factos essenciais estão alegados pelo autor, de forma exaustiva, clara, completa e inequívoca nos artigos 1, 2, 3, 5, 7, 12 a 37, 39 a 47 da petição inicial e nos artigos 1 a 14 do articulado de convite ao aperfeiçoamento, reproduzidos supra, que se acham documentalmente comprovados nos autos, mediante a junção de plantas de localização e de implantação, bem como no respectivo levantamento topográfico, dos quais resulta a inequívoca localização do rio, da respectiva margem, sendo que do referido levantamento constam as coordenadas dos vértices da poligonal do terreno para as quais se remete no articulado de convite ao aperfeiçoamento.
6. A concretização do local “onde nasce e finda a margem do rio” no prédio do Autor e onde a mesma se inicia e a identificação da concreta parcela da margem do Rio Lima que ocupa o prédio do Autor descrito na petição inicial, constituem factos concretizadores daqueles factos essenciais.
7. Os quais terão de resultar de uma verificação pelo Tribunal através de uma inspecção ao local e de uma peritagem, para além da eventual prova testemunhal a levar a efeito durante a instrução do processo.
8. O Tribunal ao decidir vai ter de se basear, efectivamente, nos factos essenciais alegados e nos concretizadores que forem provados, porque também estes são essenciais, independentemente de terem sido ou não alegados na petição inicial.
9. O Juiz é obrigado a considerar os factos que sejam concretizadores dos factos essenciais alegados pelas partes.
10. Não há preclusão quanto a factos que, embora essenciais, sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados.
11. Assim, o recorrente não pode conformar-se com a douta decisão proferida, porquanto, no seu modesto entender, a mesma assenta numa rigidez do processo quanto ao lastro fáctico dos autos que não se coaduna com as novas regras do novo Código de Processo Civil de 2013, cujo regime “permite esperar que a petição inicial se torne uma peça menos extensa, menos prolixa, uma peça em que o autor concentre a alegação em factos susceptíveis de preencher o tipo legal de que pretende prevalecer-se, dispensando-se de uma alegação pormenorizada e atomística, uma alegação pejada de referências laterais, circunstanciais ou meramente instrumentais" - João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, na “Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013.
12. Estabelece o artigo 5º, nº1 do actual Código de Processo Civil que “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas”.
13. O artigo 552º, nº 1, al. d) do mesmo Código, em consonância com a regra geral acima citada, estabelece que “na petição deve o Autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção”.
14. Aquele artigo 5º, na sua actual redacção, consagra uma alteração fundamental relativamente ao regime e às regras estabelecidas nos Códigos de Processo Civil anteriores.
15. Seguindo de perto, os acima referidos João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, na “Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013”, “o artigo 5º torna claro que o ónus de alegação se circunscreve aos factos essenciais (sublinhado nosso), isto é, àqueles de cuja verificação depende a procedência das pretensões deduzidas”.
16. (…)”O confronto do nº 1 do art. 5º com a alínea a) do n.º 2 mostra que não há qualquer ónus de alegação quanto a factos instrumentais (isto é, factos que permitem a prova indiciária dos factos essenciais), menos ainda qualquer preclusão, devendo o juiz deles conhecer quando "resultem da instrução da causa”.
17. O teor da alínea b) do nº 2 do art. 5º revela que não há prec1usão quanto a factos que, embora essenciais, sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados (sublinhado nosso).
18. “… O juiz pode e deve deles conhecer quando "resultem da instrução da causa"' e "desde que sobre eles as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciar" (sublinhado nosso).
19. “… os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma excepção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma excepção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele. Por sua vez, os factos concretizadores têm por função pormenorizar a questão fáctica exposta, sendo exactamente essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da acção (ou da excepção).
20.Assim, a douta sentença recorrida, viola o disposto no artigo 5º, nº 1 e nº2, al. b) e o artigo 552º, nº1, al. d) do Código de Processo Civil.

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O apelado apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

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Após os vistos legais cumpre decidir.

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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, a questão a decidir é a de saber se a petição inicial enferma de vício de ineptidão por falta de causa de pedir.

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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade a atender é a que dimana do antecedente relatório.

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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como se deu nota, com a propositura da presente ação visa o autor obter o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre parcela de terreno integrado no domínio público hídrico, matéria essa que, presentemente, é regulada pela Lei nº 54/2005, de 15.11 (1), que delimita quais os recursos hídricos que integram o domínio público e aqueles que, ao invés, pertencem aos particulares.
Entre os terrenos que integram o domínio público hídrico, importa considerar, desde logo, os leitos, cuja definição consta do nº 1 do art. 10º, nos termos do qual “entende-se por leito o terreno coberto pelas águas, quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No leito compreendem-se os mouchões, lodeiros, e areais nele formados por deposição aluvial”.
Outra categoria relevante de terrenos que integram o domínio público hídrico é a das margens, que o nº 1 do art. 11º define como a “faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas”, acrescentando o seu nº 2 que “a margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias, tem a largura de 50 m”, largura essa que, de acordo com o seu nº 6, “conta-se a partir da linha limite do leito”.
Outro aspeto ainda a ter em consideração na situação dos bens do domínio hídrico, tem a ver com o recuo e o avanço das águas, o que obriga a equacionar a natureza dos leitos dominiais abandonados pelas águas e das parcelas privadas contíguas a leitos dominiais corroídas ou invadidas pelas águas, matéria que se encontra regulada nos arts. 13º e 14º.
Sob a epígrafe recuo das águas, estabelece o art. 13º que “Os leitos dominiais que forem abandonados pelas águas, ou lhes forem conquistados, não acrescem às parcelas privadas da margem que porventura lhes sejam contíguas, continuando integrados no domínio público se não excederem as larguras fixadas no artigo 11.º e entrando automaticamente no domínio privado do Estado no caso contrário”.
O recuo das águas não envolve, assim, a transmissão da propriedade de uma entidade pública para um sujeito privado, mas pode traduzir-se em regimes de dominialidade diferentes consoante a amplitude das larguras do leito abandonadas ou conquistadas. Isto significa que, em determinadas condições, é admissível que a área de terreno conquistada às águas seja integrada nos bens do domínio privado da Administração e, portanto, suscetível de ser objeto do comércio jurídico privado, como dispõe o nº 1 do art. 18º.
No caso inverso de avanço das águas, o legislador, no art. 14º, adotou como critério fundamental para a qualificação da natureza dos terrenos a existência ou não de corrosão das parcelas privadas contíguas a leitos. Assim “quando haja parcelas privadas contíguas a leitos dominiais, as porções de terreno corroídas lenta e sucessivamente pelas águas consideram-se automaticamente integradas no domínio público, sem que por isso haja lugar a qualquer indemnização” (nº 1); já “se as parcelas privadas contíguas a leitos dominiais forem invadidas pelas águas que nelas permaneçam sem que haja corrosão dos terrenos, os respetivos proprietários conservam o seu direito de propriedade, mas o Estado pode expropriar essas parcelas” (nº 2).
Em matéria de reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, rege o disposto no art. 15º, no qual se estabelecem os meios pelos quais podem os particulares obter o reconhecimento desse direito.
Com efeito, embora, por definição, os leitos e as margens de águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis sejam bens do domínio público, o legislador reconhece, todavia, os direitos adquiridos sobre esses terrenos por sujeitos privados, antes de 31 de dezembro de 1864, ou, tratando-se de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868 (2).
No referido art. 15º prevêem-se quatro situações em que pode encontrar-se o particular que pretende ser reconhecido como proprietário de uma parcela do leito ou da margem.
Na primeira situação (contemplada no seu nº 2), o interessado que vise obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tem de provar documentalmente a entrada no domínio privado, por título legítimo, do respetivo terreno em data anterior a 31 de dezembro de 1864 ou a 22 de março de 1868, tratando-se de arribas alcantiladas. Consagra-se em tal preceito uma presunção juris tantum de dominialidade de tais terrenos, impondo aos interessados o ónus da prova que os mesmos lhe pertencem (3).
No seu nº 3 prevê-se a segunda das referidas situações, que é a de o interessado não dispor de documentos idóneos para comprovar (sendo que nessa demonstração, ao invés do que sucede na primeira hipótese referida, são aceites todos os meios de prova admitidos em direito) o seu alegado direito de propriedade, caso em que se presumem particulares os terrenos em relação aos quais se prove estarem, nas mencionadas datas, na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa. Verificada esta situação, os interessados no reconhecimento da sua propriedade beneficiam de uma presunção juris tantum, sem prejuízo dos direitos de terceiros, o que equivale a considerar que, até prova em contrário a ilidir a presunção, o terreno é particular.
Na terceira situação, prevista no nº 4, presumem-se igualmente particulares os terrenos em relação aos quais se prove que antes de 1 de dezembro de 1892 (data da publicação do Decreto nº 8, que procedeu à organização dos Serviços Hidráulicos) eram objeto de propriedade ou posse privadas, se se mostrar que os documentos anteriores a 1864 ou 1868, consoante os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos por incêndio ou facto semelhante. Neste caso, como sublinha TAVARELA LOBO (4), a presunção funciona a favor dos interessados, recaindo, pois, o ónus da dominialidade sobre o Estado.
Por último, o nº 5 do citado normativo contempla, primordialmente, a situação de reconhecimento do direito de propriedade nos casos de terrenos que hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, ou seja, por mor de tal ato, o terreno é distraído do regime de dominialidade a que se encontrava sujeito, passando à categoria de coisa do domínio privado.
Feita, deste modo, a sumária análise do atual regime jurídico de reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos do domínio público hídrico (o que se revela necessário para cabal compreensão da concreta pretensão de tutela jurisdicional que o demandante aduz na presente demanda e bem assim da concreta causa petendi que invoca em suporte da mesma), importa agora avançar para a resolução da questão supra enunciada e que consubstancia o objeto do presente recurso.
Como deflui da exegese da petição inicial, com vista a obter o reconhecimento do direito de propriedade que se arroga sobre o imóvel identificado no art. 1º dessa peça processual, o autor alegou que o mesmo «confronta com a margem esquerda do Rio Lima, na referida freguesia de …» (art. 2º), encontrando-se «dentro do designado domínio marítimo uma vez que dista menos de 50 metros das águas do leito do rio» (art. 3º).
Alegou ainda (arts. 10º e 11º) que o imóvel tem «natureza privada desde momento anterior a 31 de dezembro de 1864», indicando (arts. 12º a 23º) os sucessivos atos translativos do direito de propriedade sobre o mesmo desde 6 de janeiro de 1869 (referindo que, nessa data, o adquirente – C. – o adquiriu, por compra, aos respetivos antecessores que se encontravam na sua posse e fruição há 20 e mais anos).
Acrescentou (arts. 25º, 26º, 27º e 28º) que «por si e em continuação dos respetivos antecessores, retroagindo ao tempo em que o prédio em apreço pertencia aos antecessores de C. (…) detém e usa esse prédio há mais de 150 anos, interruptamente», dele «aproveitando todas as suas utilidades, agricultando-o, colhendo os seus frutos, fazendo-lhe modificações e alterações, introduzindo-lhe obras de vedação através da construção de um muro, a expensas suas, pagando os respetivos impostos», fazendo isso «à vista, com o conhecimento e reconhecimento de toda a gente sem oposição de quem quer que seja (…) como de coisa sua se tratasse, na convicção de que é seu dono e que, como tal, exerce o direito próprio de propriedade».
Mais referiu (arts. 39º, 40º, 43º e 44º) que o ajuizado imóvel «só por força da ação humana se poderá encontrar localizado dentro do que hoje é considerado margem e, logo, dentro do conceito de domínio público marítimo/hídrico», pelo que «a eventualidade de este prédio se situar a menos de 50 metros do leito das águas do rio Lima (…) ficou a dever-se ao facto de, há algumas dezenas de anos, a margem sul do rio Lima ter sido alargada pelo desassoreamento desmesurado do rio, o que danificou as suas margens e descaracterizou os seus limites até então conhecidos», sendo que «no caso concreto da margem esquerda do Rio Lima e mais especificamente na zona onde se localiza o prédio objeto dos autos, essa consequência foi manifestamente sentida e vivida (…) tendo como consequência natural o alargamento do canal da água e necessariamente o avanço das suas margens para cima dos terrenos confinantes».
Por último, alega (arts. 46º e 47º) que o ajuizado imóvel «se acha murado e vedado em todo o seu perímetro (…) com sinais visíveis e permanentes de demarcação em relação à margem do rio propriamente dita».
Tendo em conta a materialidade vertida pelo demandante no articulado inicial (e bem assim na resposta – cfr. arts. 12º, 13º e 14º desse articulado) resulta, pois, que o mesmo filia juridicamente a sua pretensão nas hipóteses contempladas nos nºs 2, 3 e 4 do citado art. 15º.
Como se referiu, o tribunal de 1ª instância, considerando que o autor não alegou “a concreta delimitação do prédio descrito no artigo 1º da petição inicial, com especial incidência nas zonas de confrontação com o Rio Lima”, exarou nos autos despacho de convite ao aperfeiçoamento com esse desiderato.
Em resposta a essa determinação jurisdicional, o autor apresentou o articulado que se mostra junto de fls. 71 vº a 72 vº, onde, designadamente, afirma «que no momento atual a distância entre a base do leito do rio e o limite norte do prédio do autor é apenas em média de 12 metros» (art. 14º), fazendo-o acompanhar de suportes documentais tendentes a identificar os limites e os contornos do ajuizado imóvel, mormente através de levantamento topográfico (cfr. fls. 75) onde se encontram definidos os limites do mesmo.
Malgrado a referida concretização, ainda assim o juiz a quo considerou que a petição inicial enferma de vício de ineptidão por falta de causa de pedir, pelo que, em conformidade, decidiu absolver o réu da instância.
Questão que neste momento se coloca é a de saber se a afirmada insuficiência ou falta de densificação nos articulados apresentados pelo autor da matéria factual atinente à exata delimitação do ajuizado imóvel – de modo a identificar-se mais claramente os limites físicos da parcela, mormente no seu limite norte – poderá originar, só por si, o referido e drástico vício de ineptidão, gerador da nulidade de todo o processo.
Registe-se, neste ponto, que o tribunal recorrido, num primeiro momento, considerou que a petição inicial não omitia de forma absoluta a respetiva causa de pedir, tanto assim que prolatou despacho de convite ao aperfeiçoamento, o qual, na economia do nº 4 do art. 590º do Cód. Processo Civil, apenas fará sentido quando se esteja em presença de articulado facticamente imperfeito ou insuficiente, visando obter uma melhor definição dos contornos factuais da questão submetida à apreciação do tribunal, não tendo, pois, cabimento quando se esteja em presença de articulado inicial inepto, seja por falta absoluta de causa de pedir ou por ininteligibilidade desta.
Significa isto que, in casu, ou o tribunal recorrido entendia que a petição inicial seria inepta por falta (absoluta) de causa de pedir ou por a mesma ser ininteligível – devendo, nesse caso, e desde logo, absolver o réu da instância, por mor do disposto nos arts. 186º, nº 1, 278º, nº 1 al. b) e 577º, al. b), todos do Cód. Processo Civil -, ou então, caso considerasse que tal articulado seria (apenas) facticamente imperfeito ou insuficiente no concernente à densificação da respetiva causa de pedir, impunha-se, nessas circunstâncias, o proferimento de um despacho de convite ao aperfeiçoamento de molde a possibilitar que o autor colmatasse as deficiências evidenciadas na definição fáctica desse elemento objetivo da instância.
Não foi, todavia, esse o procedimento adotado pelo tribunal de 1ª instância que, após ter convidado o autor a corrigir a petição inicial (o que pressupunha, naturalmente, a consideração de alegação de um limite fáctico mínimo por banda do demandante que, ainda assim, deixava entender a causa de pedir que invocava em suporte do pedido deduzido), acabou, apesar deste ter respondido a esse convite (carreando para os autos novos factos destinados a identificar os limites do ajuizado imóvel e bem assim aportando elementos de natureza documental tendentes a cumprir a determinação jurisdicional que lhe foi dirigida (5)), por absolver o réu da instância por considerar inepta a petição inicial por falta de causa de pedir.
Ora, a insuficiência na densificação ou concretização da matéria litigiosa, notada na decisão recorrida, nunca poderia gerar o vício de ineptidão – devendo distinguir-se claramente esta figura (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objeto inteligível) da mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspeto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial).
Tal distinguo revela-se determinante neste domínio porquanto somente gera ineptidão da petição inicial a absoluta ausência de alegação do núcleo factual essencial integrador da causa de pedir, enquanto a falta de densificação ou concretização adequada de factos substantivamente relevantes - de que depende, afinal, a procedência da pretensão do autor -, tem como consequência não a anulação de todo o processo, mas antes a improcedência, em termos de juízo de mérito, da própria ação, por o autor não ter logrado alegar e provar cabalmente todos os elementos factuais constitutivos de que dependia o reconhecimento do direito por ele invocado. É que, neste último caso, movemo-nos já no plano, não do vício de ineptidão da petição, mas da insuficiente alegação de um facto concretizador de factos essenciais, podendo tal insuficiência de concretização factual ser suprida seja na sequência de um convite ao aperfeiçoamento, seja em consequência da aquisição processual de factos concretizadores ou complementares dos que integram o núcleo essencial da causa de pedir invocada pelo autor, se revelados no decurso da instrução, nos termos do art. 5º, nº 2 al. b) do Cód. Processo Civil, no qual se admite, com particular amplitude, a aquisição processual de factos dessa natureza (relativamente aos quais não opera, pois, qualquer preclusão).
No caso vertente, como deflui da norma plasmada no art. 15º, que o autor convoca em arrimo da sua pretensão, os factos essenciais nucleares contemplados na respetiva fattispecie normativa traduzem-se, fundamentalmente, na circunstância de determinada parcela de terreno estar integrada no domínio público hídrico de acordo com as regras estabelecidas nos arts. 10º, nº 1, 11º, nº 1, 13º e 14º, e na afirmação por parte do autor de um direito de propriedade privada sobre essa mesma parcela tendo por base alguns dos títulos definidos nos vários nºs do citado art. 15º.
Significa isto, portanto, que a originária insuficiência de alegação que o tribunal recorrido notou, no que concerne à cabal identificação na petição dos precisos limites físicos da ajuizada parcela de terreno, nunca tornaria a petição inepta, posto que esse facto assume inequivocamente natureza de facto concretizador (já que, embora necessário para a procedência da pretensão deduzida, não cumpre, no entanto, uma função individualizadora do referido tipo legal, tendo antes como propósito pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto, mormente, no caso, através da correta identificação da parcela que constitui objeto do direito de propriedade a que o autor se arroga), sendo, por isso, a insuficiência na sua densificação factual suprível durante o processo nos moldes supra descritos.
Como quer que seja, procedendo ao cotejo da petição inicial com o articulado que o autor apresentou na sequência do convite que lhe foi direcionado (e dos documentos que o acompanham) resultam concretizados, com um mínimo de clareza, os contornos e limites do ajuizado prédio, o qual tem a configuração definida no levantamento topográfico que se mostra junta a fls. 75 dos autos, sendo que desse confronto emerge que a parcela de terreno em causa (identificada no aludido levantamento topográfico) se situa na margem esquerda do Rio Lima entre os 12 metros (em média) e os 50 metros contados desde o leito do rio.
Portanto, os elementos que o autor carreou para os autos permitem identificar qual a concreta parcela da margem esquerda do Rio Lima que considera fazer parte integrante do imóvel identificado no artigo 1º da petição inicial, inexistindo, consequentemente, razão válida para considerar estar-se em presença do vício de ineptidão apontado na decisão sob censura.
Impõe-se, assim, a procedência da presente apelação.

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SÍNTESE CONCLUSIVA

I- A ineptidão da petição inicial supõe que o autor não haja, em absoluto, definido factualmente o núcleo essencial da causa de pedir invocada como base da concreta pretensão de tutela jurisdicional que aduz, obstando tal deficiência a que a ação tenha um objeto inteligível.

II- A insuficiência na concretização ou densificação adequada de algum aspeto dos factos essenciais em que se ancora a pretensão deduzida (implicando que a petição, caraterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omita a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspeto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, podendo implicar a improcedência da ação, em termos de juízo de mérito.

III– A insuficiente alegação de um facto concretizador de factos essenciais nucleares pode ser suprida na sequência de um convite ao aperfeiçoamento ou em consequência da aquisição processual daquele tipo de factos quando resultem da instrução da causa.
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V- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, revogando a decisão recorrida, determinam a sua substituição por outra que assegure o prosseguimento dos autos, contanto inexistam outras razões que a tal obstem.
Sem custas.
Guimarães, 30.06.2016
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Dr. Miguel Baldaia Morais
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Dr. Jorge Miguel Seabra
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Dr. José Cardoso Amaral
(1) Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem, o qual foi entretanto objeto de alterações introduzidas pelas Leis nº 78/2013, de 21.11 e 34/2014, de 19.06.
(2) Sobre a explicação da razão que subjaz à indicação de tais datas vide FREITAS DO AMARAL e PEDRO FERNANDES, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, págs. 124 e seguintes, sendo que a data de 31 de dezembro de 1864 corresponde à data da publicação do decreto que estabeleceu a dominialidade pública dos leitos e das margens, enquanto a data de 22 de março de 1868 é a da entrada em vigor do Código Civil de 1867, que no § 4º do seu art. 380º dispunha que “as faces ou rampas e os capelos dos cômoros, valadas, tapadas, muros de terra ou de pedra e cimento erguidos artificialmente sobre a superfície do solo marginal, não pertencem ao leito ou álveo da corrente, nem estão no domínio público, se à data da promulgação do Código Civil não houverem entrado nesse domínio por forma legal”.
(3) Assim, TAVARELA LOBO, Manual do Direito das Águas, vol. I, pág. 227.
(4) Ob. citada, vol. I, pág. 228.
(5) Como é consabido, pese embora a questão não venha obtendo uma solução unívoca, vem-se majoritariamente considerando processualmente válida a alegação de factos que integram a causa de pedir por remissão para documentos – cfr., por todos, na doutrina, ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, pág. 201; na jurisprudência, acórdãos da Relação de Lisboa de 3.12.2009 (processo nº 61495/09.0YIPRT.L1-7) e de 15.05.2014 (processo nº 26903/13.4T2SNT.L1-2) e acórdão da Relação de Coimbra de 6.07.2010 (processo nº 19788/09.7YIPRT.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.