Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
741/13.2TBVVD.G1
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
CONFISSÃO
PROVA TESTEMUNHAL
PROVA DOCUMENTAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. A doutrina e a jurisprudência têm divergido entre a possibilidade ou a impossibilidade da parte usar de prova testemunhal para a destruição dos efeitos da confissão, entendendo grande parte, porventura a maior parte, que essa prova deve ser admitida quando seja acompanhada de circunstâncias objetivas que tornem verosímil a convenção contrária ao documento que com ela se pretende demonstrar ou no caso de existir um começo de prova por escrito que a prova testemunhal vise completar.
2. Sendo esta uma questão complexa e duvidosa --- em que se debatem soluções jurídicas distintas, carecidas de melhor maturação e apuramento de factos controvertidos --- e tendo a A. requerido a notificação da R. devedora para juntar documentos bancários tendo em vista obter prova indiciária de que o pagamento do preço não foi efetuado, apesar da declaração confessória, mandam as regras da prudência e da segurança que não se profira saneador-sentença e que os autos prossigam a sua instrução, produção de prova e julgamento, seguindo-se a sentença.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
S.., intentou ação declarativa comum, sob a forma ordinária, contra F.., SA, , alegando essencialmente que, tendo celebrado com a R. um contrato de divisão e cessão de quotas, pelo qual esta lhe adquiriu uma quota social que possuía na sociedade B.., Lda., pelo preço de € 60.000,00, nada ainda lhe foi pago, apesar de a compradora ter sido notificada para o efeito.
A R. aproveita-se do facto de a A., confiante que a aquela lhe iria fazer o pagamento por transferência bancária, como já fizera com outros pagamentos, ter aposto na via do contrato pertencente à R., que já recebera aquele preço, bem sabendo a demandada que ainda nada pagou.
Sobre aquele valor vencem-se juros desde a data da celebração do contrato, o dia 10.3.2011, à taxa anual de 4%.
Deduz, assim, o seguinte pedido:
«Nestes termos e nos melhores de direito que V. Ex.a doutamente proverá deve a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada, e, por via dela decidir-se:
-Condenar-se a Ré no pagamento de sessenta mil euros à Autora referente ao preço de aquisição da quota na sociedade B.., LDA, e respectivos juros de mora desde a data da outorga do contrato em 10 de Março de 2011, que nesta data já contabilizam 5600 euros, bem como os juros que se vencerem até efectivo e integral pagamento.
- A Ré ser condenada em procuradoria e custas condignas.» (sic)

Citada, a R. alegou, além do mais, que a A. deu quitação do recebimento do preço através da declaração que ficou exarada no documento que titula a cessão da quota, onde declara ter recebido o respetivo preço (e recebeu-o em mão, em dinheiro), o que configura uma presunção de pagamento.
Acrescentou que A. age em abuso de direito e litiga de má fé, devendo ser condenada a indemnizar a R. nas despesas e em indemnização condigna.

Replicando, A A. opôs-se à matéria de exceção alegada na contestação e reafirmou o fundamento da petição inicial, alegando, designadamente, que nunca o preço poderia ter sido recebido em mão por se tratar de uma empresa e o art.º 63º da Lei Geral Tributária obrigar, à data, que todos os pagamentos superiores a 9700 euros (atualmente mil euros) fossem efetuados mediante cheque, débito direto ou transferência bancária.
As partes não quiseram atribuir qualquer efeito ou relevância jurídica àquela declaração, tratando-se, por isso, de uma declaração não séria e, assim, nula, ao abrigo do art.º 245º, nº 1, do Código Civil, mantendo-se a obrigação de pagamento do preço (€ 60.000,00).
Ainda na réplica, a A. requereu a notificação a R. para “juntar aos autos os extractos bancários de todas as contas que possuía à data, com os movimentos entre 1 e 10 de Março de 2011”, pedido que foi reafirmado posteriormente, em novo requerimento probatório.

Considerando que o estado do processo permite conhecer do mérito da causa sem necessidade de produção ulterior de prova, o tribunal, na fase do saneador, proferiu sentença com o seguinte segmento decisório:
“Pelo exposto, tudo visto e considerado, decide-se julgar totalmente improcedente a vertente acção, absolvendo-se dos pedidos formulados a ré F.., SA.” (sic)
No essencial, o tribunal atendeu à força probatória da declaração confessória do recebimento do preço por parte da A., considerando também que não existe qualquer prova documental adequada a indiciar o reclamado não pagamento do preço e, por isso, inadmissível a produção de prova testemunhal. Mais sustentou que não se verificam os pressupostos que levam a considerar a declaração em apreço como não séria nos termos do art.º 245.º, do Código Civil, dado que da própria alegação da A. se colhe a noção da inexistência de qualquer divergência intencional entre a vontade e a declaração (simplesmente, segundo a autora, esta teria feito a declaração na perspetiva de receber o valor em apreço ulteriormente).
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Inconformada, a A. recorreu da sentença, tendo apresentado alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«1º O documento assinado pela Autora é um documento particular e nos termos do nº1 artº 376º (força probatória), do CC- O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2º Por sua vez o acórdão do STJ, de 23-11-2005, explicita que, “a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº1 do artº 376º do CC às declarações documentadas, limita-se à sua materialidade, isto é à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas” - processo nº 05B3318, in, www.dgsi.pt -.
3º Assim não está vedado à Autora, demonstrar que tais declarações não correspondem à realidade dos factos ocorridos e a demonstração da desconformidade com a realidade das mesmas pode ser feita por qualquer outro meio de prova, incluindo testemunhal
4º Acresce que, e mesmo entendendo-se que se torna necessário um princípio de prova documental, foi requerida pela Autora na alínea C) dos requerimentos probatórios, a junção de documentos, documentos esses em posse da Ré, e que facilmente comprovariam que o pagamento nunca foi efectuado por aquela, nomeadamente em confronto com os depoimentos das testemunhas
5º O documento de quitação em causa não impunha já uma decisão de facto, mas sim uma averiguação concreta de como ocorreram os factos, e uma busca da verdade material.
6º Acresce que foi alegado pela Autora na Réplica que a declaração de quitação feita pela Autora mostrava-se desconforme com a realidade, e efectuada no pressuposto do pagamento a breve prazo do valor da quota cedida.
7ºA Autora mostrara vontade de produzir tal declaração, mas nem Autora nem a Ré, na altura em que a declaração foi produzida, manifestavam vontade de lhe atribuir relevância jurídica, tratando-se de uma declaração não séria, sendo a declaração nula, conforme dispõe o artº245 nº1 do C Civil.
8º Situação que não foi correctamente ponderada na sentença em recurso, já que, se a Autora declara que recebeu, e não recebeu de facto, há, salvo douto entendimento em contrário, uma divergência entre a vontade e a declaração, e sempre teriam que ser ouvidas as testemunhas acerca do vício de vontade alegado.
9º Assim, violou a decisão recorrida, entre outros, o disposto nos artigos 376º , 245º nº1, 359 nº1 e 392º todos do Código Civil.» (sic)

Não foram oferecidas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
A questão a decidir encerra apenas matéria de direito, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do novo Código de Processo Civil[1]).
Impõe-se solucionar a seguinte questão: Saber se a ação deve prosseguir a sua normal tramitação, com produção de prova, nomeadamente documental e testemunhal relativamente à matéria de facto alegada, com decisão final posterior, seja porque:
a) a tal não obsta a força probatória da declaração constante de um documento particular pelo qual se cedeu uma quota social, assinado pela cedente e pela cessionária, e no qual aquela declara expressamente ter recebido desta última o preço da venda da quota objeto do contrato (€ 60.000,00), nada mais tendo a receber; e
b) se impõe a prova para averiguar da ocorrência de factos adequados à conclusão de que a recorrente emitiu uma declaração não séria e, por isso, nula nos termos do art.º 245º, nº 1, do Código Civil.
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III.
O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos [2]:
1) Por acordo escrito intitulado de “contrato de divisão e cessão de quotas”, outorgado em 10 de Março de 2011, a autora declarou ceder e a ré declarou aceitar a cessão, pelo preço de sessenta mil euros, de uma quota nominal no mesmo valor que aquela possuía na sociedade “B.. Lda.” (cf. o teor do respectivo contrato patenteado nos autos a fls.20 a fls.25 – cujo conteúdo se dá como reproduzido).
2) Em exemplar do aludido contrato – que ficou na posse da ré – patenteado nos autos a fls.57 a fls.60 - a autora, aos 10 de Março de 2011, apôs com o seu punho a assinatura e a seguinte menção no contrato de cessão de quotas “…Para os devidos efeitos declaro que na presente data recebi a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros) pela venda da quota referida no presente contrato pelo que nada mais tenho a receber…”.
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Apreciação da questão do recurso
Por contrato escrito e assinado pelas partes, foi operada uma divisão de quota e a A. cedeu à R. uma das que resultaram da divisão, mediante o preço de € 60.000,00.
Com base na definição que nos é dada de documento autêntico pelo art.º 363º, nº 2, do Código Civil, devem ter-se por particulares todos os documentos que não são autênticos, ou seja, todos os que não cabem na definição de documentos autênticos que aquela norma fornece. São, assim, particulares os documentos que provêm de simples particulares ou seja, de pessoas que não exercem atividade pública ou, se a exercem, não foi no uso dessa faculdade que elaboraram os documentos.
Contrariamente aos documentos autênticos que provam a sua autenticidade, ou seja, provam por si que emanam da entidade documentadora respetiva (acta probant se ipse), em regra, os documentos particulares não provam por si mesmos a sua autenticidade ou veracidade; é nisto que reside o traço fundamental que distingue uns dos outros.
A parte contrária, ao não impugnar o documento, assume uma atitude passiva que conduz ao reconhecimento da autenticidade do documento, no sentido de que a letra e a assinatura ou só a assinatura se consideram verdadeiras (art.º 374º, nº 1 do Código Civil). Esta é a sua força probatória formal.
Quanto à sua força probatória material, uma vez reconhecida a proveniência do documento e o seu autor, temos que as declarações nele constantes se consideram provadas na medida em que forem contrárias aos interesses do declarante (n.º s 1 e 2 do art.º 376º do Código Civil). Segundo aquele nº 2 “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão”.
Como refere Vaz Serra [3], “a regra do nº 2 do art. 376º constitui uma presunção fundada na regra de experiência de quem afirma factos contrários aos seus interesses o faz por saber que são verdadeiros; essa regra não tem, contudo, valor absoluto, pois pode acontecer que alguém afirme factos contrários aos seus interesses apesar de eles não serem verdadeiros e que essa afirmação seja divergente da sua vontade por que se ache inquinada de algum vício de consentimento: o facto declarado no documento considera-se verdadeiro embora o não seja, por aplicação das regras da confissão podendo, porém, o declarante, de acordo com as regras desta, valer-se dos respetivos meios de impugnação. Pode, por isso, provar o declarante que a sua declaração não correspondeu à sua vontade ou que foi afetada por algum vício de consentimento… (cf. art.º 359º)”.
Quer isto significar que os documentos particulares assinados pelo seu autor, se não existir a impugnação a que aludem os artigos 374º e 375º, fazem prova plena em relação às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo, porém, da arguição e prova da sua falsidade.
Na jurisprudência, citando um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.6.1977, o acórdão do mesmo Tribunal de 9.1.2003 [4] refere: “A solução legal compreende-se bem: desde que esteja estabelecida a autoria do documento, e nele se contenha uma declaração, feita ao declaratário, contrária ao interesse do declarante, tal declaração representa uma confissão do seu autor, pelo que a esse documento particular deve ser atribuído nas relações entre ambos, valor probatório pleno (art.º 352º e seguintes do Código Civil). Essa força probatória significa que os factos não carecem de outra prova para se terem como demonstrados, mas não implica que o declarante não possa impugnar a sua validade, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, precisamente como acontece com a declaração confessória (art.º 359º do Código Civil), e designadamente provando, por exemplo, que a declaração resultou de erro (cf. Prof. Vaz Serra, Provas, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 112, pág. 69, nota 800-a)”. Ou, como refere ainda Vaz Serra [5], “nessa medida o documento pode ser invocado, como prova plena, pelo declaratário, contra o declarante”.
Segundo o art.º 355º, nºs 1 e 4, do Código Civil, sendo admissível a confissão extrajudicial, esta é a que é feita por algum modo diferente da confissão judicial.
Enquanto a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente, a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (art.º 358º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
A confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art.º 352º do Código Civil). “É uma declaração de ciência (não uma declaração constitutiva, dispositiva ou negocial), pela qual uma pessoa reconhece a realidade de um facto que lhe é desfavorável (contra se pronuntiatio) – dum facto cujas consequência jurídicas lhe são prejudiciais e cuja prova competiria, portanto, à outra parte, nos termos do artigo 342.º do Código Civil” [6].
Como ensina Vaz Serra [7], “a força probatória plena, atribuída pela lei à confissão judicial e a certas confissões extrajudiciais, é independente da intenção do confitente e funda-se na regra de experiência de que quem conhece um facto a si desfavorável e favorável à parte contrária fá-lo porque sabe ser ele verdadeiro” [8].
Nos casos em que a confissão faz prova plena, o confitente não pode, em princípio, invalidá-la, e o adversário não carece de fazer outra prova do facto confessado, ficando o juiz vinculado à confissão. Como refere Vaz Serra [9] ela é uma prova pleníssima, visto não admitir, em regra, prova do contrário, sendo, por este motivo, declarada regina probationum, probatio probatissima ou omnium probationum maxima.
A declaração em documento particular efetuada pela cedente da quota de que recebeu o respetivo preço, não pode deixar de constituir a confissão inequívoca de um facto desfavorável, feita à parte contrária, presente no ato documentado. Nesse caso, não vemos como ultrapassar o valor daquela declaração como confissão extrajudicial relevante para efeitos do art.º 358º, nº 2, última parte, do Código Civil. Tem força probatória plena, porque feita à parte contrária.
Quer isto dizer que o documento contratual escrito, ainda que não faça prova da realidade do pagamento do preço, fá-la da declaração de confissão desse pagamento, comprovando-se, por esta via confessória, nos termos do citado nº 2 do art.º 358º, a realidade de tal pagamento”[10].
Em todo o caso, ainda que com força de prova plena, a confissão, seja ela judicial ou extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, designadamente por erro, nos termos do art.º 359º do Código Civil. Significa isso que “a confissão poderá ser atacada se, além de não corresponder à verdade, proceder de erro ou de outro vício do consentimento do confitente”, ou seja, “para que a confissão possa ser impugnada, há-de alegar-se e provar-se que, além do facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou acerca dele ou que foi vítima de outra causa de falta ou de vício da vontade” [11].
Dispõe o art.º 347º do Código Civil que “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei”. Tal significa que, tendo feito a confissão, a A. cedente é admitida a destruir a sua força probatória de haver recebido o indicado preço, através de prova de que na realidade não o recebeu, designadamente por ter havido vício negocial.[12]
A doutrina e a jurisprudência têm divergido entre a possibilidade ou a impossibilidade da parte usar de prova testemunhal para a destruição dos efeitos da confissão, entendendo grande parte, porventura a maior parte, que essa prova deve ser admitida quando seja acompanhada de circunstâncias objetivas que tornem verosímil a convenção contrária ao documento que com ela se pretende demonstrar ou no caso de existir um começo de prova por escrito que a prova testemunhal vise completar [13].
Vaz Serra aceita as regras dos Código Civil francês e italiano que permitem prova testemunhal logo que exista um começo de prova por escrito ou tenha sido impossível ao autor munir-se contra a perda de prova escrita.
Não falta ainda quem faça uma interpretação diferente das regras da confissão e da sua força probatória plena, admitindo, em termos muito amplos, a prova testemunhal. Veja-se, por exemplo, o acórdão da Relação de Coimbra de 18.3.2003 [14], de que se transcreve o seguinte excerto: “Mas, mesmo considerando tal declaração como inequívoca, estabelecida que está a autoria desse documento particular que contém uma declaração contrária aos interesses do declarante, representando, assim, uma confissão do seu autor, com valor probatório pleno nas relações entre declarante e declaratárío, a eficácia probatória de tal documento diz respeito apenas à materialidade das respectivas declarações e não à exactidão destas, sendo admissível prova testemunhal para comprovar a veracidade das mesmas.
Pois, o dizer-se que o documento confessório faz prova plena quanto às declaração atribuídas ao seu autor, quer dizer que se torna indiscutível que a pessoa a quem o documento é atribuído fez as declarações que dele constam; contudo, saber se elas vinculam o seu autor e em que medida é já problema que não respeita à força probatória do documento mas sim à eficácia, da declaração – Acórdão do STJ de 30/6/77, Bol. 268, p. 204.
Assim, também por este prisma … deveriam ter sido levados à base instrutória os factos relativos à eficácia da declaração, tendo ele que demonstrar que, embora tendo produzido as afirmações que constam do documento, as mesmas não correspondem à verdade. Podendo fazê-lo, designadamente, através de prova testemunhal.”
E concluiu, assim, o mesmo aresto: “Estabelecida que está a autoria de um documento particular que contém uma declaração contrária aos interesses do declarante, representando, assim, uma confissão do seu autor, com valor probatório pleno nas relações entre declarante e declaratário, a eficácia probatória de tal documento diz respeito apenas à materialidade das respectivas declarações e não à exactidão destas, sendo admissível prova testemunhal para comprovar a veracidade das mesmas. E, assim, saber se tais declarações vinculam o seu autor, já não respeita à força probatória do documento mas sim a eficácia da declaração.”
Uma terceira via, apoiando-se em Vaz Serra e Almeida Costa, tem vindo a considerar o problema da declaração confessória de pagamento do preço na escritura pública como uma questão de interpretação da declaração.
No voto de vencido proferido no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.6.1999 [15], refere-se que a regra estabelecida no art.º 393º, nº 2, do Código Civil comporta várias restrições.
Citando Vaz Serra [16] e Almeida Costa [17], defende-se ali que a regra, se estabelecida com carácter absoluto, pode levar a resultados iníquos. Encarando o segundo daqueles distintos Professores a hipótese de o vendedor ter declarado na escritura o recebimento do preço, chama a atenção para o que escreveu Vaz Serra sobre a possibilidade de aquela declaração ter vários sentidos. Vaz Serra anota [18] que a declaração feita pelo vendedor pode significar apenas uma quitação antecipada, à espera da prestação. Se o foi ou não, é um problema de interpretação, a ser resolvido por qualquer meio de prova; o que, aliás, resulta do art.º 393º, nº 3, do Código Civil, assim mesmo proposto no articulado de Vaz Serra. E na hipótese de se provar que foi uma quitação antecipada, terá o devedor de provar que pagou posteriormente.
Daí que também P. de Lima e A. Varela [19] advirtam contra o perigo da expedição antecipada do recibo de quitação, pois que, nesse caso, terá o credor que se defender, “fazendo prova do não cumprimento, ou seja, contraprova daquilo que resulta do documento”. Neste sentido, cf., na jurisprudência, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2204 e da Relação do Porto de 8.2.2010 [20].
Também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.2.2010 [21] se refere que, “provada a declaração, constante da escritura de formalização do contrato …, de pagamento da totalidade do preço de alienação …, mas apurado que ela foi produzida por razões de conveniência e sem que reflicta a concreta realidade do conteúdo do negócio, a questão de saber em que medida ela pode ser vinculativa constitui um problema de interpretação sobre a vontade das partes relativamente à coincidência ou divergência da declaração com a produção de algum efeito jurídico”. Refere ainda aquela aresto, que existe uma diferença entre a confissão e a admissão ou mera declaração de um facto (ou situação factual); esta última queda-se no adiantamento de uma proposição ou juízo cuja veracidade se não confirma; aquela traduz a afirmação de um facto (ou situação factual) como verdadeiro.
Se as circunstâncias do caso tornam verosímil a convenção (contra o conteúdo do documento ou para além dele – art.º 394º do Código Civil), a prova testemunhal desta não tem já os mesmos perigos que a regra dos art.ºs 394º e 395º se destina a conjurar, dado que o tribunal se não apoiará, para considerar provada a convenção, apenas nos depoimentos das testemunhas, mas também nas circunstâncias objetivas que tornam verosímil a convenção: nesta hipótese, a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias, e a prova testemunhal limita-se a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias. Do mesmo modo que o conteúdo dos documentos pode ser interpretado mediante o recurso à prova por testemunhas (art.º 393º, nº 3), também as circunstâncias objetivas do caso podem ser interpretadas mediante esse recurso [22].
A primeira conclusão a tirar é de que, apesar do debate que se tem vindo a fazer ao longo dos anos, não há unanimidade na doutrina e na jurisprudência na matéria em causa, quer no que respeita ao alcance da força probatória da confissão em documento extrajudicial quando está em causa uma declaração de quitação, quer relativamente aos meios de prova admissíveis quando se pretende arredar essa declaração confessória. Por isso mesmo a questão não pode deixar de ser tida como complexa.
Volvendo ao caso sub judice, resulta da petição inicial que a R. não fez o pagamento em causa aproveitando-se do facto da Autora, confiante que a Ré lhe iria fazer o pagamento por transferência bancária, como já fizera com outros pagamentos, ter aposto na via do contrato pertencente à Ré, que já recebera os sessenta mil euros (item 4º daquele articulado), sabendo a Ré que ainda nada pagou, e que a Autora só aí colocou aquela menção confiante que a Ré lhe iria fazer a transferência logo de seguida, como era usual noutras relações comerciais que tinham mantido (subsequente item 5º).
Na réplica, a A. alegou ainda que a R. lhe garantiu que iria efetuar o pagamento, para não se preocupar, e, face às boas relações, a Autora confiou e esperou, até porque de facto a Ré se encontrava a investir na B.., e também não queria entrar em conflito direto…. Tendo-lhe sempre assegurado que o dinheiro não era problema (itens 10º e 11º), acrescentando que nem a A. nem a R. quiseram atribuir relevância jurídica à declaração de quitação (item 14º).
Ainda nesse articulado, a A. requereu a notificação da R. para juntar aos autos os extratos bancários de todas as contas que possuía à data, com os movimentos entre 1 e 10 de Março de 2011, para contraprova do artigo 18º da contestação, onde a R. alega que o seu legal representante entregou à A., em mão, igual quantia, por exigência desta.
A junção destes documentos não é descabida, pois que, se a R. dá a entender que, não fosse um pedido da A. de pagamento em dinheiro, poderia ter pago por outro meio, sempre será de admitir que, por hábito, não movimenta dinheiro daquela forma e tivesse levantado aquela quantia de uma qualquer conta bancária de que era titular para satisfazer o pedido da A., o que, aliás, se enquadra na normalidade deste tipo de pagamentos, dado o seu elevado montante.
Mesmo seguindo a corrente jurisprudencial que o tribunal a quo invocou na douta sentença, que nos parece ser maioritária e, porventura, a mais sensata e sustentável --- de que sempre terá que haver um princípio de prova escrita, documentada, no sentido de que a declaração confessória de recebimento do preço (aposta no contrato escrito de cessão de quota) não corresponde à realidade, para que possa ser valorada a prova testemunhal, a verdade é que a junção dos extratos bancários pretendida pela A. poderá não ser inócua na abordagem da matéria, não sendo de excluir que dali advenha interesse na junção de outros documentos igualmente pertinentes.
A atual al. b) do nº 1 do art.º 595º corresponde à anterior al. b) do nº 1 do art.º 510º, do Código de Processo Civil revogado, segundo a qual o juiz deve “conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do pedido ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória”.
Já então se defendia, como anteriormente, que o juiz, ao proferiu um saneador-sentença, se deve pautar por um critério objetivo, proferindo decisão apenas quando esta é “segura” ou seja, que, em princípio, não possa ser afetada pela evolução posterior[23].
Argumenta Lebre de Freitas [24] que se a decisão se basear na solução duma questão de direito muito duvidosa, ou doutrinária ou jurisprudencialmente controvertida, o juiz deve ponderar o risco de o ganho em economia processual que a decisão antecipada represente vir a ser anulado e excedido pela perda resultante da eventual revogação da decisão em recurso.
Sustenta A. Abrantes Geraldes [25] que “de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferencio, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos, puderem ser legitimamente defendidas”. “Não parece que haja vantagens em avançar imediatamente para a decisão de mérito sem primeiro averiguar, em concreto, de entre os factos controvertidos, quais os que, interessando potencialmente a qualquer das saídas permitidas pelo sistema legal, se devem considerar provados. … os tribunais superiores que poderão ser chamados a pronunciar-se em sede recurso, ficam na posse de um quadro fáctico mais completo e que não fecha a porta a qualquer das soluções legais defensáveis” --- acrescenta aquele autor, concluindo que a antecipação do conhecimento do mérito para a fase do saneador deve supor o apuramento de todos os factos que permitam uma solução final segura.[26]
Justifica-se, pois, a discussão da matéria de facto controvertida, nomeadamente os invocados motivos que levaram à emissão da declaração confessória do recebimento do preço e o próprio pagamento efetivo, com produção da prova constituída por documentos juntos e a juntar aos autos, assim como as restantes provas requeridas e admitidas, incluindo a prova testemunhal, transferindo-se, a seu tempo, para o julgamento da matéria de facto e respetiva fundamentação, a definição das provas admissíveis e tidas como relevantes para a decisão, designadamente se foi considerada, por que razão e em que medida a prova testemunhal produzida.
Tanto basta para que, na procedência do recurso, se revogue a, aliás, bem elaborada sentença e se determine a prossecução da ação, com produção de prova.
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Para justificar o prosseguimento da ação, a apelante alega também que é necessário produzir prova, com inquirição de testemunhas, sobre o facto de a A. ter declarado o recebimento, não tendo, na realidade, recebido o valor da quota cedida.
Haveria, na sua perspetiva, uma possível divergência entre a vontade e a declaração e, tratando-se de uma declaração não séria, seria nula nos termos do disposto no art.º 245º, nº 1, do Código Civil.
É matéria de facto a determinação da vontade real dos declarantes e matéria de direito a fixação do sentido normativo ou juridicamente relevante da declaração negocial [27].
Ora, tendo-se determinado já a necessidade de dar o normal andamento ao processo, com produção de prova relativamente à matéria de facto (incluindo os factos que, segundo a recorrente, são suscetíveis de conduzir à declaração não séria [28]), como pretende a apelante, nada mais está para decidir em sede de recurso. Só depois da fixação dos factos provados e em função deles, se deverá ponderar se ocorre ou não a invocada nulidade (que a lei civil identifica, atipicamente, como falta de efeitos).
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. A doutrina e a jurisprudência têm divergido entre a possibilidade ou a impossibilidade da parte usar de prova testemunhal para a destruição dos efeitos da confissão, entendendo grande parte, porventura a maior parte, que essa prova deve ser admitida quando seja acompanhada de circunstâncias objetivas que tornem verosímil a convenção contrária ao documento que com ela se pretende demonstrar ou no caso de existir um começo de prova por escrito que a prova testemunhal vise completar.
2. Sendo esta uma questão complexa e duvidosa --- em que se debatem soluções jurídicas distintas, carecidas de melhor maturação e apuramento de factos controvertidos --- e tendo a A. requerido a notificação da R. devedora para juntar documentos bancários tendo em vista obter prova indiciária de que o pagamento do preço não foi efetuado, apesar da declaração confessória, mandam as regras da prudência e da segurança que não se profira saneador-sentença e que os autos prossigam a sua instrução, produção de prova e julgamento, seguindo-se a sentença.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se o saneador-sentença e determina-se o prosseguimento dos autos, designadamente com produção de prova em audiência de discussão e julgamento e posterior decisão.
Custas da apelação pela recorrida.
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Guimarães, 10 de julho de 2014
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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[1] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho. Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Por transcrição.
[3] RLJ Ano 110, pág. 85.
[4] Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 8.
[5] RLJ, Ano 114, pág. 178.
[6] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 240 e 241.
[7] Vaz Serra, Provas – Direito Probatório Material, in BMJ 111/16.
[8] No mesmo sentido, Lebre de Freitas, “A Confissão no Direito Probatório”, pág.s 160 e 187.
[9] Idem, pág. 17.
[10] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.6.1999, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. II, pág. 136 e seg.s.
[11] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 552 e 564.
[12] Tem-se entendido que os termos gerais são os dos art.ºs 240º e seg.s quanto à falta e aos vícios de vontade, e 285º e seg.s, todos do Código Civil, quanto ao regime da nulidade e da anulabilidade, referindo-se o nº 2 do art.º 359º tanto ao erro na declaração (art.º 247º), como ao erro sobre os motivos determinantes da vontade (art.ºs 251º e 252º) --- A. Varela e P. de Lima, in Código Civil anotado, 2ª edição, vol. I, pág. 295 --- não bastando a simples negação da confissão. Cf. ainda acórdão da Relação do Porto de 31.3.2009, proc. 0822279, in www.gdsi.pt.
[13] Um princípio de prova escrita legitimando a admissibilidade de prova testemunhal complementar, ou quando tenha sido impossível, moral ou materialmente, ao contraente obter uma prova escrita, ou quando se tenha perdido, sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova, como se refere na sentença recorrida. Cf., entre muitos outros, cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.6.1999, Colectânea de Jurisprudência, T. II, pág. 136 e acórdão desta Relação de Guimarães de 25.10.2012, proc. 673/10.1TBVCT.G1, in www.dgsi.pt. Já no sentido da inadmissibilidade da prova testemunhal e da prova por presunção, cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.1999, BMJ 488/313 e Colectânea de Jurisprudência de 1999, T. II, pág. 136, porém, com dois votos de vencido.
[14] Colectânea de Jurisprudência, T. II, págt.18.
[15] Colectânea de Jurisprudência, T. II, pág. 138.
[16] Estudo sobre Provas, BMJ 12/191.
[17] RLJ 129, pág. 360 e seg.s.
[18] RLJ 101/270 e seg.s.
[19] Código Civil anotado, 2ª edição revista, vol. II, pág. 34 (anot. Ao artigo 787º).
[20] In www.dgsi.pt.
[21] Colectânea de Jurisprudência, T. I, pág,.s 71 e seg.s.
[22] Vaz Serra, RLJ, Ano 103, página 13, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.09.1996, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça T. III, pág. 16.
[23] José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, 3ª edição, pág. 187, citando o acórdão da Relação de Lisboa de 14.12.2006 (Fátima Galante), proc. 9662/2006-6, in www.dgsi.pt.
[24] Ob. cit., pág. 186.
[25] Temas da reforma do Processo Civil, Almedina, 4ª edição, II volume, pág. 133.
[26] Pág. 134.
[27] Acórdão do STJ de 3.3.1998, Colectânea de Jurisprudência do Sup., T. I, p. 102.
[28] Não podendo excluir-se a possibilidade de virem a surgir novos factos atendíveis na instrução da causa.